ENTRE O OLHAR DOCUMENTAL E SUBJETIVO: O REGISTRO FOTOGRÁFICO COMO EXPERIÊNCIA

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ENTRE O OLHAR DOCUMENTAL E SUBJETIVO: O REGISTRO FOTOGRÁFICO COMO EXPERIÊNCIA Viviane Gueller

RESUMO Este artigo aborda o processo de criação que envolve uma proposição artística a partir de diferentes tipos de encontros cuja ocorrência se dá no cotidiano. Tendo a fotografia como fio condutor, se estabelecem aproximações entre o documental e o subjetivo, relacionando-a com a prática dos surrealistas, em especial com Nadja, de André Breton, e com as reflexões de Jean-François Chévrier e Joan Fontcuberta. Palavras-chave Encontro; Experiência; Fotografia.

Em 1927, André Breton trocou uma longa correspondência com uma mulher com quem deambulou pelas ruas de Paris. Ela se chamava Nadja e esse nome havia escolhido para si mesma “porque em russo é o começo da palavra esperança” (BRETON, 2007, p.66). Tais encontros ocorriam frequentemente entre os surrealistas a partir da experiência da errância, ao sugerir um programa de exploração

da

cidade.

Nadja

é

também

uma

flâneuse,

que

estabelece

simultaneamente relações de intimidade e estranheza com a cidade e seu amante. Do encontro entre eles, nasce Nadja (1928), uma das obras emblemáticas neste sentido. “André? André...Você vai escrever um romance sobre mim. Garanto. Veja só: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que reste algo de nós” (ibid., p.94). Ao escrevê-la, Breton revisitou vários lugares para obter uma imagem fotográfica “do mesmo ângulo especial” (ibid., p.138) que as havia considerado quando de sua experiência propriamente dita. Sob as fotografias, as legendas aparecem no formato de citações textuais com números de página. “Ele transforma ruas, portas, praças da cidade em ilustrações de um romance popular, arranca da arquitetura secular de Paris suas evidências banais para aplicá-las, com toda a sua força primitiva, aos episódios descritos”1. Assim como em Nadja, no qual texto e imagens descrevem os lugares por onde Breton passa, não eram os lugares captados pela fotografia o que mais me 1

Comentário de Walter Benjamin no apêndice de Nadja.

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interessaria, mas a experiência. Em minhas caminhadas pelas cidades, que resultou na série Projeto Paisagístico (2007), percebi uma recorrência de encontros entre elementos da vegetação com construções humanas, como se algo os tivesse entrelaçado — a constituição da paisagem urbana como um organismo que amalgama natureza e cultura — palimpsesto de vegetação, concreto, sinalização viária, arquitetura, situações normalmente despercebidas no cotidiano. Um diálogo entre a natureza e o urbano que tenta acontecer. Durante os percursos pelas cidades, árvores se revelavam, subitamente, como forquilhas, tomando a configuração de prédios; raízes a forma de calçadas; ninhos, a extensão de fios de luz. Na passagem de uma situação a outra, passei a observar o emergir de organismos urbanos, a vida se aglutinando a partir de um mesmo movimento. Com a sistematização deste material, foi constituída uma tipologia urbana, reunindo uma compilação visual de encontros entre elementos da vegetação (árvores, jardins, ninhos, casulos) e elementos urbanísticos típicos da cidade, sejam arquitetônicos ou gráficos (derivados da mídia publicitária e da sinalização urbana).

Fig.01 – Projeto Paisagístico – instalação de parede - 58º Salão de Abril , Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará - Fortaleza/CE (2007).

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Uma referência importante aqui são as séries registradas pelos artistas da chamada Nova Objetividade alemã (Neue Sachlichkeit), — sobretudo a geração de fotógrafos que saiu às ruas para investigar lugares e extratos humanos pouco visíveis na arte e na cidade, em busca da significância das coisas ordinárias. Com seu projeto O Homem do Século XX, August Sander fez uma série de retratos destinados a documentar o conjunto total dos tipos humanos que compunham a Alemanha no início do século. E na sequência desta linhagem, os trabalhos de Edward Ruscha, com Twentysix Gasoline Stations (1963) e Dan Graham com Homes for America (1966-1967), que retratam lugares feitos de repetições e de vazio, também interessam a esta pesquisa em virtude da sua temática das ruas, do olhar voltado para situações banais: o homem comum, a paisagem comum. E também, na maneira como estes trabalhos circularam nos anos 1960 — as séries de imagens de Ed Ruscha nos livros de artista e as de Dan Graham, publicadas nas páginas da Arts Magazine, as relações que estabelecem com a palavra, as sucessões da sintaxe. Além disso, a influência destes artistas sobre a problematização em torno da imagem e seu poder de atestar e atribuir veracidade aos fatos é fundamental na minha prática, que reflete e procura colocar em evidência o jogo entre o cotidiano e o absurdo, o limite tênue daquilo que comumente se denomina realidade. Um olhar sobre a experiência ordinária no mundo, na qual a banalidade se configura em estranheza. Para Jean-François Chévrier, desde Homes for America, a fotografia encontrou seu lugar de informação visual combinada com a informação escrita, na página de uma revista — que constitui o lugar de uma experiência de leitura. “A fotografia é um instrumento de in-formação, de pôr em forma a experiência, na medida em que é material de montagem” (CHÉVRIER, 2007, p.230). Chévrier aponta que em Homes for America, obra e comentário estão presentes simultaneamente em um mesmo espaço de percepção, o espaço da informação. “Esta já não é informação sobre algo, é informação de. Constitui a própria forma artística.” (p.232). Para ele, a obra de Dan Graham se relaciona à dialética documento-ficção de Jean Luc Godard, cuja ficção de seus filmes é baseada em dados documentais. Embora Godard partisse do imaginário para descobrir o real, por trás desse real, voltava a aparecer o imaginário.

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“Godard sempre concebeu seus filmes como ensaios. Assim, a parte documental tem a ver com seu próprio desenvolvimento” (ibid., p.252). Nos trabalhos que venho desenvolvendo, o texto que se relaciona às imagens pode se constituir por apenas uma frase ou por várias; pode, ainda, se utilizar das ferramentas do jornalismo, como matérias ou manchetes que supostamente funcionariam como subsídios às fotos. Mas o texto não é algo que acompanha a obra, que a intitula ou a legenda, é parte do material que utilizo. O que me interessa é a relação que irá se estabelecer entre imagem e texto, assim como entre som e imagem, utilizando os materiais como o poeta utiliza as palavras, como o DJ, os diferentes tipos de som, dando a estas palavras, a estas imagens, sons e vozes um significado novo em função da maneira como elas serão editadas. No projeto Rodapé (2010-2011), por exemplo, propus um convívio entre imagens de pequenas ocorrências do cotidiano e matérias jornalísticas cujo conteúdo estranho leva a refletir sobre sua veracidade, num jogo entre o absurdo e o ficcional. Uma referência a nota de rodapé, mas também ao local onde ocorre o encontro entre o eixo vertical e o horizontal de uma construção, entre o que está sob o controle da racionalidade e aquilo que é primitivo, que está em estado natural, que se deita ao chão. Sob este título-conceito, criei um trabalho em formato de boletim eletrônico, como uma proposta de circulação via internet. Como boletim, ele diferenciava-se dos demais veiculados por empresas e instituições nos quais o recorte de conteúdo é específico e se dá a partir de sua função de marketing político ou institucional, a partir de estruturas sociais que tem uma localização específica: Rodapé era um encontro de percepções que se utilizava desse mesmo formato (meio) do boletim eletrônico, mas com um fim poético ligado ao cotidiano, à experiência das pessoas. Em um veículo de comunicação impresso como jornal, revista ou boletim informativo, espera-se que um texto informe sobre uma imagem. Em Rodapé, se operava um desvio, o texto desinformava sobre a imagem. Neste sentido há também uma aproximação com a prática do détournement (desvio), publicações em jornais e fanzines nas quais as imagens não correspondiam aos dizeres, os textos contradiziam seu conteúdo, desenvolvidas pelos situacionistas entre os anos 1950 e 1960. Para Cristina Freire, o détournement

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trata de subverter uma imagem de situação cotidiana, emprestando-lhe outro sentido, às vezes diametralmente oposto ao original. Ainda operando no ‘texto’ urbano, o détournement de meios de comunicação cotidianos, como o jornal, também são frequentes. A ideia subjacente a esses projetos supõe que olhar para o mais banal dos veículos de comunicação, com olhar de distanciamento, possibilitaria uma perspectiva mínima para ressensibilizar o entorno. Sair da cegueira do hábito, criar um distanciamento, ressignificar experiências da vida cotidiana ou, pelo menos, provocar o estranhamento através de situações inusitadas. (FREIRE, 1999, p. 142).

Fig.02 - Atelier Populaire. Information libre. 1968. Disponível em: http://lizlangstaff.blogspot.com.br/2011/11/situationis ts-international.html. Acessado em 13/06/2014.

Guardadas as peculiaridades dos meios em questão — da mídia impressa à mídia eletrônica — com Rodapé eu buscava, assim como o détournement dos situacionistas e Homes for America de Dan Graham, uma proposição que tivesse lugar entre o que os meios de comunicação transmitem como sendo real e a ficção engendrada no cotidiano, numa zona de atrito com os valores das coisas produzidas pela sociedade. A natureza destas ações era a de promover a circulação de conteúdos que subvertessem a lógica do circuito na qual o trabalho estava inserido, operando, através dele, a abertura de frestas no automatismo do cotidiano. Em 2011, Rodapé foi selecionado para o Diário Contemporâneo de Fotografia do Pará. O trabalho ocorreu com o envio do boletim para todo o mailing do evento, estabelecendo uma interlocução com a comunidade local, na proposição de uma

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arte relacional, mas também como um pop-up no site do Diário, propondo uma espécie de invasão na página.

Fig.03 e Fig.04 — Duas edições (de um total de 10) da série Rodapé.

Fig.05 - II Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia de Belém/ PA (2011). Intervenção no site do evento.

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Desta linhagem fortemente marcada pelo trabalho de Dan Graham, Chévrier traz o precedente de Walker Evans, em seu interesse pela arquitetura funcional urbana e suburbana do pós-guerra. Para Chévrier, a arte de Evans era sistematicamente documental e não pretendia ter utilidade alguma. Embora tenha encontrado na tradição documental um estilo e um procedimento criativo, não queria produzir verdadeiros documentos. Nesse sentido, em uma entrevista, Evans declarou: “Você vê, a arte é realmente algo inútil e, ao contrário, um documento é útil. Portanto a arte nunca é um documento, mas pode adotar seu estilo. Isso é o que faço”. (EVANS apud CHÉVRIER, p.91). Esse aspecto da fotografia documental com um ponto de vista subjetivo presente no trabalho de Walker Evans e na série de imagens Homes for America de Dan Graham é algo que identifico nos meus registros. A fotografia como documento da cultura, mas buscando um olhar subjetivo é o que Walker Evans iria definir como estilo documental. A esse respeito, Joan Fontcuberta observa que durante a década de 1970, o documentalismo como atitude programática obteve uma hegemonia entre os artistas que utilizavam a fotografia, marcando uma tradição que havia sido teorizada pelos surrealistas ao recuperar a obra de Eugène Atget. “Não que a fotografia tivesse uma dupla natureza — arte e documento, e sim que o documento era necessariamente artístico”. (FONTCUBERTA, 2010, p.66). Se recuarmos um pouco mais no tempo, nos anos 1920, encontramos a Nova Objetividade alemã que irá influenciar Walker Evans, principalmente o trabalho de August Sander. Sobre a obra de Sander, Face of our time, publicada em 1929, Evans declara que se trata “mais do que um livro sobre estudo de tipos, é um exemplo de um olhar orientado pertinentemente para as pessoas. É um dos caminhos futuros da fotografia anunciado por Atget” (EVANS apud CHÉVRIER, p.268). É sobre esse aspecto documental da fotografia que Jean-François Chévrier irá se debruçar. “A fotografia me interessava porque é realista e porque seu realismo, entre as belas-artes e os meios de comunicação, lhe permite evitar as categorias ideológicas instituídas” (CHÉVRIER, 2007, p.24 e 25). Para ele, é nesta mesma situação, entre as belas artes e os meios de comunicação, que estará situada a linguagem de Walker Evans, entre a metrópole e o mundo rural, entre o arquétipo

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primitivista e o estereótipo historicista e industrial “em que os escassos exemplos da ‘grande’ arquitetura participam da diversidade de bricolagens e estilos tomados em préstimo” (ibid., p.271). Assim como Chévrier, Joan Fontcuberta terá neste lugar do entre uma ressonância em sua escrita — ao transitar entre a teoria e a prática artística, entre a crônica e o ensaio. Deste lugar, entre artista e teórico, ele afirma de início no livro O beijo de Judas – Fotografia e Verdade que os criadores costumam ser monotemáticos (FONTCUBERTA, 2010, p.09), e que não fazem mais do que se voltarem obsessivamente à mesma questão. Para mim, essa questão gira em torno do encontro, que, desde sempre, me instiga. O contraste entre o orgânico e o industrial, o funcional e o poético, o caos e a suavidade. Tensionamentos, simbioses, o espaço entre as coisas. Natureza e cultura, real e ficção, imagem e texto. O encontro entre as pessoas, mas também entre as coisas. Acasos, como no I-Ching. A experiência que disso decorre. Na aproximação de duas imagens distantes, de maneira arbitrária, há a busca por um sentido a partir de uma provocação, propondo a revisão do universo em que elas estão inseridas. Como o encontro fortuito entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecação, máxima surrealista apropriada dos Cantos de Maldoror, do Conde de Lautréamont, poeta uruguaio que viveu na França na segunda metade do século XIX. Esta ideia viria a ser um dos pilares da atividade surrealista, dando origem à noção de acaso objetivo. Enquanto a colagem seria definida por Max Ernst como o encontro fortuito entre duas realidades distantes em um plano não pertinente. A forma de pensar e trabalhar minhas fotografias tem sido a de trazê-las para uma situação de encontro. É ao aproximá-las que percebo o que venho fotografando. A montagem como uma conversa, um diálogo. Após os encontros entre natureza e concreto, de imagem e texto, volto a vasculhar nos meus arquivos recentes de fotos. Percebo que há uma recorrência em meu olhar, de indivíduos à margem da sociedade, de maneiras estranhas que as pessoas se colocam na cidade, a forma como elas se movimentam, nas tipologias de atividades às quais se dedicam. Imagens registradas em diferentes lugares e situações, mas que tal como

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Lautréamont e os surrealistas tem uma proposição de encontro fortuito, de espaço compartilhado.

Fig.06, Fig.07 e Fig.08 – Acima, 3 dípticos da série As cidades descaradas. 2013.

Assim como capto essas coisas no espaço cotidiano, que tem relação com uma reflexão da fotografia enquanto constituição sobre modos de ver e investigação acerca da natureza (das coisas), minha vontade é a de devolver o trabalho para um lugar público, numa outra camada de encontro. Sempre me questiono sobre qual a

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melhor forma de apresentação, qual o meio mais adequado. Como tornar essa experiência uma conversa com o espectador? Seria pela via dos livros de artista, pelas pequenas publicações, que trabalham mais no âmbito da intimidade? Em projeções no espaço público ou em espaços virtuais, que poderiam alcançar um maior número de pessoas, ainda que cada vez mais os espaços virtuais pareçam estar substituindo a experiência? Entre os efeitos que Fontcuberta enumera com relação à onipresença do binômio computador + fotografia, no que diz respeito a pós-produção é a criatividade compartilhada de forma rápida e fácil entre artistas, obra e público. Dessa forma, se estabelece um diálogo aberto com o espectador que participa e compartilha a dinâmica criativa. (ibid., p.102). Ao ser convidada por Tiago Rivaldo, amigo e artista gaúcho radicado no Rio de Janeiro, para participar do projeto Bota na Roda

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(Rio de Janeiro, junho/

2013), passei a trabalhar com combinações fotográficas que os encontros iam propondo, em contiguidades inesperadas, justaposições estranhas, numa série que intitulei As cidades descaradas. Por vezes, o humor ou o lirismo ou, ainda, a combinação de ambos nestas situações do pormenor, do desimportante, parecia se instalar na fenda entre as imagens. O tema para a 5° edição do Bota na Roda era o espelho. Espelho como lugar de confronto e encontro. Não haveria nesse gesto de aproximar minhas fotos uma ideia de espelho? E se eu as pensasse enquanto pares, de que forma se estabeleceriam as relações entre as duplas? Segundo Fontcuberta, o espelho atuou frequentemente como metáfora da câmera fotográfica (ibid., p. 25). Ele nos lembra da etimologia da palavra em latim, speculum, que também deu origem ao termo especulação. “Especular significava observar o céu e os movimentos relativos das estrelas com a ajuda de um espelho. O termo latino sidus (estrela) derivou igualmente em consideração, que significa etimologicamente olhar o conjunto das estrelas” (ibid., p.26). Ou seja, as palavras especular e considerar irão surgir desta atividade ancestral de estudo dos astros, que tem registros em artefatos como em Stonehenge, nos montes de Newgrange, 2

O projeto Bota na Roda reúne 30 artistas em eventos que ocorrem todo o primeiro domingo de cada mês no Comuna, espaço multifuncional e colaborativo na cidade do Rio de Janeiro. São curadoriascelebrações, nas quais o mais importante são as experiências criativas, abertas para jogos e festas. Todo o processo é compartilhado via redes sociais, além da curadoria buscar na internet outras proposições que tenham consonância com a ideia ou tema da vez.

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nos menires, além das primeiras civilizações de que se tem notícia, como os babilônios,

gregos, chineses, indianos, iranianos

e maias,

que realizaram

observações metódicas do céu noturno. Se especular é relativo a espelho, mas também significa pesquisar, examinar, averiguar determinada questão, de que forma a imagem enquanto experiência e encontro pode apontar para este devir? Vivemos em uma época de saturação de imagens: há uma overdose de informação visual nas cidades, tudo parece espremido na paisagem urbana. De que forma espelhos como em As cidades descaradas denunciam nossos limites de percepção? Em um ideograma japonês, alma e mente tem a mesma caligrafia. Na natureza, cada flor se parece com um tipo de inseto que é atraído por ela, seu duplo. Nem um dos dois percebe a importância de seu ato amoroso. Como saberiam que por causa de sua pequena dança o mundo vive? Diferentes palavras, culturas e pensamentos deslocados aqui de seus contextos parecem (re)produzir diferentes significados. Em As cidades descaradas, acredito que este deslocamento pode adquirir diversas camadas. Num primeiro momento, no próprio ato que envolve o registro. Grande parte ocorre em viagens, em situações de circulação, assim como as pessoas captadas nas fotos. Se por um lado, há um deslocamento físico pelas situações em trânsito clicadas, não haveria também na escolha,

enquadramento

descontextualização

de

e

encontro

informações?

entre Se

a

as própria

imagens, arte

se

operando

a

constitui

de

deslocamentos, de se inventar outras maneiras de fazer percursos que não estão impostos, de inventar lugares e situações, de que forma essas imagens prosaicas que hoje em dia qualquer pessoa é capaz de fazer por conta da facilidade de acesso aos meios reprodutivos, não apenas ilustram a época em que vivemos, mas problematizam, provocam uma reflexão sobre aquilo que se produz em nosso cotidiano?

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Fig.09, Fig.10 e Fig.11 – Acima, 3 dípticos da série As cidades descaradas. 2013.

Em uma entrevista, Jean-François Chévrier diz que a crítica da vida cotidiana é, para ele, uma necessidade. “O instrumento fotográfico é interessante precisamente porque não é, por definição, um instrumento puramente artístico e porque participa da reprodução cultural da vida cotidiana” (CHÉVRIER, 2007, p.311). A respeito disso, reafirma sua crença de que se pode superar a fotografia na fotografia tal como o russo Vsevolod Meyerhold, ator e um dos mais importantes diretores e teóricos de teatro da primeira metade do século XX, se propôs a superar o cotidiano no

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cotidiano. Uma procura do aqui, da potência do momento, da inevitável transformação, de uma fixidez que é sempre momentânea, como nos lembra Otávio Paz. Tudo resplandece: os animais, as pessoas, as árvores, as pedras, as imundícies. [...] Os objetos se animam secretamente, emitem chamadas, respondem aos chamados, não se movem e vibram, estão vivos com uma vida diferente da vida. [...] Fixo-me neste momento de imobilidade: a hora é um bloco de tempo puro (PAZ, 1988, p.76 e 78).

Paz nos convida a colocar o olhar em direção a outras margens, propõe nos arrancarmos do ambiente rotineiro, do hábito, para refletirmos sobre a linguagem e suas relações com a experiência, neste caso a que ele teve na Índia, como embaixador do México. De que forma caminhadas como a que ele fez pelo caminho de Galta, no Rajastão, podem contribuir para revelar e dar visibilidade a essas situações imperceptíveis ao olhar cotidiano? Como dar conta dessa articulação entre arte e vida? Fernando Pessoa costumava dizer que suas grandes ideias tinha ao caminhar. Werner Herzog caminhou em linha reta durante três semanas de Munique a Paris quando soube que Lotte Eisner, umas das primeiras mulheres críticas de cinema, estava gravemente doente e que provavelmente morreria. O ato de caminhar para esvaziar a mente, para produzir um espaço silencioso. Abrir os sentidos, ativar o estranho que existe em nós, mobilizar o corpo. A linguagem do corpo dialoga com a linguagem do corpo das coisas. Como numa espécie de arqueologia, neste percurso, há uma busca pela origem da experiência: suas vísceras, órgãos, esqueleto. Uma rede de conexões entre os registros fotográficos, as pessoas e as coisas do mundo, num curto circuito entre arte e vida.

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Fig.12 e Fig.13 – Acima, 3 dípticos da série As cidades descaradas. 2013.

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Fig.14, Fig.15 e Fig.16 – Acima, 3 dípticos da série As cidades descaradas. 2013

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FIG.17 e FIG.18 – Acima, dois dípticos da série As cidades descaradas. 2013

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FIG.19 e FIG.20 – Acima, dois dípticos da série As cidades descaradas. 2013.

REFERÊNCIAS BRETON, Andre. Nadja. São Paulo: Cosac Naify, 2007. CHEVRIER, Jean-François. La fotografía entre las bellas artes y los medios de comunicación. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2007. FONTCUBERTA, Joan. O beijo de Judas – Fotografia e Verdade. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2010. FREIRE, Cristina. Poéticas do processo – Arte Conceitual no Museu. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999. HERZOG. Werner. Caminhando no gelo. São Paulo: Paz e Terra, 2005. PAZ, Octavio. O monogramático. Rio de Janeiro: Editora Guanabara S.A, 1988.

Viviane Gueller Artista visual e jornalista, mestranda em artes visuais pelo PPGAV/UFRGS. Participou de várias coletivas e individuais; recebeu o prêmio de incentivo à criatividade no 16º Salão da Câmara Municipal de Porto Alegre; foi selecionada para o 58º Salão de Abril (Ceará), 29º Salão do Pará e 2º Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia (Pará). Em 2012, participou da Mobile Radio na 30.ª Bienal de São Paulo. Em 2013, do projeto Entre – Curadoria de AZ no MACRS (Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul), e no mesmo ano foi indicada ao VIII Prêmio Açorianos de Artes Plásticas com destaque em Mídias Tecnológicas.

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