Publicação latinidades 2012 griô&acesso

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha

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Ficha Técnica Coordenação Geral Jaqueline Fernandes Organização e Edição Ana Flávia Magalhães Pinto Cecília Bizerra Cláudia Maciel Daniela Luciana da Silva Jaqueline Fernandes Juliana Cézar Nunes Luana Ferreira Paula Balduino de Melo Sabrina Faria Uila Gabriela Verônica Diano Braga

Juventude Negra

Revisão Ana Flávia Magalhães Pinto Design, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica Chaia Dechen Fotografia Tatiana reis Pedro Daniel Sussumu Logomarca Latinidades André Valente Degravação Vany Campos – Degradigi Produção/realização Griô Produções Associação Cultural Ossos do Ofício Confraria das Artes Pretas Candangas

Griô Produções Latinidades V - Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha: Juventude Negra

Brasília | 2012 Organização | Griô Produções

1º Edição - Brasília, DF: Griô. 2013 Organização e Edição | Ana Flávia Magalhães Pinto Cecília Bizerra | Cláudia Maciel | Daniela Luciana da Silva Jaqueline Fernandes | Juliana Cézar Nunes Luana Ferreira | Paula Balduino de Melo | Sabrina Faria Uila Gabriela Verônica Diano Braga

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Sumário ..7.. Apresentação

..139.. Mesa 06 - Extermínio da Juventude Negra

..9.. Agradecimentos

..163.. Mesa 07 - Novas Perspectivas para a Militância Feminista e os Rumos do Feminismo Negro na América Latina

..11.. Programa

..19.. Mesa 01 - Diáspora Africana na America Latina e Caribe

..41.. Mesa 02 - Políticas Públicas para a Juventude Negra

..67.. Mesa 03 - Emprego e Renda

..85.. Mesa 04 - Saúde da População Negra

..115.. Mesa 05 - Cultura Negra

..185.. Mesa 08 - Identidade e Comunicação

..199.. Mesa 09 - Orientação sexual e identidade de gênero

..223.. Mesa 10 - Educação

..245.. Mesa 11 - Racismo Ambiental na América Latina ..261.. Homenageadas ..263.. Programação Cultural - Shows


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Apresentação De julho a novembro de 2012, nas Regiões Administrativas de Brasília, Estrutural, Paranoá, Varjão, São Sebastião e no Presídio Feminino Colmeia, o Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha – Latinidades promoveu debates, feira de afro-negócios, shows, intervenções culturais, lançamentos literários, oficinas, exibição de documentário, seminário e rodas de conversa sobre o tema Juventude Negra, foco desta quinta edição. Desde 2008, o projeto traz temas ligados ao machismo, ao racismo e à superação de desigualdades, com recorte de gênero, sempre acompanhado de ampla programação cultural gratuita. Os dados que nos levaram à realização do Latinidades sob esse tema são impactantes. A juventude negra encabeça a lista dos desempregados e dos que têm maior defasagem escolar no Brasil. Conforme registrado por Maria Aparecida Bento e Nathalie Beghin: O país conta com cerca de 11,5 milhões de jovens negros entre 18 e 24 anos de idade, o que representa 6,6% da população. A taxa de analfabetismo é de 5,8%. Em média, os jovens negros têm dois anos a menos de estudo do que os brancos da mesma faixa etária: 7,5 anos e 9,4 anos, respectivamente. (...) A comparação das taxas de escolarização é um indicador de como o sistema educacional brasileiro ainda tem muito o que fazer para combater as desigualdades raciais: a proporção de crianças no ensino fundamental é de 92,7% para negros e de 95% para brancos; no entanto, somente 4,4% dos negros, de 18 a 24 anos, chegam ao ensino superior; entre os brancos, esse percentual é de 16,6%. (...)

Numa equação bem conhecida, a conjugação perversa de diversos fatores, tais como racismo, pobreza, discriminação institucional e impunidade, contribui para a falência do sistema de segurança e justiça em relação à população negra. Essa relação não é fruto do acaso: distorções como a “presunção de culpabilidade” em relação aos negros resultam em ações que promovem a eliminação pura e simples dos suspeitos, violando os direitos humanos e constitucionais desses jovens. Ações que de tão recorrentes e banalizadas denunciam um processo silencioso de eliminação desse grupo da população . Há, portanto, muito a se fazer, e entendemos ser fundamental o compartilhamento de informações a respeito das várias dimensões do problema e das estratégias de enfrentamento e superação dessas desigualdades. Assim, reunimos o conteúdo das falas nesta publicação organizada pela Griô Produções e pelo Coletivo Pretas Candangas e contém o resultado dos debates realizados ao longo do festival, conforme o programa apresentado adiante. Todo o áudio dos debates foi captado e posteriormente degravado e organizado, gerando o conteúdo que aqui apresentamos. Esta é a terceira publicação do Latinidades que, nos anos anteriores, girou em torno dos temas “Censo e Políticas Públicas para Mulheres Negras” e “Mulheres Negras no Mercado de Trabalho”, disponíveis para download gratuito no site www.afrolatinas.com.br. Autorizamos a divulgação e reprodução deste material sem qualquer ônus, desde que não seja comercializado e que a fonte seja devidamente citada.

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Agradecimentos

Às nossas antepassadas, às nossas contemporâneas, às que vierem.

Dizem que quando um projeto completa cinco anos ele começa a tomar corpo de fato, e aqui estamos nós, somando a experiência adquirida nessa caminhada. Quanta luta cotidiana, quanta gente comprometida todos os anos em vir generosamente e dividir saberes, energias, amorosidades... Vamos no início de tudo e vemos quanto crescemos, o quanto agregamos valores com cada uma e cada um que passou e deixou sua contribuição para o festival. Voltando ao início a gente sente a necessidade de citar nomes, vários nomes de pessoas que nos fortaleceram. O primeiro nome que vem é GOG, que nos acolheu e materializou toda a estrutura para nossos primeiros shows, na Praça Zumbi dos Palmares. Sem as palavras e o movimento do GOG naquele momento, talvez não tivéssemos força ou condição para realizar a primeira edição, quando não tínhamos nada além de paixão, brilho nos olhos e várias portas fechadas, vários impedimentos de toda ordem. No mesmo ano as compas do Fórum de Mulheres Negras do DF: a mestra Jacira Silva e as manas Joelma Cesário, Tatiana Nascimento, Daniela Marques e Poli Preta trilharam os primeiros passos junto de nós. As artistas/rainhas que se apresentaram na parceria: Nanãn Matos, Indiana Nomma, Teresa Lopes, Vera Verônica, Nine Ribeiro, Priscila Martins, Lívia Cruz e Ellen Oléria. Rainhas!! Todas e todos ilustres palestrantes que já passaram pelas edições do festival, muitíssimo obrigada! Nossas homenageadas: Dona Raquel Trindade, Sueli Carneiro, Jacira Silva (sim, mais uma vez) e Makota Valdina. Todas as artistas que se apresentaram ao longo das cinco edições, e em 2012, especial para Gaby Amarantos, Paula Lima, Ilê Ayê, Ellen Oléria, MC leonardo, GOG, Yusa e Cristiane Sobral.

Ao deputado e parceiro de primeira hora, Luiz Alberto e sua equipe: Rosamaria e Andrea. Adriana Barbosa e Anike da Feira Preta. Ao Wagner Barja e João do Museu da República. À equipe da Biblioteca Nacional. Rodrigo Machado, Thaís Zimbwe, Larissa Borges, Claudia Maciel, Renata Felinto e Priscila Brasil. Deputadas Janete Pietá e Erika Kokay. Rodrigo de Paula e equipe do Sinproep. À Fernanda Papa e Severine Macedo, valiosas companheiras de luta. À equipe da Fundação Cultural Palmares nas pessoas de Newton Guimarães e Martvs Chagas. Um salve especial para Guilherme Reis e equipe do Cena Contemporânea. Para a nossa patrocinadora Petrobras nas pessoas de Samuel Magalhães, Rose Melo e Lucas Odoni. Ao Secretário de Cultura do DF e sua equipe, em especial Miguel Ribeiro, Alexandre Rangel, Dorival Brandão, Valdete Ferreira e Nelson Giles. À Marlene da Sepir/DF. À todas as manas e manos que tivemos a oportunidade de conhecer e abrigar em Brasília durante as edições do festival. À grande e sempre parceira de primeira chamada, Ionara Talita e Carlos Odas. Às produtoras, irmãs e guerreiras que abraçaram com a gente o festival como se delas, emprestando dedicação, brilho nos olhos, trabalho e muita competência: Alexandra Capone, Michelle Cano, Marta Carvalho, Fernanda Picorelli. Nossa decoradora oficial Patrícia Ribeiro. Cinco anos são feitos de muitas pessoas, obrigada, gente! Aos homens que se emparceiram conosco na caminhada. À todas as mulheres negras que construíram e as que estão dando visibilidade ao 25 de julho. Às nossas antepassadas, às nossas contemporâneas, às que vierem. À Sueli Carneiro, eternamente!!! Que venha 2013 !!

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Programação de Mesas de Debate Programação 2012 23/7 às 10h Diáspora Africana na América Latina e Caribe Ângela Figueiredo – Professora associada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro/UFBA). Rafael Sanzio – Professor do Departamento de Geografia da UnB Tanya Sanders − Professora do Departamento de Antropologia e Sociologia da Lehigh University, em Bethlehem, Pensilvânia, EUA Mediação: Renato Barbieri – Videomaker, diretor e produtor da Gaia Filmes

23-7 às 16h – Mesa 2: Políticas Públicas para a Juventude Negra Artur Sinimbu Silva – Assessor da Secretaria Executiva da SEPPIR/PR Ernandes Macário – Secretário Adjunto de Igualdade Racial do Distrito Federal Paulo Ramos − Mestrando em Sociologia, Especialista em Análise Política e Relações Institucionais, Consultor para SEPPIR/PR e Secretaria Nacional de Juventude Raquel Turci Pedroso – Coordenadora do Programa Saúde na Escola, Ministério da Saúde (MS) Severine Macedo − Secretária Nacional de Juventude (SNJ) Mediação: Thaís Zimbwe – Jornalista e Coordenadora da UJIMA – Trabalho Coletivo e Responsabilidade Mediação: Thaís Zimbwe – Jornalista e Coordenadora da UJIMA – Trabalho Coletivo e Responsabilidade

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha 24-7 às 14h – Mesa 3: Emprego e Renda

25-7 às 14h – Mesa 6: Genocídio da juventude afro-latina

Eunice Léa de Morais – Gerente de Projetos da SEPPIR/PR

Rosana Sousa de Deus − Secretária Nacional de Juventude da CUT

Alane Reis – Representante do Núcleo de Estudantes Akofena da UFRB Débora Maria – Representante do Grupo Mães de Maio Eneida Paiva − Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde Fernanda Papa – Coordenadora do Plano Juventude Viva da Secretaria Nacional de Juventude MC Leonardo – APA Funk

Mediação: Paula Balduino de Melo – Doutoranda em Antropologia (UnB), Diretora do

Mediação: Daniela Luciana da Silva – Jornalista, Diretora do Coletivo Pretas Candangas

João Paulo Cunha – Pesquisador do Data Popular Makota Kizandembu − Mestra em Indumentária Africana, GT de Moda Afro do CNPC Nilva Shroder – Coordenadora do Pronatec / MEC

Coletivo Pretas Candangas

24-7 às 16h – Mesa 4: Saúde da População Negra Cláudia Araújo de Lima – Área Técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde Crisfanny Souza – Psicóloga, Representante da Rede de Controle Social e Saúde da População Negra Fernanda Lopes − Oficial de Programa em Saúde Reprodutiva e Direitos do UNFPA Mônica Oliveira − Diretora de Programas da SEPPIR/PR Mediação: Cecília Bizerra – Jornalista, Diretora do Coletivo Pretas Candangas

25-5 às 16h – Mesa 7: Novas perspectivas para a militância feminista e os rumos do feminismo negro na América Latina Bruna Pereira – Pesquisadora da UnB na linha de Feminismo, Relações de Gênero e de Raça Giselle Cristina − Pesquisadora, autora do livro Somos Todas Rainhas Jaqueline Lima Santos – Pesquisadora com recorte geracional, racial e de gênero Sueli Carneiro − Doutora em Educação pela USP e diretora do Geledés − Instituto da Mulher Negra Mediação: Larissa Borges – Integrante dos grupos de rap Negras Ativas e Atitude de Mulher, do coletivo Hip Hop Chama e Assessora da Coordenadoria da Juventude da Prefeitura de Belo Horizonte

25-7 às 10h – Mesa 5: Cultura Negra Cristiane Sobral – Escritora e atriz, criadora da Cia de Arte Negra Cabeça Feita Margot Ribeiro – Presidenta do Instituto Cultural Congo Nya Renata Felinto − Educadora, artista plástica, pesquisadora Valdina Pinto – Liderança política e religiosa, Makota (auxiliar direta da Mãe de Santo) do Terreiro Tanuri Junsara Verônica Nairobi – Representante regional Bahia/Sergipe da Fundação Cultural Palmares. Mediadora: Maria Paula de Andrade – jornalista e apresentadora

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26/7 às 10h – Mesa 8: Identidade e comunicação Ana Cristina dos Santos – Pesquisadora Associada do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade Ludymilla Santiago − Ativista do Movimento Trans do Distrito Federal Tábata Alves – Representante do Grupo de Ativistas Travestis e Transexuais de São Paulo – Gata Tiely Queen – Atriz, cineasta, cantora/rapper escritora virtual Verônica Lourenço – Membro da Coordenação Colegiada Nacional da Sapatá Mediação: Claúdia Maciel – jornalista, apresentadora do programa Ação periferia da CUFA

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26/7 às 14h – Mesa 9: Orientação sexual e identidade de gênero Ana Cristina dos Santos – Pesquisadora Associada do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade Ludymilla Santiago − Ativista do Movimento Trans do Distrito Federal Tábata Alves – Representante do Grupo de Ativistas Travestis e Transexuais de São Paulo – Gata Tiely Queen – Atriz, cineasta, cantora/rapper escritora virtual Verônica Lourenço – Membro da Coordenação Colegiada Nacional da Sapatá Mediação: Luana Ferreira – Historiadora, militante autônoma

27-7 às 14h – Mesa 10: Educação Denise Botelho – Professora do Departamento de Educação da UFRPE e pesquisadora da linha Educação e Políticas Públicas: Gênero, Raça, Etnia e Juventude (GERAJU) Kabengele Munanga – Antropólogo e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Maria Auxiliadora Lopes – Coordenadora-Geral de Educação das Relações Etnicorraciais da SECADI-MEC Mediação: Vera Verônika − Mestra em Educação, rapper, ativista

27-7 às 16h – Mesa 11: Racismo Ambiental na América Latina Aida Feitosa – Representante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial -DF Carmela Zigone – Antropóloga da UnB Denildo Rodrigues de Moraes (Bico) – Representante da CONAQ Taneska Santos de Santana – Pesquisadora da UFBA Mediação: Ionara Talita Silva − Jornalista, educadora popular, assessora de Comunicação da Coordenadoria de Juventude da Secretaria de Governo do Distrito Federal

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Shows 25/7 22h Cabeça Feita com Cristiane Sobral | Paula Lima (SP) 23h30 Ilê Ayiê (BA) 26/7 21h Batalha de Rimas (DF) | 22h GOG | MC Leonardo (RJ) 27/7 22h Purto Candelaria (Colômbia) 28/7 22h Gaby Amarantos (PA) 23h30 Sistema Criolina (DF) 29/7 22h Yusa (Cuba) Quarteto Marakamundi (DF) Ellen Oléria (DF) 23h30 Sistema Criolina

Lançamentos Literários 24/7, terça-feira, 18h Lançamento do professor Rafael Sanzio: Mapa Temático Educacional: geopolítica da diáspora África – América – Brasil – séculos XV – XVI – XVII – XVIII – XIX: cartografia para educação. Brasília: Editora UnB. 25/7, quarta-feira, 18h Lançamento da escritora Renata Felinto: Culturas Africanas e Afro-brasileiras em Sala de Aula – Saberes para os Professores, Fazeres para os alunos. Belo Horizonte: Fino Traço Editora. Lançamento da escritora Cristiane Sobral: Não Vou mais Lavar Pratos e Espelhos, miradouros, dialéticas da percepção. Brasília: Dulcina Editora.

27/7, sexta-feira, 18h Lançamento da escritora Ana Flávia Magalhães Pinto: Imprensa Negra do Brasil no século XIX. São Paulo: Selo Negro.

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Diáspora Africana na America Latina e Caribe Mesa 01 Renato Barbieri Mediador Videomaker, diretor e produtor da Gaia Filmes É sempre uma grande oportunidade para ampliarmos a consciência sobre um tema tão complexo e muitas vezes dissimulado, oculto pela grande mídia. Esses temas da diáspora interessam a todos nós, todos os brasileiros, mesmo que muitos não saibam disso. Antes de passar a palavra para os nossos palestrantes, eu gostaria de propor um eixo temático para que haja alguma convergência nessa conversa. Vou pedir, na medida do possível, que os palestrantes convirjam as suas palestras dentro dessa perspectiva do jovem afrodescendente, da inserção e da identidade do jovem afrodescendente, que é um dos eixos temáticos do Latinidades. Quando a gente vê a questão da criminalidade, ao mesmo tempo, a gente vê uma cultura de massa alienada dessa temática da identidade. Isso muitas vezes também é alienado das políticas públicas. Temos visto já alguns avanços, mas eu ainda considero avanços tímidos. Investem-se recursos pesadíssimos na construção de pontes, mas acredito que tem que se começar a investir recursos pesados também na ponte do Brasil com a África, por exemplo. Essa ponte simbólica é da maior importância para nos reconhecermos como um povo de matriz africana. Essa ponte é muito dificultada e intermediada pela Europa. As notícias que chegam da África para nós são via Europa. O Brasil é um país que não tem ainda correspondentes no continente africano. A nossa mídia possui uma mentalidade escravagista ainda presente. A escravidão acabou, mas a mentalidade escravagista permaneceu. Se um jovem afrodescendente não tiver as referências da africanidade vai ficar difícil para ele se

entender. Quem sou eu, de onde venho, para onde vou. A identidade africana é um ponto-chave para a bússola interna dos jovens afrodescendentes, que muitas vezes estão imersos numa cultura de massa, como eu disse, alienada, e as políticas públicas pouco estão contribuindo para a expansão dessa consciência. Os movimentos sociais vêm trabalhando nisso, mas com pouco apoio. Enfim, eu queria lançar essa provocação para os debatedores.

Tanya Saunders Professora do Departamento de Antropologia e Sociologia da Lehigh University, em Bethlehem, Pensilvânia, EUA Obrigada aos organizadores dessa conferência pelo convite. Ainda estou aprendendo português, então vou ler minha apresentação, intitulada “Diáspora africana nas Américas como fonte de conhecimento”. Abordarei o Hip Hop como um exemplo disso. Antes de situar o Hip Hop dentro da diáspora africana, é importante definir o conceito, o termo diáspora africana, que é muito debatido nas áreas de estudos negros e estudos afro-americanos. No meu trabalho, eu emprego a formulação de Agustin Lao-Montes, que entende diáspora africana como um campo histórico multicêntrico, uma formação complexa, doída, geocultural, de produção cultural e organização política moldada pelos processos históricos mundiais de dominação, exploração, resistência e emancipação. Isso é importante porque o surgimento do sistema capitalista contemporâneo e sua correspondente organização social dependem da lógica cultural que foi desenvolvida

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20 a fim de criar hierarquias sociais. Foram propostas as necessidades produtivas do capital da Europa ocidental com início no período colonial. Agustin LaoMontes crê que o afro-americano, no sentido regional, não é uma formação uniforme, é mais uma montagem das histórias locais interconectadas pelas condições comuns da raça. Política, economia, opressão, cultura da diáspora não são apenas baseadas em experiências históricas semelhantes de subordinação racial, mas também nas afinidades culturais, na similaridade do repertório de resistência, produção intelectual e ação política. Uma perspectiva de África diaspórica pode nos permitir repensar a memória, a cultura e a estrutura de poder como unidades de análise. Portanto, trata-se de desenvolver uma política de descolonização que não se limita ao nacionalismo. Essa perspectiva nos permite pensar sobre o caráter político das práticas culturais das populações negras expressas por meio das artes, em Black Music como Hip Hop, especialmente nas Américas, no modo como suas músicas e letras abordam as questões da realidade local e global que os sujeitos vivenciam como parte de uma população marginalizada de afrodescendentes nas Américas. Em seu projeto ideológico, os artistas utilizam uma consciência negra radical que rejeita os limites da nação, a fim de destacar e denunciar os métodos de ação pelos quais os capitalistas da Europa Ocidental conspiram através das fronteiras culturais e nacionais para estabelecer um sistema global capitalista. Parte disso está ligada à utilização da música negra como uma forma de deliberação política. Música, dança e as outras coisas que são chamadas de arte têm sido uma parte essencial das práticas políticas africana e indígena. Essa é outra razão pela qual uma abordagem diaspórica é importante, pois as ações políticas de milhões de pessoas são ignoradas por não se encaixarem num campo definido da Europa

Ocidental de participação política. Esse é o lugar onde o movimento global do Hip Hop contemporâneo se torna muito interessante. Um país como Cuba é um estudo de caso importante porque a política da identidade negra e os discursos culturais afrocêntricos têm sido uma parte essencial da cultura de Cuba, de sua história e da consciência nacional ao longo dos séculos. Os artistas do movimento Hip Hop em Cuba localizam-se como parte da diáspora africana mediante a sua autodefinição como negros. Suas músicas e letras abordam as questões da realidade local e global que vivenciam como parte de uma população marginalizada de afrodescendentes nas Américas. Em seu projeto ideológico, os artistas utilizam uma consciência negra radical, a fim de descartar e denunciar os métodos de ação pelos quais os capitalistas tentaram estabelecer um sistema global. Grande parte disso está ligada à utilização da música negra como forma de deliberação política dentro de Cuba. Chris Oros apresenta o Hip Hop como uma cultura da música da diáspora, como Black Music. A noção de Black Music não apenas se refere à identificação racial ou à classificação da pessoa que executa a música. Ela não limita a sua compreensão da música negra aos americanos negros. No entanto, expande-se para influenciar aqueles que são culturalmente e fisicamente identificados como afrodescendentes. Raquel Rivera, em seu livro New York Ricans From The Hip Hop Zone, afirma que os porto-riquenhos são culturalmente parte da diáspora africana. Ela argumenta que as tensões entre a realização e a identidade racial, a identidade cultural e da população cultural são refletidas no fato de que o envolvimento de porto-riquenhos na criação do Hip Hop tem sido subestimado ou ignorado como meio de manter as extensões raciais entre negritude e latinidade nos Estados Unidos e em Porto Rico. O desafio desses afrodescendentes contra a modernidade europeia, que os limita a um sistema cultural desenvolvido durante a

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colonização das Américas para assegurar os interesses econômicos imperiais europeus, é uma luta pela hegemonia cultural. Trata-se da configuração do poder cultural a fim de alterar radicalmente a sociedade por meio de uma revolução ideológica. No caso de Cuba, o estado cubano afirma que uma das principais conquistas tem sido estabelecer a igualdade racial, a igualdade das mulheres e a libertação sexual entre os cidadãos. Têm havido alguns ganhos para as mulheres heterossexuais e os homens gays ao longo dos últimos cinquenta anos, mas a efetivação dos direitos das lésbicas parece ter estagnado em anos recentes. A isso se soma o fato de que o espaço público social para as lésbicas negras é tão underground que muitas delas não têm conhecimento de sua existência. Nesse sentido, um exemplo de como uma perspectiva afrolatina pode ser útil para pensar a organização de sistemas de opressão é o trabalho de um dos grupos mais influentes do movimento Hip Hop underground em Cuba chamado Las Krudas Cubensi. Las Krudas são um trio de lésbicas negras feministas que usam seu ativismo baseado na arte para chamar a atenção para as intersecções de gênero, raça e sexualidade. Elas descrevem seu ativismo como uma contribuição para a terceira revolução dentro da revolução, a de mulheres negras e da igualdade lésbica. Las Krudas inicialmente se autoidentificam como mulheristas, mas no discurso mulherista falam das limitações do cânone feminista e da teoria socialista em reposta às necessidades das mulheres negras e pobres. Elas abordam a forma como o racismo foi internalizado no nível cíclico, no nível erótico. Integram os modos pelos quais as desigualdades culturais e materiais são racionalizadas, mediante a inclusão da sexualidade dentro de um discurso existente contra a modernidade europeia.

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Isso é um exemplo de crítica direta à modernidade. Os legados do colonialismo para elas são o racismo, o sexismo e a homofobia. A essência de Las Krudas é localizar a modernidade como um projeto cultural de reorganização social para os interesses produtivos da capital ocidental. Em um movimento temporal, Las Krudas invocam a memória das populações negras e indígenas como meio de articular a conexão entre o período colonial e o período contemporâneo. Para elas, a implantação de violência física e ideológica é uma tentativa de organizar sujeitos incluindo a natureza para o preparo dos interesses produtivos do capital europeu. É importante essa ideia da sexualidade racializada porque uma sexualidade normativa também depende da ideia de que existe erotismo homorracial também. Vou parar aqui, mas considero válido usá-las como um exemplo para refletirmos na possibilidade de que focar nas experiências dos afrodescendentes nas Américas para produzir teoria é melhor que usar teorias europeias que tem sua base nas experiências das pessoas da Europa.

Rafael Sanzio Professor do Departamento de Geografia da UnB Bom dia a todos. Uma primeira palavra de agradecimento à comissão organizadora desse evento que já tem história. A sensação que tenho é de que nunca na história da humanidade as mulheres estiveram tão organizadas. Percebo que a organização das mulheres tem eficácia. A sociedade civil consegue absorver ganhos, denúncias, pesquisas necessárias. Eu trabalho na Universidade de Brasília e a gente toca um projeto grande chamado Geografia Afrobrasileira. Esse projeto tem três grandes pernas. Uma delas é Geografia e Cartografia da Diáspora: África, América, Brasil. As relações África/Brasil, mal resolvidas secularmente por nós brasileiros, pelo Estado brasileiro, nunca foram

tão prementes. O Brasil tem uma posição estratégica no Oceano Atlântico. Durante quatro séculos, o Brasil foi o principal Estado colonial de importação forçada de povos africanos. O Brasil colonial não se apercebeu de que um Brasil estava em formação. O Brasil colônia não tinha controle, nem domínio, porque a ganância, a grana, o comércio de pessoas eram algo maior. O enriquecimento da Europa moderna era algo que deixava de maneira subliminar ou de maneira secundária o que estava se formando nisso que nós chamamos hoje uma nação Brasil. Por que eu estou falando desse negócio de Brasil? As estatísticas não mentem. Ainda que possam disfarçar ou até nos enganar em vários momentos. Ao longo de quatro séculos, o Brasil foi o maior importador de povos africanos do novo mundo escravista. Isso nos dá o quê? Status? Claro que não, isso nos traz preocupação e responsabilização. O Brasil tem que ser mais responsável com a questão da matriz africana na América porque nós temos as estatísticas maiores de importação. O sistema escravista no Brasil foi mais eficaz do que o de qualquer outro Estado. Eficaz em que sentido? Enriquecimento. Lá pelos anos 1870 o Brasil fez um grande censo no qual a coroa portuguesa queria saber quantos africanos havia numa cidade como Salvador, Rio de Janeiro e Recife. As pessoas saíam na rua e era a matriz africana que dominava a paisagem. A preocupação do Estado brasileiro em saber quantos africanos estavam presentes nas cidades é a semente do projeto do embranquecimento da sociedade brasileira. Decidiu-se abrir os portos para a importação, agora sistematizada, com terras, para embranquecer o Brasil. Esse mapa mostra essa trama complexa de quatro séculos. Jamais houve na história da humanidade deslocamento dessa natureza. O que nós estamos falando aqui é de um fenômeno. O comércio triangular

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entre Europa, África e Brasil foi a base de acumulação de capitais, do mercantilismo, ou seja, a matriz do capitalismo primitivo. O início da globalização que nós vemos hoje já em uma crise. A gente vive hoje uma crise que começou a ser gerada aqui, no século XV, com o comércio da Europa moderna com o continente africano e o Novo Mundo que chamam de América. Assim, o Brasil tem um papel fundamental nesse processo. O Brasil é um dos pilares disso aí. Jamais a diáspora teria os desdobramentos que teve se não tivesse o Brasil numa posição tão estratégica. O Brasil foi, digamos assim, o território mais acabadamente escravista, porque foi o último a sair. O Brasil saiu zangado da escravidão, não queria sair, queria ficar na mamata. A princesa Isabel assina um negócio por causa da revolução industrial. O povo tinha que ser consumidor. O que nós vivemos hoje é uma resistência real de um Brasil colonial que não quer deixar de ser colonial. Então, o Brasil chama a atenção na dinâmica da diáspora por esse papel do passado e do presente, resistência em reconhecer a sua dimensão de importância na matriz africana brasileira e no mundo global. O Brasil poderia oferecer referências que ainda não tem condições de dar porque não se resolveu, não lavou a roupa suja. A população que foi caracterizada como preta é uma população que, se eu junto pretos e pardos, tem uma expressão que é uma parte de nós brasileiros. Isso é importante. A maior parte de nós brasileiros se denomina como pardo. Quem é pardo aqui? De noite todos os gatos são o quê? Pardo não é ninguém, e não tem ficado nem de noite. Então a maior parte de nós brasileiros não é ninguém, porque não nos identificamos na nossa referência identitária que é de matriz africana. Na hora em que nos identificarmos, vamos ser maioria. E a negrada ser maioria não está no projeto do Brasil. Ou está e eu estou enganado? Este é o mapa do Brasil africano que está expresso em nosso cotidiano. Temos uma cidade como São Luís do

Maranhão, mas também uma cidade bem africana no Rio Grande do Sul como Rio Grande, que é um porto importantíssimo. Temos também uma cidade como Arraias, na beira do São Francisco, que também era um porto. Ou seja, a matriz africana brasileira está aí na paisagem geográfica do país. A geografia brasileira ainda é africana. Na história dos censos brasileiros mais recentes, dos anos 40 até o momento atual, vemos como a população preta vai diminuindo. É como se a população brasileira preta não crescesse. Em compensação, a população parda cresce a passos galopantes. Quem era para se assumir ou se declarar como preto tem medo de fazer, ao passo que o pardo, que não é ninguém, é assumido pela população brasileira. Olha o risco que corre a nossa identidade, de a maior parte de nós brasileiros não sermos ninguém. Quem é o pardo? Ele não tem identidade definida. Ele não tem matriz indígena definida, não tem matriz africana definida, não tem matriz europeia definida. Não é ninguém. Esse Brasil tem uma parte que é urbana e outra que é rural. Quanto ao rural, nós vamos destacar os quilombos contemporâneos. Onde teve ciclo econômico colonial, produção de açúcar, produção mineral, de cacau, algodão ou café, tem quilombo contemporâneo. Aí começa o medo do Estado brasileiro. Os quilombos não são poucos, assim como a população brasileira de matriz africana. As mulheres não são minorias, são a maioria. Por que, então, nos tratam como minoria? Para nos enganar. Os quilombos são muitos. Eu tenho uma representação de um sítio quilombola, um terreiro quilombola. Terreiro não é só o terreiro de Candomblé. O terreiro está no fundo do quintal da casa simples, dentro de uma comunidade tradicional. Num terreiro está o lugar onde se criam os animais, onde se faz a farinha, onde está a casa do santo, onde está a casa em que se estocam os mantimentos, a carne. Num

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha terreiro está a sobrevivência da matriz africana que ficou séculos à margem do sistema. Agora, há vinte, trinta anos, é que o sistema brasileiro está olhando para isso. Então você veja as sobrevivências da África diaspórica pulverizadas em quase todo o nosso país e que nós não conhecemos: a carne seca, a casa grande, a casa do bolo, a dona do terreiro com o seu fogão, o lugar do sabão, onde faz o biscoito, onde faz a farinha, o pilão sagrado, a casa do estoque. Tudo está vivo. De onde é que veio isso? Estou falando aqui de tecnologias, saberes e conhecimentos em risco. A diáspora não faz parte apenas do mundo rural brasileiro. Ela está no mundo urbano. Cidades brasileiras, metrópoles profundamente africanas, tinham que ser tombadas e não congeladas. Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Luís do Maranhão, Belém do Pará são cidades africanas. Mas o Brasil é lusitano, só preserva o lusitano. Isso é um erro. O centro de Salvador é africano, o Vale do Ogunjá em Salvador é africano, a Vasco da Gama é africana. O terreiro da Casa Branca, primeiro grande terreiro tombado, tem uma importante mata sobrevivente. Toda essa vegetação é sagrada. A casa principal tem sido alvo de pressão pela urbanização, mas sobrevive. O que é isso? Resistência africana na pressão urbana, resistência secular. Não estou falando de dez anos, estou falando de duzentos, trezentos anos e por aí vai. O mesmo acontece se dá com a Casa das Minas em São Luís do Maranhão, e outras tantas no Rio de Janeiro. O que eu quero dizer é que a diáspora africana está viva no espaço rural e no espaço urbano. Não estamos falando de nada morto. Não é século XVI. Isso é século XXI, 2012. Nisso temos um retrato do Brasil real. A maior parte é de matriz africana, mesmo não assumindo. O outro diz que é branco, mas a foto não fala isso. Ela não erra, ela denuncia, não tem como maquiar a foto. A seleção brasileira de futebol está embranquecendo. Nós vamos ver outra coisa daqui

a pouco. Se pegarmos dos anos 1940 para cá, a maior parte dos jogadores era de matriz africana. Meu pai tinha essas fotos em casa, eu me lembro. Está mudando porque para jogar futebol agora precisa da grana, pagar escolinha. Isso é o embranquecimento do futebol. O embranquecimento da capoeira também. Tem que comprar o abadá, pagar a academia, senão não brinca mais. Naquela época, havia vários campos gratuitos na periferia urbana. Todo mundo ia brincar, jogar com coco. Hoje tem que comprar a bola, senão não joga. Daí vem a exclusão real, a apropriação do sistema de uma matriz africana nossa. Há um mapa do século XV que é estrutural para a gente entender a semente de algo que vai se desenvolver ao longo dos cinco séculos seguintes. Aqui é o preconceito com os trópicos, zona tórrida, zona dos animais, das florestas, zonas impossíveis de viver. Isso em meados do século XV. É assim que os seres humanos de outros povos de outras regiões vão chegar. Os índios. Olha como é essa expressão. Cinco séculos não resolvida. Índios, in o que é in? In é de inimigo, de indigente, de indigesto. A palavra já começa com uma negação. Não conseguimos resolver isso. Ainda hoje continuamos chamando índios. São seres humanos com sua história, com sua territorialidade, com sua identidade própria. Mas o outro é índio: os índios africanos, os índios da América. Os mapas são ferramentas essenciais para entendermos como se pensava naquela época. Aqui está o Brasil. Aqui está o continente africano. Estamos falando do continente. Às vezes acham que África é um país. É um engano. Isso é reduzir um continente a quase nada. O mesmo acontece com o emprego da ideia de tribo. Um absurdo. Como vou chamar o Reino de Mali de tribo? O Reino de Songhai, o Reino de Almorávida, o Reino do Zulu, o Reino do Congo, o Reino de Zimbábue? Nunca, isso é absurdo. As línguas são dialetos, absurdo. Isso

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tudo é preconceito secular. A gente vive nessa trama secular. A falta de estudo, de conhecimento sobre a África serve para a manutenção do preconceito. Nós brasileiros não estudamos sobre a África. Por que tem lei, para que criar lei? Para poder nos impor a estudar. Quais são as imagens que chegam? Os bichos. Onde estão os seres humanos? Onde estão as técnicas? Onde está a urbanização? Onde está a civilização? Lembrando que nós também não somos estudados por muitos países. Qual a imagem que se tem daqui? Papagaio, mulher de pena, futebol, prostituição. A capital do Brasil é Buenos Aires e por aí vai. Isso é imagem distorcida. A melhor maneira de negligenciar ou manter o preconceito é não estudar. Se o Brasil não resolver isso, não estudar o continente africano, com nobreza, com o merecimento que precisa, nunca pagará essa dívida secular. Tem um mestre da geografia que coloca uma coisa que eu acho muito importante sobre a exclusão. A exclusão não é um privilégio. A exclusão traz vários riscos junto consigo. O mestre Milton Santos disse que a reparação é necessária. Na medida em que uma comunidade é secularmente posta à margem, a nação tem que se ocupar dela. Os negros não são integrados no Brasil. Isso é um risco à unidade nacional. Esse é o milênio dos conflitos culturais. É só olhar em volta. O mundo europeu, parte da Ásia, são conflitos étnicos que têm um fundo territorial. A raiz do nosso problema é o Brasil colonial sobrevivente; e aí a diáspora é uma pista concreta para ajudar nessa transformação com educação. O problema é mais grave nos adultos porque os egos estão cristalizados. Os egos são mais resistentes, a máscara, a farsa, a desculpa, a hipocrisia. Por isso temos dificuldade de avançar. Quem está nos dirigindo são egos adultos e eles não aceitam, não assumem que o Brasil ainda é preconceituoso, que a diáspora africana brasileira ainda não é assumida. Por isso que continuamos ainda marginais.

Ângela Figueiredo Professora associada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro/UFBA) Bom dia a todos e todas. Eu quero agradecer ao convite e a oportunidade de estar aqui. Vou tentar organizar minha fala para responder ou pelo menos dialogar um pouco com o que propôs o Renato Barbieri no sentido de pensar a identidade do jovem. Vou tentar direcionar a minha fala para pensar a identidade do jovem afrodescendente. Eu na verdade tinha estruturado inicialmente uma fala em torno de uma pesquisa que eu tinha feito sobre emprego doméstico, uma comparação entre Brasília e Salvador; mas, então, essa fica para outra oportunidade. A minha fala é fruto de um trabalho de pesquisa que foi possibilitado pelo CNPq, por meio de um edital específico Pro-África. Por meio desse edital, eu tive a oportunidade de ir para o Senegal, para Dakar, para a Universidade Cheikh Anta Diop. Lá fiz uma pesquisa sobre o cabelo que resultou numa exposição chamada Global African Hair, que eu espero que um dia chegue até Brasília. Essa exposição foi financiada pela Caixa Econômica e agora eu estou pleiteando fazer ela itinerante. A ideia que eu venho perseguindo já há alguns anos é pensar o corpo negro como um espaço de interdição, rejeição e um locus também da afirmação. Quando eu penso e quando discuto sobre beleza negra, eu não estou pensando a beleza no sentido individual, não é a beleza no meu confronto com o espelho, mas sim uma beleza ou a negação de uma beleza que resulta de processos históricos de rejeição e de negação do corpo negro. Essa rejeição antecede até mesmo o nascimento da própria criança. Antes de a criança nascer, há toda uma especulação sobre a tonalidade

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da pele, mas principalmente sobre o tipo de cabelo que ela vai ter. Essa é uma experiência diaspórica. Eu construí uma cabeça com diferentes denominações do cabelo crespo em diferentes regiões do mundo. Pedi para pessoas colocarem como é que se chama o cabelo crespo em suas regiões. Em todos os lugares, há uma denominação pejorativa, o que implica que a experiência diaspórica traz essa marca indelével que é o cabelo. Nos Estados Unidos, você nasce negro. No Brasil, para lembrar da Neusa Santos Souza, você se torna negro. É uma experiência de construção de uma subjetividade negra que passa sempre pelo binômio negação/afirmação. Primeiro, a criança nega para depois na fase adulta aceitar. Com base nisso, eu trabalhei com todos os processos a partir das falas, das narrativas das mulheres. Eu trabalho exclusivamente nesse sentido com mulheres negras, pesando a representação do cabelo para elas no seu cotidiano. Lido assim com essa ideia central de que historicamente os negros têm sido vitimizados no mundo da aparência ou no mundo da beleza, esfera que tem sido marcada pela construção de estereótipos associados a fenótipos negros, considerados feios, principalmente nos contextos em que há fortes e significativas desigualdades etnicorraciais. Talvez por esse motivo o cabelo crespo venha sendo alvo de intervenção nos mais variados contextos. Mesmo nos Estados Unidos, onde as pessoas não se tornam negras, mas nascem negras, eles fazem um processo de intervenção no cabelo. O cabelo vira palco de intervenção, diferentemente do Brasil, onde movimento negro vai tomar o cabelo natural como um determinante do discurso afirmativo sobre a identidade. Nos anos 1970 no Brasil, nos anos 1960 nos Estados Unidos, no movimento Black Power, é esta a afirmação do discurso positivo que passa do cabelo. O negro é

lindo. É muito bom quando a gente tem a oportunidade de pensar sobre essa frase: O negro é lindo. Qual é o conteúdo político expresso através dessa fala? Não é apenas um chavão, não é apenas uma frase vazia de sentido ou de conteúdo. O que ela está expressando é uma resposta a um contexto que toma o corpo como alvo de discriminação, que toma o corpo e o cabelo do negro como alvo de impossibilidade de uma inserção, se quisermos pensar assim. A partir de uma estética negra, você pode ser excluído do mercado de trabalho porque o cabelo não condiz com a estética esperada naquele ambiente. Ou ainda o meu cabelo ou o meu corpo, o modo como eu visto não condiz com determinados setores do mercado de trabalho. O corpo é um espaço importante no processo de afirmação e no processo de embate político afirmativo da identidade. Quando a gente pensa, por exemplo, na experiência e no discurso afirmativo das mulheres negras − eu estou pensando a partir dos anos 1980 e 1990 −, uma boa parte desse discurso diz respeito a uma reinterpretação de si. Estou pensando o corpo como representação. Não é o corpo como medida, não é um corpo bonito tomando a medida de cintura, quadril e busto. É um corpo no sentido de um corpo discursivo. Um corpo que é construído a partir de uma narrativa. Essas mulheres ativistas militantes que reconstroem o corpo feminino negro a partir dos anos 1980 estão respondendo, digamos assim, a outro contexto que era o da hipersexualização da mulata. Estou pensando agora teoricamente no conceito de identidade. As identidades são relacionais. É sempre uma identidade em relação a outra identidade. Vários autores trabalham isso. Essa identidade da mulher negra é relacional, porque ela se opõe à sexualidade da mulher mulata, à construção de um corpo mulato que vem sempre de outro e não do sujeito. A ideia da mulata é construída na literatura e está presente

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nas representações do Brasil. Quem vai ao exterior, quando volta, é surpreendido com a imagem do Brasil de mulheres mulatas seminuas dançando. Eu me constranjo. Você vem de um voo e dai a pouco você vê uma mulher nua com uma nádega de fora sambando − essa capacidade de tornar o corpo negro um objeto, tão objeto que ele é expresso em qualquer lugar. Eu me constranjo porque, no lugar de uma mulher negra, acho que é sempre complicado ver uma nudez dessa forma.

discursos em anos anteriores, passa necessariamente pela afirmação do corpo. Os jovens empoderados desfilam, representam o seu corpo do modo politico. Então, o corpo é um espaço político, é um espaço de embate com a polícia, mas é também um espaço de afirmação. A antropologia do corpo vai pensar o modo como você caminha, o modo como você articula, como você movimenta o seu corpo, e toda uma simbologia atribuída a essa afirmação.

Mas essa referência foi para dizer que o discurso politicamente formado da mulher negra surge, então, como resposta à hipersexualidade. Eu não quero mais ser representada por um outro, mas eu quero ser representada a partir do meu próprio discurso, quero ser representada a partir de um discurso afirmativo do meu corpo, que represente a mim mesma e que eu não seja mais declarada por outro. Na literatura clássica, Jorge Amado é tomado como emblemático dessa popularização e dessa divulgação de corpos que são hipersexualizados. A gente está vendo Gabriela retornando ao horário da novela. É uma obra que tem suas qualidades, mas foi muito debatida nessa época de negação do corpo sexualizado que não deixa espaço para outra coisa.

Voltando um pouquinho para as imagens, o centro da exposição eram os cabelos que na África estavam associados a marcadores de geração, estado civil, pertencimento a determinados grupos étnicos, ao encontro ou ao desencontro colonial, à experiência colonial. A ideia foi fazer interagir num espaço comum os diferentes modos de usar o cabelo em vários lugares. Infelizmente, não houve tempo suficiente para pensar no sentido diaspórico e em contemplar com o restante da América Latina, por exemplo. Então a pesquisa ficou Brasil, África e um pouco dos Estados Unidos.

Portanto, é importante pensar sobre esse discurso afirmativo dessas mulheres negras ativistas nos anos 1980 que ecoa nos anos 2000. A juventude em 2012 vai usar de novo o corpo como expressão e afirmação da identidade. O cabelo black ou o dreadlock, mais conhecido em Salvador como rasta, voltam a uma cena pública afirmando e contestando a polícia, contestando uma ideia de higienização. Há uma representação muito negativa sobre o cabelo rasta que o associa à sujeira, à falta de higiene. Então, essas pessoas performam uma identidade afirmativa, circulam nos espaços como que num confronto. A postura da identidade da juventude negra de hoje, talvez diferente dos outros

Mas, por outro lado, há o desejo de ter cabelo alisado como uma imposição resultante da experiência colonial. A minha experiência no Senegal, em Dakar, foi muito interessante. Eu fui para pensar o cabelo e quando cheguei lá me dei conta de outro produto para clareamento da pele que muitas mulheres africanas. Eu fui aos salões de beleza no intuito de pensar sobre os discursos sobre o cabelo, e quando cheguei lá encontrei uma moça que tinha a pele clareada através desses produtos. Então, como uma boa antropóloga, eu deixei o roteiro para lá e comecei a conversar daquilo que parecia, naquele contexto, chamar mais a atenção. Eu acabei colhendo material sobre as duas coisas, tanto do cabelo quanto da utilização desse produto de clareamento. É interessante que, ao indagar sobre o uso do produto significava o branqueamento da pele, ela disse que não. Na verdade, elas utilizam a expressão

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clareamento numa alusão direta de que: “Nós não queremos embranquecer. Nós estamos clareando a pele porque queremos a pele mais clara. Não é virar branca. É tornar-se menos escura”. A pele mais clara é associada a padrões de beleza vigentes na sociedade e é óbvio que as hierarquias raciais refletem por um lado a experiência colonial, e o que tem de comum na diáspora dessa experiência colonial. A colonização não se dá a partir apenas do aspecto econômico, a gente já sabe disso. Os autores descoloniais, os autores subalternos estão mencionando isso. Embora tenhamos aprendido na escola que a experiência colonial se reduz à economia, ao modo de produção escravista, ela está associada a uma imposição no que diz respeito à religião, uma imposição no que diz respeito aos arranjos familiares. A ideia das famílias patrilineares é uma resultante da experiência colonial. A ideia de uma sexualidade normativa, heterossexualidade, a ideia de uma cultura, uma língua, tudo isso vem associado a um conjunto de experiências que vai muito além da experiência econômica. De modo geral, a experiência também traz a construção de um padrão estético. O belo é sempre o colonizador. O belo é sempre um grupo étnico associado ao colonizador. Então, o belo não é belo apenas. A gente sabe que o gosto é uma construção social, e como tal reflete processos históricos. Nessa experiência, por exemplo, ficou nítido que optaram pelo uso da expressão clareamento ao invés de branqueamento. Como a nossa socialização brasileira expressa a experiência de branquear-se, elas diziam clarear porque sabiam que não iam tornar-se branca, mas elas queriam se aproximar a um padrão estético. Isso atinge jovens, adultos, diferentes classes sociais. A grande diferença são os tipos de produtos utilizados. As pessoas ricas utilizam produtos mais adequados. Os que são pobres utilizam produtos comercializados na rua, o que traz consequência nefasta

para a pele, porque é um processo de despigmentação. Mas eu vou voltar ao centro da fala, que é sobre o cabelo. A ideia era tratar dessa experiência diaspórica, dessa experiência colonial, dessa experiência que vai além da economia e influencia nos padrões culturais. Era também permitir que as pessoas que muitas vezes não acessam a linguagem escrita, seja por não quererem ou por não ter muito tempo, tivessem a oportunidade de ver as representações do cabelo em diferentes lugares da África, do Brasil e dos Estados Unidos. Aqui eu começo a apresentar algumas fotos sobre cabelo dos anos 1980, quando o Ilê Aiyê começa a ter essa interlocução. A história não é mais passada através da culinária ou da religiosidade, mas a história e o orgulho vão ser passados através do cabelo. Nos anos 1980, havia uma estética afro proposta pelo bloco afro Ilê Aiyê que depois saiu do espaço do bloco afro, deixou de ser utilizada apenas no carnaval e começou a ser utilizada no cotidiano dessas pessoas. Era um discurso que deslocava o eixo da relação Brasil/Estados Unidos, que de algum modo o Hip Hop recolocou. Era muito mais um eixo de uma interlocução mais estreita Brasil/África. O Brasil curando essa africanidade a partir da estética. Aqui estão as mulheres do Ilê Aiyê usando a Palha da Costa, que é um material utilizado muito para a construção das roupas dos Orixás. Eu pensei estruturar de tal forma que colocasse no tempo as fotos da África, que são dos anos 1920-1940, os anos 1980 do Ilê Aiyê, e os anos 2000 com a juventude negra junto com as letras de músicas. Aqui tem Respeite os meus Cabelos, Brancos, que é a música de Chico César. Diferentes formas de representação do cabelo estão na música, na literatura, nas imagens e como esse discurso é apropriado pela juventude negra de hoje. Falar de beleza é também falar do modo como a juventude negra se apropria desse discurso para ter um corpo menos subserviente, menos submisso, um corpo

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politizado. Hápesquisas que têm mostrado como os jovens negros hoje têm esse discurso mais empoderado. Eles não aceitam fazer os mesmos trabalhos manuais, subalternos, subalternizantes que seus pais faziam. Tem um discurso positivo, que até mesmo os permite rejeitar algumas funções subalternizantes. É claro que isso sobrecarrega os pais. O discurso empoderado diz: eu quero tal trabalho, mas não quero esse. Ter um discurso político afirmativo significa também rejeitar lugares históricos de subalternização. Os pais muitas vezes aceitaram, por exemplo, ser trabalhadores domésticos, coisas que os jovens hoje não aceitam. O que eu acho muito interessante porque é uma forma de dizer “eu não aceito mais esse lugar subalternizante, historicamente reservado para nós negros, e eu vou ficar à procura de outro lugar”. Esse é o caso do filho da Negra Jhô, que é uma das trançadeiras mais conhecidas em Salvador e acho que no Brasil. Isso também mostra como essa juventude pode passar por um processo que não seja necessariamente rejeição, negação e afirmação. Tem uma juventude negra que hoje é muito jovem ainda, mas que, como eu digo, é a geração Dandara, porque é uma geração que tem nomes africanos e que tem pais que se propõem a um discurso político desde a fase quando eles são muito jovens. Eles não precisam passar pela escola por um processo de rejeição. A escola rejeita, mas a família acolhe. A geração Dandara é essa que vai ter nomes africanos e um discurso político afirmativo construído desde muito pequeno. Isso permite que Cauê use dread desde muito pequeno. Ele tem dez anos. Então ele está usando um dread, coisa que às gerações passadas não foi permitida. Isso mostra que a beleza e o cabelo são um campo político sujeito a tensões, embates, confrontos, rejeição, negação, estigmatização. A polícia sempre pega primeiro o que tem o cabelo dread, mas é um campo político. Pensar a estética negra não apenas como um

espaço de construção de beleza individual, mas como um discurso político que diz respeito à experiência histórica de um grupo, eu acho que essa é a mensagem. A gente construiu uma cabeça, que era o símbolo da exposição com os diferentes nomes. Cabelo em crise, cabelo duro, napem, quinque... Todos os países têm um nome pejorativo para expressar, para denominar o cabelo crespo. Isso reflete uma experiência comum a homens e mulheres, embora eu tenha focado muito mais na experiência feminina, porque os homens ainda têm a opção de fazer o cabelo mais raspado. Além disso, o meu foco não era o estudo da masculinidade ainda, pouco a pouco eu vou entrar lá. Mas por ora é isso. Muito obrigada.

Intervenções do público Murilo Mangabeira Bom dia, meu nome é Murilo Mangabeira, sou professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal. A pergunta é para o professor Rafael Sanzio, mas eu acho que também vai entrar na área do moderador Renato Barbieri. Uma tentativa que a gente faz isoladamente dentro da estrutura de educação é exibir o filme Atlântico Negro − Na Rota dos Orixás para alunos de primeiro ano de Ensino Médio. Essa tentativa de simplesmente ter uma missão com a exibição desse filme é reconhecer que o Brasil tem a ver com a África; reconhecer que não se pode olhar para o próprio umbigo; é apenas reconhecer que África é mais do que aquilo que a gente vê e que é preciso ter um pouco mais. Então, eu gostaria de pegar esse gancho da religiosidade, que muitas vezes é aquilo que a gente resgata mais diretamente para falar dessa proximidade, mas que também é alvo de muita resistência com relação aos alunos. Eu numa escola de periferia. Como acontece em outras áreas de periferia, boa parte da religiosidade oficialmente é cristã, cristã evangélica. Então, o combate é ríspido. Eu queria saber,

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nesse mapeamento, nesse projeto de entender diáspora, como é que religiosidade também pode ser inserida ou servir como ferramenta para o entendimento de outros aspectos dessa relação diaspórica.

Rafael Sanzio Tem dois pontos aí que eu acho que se ligam. O primeiro é a força da imagem. Muito me agrada a imagem no processo educativo, porque a ela leva o grupo que está ali a outras possibilidades de assimilação e interpretação, como a colega mostrou há pouco com as fotografias de cabelos, de cabeças, cabeças vistas numa outra perspectiva não pejorativa, não destrutiva, não negligenciada ou estigmatizada como Bombril. Era assim na minha infância, cabelo de Bombril e ponto. Era uma loucura para mim e minhas irmãs. Isso faz parte da história da minha família. A imagem ajuda a desconstruir. Então ela tem muita força. Um filme, uma foto, um mapa, me agradam muito as fotos e os mapas porque a fotografia é como é e pronto, não tem maquiagem. O mapa também é uma interpretação? Sim, mas possibilita um outro olhar. As mulheres, por exemplo, são muitas no Brasil ou são poucas? Na hora em que eu mostro um mapa com as estatísticas da distribuição das mulheres no país, por exemplo, eu vejo que elas são muitas. Isso empodera quem está vendo. “Não sou menos, sou mais. Não somos poucas, somos muitas”. Num processo de usar imagens cartográficas para auxiliar numa outra leitura do Brasil africano, eu diria que inúmeras possibilidades existem para o educador e educadora usar um mapa conforme sua perspectiva. Para a geografia neste momento, é muito importante algo que a população brasileira não tem respostas: qual é minha origem na África? Muito mais gente está resgatando uma coisa que é a origem, o destino, a distribuição. Os bantos são 70% dos mais de 4 milhões trazidos para o Brasil ao longo de quatro séculos. Então, a gente quer mais respostas. Eu quero saber melhor lá na origem. Eu preciso saber com mais

precisão aqui a distribuição. Como ela foi feita e o que sobrevive dela ainda hoje. A língua que praticamos aqui no Brasil africanizado é uma pista disso. Um jeito de falar, por exemplo, tem várias pistas de línguas africanas sobreviventes. Está tudo aqui. Isso me ajuda e ajuda as pesquisas da recomposição de como nós de matriz africana estamos aparecendo no Brasil. Essa é uma questão que nós brasileiros precisamos enfrentar para o resgate da identidade. Parte da fragilidade da identidade está na falta da referência geográfica precisa. Que África interessa a nós brasileiros? A gente precisa trabalhar com mais propriedade. Que países, quais reinos africanos antigamente tiveram maior relação com o Brasil? Isso tudo são questões que o mapa da diáspora suscita, por exemplo, a um educador de geografia. O educador de história vai migrar em outros pontos. O educador de educação física mais ainda. Qual a origem da matemática? O que é aparentemente um jogo, não é só um jogo, é mais. A essência da matemática está na África. Isso é importante. A essência das esculturas que muitos artistas europeus se inspiraram está nas esculturas dos povos Iorubás, porque isso já chegava lá por meio das rotas transaarianas, lá em Tânger, no mundo mediterrâneo. O deserto Saara foi um filtro secular. Não se conseguia ir contra a natureza. As caravelas possibilitaram isso. Então, aí vem um mundo ibérico. Os portugueses e espanhóis vieram direto sabendo o que queriam. Como a professora falou há pouco, isso tudo vai muito além da trama econômica. Um mapa, como a fotografia, é só uma ferramenta para irmos muito mais além. Então, eu acho que o filme do Barbieri excelente. Gosto dele há muitos anos. Sinto falta da segunda parte. Já falei isso para ele. O filme suscita. Queria mais. E é bom porque os alunos vão para casa pensando. Esse é o ponto-chave. Fazer com que o aluno, a aluna volte para casa pensando. Não sabemos o que ele está pensando, mas ele está voltando para casa pensando. Missão cumprida! Daí a existência vai compondo a parte. Se ele tem acolhimento em casa,

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ok; se não, tem abre também o conflito. Como é que a gente prepara uma turma para fazer um censo? Não o do IBGE, o outro censo. Qual é sua referência identitária? Quem é que está aqui atrás? Pergunte em casa, onde está o índio, a índia, onde está a parte africana. Ah, tenho notícia. Pega, vamos botar no papel. Ver de que região daquele país é o Tânger. Aí você mexe na essência da família que não quer ser mexida. Aí a escola realmente vai fazer uma inquietação. Talvez no final do curso você tenha uma turma mais unida, mais respeitosa, menos preconceituosa.

Renato Barbieri Quando eu digo que as políticas públicas são acanhadas, não estou me referindo apenas no que diz respeito ao meu filme. O Joel Zito, por exemplo, tem um trabalho fantástico. Mas esses filmes não entram na rede, na grade escolar. Esses filmes e de outros autores também eram para estar nas escolas, em todas as videotecas das escolas, e ainda não estão. Quem acaba comprando os nossos filmes são professores interessados em ter um material pedagógico mais forte. Exatamente para estimular os meninos e meninas a uma reflexão e estar os seduzindo para essa reflexão. Eles acabam adquirindo por vontade própria, mas não por meio de uma política de Estado, que é o que deveria acontecer. Deveria haver uma ação mais agressiva, mais forte. As políticas públicas nesse sentido ainda são muito acanhadas.

Audarayá A minha pergunta é para a Tanya. Meu nome é Audarayá, sou produtora cultural e nasci dentro do movimento Hip Hop do Rio de Janeiro. O meu irmão é uma das pessoas que estavam bem no começo do movimento Hip Hop no centro do Rio de Janeiro. Eu consumo muito mais do Rap Underground, mas queria saber da professora Tanya qual é a opinião dela e qual o papel da imagem. Eu nem digo do conteúdo das palavras, das letras que não tenham um conteúdo político tão forte, mas da imagem de jovens negros empoderados sobre um sistema branco. Como você acha que a imagem de jovens negros muitas vezes associados com o dinheiro, empoderados de sua beleza, funciona sobre jovens negros que consomem o mainstreaming do Hip Hop norte-americano?

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Adriana Marques Bom dia, meu nome é Adriana Marques, sou engenheira e professora da Universidade Federal de São Paulo. A minha pergunta é para a professora Ângela. Escutar a fala dos três me deu certa tristeza porque eu anotei algumas coisas como isolamento ideológico, negação, clareamento, ausência de identidade. A minha pergunta para vocês é: como melhorar hoje no dia a dia esse binômio de negação/afirmação? Porque a gente acaba ficando na academia e eu quero saber como é que a gente traz isso para o dia a dia.

Juliana Cézar Nunes Minha pergunta para a Tanya vai nessa linha da questão dessa heteronormatividade racializada. Diante de muitos grupos de Hip Hop, as mulheres negras lésbicas se sentem extremamente violentadas, e de fato são, não só no Brasil, mas em outros países. Como dialogar com esses grupos que vivem a violência racial, mas ao mesmo tempo reproduzem, principalmente contra as mulheres negras lésbicas? Para o professor Rafael, eu queria que, se possível, ele falasse um pouco sobre a juventude quilombola. A gente vê muitas vezes os jovens quilombolas querendo sair das comunidades e negando um pouco essa identidade. Outros afirmando. Mas como conseguir dialogar com eles também para ir para o pólo da afirmação? E o professor fez uma crítica à questão do censo do preto e do pardo. Na América Latina, a maioria dos países não adota essa mesma nomenclatura do IBGE, adota afrodescendente. Como poderíamos colocar isso para o IBGE aqui no Brasil para sair dessa armadilha que estamos do preto e do pardo. E para a professora Ângela, se ela pudesse abordar um pouco, a gente viu agora na última semana, acho que foi em Salvador, se não me engano, uma mãe que foi para a polícia denunciar o caso da filha. A avó de um coleguinha dela, na festa junina, disse que não queria que eles dançassem juntos porque ela era

negra, tinha o cabelo feio. São coisas que continuam muito persistentes, que nos causam sofrimento pessoal enorme, mas como a gente pode trazer isso mais para o nível coletivo político e até policial? Pois muitas vezes isso fica apenas no nível pessoal. Poucas mulheres negras se sentem ainda empoderadas para denunciar as violências que suas filhas e filhos sofrem, até porque elas também são vítimas do racismo. Como podemos colocar esse debate num patamar mais coletivo?

Yasmim Boa tarde. Eu sou Yasmim, sou estudante do Benedict College na Carolina do Sul. Pode ser uma pergunta conjunta para todos. Como que a história dos Estados Unidos, a luta dos Estados Unidos, a questão da segregação, qual a lição que o povo brasileiro pode tirar de toda a história para poder assumir essa identidade? Aqui no Brasil, por exemplo, eu não tive a oportunidade de aprender história da África. Eu só fui aprender sobre os reinos africanos quando eu cheguei lá mesmo. Eu sei que agora tem uma lei implantando isso, mas qual seria a melhor estratégia para que as crianças já fossem criadas com essa consciência? Como que seria a estratégia para que isso mudasse, para que, como nos Estados Unidos, nós nascêssemos negros, nós tivéssemos orgulho de ser negro porque conhecemos a nossa história desde o ensino básico? Eu não tive essa oportunidade. Tenho certeza que muitos jovens não têm essa oportunidade de conhecer realmente a nossa verdadeira história, a história que vem lá da África, não só a história lusitana. Queria saber qual a lição que podemos tirar dos Estados Unidos e quais as estratégias que podemos mudar?

Maria Paula Eu sou a Maria Paula, sou jornalista, sou apresentadora, mestre de cerimônia, e queria falar com a Ângela. Tenho

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dois filhos, um menino, que é o João, de sete anos, e a Maria, que tem quinze anos. Eles foram rejeitados na escola, principalmente a Maria. Rejeitados pela cor, pelo cabelo, e teve todo o acolhimento em casa, tanto que é uma menina que usa o cabelo Black, como o meu, alto, se acha linda, autoestima lá em cima. O meu filho, na semana passada, falou: “Mãe, não corto mais o meu cabelo, agora eu vou deixar crescer e vai ser um Black”. Então tá João, seja um Black, vai ser lindo. A rejeição é imensa dentro da escola. Para uma mãe às vezes é muito doído, não é fácil, mas precisamos dar esse acolhimento. Dizer “você é linda, você é negra”, e contar a história dos nossos antepassados.

Ângela Figueiredo Eu acho que a lei que torna obrigatório o ensino da história da África e afrobrasileira está se colocando como importante, mas ela está encontrando desafios. Então, por exemplo, um desafio é esse que ele coloca: Numa escola pública, mas majoritariamente neopentecostal, ou pentecostal, eu acho que a lei traz uma coisa determinante que é tirar a história da África, ou tirar a África da mão de historiadores. Ela torna mais comum que pessoas como eu, que sou antropóloga, se interessem por África, porque antes a África estava muito inscrita no passado, muito na história de uma África de fala portuguesa, portanto, uma África de colonização portuguesa. Há inúmeros temas que podem ser pesquisados no comparativo Brasil/África. Quando se fala de África fala muito da epidemia da Aids. Precisamos sair desse lugar e pensar juventude movimentos sociais e outros temas que trazem a África para o presente. É como se tivesse um marco que a África está no passado, a Europa, os Estados Unidos no presente, e a gente entre uma coisa e outra, mais ou menos isso. Então, eu acho que é necessário trazer a África para o presente nas suas contradições modernas, nas suas consequências da colonização, da experiência

colonial, enfim, trazer a África a partir disso. Eu acho que a lei tem inúmeros desafios. Acho que precisam ser criadas metodologias e talvez a religiosidade no sentido mais amplo tenha que ser trabalhada. Como as escolas católicas só ensinam o catolicismo e não ensinam religiões? O curso de religião não é sobre religiões. É só o catolicismo. Então talvez caiba mexer com outras coisas que possam tornar não só a África mais próxima. Escrever a África no presente como também trazer a África numa perspectiva mais comparativa, pensar em diferentes expressões do Hip Hop na África, feminismo africano. A gente estuda pouco sobre o feminismo africano. Diferentes temas podem ser estudados comparativamente e que eu acho que a lei que torna obrigatório o ensino poderia ser obrigatória nas universidades. Nas universidades, mesmo pós-cotas, pós-ações afirmativas, os alunos cotistas e não cotistas não têm as disciplinas obrigatórias de estudo da desigualdade racial no Brasil. É preciso saber da história do Brasil para saber por que o Brasil precisou implementar ações afirmativas. E essas disciplinas só são ministradas nos cursos de Ciências Sociais, nos cursos de História, mesmo assim como disciplinas optativas para os alunos de outros cursos. Essas disciplinas têm que vigorar como disciplinas obrigatórias no quadro, no currículo de todos. Então, acho que essa lei é um primeiro passo importante, mas ele tem que ser estendido, tem que ser ampliado. Nós na universidade não lemos a produção de autores negros. Eu fui conhecer Guerreiro Ramos, que é baiano como eu no Rio de Janeiro, num seminário sobre Costa Pinto, o arqui-inimigo dele. Isso por conta de um comentário da plateia. Eu li Lélia Gonzales, que é uma feminista negra, depois da minha formação. O movimento de incluir autores negros na própria universidade, não excluir... Eu trabalhei isso num texto, como a universidade exclui não só os corpos como também a contribuição negra do espaço acadêmico. A gente termina as teses, publica, ninguém bota esses livros

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nossos nas disciplinas obrigatórias. Aí tem um amigo nosso muito bacana que dá numa disciplina optativa, mas a gente não está dentro dos clássicos que vão estudar sobre as relações raciais no Brasil. A gente critica, mas continua lendo Gilberto Freyre. Quando vai chegar em 2000, não tem mais tempo. O curso que começa nos anos 1930, quando chega em 2000, acabou o tempo. Você tem uma aula para mencionar rapidamente o que são ações afirmativas, porque o nosso marco ainda é muito cronológico. Para falar do Brasil a gente insiste em começar nos anos 1930. Por que a gente não começa nos anos 1950, 1970, na redemocratização no país? Na semana passada, foi o Congresso de Pesquisadores Negros. Deveríamos ter representações de diferentes associações que pressionassem para tornar obrigatórias essas contribuições. Porque assim a gente olha para a África, sem deixar de olhar para os afro-brasileiros. Qual tem sido a contribuição acadêmica e teórica desses afro-brasileiros? Vamos incluí-los como disciplina nos cursos obrigatórios. Sobre a questão do afrodescendente, eu também vou dar um pitaco. É muito complicado isso que o IBGE alega. Houve uma pesquisa no Brasil no final dos anos 1990. Simon Schwartz tem inclusive um artigo no qual ele mostra que, quando perguntado sobre a origem, as pessoas se dizem “eu nasci no Nordeste, eu nasci em tal lugar”. É uma linguagem que precisamos ainda torná-la muito mais acessível à grande massa. A massa antes se definia como preta ou como parda. Graças ao movimento iniciado nos anos 1970, a gente consegue agora se definir como negro. Aí vem outra classificação? O IBGE alega que é uma perspectiva comparativa entre os censos. Ter dados quantitativos que têm sido historicamente desagregados permite comparações ao longo do tempo. Se você transforma as categorias, isso implica que vamos perder uma dimensão comparativa com censos do passado. Então, é um processo que demanda muito mais tempo do que o que imaginamos. Não é uma vontade nossa apenas. No nosso texto a

gente define como negro, mas para que a massa de trabalhadores, de modo geral, pouco escolarizada, em qualquer região do Brasil, entenda origem como origem racial, é preciso um pouco mais. O IBGE já tentou, já dialogou, chamou muitos sociólogos quantitativos para dialogar. É preciso continuar pressionando, mas é preciso entender que há perdas nisso. Com relação ao cabelo, Adriana, não foi exatamente um pessimismo, tanto que eu falei da geração Dandara, que hoje já é mais afirmativa. Mas nas entrevistas com mulheres de uma determinada geração, é recorrente a fala do cabelo como uma negação. Quando a gente é criança, tem um espaço de representação pública que está nas festas da escola. As meninas negras eram recorrentemente rejeitadas porque não eram bonitas o suficiente, porque não tinham o cabelo para serem rainha de nada. Isso está na memória, está na construção da subjetividade. As pessoas constroem a sua própria subjetividade a partir de um processo de negação que está fora e dentro de si. Alguém perguntou sobre o racismo. O racismo é estrutural. Lélia Gonzales já dizia isso na década de 1980. O racismo e o sexismo são estruturais, eles estão na sociedade, e a gente sabe que para não ser racista é preciso um exercício cotidiano, que está até mesmo na linguagem. Nós temos uma linguagem hierarquizante. Nós temos uma linguagem extremamente machista. Por isso que nos movimentos sociais, de um modo geral, o primeiro campo de disputa é o campo da linguagem, que é o campo da representação. A gente se representa através da linguagem, da construção de novas formas de representação. Construímos uma nova linguagem para tornar a linguagem, o discurso menos machista. O “boa noite a todos” esconde as “todas”, que às vezes são maioria. Tudo o que nós pensamos numa linguagem muito mais masculina, numa representação masculinizada do mundo, pensamos também de forma racializada. A gente vai dizer: boa noite a todos, todos e todas, nunca todas e todos. Sempre branco, negro, nunca negro. As representações são políticas, a

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linguagem é política. Eu acho que, nessa coisa do cabelo que você falou, há uma mudança significativa. Pelo menos é um espaço. Se a escola continua rejeitando, hoje temos um espaço doméstico que acolhe. Antes não era assim. Os pais silenciavam. Na cabeça deles, o racismo era algo que você deveria silenciar, não era algo para você explicitar. Se você foi vítima na escola, a mãe acolhia, mas nunca empoderava. A mãe dizia: “Deixa pra lá. Não é bem assim.” Você sempre estava meio equivocado. Você estava meio fora de lugar. Isso fazia parte de um conjunto de etiquetas raciais. Porque a gente tem um código. Uma forma de lidar com o racismo era não explicitar que foi vítima. Era de dizer: vamos silenciar porque só temos a perder. Acho que hoje se a escola ainda não tem uma linguagem adequada, se a escola ainda não tem um espaço de representação política e uma linguagem mais adequada para nos representar, em casa você encontra isso de alguma forma. Então, se alguém diz que o seu cabelo é feio, você chega em casa e tem um retorno, tem um afeto, um carinho, porque o mundo também precisa de amor e carinho. A gente às vezes fica numa linguagem política muito acirrada e esquece que, para a socialização, sobretudo para a formação das crianças, o afeto é determinante. Quando essas crianças são acolhidas, elas vão ter menos impacto do que no passado. Se a escola continuar rejeitando, ela vai compreender que é a escola que está errada e não o cabelo dela. Isso é um Brasil que está mudando. Isso é um Brasil que tem intenções, contradições, paradoxos. Mas a gente tem feito um esforço. Espaços e fóruns como esse nos legitimam, fazem a gente conhecer o trabalho do outro, fazem a gente refletir sobre a constituição do outro, fazem a gente de certa forma fortalecer o nosso discurso. Eu continuo apostando na linguagem também como um modo de embate político. A linguagem é determinante para construir um modo de representação de si mais positivo.

Tanya Saunders Uma coisa interessante que eu aprendi quando cheguei no Brasil, é que o Brasil está desconectado das outras partes da América Latina. O Brasil não tem muita conversa com os outros países que existem nessa região. A conversa existe entre os Estados Unidos e Brasil, Brasil e África. A apresentação hoje foi sobre um grupo de Hip Hop cubano, não um grupo de Hip Hop americano. Isso é importante porque acho que existe uma rede internacional de ativistas intelectuais que estão unidos pelo Hip Hop. Então para mim o Hip Hop é uma estrutura de comunicação para essa rede, para as pessoas que querem fazer o intercâmbio de ideias. Falarei sobre os Estados Unidos porque essas foram as perguntas. Primeiro, nos Estados Unidos, o Hip Hop comercial é vendido pela população branca. A marca comercial só é uma música negra, que isso é uma música da rua. Essa é a maneira para que esses negócios vendam Hip Hop a essa população branca. Antes, era o Rock and Roll como uma música sexualizada, selvagem, mas agora é o Hip Hop. Nos Estados Unidos, especialmente, pensamos sobre arte como uma coisa para consumir e vender, só isso. Mas, ao mesmo tempo, temos organizações independentes que viajam para a América Latina, Cuba, Caribe. Existe uma troca entre nós. Acho que ainda não existe aqui no Brasil. Em conferências como essa, eu acho que está mudando. Em termos de Hip Hop e heteronormatividade, existem muitas pessoas que estão fazendo Hip Hop feminista. O propósito da minha apresentação é destacar a importância do olhar para dentro das Américas também quando estamos pensando sobre a diáspora africana. Se não fizermos isso, poderemos não aproveitar as informações que existem aqui nessa região e também perder uma oportunidade de fazer uma conexão ou união forte contra o racismo, homofobia, sexismo − esses ismos que são produtos de capitalismo e colonialismo.

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha Renato Barbieri Muito bem. Vou passar a palavra agora para o Rafael. Acho importante pontuar a importância de juntar essas diferentes visões sobre a diáspora, as perspectivas brasileira que são muitas, a perspectiva americana, dos nossos países vizinhos que também receberam os africanos, e também dos próprios africanos.

Rafael Sanzio Vou colocar só dois pontos aqui nesse tempo breve. Considero a questão da juventude quilombola estrutural. Primeiro, em 2005, fizemos uma publicação que já apontou a forte migração do jovem quilombola, sobretudo aqui em Brasília, Distrito Federal. É um estudo de caso. Os calungas vêm para a cidade grande argumentando duas coisas: trabalho e educação. Mas há também a sedução do sistema. Em muitas dessas comunidades, a antena parabólica chegou sem nenhum filtro. Eu tenho fotografia de uma comunidade em Bananal, Bahia, Chapada Diamantina, perto de uma cidade chamada Rio de Contas. É muito difícil chegar lá. É uma comunidade isolada. E tinha uma parte da comunidade que ficava mais isolada ainda, mas tinha uma antena parabólica no terreiro, com várias crianças em volta assistindo sem nenhum filtro. Isso é muito sério, porque é a força dessa imagem que traz o jovem para a cidade. Às vezes fica um filho ou uma filha, mas aí o elo já está comprometido, porque é o avô ou a avó quem faria a transferência do conhecimento. Essa quebra do elo é um dos piores danos que pode ocorrer com o fluxo da juventude quilombola para a cidade. Algumas pesquisas já apontam nessa direção. O problema do quilombola é estrutural. É a questão da terra. É a questão de minorar o preconceito. É a questão de reconhecer o território quilombola como um território que é do Brasil, não

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um pensamento social dos nossos dirigentes de que a terra deles é na África, de que não têm direito de ter a terra aqui. Esse é o fundo da dificuldade para a terra quilombola ser assegurada. Primeiro, porque quilombo é passado, não é presente no Brasil. Para os nossos dirigentes, a terra não é aqui, a terra é do outro lado do Atlântico. Isso é sério porque estamos diante de um pensamento estrutural. É o que nos permite entender tamanha resistência para regularizar os quase cinco mil registros de territórios quilombolas contemporâneos existentes no Brasil. Um outro ponto que eu acho importante, você tocou no IBGE, eu queria contar uma historinha. Ano 2000, o IBGE nos convidou para ir ao Rio de Janeiro, Rua Chile, 12º andar, para conversar sobre quilombos. Eu sugeri colocar no censo os territórios quilombolas excluídos do Brasil. O censo é a melhor maneira de oficializar o conhecimento, porque não podemos mais trabalhar com listas, nem mapas improvisados. O IBGE ouviu, mas não assimilou. Passaram-se dez anos, 2010, voltamos ao IBGE. Como vai fazer política pública se eu não tenho uma base informacional comum? De novo, o censo de 2010 foi feito sem contemplar os territórios quilombolas. Isso mostra o quê? Um sinal do IBGE colonial que não quer assumir e nem quer mexer. Foi sugerido também para o IBGE que fizesse um experimento em 2010. Como fazer um censo numa base identitária, da origem? Como a professora falou muito bem, a origem não pode ser

só geográfica, a origem é da matriz étnica que está nas histórias das famílias, histórias negadas, embaixo dos tapetes. O IBGE também não quis ouvir muito e nem fazer uma experiência. A série histórica é importante, mas o Brasil contemporâneo é outro. As exigências internacionais para os projetos também são outras. O Brasil não está dando resposta. Tem um Brasil colonial realmente que não quer deixar de ser. O IBGE, por que não sai do Rio de Janeiro? O império. Tem um Brasil imperial que não quer largar, não vem para Brasília. Brasília fez 50 anos, já é uma mulher madura, já era para estar aqui. Algumas coisas que não vieram já eram para estar aqui. A gente está falando de instituição. Isso revela muita coisa. Há uma resistência ainda. O Brasil contemporâneo não é assumido. Essas questões é lógico que são estruturais. É como nós somos contados. É como nós somos representados. Tem algo da realidade que não bate com os números. Isso precisa de solução, e aí a decisão é política.

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Políticas Públicas para a Juventude Negra Mesa 02 Thais Zimbwe – Mediadora Jornalista e Coordenadora da UJIMA – Trabalho Coletivo e Responsabilidade Uma boa tarde a todas e todos. É um prazer participar dessa iniciativa em Brasília. Moro aqui há algum tempo e é bem importante ver um evento desse porte, trazendo a discussão sobre a juventude negra. A iniciativa desse festival cultural é muito importante na medida em que inclui espaços de debates, troca de experiências e análise sobre a nossa situação, possibilitando e revigorando as nossas lutas. Sou Thais Zimbwe, do Rio de Janeiro, jornalista e militante há algum tempo no movimento negro e me dedico às organizações de juventude negra. Faço parte de uma organização política que se propõe ao intercâmbio com grupos de juventude negra de outros países, e nosso trabalho se concentra basicamente na América Latina e na África. O tema desta palestra e debate no Latinidades sobre Políticas Públicas para a Juventude Negra é algo muito importante porque é uma luta recorrente do movimento negro, dos movimentos de juventude, que vêm se fortalecendo a cada ano, no sentido de ir mais além do recorte racial nas políticas universais. Queremos políticas que garantam um pleno desenvolvimento da juventude negra, considerando as particularidades que nos diferenciam no acesso às oportunidades, seja na educação, no trabalho, na saúde e na cultura. Então, promover um amplo debate sobre esse assunto, principalmente participar dos canais de incidência oficiais nos governos onde essas políticas são formatadas e configuradas, é bem importante para que possamos ver a realização dessas políticas e um efetivo alcance nas bases o mais rápido possível. O governo brasileiro tem avançado muito a partir

também de uma ampla participação da sociedade civil organizada, dos movimentos de juventude negra, que vêm se fortalecendo. Hoje a análise será feita entre representantes do governo, da sociedade civil, de importantes e diferentes instituições, e com a participação de todos vocês. Acho que iremos chegar a resultados bem positivos. Gostaria de convidar Raquel Turci Pedroso para apresentar para a gente um pouco do trabalho do Programa Saúde na Escola do Ministério da Saúde.

Raquel Turci Pedroso Coordenadora do Programa Saúde na Escola, Ministério da Saúde Sou Raquel e coordeno o Programa Saúde na Escola (PSE) no âmbito do Ministério da Saúde. O PSE é um programa intersetorial, de gestão compartilhada com o Ministério da Educação, que surgiu no ano de 2007 por decreto presidencial. A conversa que eu gostaria de fazer rapidamente com vocês vai se dar no âmbito das políticas públicas, que é o tema da mesa, e também sobre como realizamos, ao longo desses anos, o desenho de um programa intersetorial, dado o desafio de uma gestão compartilhada, que favorecesse as diretrizes fundamentais da equidade e da integralidade. O PSE tem um recorte de vulnerabilidades. O que quer dizer isso? Toda a estrutura do PSE − desde os municípios aptos a aderirem ao programa até o modo como é feita a gestão, a adesão, o termo de compromisso, o monitoramento das ações, as ações obrigatórias,

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha também chamadas de ações essenciais − é construída numa perspectiva da equidade e da integralidade. O intuito é facilitar o acesso a uma qualidade de serviços de saúde e a uma educação de mais qualidade àqueles que têm pouco acesso, ou aos municípios mais vulneráveis, dados os indicadores do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e do índice de cobertura da Estratégia Saúde da Família. Então, o Programa Saúde na Escola foi desenhado basicamente para facilitar algo que já deveria estar acontecendo. O que é esse algo? Existe hoje na Atenção Básica uma estratégia chamada Saúde da Família, que é uma equipe multidisciplinar de profissionais de saúde, como enfermeiros, auxiliar de enfermagem, dentista, auxiliar de dentista, médico... A equipe deve atender a um território adstrito da Unidade Básica de Saúde onde está localizada. Cada equipe é responsável por 3.500 pessoas que estão em volta do seu território, incluindo os equipamentos sociais que fazem parte desse território. Essa equipe tem feito um atendimento muito próximo às famílias. Realiza o atendimento no âmbito da triagem, do cuidado, do vínculo e da continuidade do cuidado das pessoas com necessidades de saúde. O equipamento escola acabou se tornando um equipamento do qual a Equipe de Saúde da Família não estava entrando para fazer ações de saúde. Ao mesmo tempo, embora tenhamos tido avanços importantíssimos como a inclusão de temáticas da saúde sexual e reprodutiva, de drogas, de saúde ambiental nas diretrizes curriculares do Ensino Médio, sabemos que essa não é a realidade de todo o nosso país, sobretudo, em relação à inclusão de temáticas no âmbito da promoção e da prevenção nos projetos políticos pedagógicos das escolas. Então temos um desafio que é o embasamento da lei. E fazer isso no âmbito das diretrizes curriculares, não

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só do Ensino Médio – ainda que estejamos falando de juventude −, mas também das diretrizes curriculares do Ensino Fundamental e da Educação Infantil. Como a gente consegue fortalecer as bases legais para que essas temáticas estejam de fato incluídas nos projetos políticos pedagógicos das escolas? E que esses projetos se tornem algo para além de uma proposta guardada na gaveta? Dadas essas duas fragilidades, primeiro, a Política de Atenção Básica que precisava entrar na escola, mas não estava conseguindo; e, segundo, uma política de educação que precisava abordar as temáticas da saúde e não estava dando conta de fazer da maneira que efetivamente causasse uma transformação social, criou-se um programa chamado Programa Saúde na Escola no ano de 2007. Os conceitos norteadores do PSE partem da ideia de redes com a qual trabalhamos no âmbito do Ministério da Saúde. É uma diretriz forte. Não sei como vocês têm acompanhado a questão da Rede Cegonha, da Rede Crack, mas, se trata, de fato, da construção de ações em rede, juntando intersetorialmente todas as políticas e projetos que existem nos locais para que não tenhamos retrabalho para fortalecer e dar continuidade às necessidades sociais que são criadas naquele espaço. Para nós do PSE, o desenho de uma política pública voltada para a superação das necessidades sociais e para o enfrentamento real da nossa situação de iniquidade social é algo central. Para vocês terem uma ideia melhor da dimensão do nosso desafio, imaginem isso: temos uma Equipe de Saúde da Família, uma equipe da escola, uma Secretaria Municipal de Saúde, uma Secretaria Municipal de Educação, uma Secretaria Estadual de Saúde, uma Secretaria Estadual de Educação, existe o Ministério da Saúde (MS), o Ministério da Educação (MEC), o Programa Saúde na Escola da Saúde (MS) e Programa Saúde na Escola na Educação (MEC). Todos esses atores

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precisam, de fato, ter uma articulação política em rede de apoio institucional para que o Programa aconteça na ponta. O PSE surge também para continuar a combater aquela visão da medicalização do ambiente escolar. Muitas pessoas, quando escutam pela primeira vez a expressão “saúde na escola”, se arrepiam porque imaginam que são ações higienistas, ações curativas ou que irão levar a clínica para dentro do ambiente da escola. O PSE não tem essa proposta. O Programa se propõe a fazer a acolhida das necessidades de saúde que podem ser identificadas na escola, mas o tratamento e a continuidade de tratamento devem se dar dentro da Atenção Básica, ou seja, dentro da Unidade da Assistência de Saúde e das outras referências de alta e média complexidades que podem requerer o tratamento daquela situação de saúde que foi identificada. Então, primeiro, o Programa não vem para a medicalização do ambiente escolar; segundo, não vem perpetuar e incentivar palestras pontuais em que a equipe de saúde entra na escola e o professor vai tomar um café, ou a equipe de saúde entra na escola sem nem conversar com o professor que está lá no dia a dia, no cotidiano, na relação com a criança. O professor é peçachave nessa relação saúde e educação, principalmente no âmbito das questões mais psicossociais, como a questão da violência do álcool e outras drogas, por exemplo. Toda a equipe escolar, diretores, merendeiros, porteiros são peças-chave de observação, acompanhamento, vínculo e produção de novos modos de superação dessas situações que acontecem no ambiente escolar, no ambiente da família e na comunidade como um todo. A proposta do PSE é, de fato, a articulação em rede e a presença da Equipe de Saúde da Família pactuada dentro de um projeto político-pedagógico. Então, por exemplo, como vai se dar a entrada de uma Equipe da Saúde da Família na escola para a aferição

antropométrica, que é pesar e medir para ver se a criança ou o jovem está com alguma alteração de peso, obesidade, desnutrição? Não é simplesmente colocar as crianças em fila e não perguntar o nome, de onde vem, quais são as dificuldades; ou retirar o professor, enfileirar os alunos, anotar os dados, como se fosse uma coisa de mercado. Como é que incluímos a discussão dessa abordagem, por exemplo, dentro de uma aula de matemática, de uma atividade corporal? Como é que podemos pensar em atividades corporais que tenham de fato um recorte com o interesse da população que faz parte daquela escola? Será mesmo o futebol, o basquete, o Hip Hop ou a capoeira? Que tipo de arte, que tipo de expressão corporal e artística fazem parte do contexto daqueles educandos, daquela juventude? O objetivo é, pois, agregar essas redes de saúde e educação para promover algo novo, diferente de palestras, medicalização e de uma triagem não problematizada, de uma triagem em que o ser humano não é considerado na sua singularidade. Estamos falando de considerar os educandos desse país nas suas singularidades e nas suas necessidades. Então, a intersetorialidade que se propõe aqui é, de fato, uma cogestão. E quando falamos de cogestão no âmbito da saúde, das nossas políticas, das nossas apostas, não estamos falando da criação de um espaço em que vence aquele que é mais forte, ou aquele que tem mais votos. Estamos falando que, quando eu, na condição de representante de um programa da saúde, estou em diálogo com um representante da educação, tenho uma proposta, uma visão da educação. E o que vai acontecer desse encontro é algo diferente do que eu tinha como proposta primeira e do que o outro tinha também. É algo que de fato se dá num encontro dos nossos diversos saberes. Todo o PSE está organizado em Grupos de Trabalhos Intersetoriais. Temos o Grupo de Trabalho nas

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esferas federal, estadual e municipal, bem como nas regionais em que está acontecendo a saúde dentro daquela escola. A proposta é que esses grupos tenham multiprofissionais convidando os outros equipamentos das redes, como assistência social, o esporte, a cultura. É nesse fórum que devem ser pensadas, criadas e pactuadas as metas e as metodologias de execução das ações do programa. Isso acontece no Brasil inteiro? Não, claro que não acontece no Brasil inteiro. Essa é justamente a nossa militância, ou seja, expandir essa dinâmica para os demais municípios. A proposta do PSE é batalhar e permanecer na batalha para um processo de política pública efetivamente intersetorial e de gestão compartilhada. É comum dizermos que trabalhamos com a teoria da tríplice inclusão. Mas na hora em que sentamos a saúde e a educação, estamos falando do quê? Estamos incluindo sujeitos, estamos incluindo as diferenças e estamos incluindo os analisadores sociais. A partir daí que criamos as prioridades locais. Então, no PSE, entram municípios vulneráveis, com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). No PSE, todos os municípios têm um conjunto de dezoito ações essenciais, que irão apontar para esse terceiro conceito: a integralidade. Então só nessa fala, eu passei pelos conceitos da intersetorialidade, da integralidade e agora da territorialidade. A territorialidade se dá de que forma? Qual é o nosso desafio da cogestão? Como é que se dá a territorialidade? É o município que define quais são as Equipes de Saúde da Família e quais são as escolas que irão desenvolver o PSE, só que a orientação para a definição disso toma como referência os territórios de vulnerabilidade. Existem vários índices possíveis e com os quais começamos a trabalhar, principalmente nas

metas em que o PSE está dentro dos planos de governo. Um desses índices é a porcentagem de alunos dentro da escola que são beneficiários do Programa Bolsa Família. Ou ainda, por exemplo, o PSE dentro do Brasil Carinhoso, do Brasil que Protege, que ainda não foi lançado, ou dentro do Plano de Enfrentamento à Violência contra a Juventude Negra, que será lançado ainda neste ano de 2012. O programa tem feito esse recorte de priorizar os municípios e as escolas que tenham mais de 50% de alunos beneficiários do Programa Bolsa Família. O que isso tem a ver com territorialidade? Tem a ver que, a partir do momento que sou uma profissional da Equipe de Saúde da Família, meu território adstrito é aquele de 3.500 pessoas. Só que no meu território adstrito podem não estar as escolas mais vulneráveis. Essas podem estar numa outra parte da cidade onde eu moro e elas de fato são mais vulneráveis porque possuem menor acesso aos equipamentos sociais, como os equipamentos de saúde. Provavelmente, perto de uma escola vulnerável não tem um equipamento de saúde que chegue até essa escola. Então, a gente faz uma quebra na territorialidade ou uma promoção da territorialidade, para além daquilo que está estipulado como território de atendimento de equipe. O desafio enfrentado no Programa Saúde na Escola é levar a saúde para as escolas vulneráveis independentemente se é ou não do território adstrito daquela equipe de atuação. As questões a serem respondidas são: Como caminhamos para a promoção da equidade na medida em que entramos um município vulnerável? Quando entramos nesse município vulnerável, o recorte das escolas atendidas é também o de escolas vulneráveis? E quais são os grandes desafios que temos vivido hoje no âmbito do PSE? De fato, é a superação da lógica da medicalização do ambiente escolar, bem como o fortalecimento das redes de saúde. Vou fazer uma provocação ao nosso colega aqui do meu lado. Temos, por exemplo, no Distrito Federal, o caso de muitas

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escolas que ainda têm um investimento excessivo na clínica odontológica e oftalmológica dentro das escolas. Não vou dizer que sou contra. Imagina se alguém vai dizer que é contra o atendimento dentro da escola. Não é nesse sentido. Mas, como a gente consegue fortalecer o sistema de saúde que está fora da escola para que ele consiga acolher a necessidade odontológica e oftalmológica provocada na escola? Só podemos retirar a clínica de dentro da escola quando a equipe de fora tiver capacidade de absorver as necessidades que foram geradas lá dentro. Outro desafio é a produção de cogestão e de novos dispositivos que vão além de realização de palestras. A realização de palestras se aproxima muito mais de uma educação bancária do que da produção de conhecimento. Se estamos falando de juventude, como é que propomos metodologias e formas de abordagens da saúde que não coloquem o sujeito jovem como alguém que precisa aprender o que eu adulto, no caso, o agente de saúde tem a ensinar? Sobre uso de preservativos, por exemplo, eu sempre faço uma brincadeira. Podemos falar de todos os males que todas as drogas podem fazer, mas tudo o que falamos cai por terra diante do primeiro trago num baseado, porque tudo o que falamos gira em torno dos malefícios. É isso que a pessoa sente quando vive a relação com a droga? Como é que dialogamos com aquilo que o outro sente, com a visão que o outro tem das experiências vividas nas suas descobertas nessa faixa etária? Precisamos avaliar o quanto estamos preparados para acolher essa necessidade de saúde. Sabemos, por exemplo, o quão difícil é a chegada dos jovens na Unidade Básica de Saúde, porque o profissional de saúde não está preparado para acolher as suas necessidades, principalmente no âmbito da violência, no âmbito do uso de drogas e no âmbito da sexualidade. Nós temos hoje profissionais despreparados para acolher a demanda do jovem e criar, com ele, mecanismos de

vínculo que gerem condições para que, uma vez saindo daquela Unidade Básica de Saúde, aquele encontro suscite problematizações sobre um conjunto de escolhas feitas na vida, estimulando, pelo menos, processos mais reflexivos diante daquelas decisões que ele/a tome no seu cotidiano. Estamos falando da produção de uma ação de promoção e cuidado emancipadora, que fortaleça o acesso de qualidade das redes de saúde e educação, a relação das equipes de Atenção Básica e das equipes de educação, incluindo sujeitos, saberes e analisadores sociais para a superação das vulnerabilidades. Muitas vezes, quando das visitas domiciliares das Equipes Saúde da Família, o jovem e/ou a criança não estão em casa, mas sim na escola. Essa entrada da saúde na escola também facilita a garantia do acesso universal à saúde, que é um direito de qualquer cidadão brasileiro. É comum que o compromisso com as consultas no âmbito do acompanhamento e do desenvolvimento sejam interrompidas após o segundo ano de idade da criança. Temos hoje a ida da criança à Unidade Básica de Saúde com certa frequência principalmente até os dois anos de idade. Depois disso, temos um grande vazio. Tirando grandes ações, como vacinação e fortificação via vitaminas, a ida com frequência à Unidade Básica de Saúde e o estabelecimento de vínculo com o profissional estão bastante aquém daquilo que gostaríamos. Essa é uma questão que vai facilitar as decisões e escolhas que possam trazer uma emancipação da juventude. O acolhimento, os ambientes e processos de trabalhos e protocolos na atenção básica não favorecem a aproximação com a população jovem, especialmente no âmbito da ações de saúde sexual e reprodutiva. Hoje o PSE está com metas em todos os planos de governo lançados e a lançar. Temos uma meta de que, até o final de 2014, qualquer município brasileiro possa aderir ao PSE, tendo um incentivo. Até essa data, será feita a inclusão desses municípios a partir de critérios

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dos planos de governo. Então os municípios prioritários a entrar no PSE no ano que vem são aqueles que fazem parte do Plano de Enfrentamento à Violência Contra a Juventude Negra, do Brasil que Protege e do Brasil Sem Miséria. No Brasil que Protege, que ainda não foi lançado, estamos trabalhando para a capacitação de profissionais de saúde para a promoção da cultura de paz e prevenção à violência; e no Plano de Enfrentamento à Violência Contra a Juventude Negra, estamos trabalhando na ampliação do PSE priorizando os municípios do mapa da violência. Essas são as ações mínimas que os municípios pactuaram nos termos de compromisso. O PSE é dividido em três componentes: 1) avaliação das condições de saúde; 2) promoção e prevenção; e 3) capacitação. Desses 2.495 municípios, mais de 80% são da região Nordeste. A maioria deles são municípios pequenos. Então temos como ações: avaliação antropométrica, verificação do calendário vacinal, detecção precoce de hipertensão arterial sistêmica, detecção precoce de agravo de saúde negligenciados, avaliação oftalmológica, auditiva, nutricional, de saúde bucal e psicossocial. No âmbito da promoção da saúde e prevenção, temos as ações de segurança alimentar e promoção da alimentação saudável, práticas corporais, atividades físicas, o Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE), que é um programa com recorte no HIV/AIDS, saúde sexual e reprodutiva e prevenção ao uso de drogas. Há também a promoção da cultura de paz e a promoção da saúde ambiental. Estão previstas ainda as capacitações que os profissionais vão realizar neste ano, que são: aplicação do teste de acuidade visual, gestão intersetorial do programa, alimentação saudável, saúde sexual e reprodutiva e prevenção ao uso de drogas. Os gestores executam as ações e estas são todas monitoradas por um sistema do Ministério da Educação, o SIMEC, em que os/as gestores/as terão que alimentar o sistema com os dados

coletados nas ações realizadas. Ou seja, cada escola entra no sistema para dizer quantos educandos participaram dessas ações. Vou encerrar aqui, e para quem quiser saber mais sobre o PSE, os dados serão disponibilizados. Obrigada.

Artur Sinimbu Silva Assessor da Secretaria Executiva da SEPPIR-PR Boa tarde. A primeira questão que eu queria trazer diz respeito à demografia da juventude. Quem são os jovens e as jovens brasileiras? O primeiro recorte que colocamos é o de gênero. Outro ponto é o que chamamos de escolaridade líquida do Ensino Médio. Vamos ver que ainda grande parte da juventude, dos adolescentes, não está no Ensino Médio; ou, se estão, não estão em idade regular. Então, estamos falando dessas juventudes que demograficamente são 50 milhões de pessoas, de acordo com o Censo 2010, ou seja, 1/4 da população brasileira. Se analisarmos a juventude negra, ou seja, as pessoas de 15 a 29 anos que se autodeclaram pretos ou pardos, estamos falando de 27 milhões de pessoas, o que representa mais ou menos 15% da população brasileira. Essa é a juventude negra. Analisando alguns indicadores de escolaridade e acesso ao mundo do trabalho dessa juventude, dá para perceber que o recorte racial é muito forte em relação a isso. Por exemplo, o analfabetismo entre jovens brancos está entre 3,7%; entre jovens negros, está três vezes maior, 9,1%. Se falarmos de gravidez precoce, também teremos um recorte racial que se evidencia: 4,8% das adolescentes brancas e 7,5% das adolescentes negras se tornam mães. O dado sobre o mundo do trabalho, já é meio diferente. Quando verificamos a empregabilidade de uma maneira bem geral, os negros e as negras não estão abaixo dos brancos nos indicadores, mas, se verificarmos

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os indicadores que efetivamente caracterizam esse tipo de trabalho, que é a formalidade ou a informalidade no mundo do trabalho, o número de horas trabalhadas, mobilidade, distância domicílio e trabalho, percebemos essa desigualdade. Trabalho com algumas das grandes ações que a SEPPIR pretende no âmbito do governo federal e acho que aí se evidencia o que eu gostaria de chamar de desafio da transversalidade. É sobre isso que trabalharei com vocês hoje. O primeiro desafio para esse olhar de quem está no Estado, pensando essas políticas públicas, é o de não fazer “puxadinho”. O que eu quero dizer com isso? Trata-se de entender que o papel dos organismos de promoção da igualdade racial, seja no âmbito federal, estadual e municipal, não é o de criar pequenas políticas complementares, as políticas estruturantes do Estado e sim conseguir influenciar e incidir nessas grandes políticas estruturantes. Concretamente, o que são essas políticas estruturantes? Quando falamos do Programa Bolsa Família, estamos tratando de uma política social estruturante. Quando falamos do Cadastro Único, estamos tratando de um cadastro utilizado para organizar o acesso a uma série de serviços públicos que reúnem 70 milhões de pessoas. O último dado que verifiquei, de 2011, o Cadastro Único reunia 60 milhões, mas com o Brasil Sem Miséria, eu acredito que já estamos falando de 70 milhões de pessoas ou um pouco mais. Então, o desafio é conseguir incidir sobre essas políticas estruturantes. Por que trabalhar em cima de algumas políticas de microcrédito, quando temos uma agência no Brasil, como o BNDES, que tem uma carteira de investimento maior do que a do Banco Mundial? É nesse tipo de organismo que temos que conseguir incidir, porque é lá que está concentrada uma série de recursos políticos e orçamentários para criar não só novas

políticas, mas acima de tudo redirecionar as políticas que já existem. Isso porque nem sempre o problema é de recurso, mas redirecionamento. Não que não exista problema de recurso, mas esse acaba sendo um problema comum que se trata quando não se olha que às vezes a questão é outra. Para dar um exemplo bem concreto de redirecionamento, tomemos o caso do Brasil Carinhoso. Se eu não me engano, ele oferece 60 reais por criança, algo em torno desse valor, e a restituição do Imposto de Renda para quem paga e tem filhos e filhas é de 140 reais. Então, a política redistributiva para quem é restituído por Imposto de Renda é mais volumosa em termos financeiros orçamentários do que a política de distribuição de renda que está dentro da carteira do Bolsa Família do Cadastro Único. É esse tipo de discussão que precisamos para não fazer “puxadinho” quando se trata das grandes políticas. Uma segunda questão diz respeito às ações afirmativas em sentido amplo. A cota é um tipo de ação afirmativa entre outros instrumentos que podemos usar. Porém, nem sempre pensamos nessa multiplicidade de ações afirmativas, que vão para além das cotas e, às vezes, complementam as políticas de reserva de vagas. Para dar um exemplo disso, temos o PRONATEC, um programa do governo federal cujo desafio hoje não é o número de vagas, mas o preenchimento das vagas que oferece. É um tipo de programa que precisa de uma ação afirmativa que vá além da reserva de vagas, porque as vagas estão lá. O que é preciso é construir o caminho que conecte essas oportunidades a essa juventude que não está acostumada a frequentar cursos profissionalizantes que antes eram muito caros, pagos, no SENAI, no SESC e no SENAC. Um terceiro desafio da transversalidade é a resistência institucional. Eu a caracterizaria de duas formas muito evidentes. A primeira é a inércia. A administração

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pública muitas vezes tende a fazer as coisas como ela já vinha fazendo. Isso tende a manter a despriorização de públicos não eram atendidos. Então, se estamos falando da juventude negra e estamos querendo trazer políticas para essa juventude, precisamos romper um pouco essa inércia, porque em muitos programas não é essa juventude que está acostumada a ser contemplada. Um exemplo concreto é o Ciência Sem Fronteiras, um programa que oferece um considerável número de bolsas de intercâmbio para países estrangeiros. Não se trata de jogar o estudante ou a estudante em outro país. Há certa infraestrutura para isso. Acontece que ele está direcionado justamente para as áreas em que a juventude negra menos participa, até mesmo no ensino superior, como engenharia, ciências exatas. Certamente a maneira como ele está estruturado é mais para atender outros grupos. Esse é um debate que a gente vem fazendo com a CAPES e o CNPq. O que podemos fazer para que as universidades não se sintam estimuladas a simplesmente ampliar a lógica de intercâmbio que já tinham? Qual é a lógica de intercâmbio? Quem vai para o exterior é quem tem condição, subjetiva inclusive, não só material, mas subjetiva, de trajetória de família e tudo, de bancar um desafio desses? Então essa é uma das discussões que temos feito com eles. O outro é um desafio que considero francamente ideológico e que diz respeito a assumir a questão racial como uma questão estruturante das desigualdades sociais brasileiras. A desigualdade racial no Brasil não é secundária e também não substitui uma questão de renda, uma questão geracional. Mas é comum vermos alguém alegando que o problema racial é um problema de renda, um problema de trajetória, de território, geracional. Vamos pegar o problema do enfrentamento da violência contra a juventude negra. Diante de todo o diagnóstico que já construímos sobre essa questão, fica muito evidente que há um problema geracional sim, porque, quando se chega na faixa dos 15 anos, estoura

a taxa de mortalidade. Quer dizer que o problema geracional está associado de maneira estrutural com a questão racial. É a juventude negra que mais morre. Ainda se pode argumentar que a população negra está concentrada nas áreas mais vulneráveis. Mas, no caso de São Paulo, por exemplo, onde temos acesso a esse tipo de informação, a taxa de mortalidade entre jovens negros e jovens brancos dentro de uma área vulnerável incide mais sobre os primeiros. Então, vocês olham esse tipo de variável que é sempre utilizada para dizer que a questão racial é secundária, e perceberão que realmente ela é estruturante. Esse também é um desafio de encarar do ponto de vista ideológico a questão racial como estruturante e não como produzida por outros problemas, como renda ou território vulnerável. Por fim, acho que outro desafio é associarmos nos diagnósticos que realizamos os problemas da juventude negra em uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva ou psicossocial. O que eu quero dizer com isso? Que hoje em dia, em algumas áreas de políticas públicas, já temos acesso a informações muito minuciosas e detalhadas sobre o perfil das pessoas e como as desigualdades raciais estão marcadas nas estatísticas. O DATASUS, por exemplo, é uma fonte de informação a partir dela você pode definir a taxa de mortalidade de jovens negros numa determinada cidade. Com o Censo conseguimos traçar uma série de elementos sobre o perfil da juventude negra. Na estrutural, por exemplo, conseguimos criar esse perfil. Mas isso não responde a uma série de questões que estão colocadas também sobre a dimensão psicossocial e subjetiva desse público que precisamos atender. Então, para dar um exemplo bem concreto, e para fechar, no caso da violência contra a juventude negra, se você acha que vai resolver o problema só estabelecendo algum incentivo financeiro para essa juventude, você vai esquecer de considerar uma dimensão psicossocial que envolve a questão de gênero, a questão geracional, sobre o papel que esse jovem negro

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tem em sua comunidade. De repente, não vai ser uma bolsa que vai servir de estímulo para ele abrir mão de um determinado espaço social que ele ocupou naquela comunidade em função de uma ação criminosa. Então é esse tipo de desafio que eu gostaria de trazer aqui para o nosso debate sobre Políticas Públicas para a Juventude Negra. Obrigado.

Ernandes Macário Secretário adjunto de Igualdade Racial do Distrito Federal A secretaria tem um papel transformador aqui no DF. Estamos perto de completar um ano e estamos tentando criar e estruturar a política de igualdade racial para a maioria da população do Distrito Federal, que é a população negra. Dentro dessa maioria, se formos pensar na questão geracional aumenta para 63% da população segundo dados da CODEPLAN, que é uma empresa de pesquisa do Distrito Federal. Trago aqui algumas políticas que estão sendo desenhadas. Definimos três eixos prioritários para o desenvolvimento da juventude, que é maioria aqui no Distrito Federal: educação, trabalho e genocídio da juventude negra. Na educação estamos em diálogo permanente. Na educação temos tentado implementar e discutir piamente e fervorosamente dentro do governo a implementação da Lei n. 10.639, que vai completar dez anos e que em nenhum estado do país foi implementada efetivamente. Temos uma preocupação não só da secretaria, mas do governo como um todo, pois, de que forma podemos garantir uma inclusão, se na base não discutimos a questão racial. Ou seja, toda discriminação começa no ensino infantil, começa na infância. Então, primeiro é preciso capacitar professores e preparar as nossas crianças para que não sofram o que a gente sofreu. Procuramos, por meio de audiências públicas e em discussões dentro do governo, trazer ferramentas para viabilizar a implementação e a

construção de uma política educacional na qual jovens e crianças negras possam estar inseridos e debater essas questões no seu dia a dia, minimizando os prejuízos do racismo. O jovem negro, muitas vezes, está excluído do acesso à educação e não está capacitado para o mercado de trabalho. Ter uma política estruturante minimiza a questão da violência, do acesso ao mercado de trabalho. Porque se formos observar isso, em uma seleção de trabalho, se forem um jovem negro e um jovem branco disputando uma vaga com o mesmo currículo, o jovem branco, que tem um padrão que a sociedade entende como o correto, vai ser escolhido. A partir do momento que enfrentamos o racismo, e enfrentamos dentro do governo, tentando fazer parceria com a Secretaria de Trabalho, na perspectiva de ser criada a oportunidade na qual possamos qualificar e encaminhar ao mercado de trabalho jovens negros, também estamos tentando criar uma política de ação afirmativa. Nesse sentido, temos trabalhado a respeito do Qualificopa. Em relação à segurança as pesquisas já mostram que o Distrito Federal tem um destaque no cenário nacional pelo fato de ser uma das capitais onde mais se mata jovens negros. Se formos pegar isso à risca, podemos dizer que o governador Agnelo está bastante preocupado na perspectiva do enfrentamento a essa violência. Muitas vezes os principais opressores são os policiais. Pensando nessa ideia de combate à violência contra a juventude negra, temos discutido com a coordenadoria de juventude e com a Secretaria Nacional de Juventude sobre formas de instrumentalizar e ampliar a discussão dentro dos órgãos de governo e no Plano de Enfrentamento à Violência contra a Juventude Negra. A SEPIR-DF tem pensado e discutido com a Secretaria de Segurança a ideia de se montar um GT e incluir na grade curricular da academia de formação dos policiais a temática étnico-racial. Estamos também discutindo com

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todas as polícias aqui do DF, militar, civil, bombeiros, enfim, para que se crie um plano de enfrentamento que se garanta a segurança ao jovem negro e se reduzam as atitudes arbitrárias, que resultam muitas vezes no assassinato da juventude negra promovido por policiais que têm a função de proteger e não só de incriminar ou assassinar. Temos também uma ideia que já está sendo executada, que é a escuta. Já existem modelos em outros estados e estamos trazendo também a escuta à população negra. Isso vai desde a questão da população jovem até as outras faixas etárias. Essa é a atividade SEPIR-DF na Comunidade, com o objetivo de ouvir a população negra, no sentido de criar mecanismos de combate a esse genocídio, a essa violência que assusta os nossos jovens negros. Realizamos essas atividades em oito regiões administrativas em parceria com a SEPPIR, e daremos continuidade à segunda fase, em mais oito regiões administrativas. A ideia é que possamos participar em todas as regiões administrativas do DF, colhendo informações e discutindo com a população negra como contribuir para instrumentos de combate à violência e ao racismo. Precisamos, ainda, avançar nas discussões. Acho que essa proposta do seminário do Latinidades é algo único, na ideia de estar pensando de que forma podemos estar unindo governo e sociedade civil na perspectiva de construir não só uma proposta, não só um plano, mas algo que possa de fato incluir a população negra após os mais de 500 anos de exclusão. Gostaria de dizer que estou muito feliz e que possamos estar aqui ao longo desses dias com diversos atores do governo, da sociedade civil construindo ações. Os jovens negros que estão aqui presentes estão tendo uma oportunidade ímpar de acesso a informações e empoderamento que muitos de nós não tivemos.

No mais, eu gostaria dizer que a SEPIR-DF está à disposição para contribuir na construção dessa política. Mesmo sabendo que estamos só engatinhando e vamos fazer um ano de existência, o governador tem uma vontade enorme de discutir essa temática não só dentro do governo, onde existe o racismo institucional. Estamos refazendo esse enfrentamento dentro das secretarias, discutindo, propondo de que forma podemos construir essa sociedade mais igualitária. Os jovens negros do DF têm esse instrumento e essa oportunidade de pensar uma política que possa contemplar essa faixa etária que é mais atingida. Obrigado.

Paulo Ramos Mestrando em Sociologia, Especialista em Análise Política e Relações Institucionais O que irei apresentar é o resultado do meu tempo de atuação política no movimento de juventude negra, bem como o resultado do meu trabalho como consultor na Secretaria Nacional de Juventude, que estou realizando agora, e ainda o produto da minha pesquisa de mestrado, que desenvolvo no Núcleo de Estudos AfroBrasileiro (NEAB) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Irei apresentar aqui o histórico crítico das políticas públicas voltadas à juventude negra implementadas no governo federal a partir de 2000. Consultei diversos sites da internet; gestores, alguns aqui presentes; fiz entrevistas com gestores que desenvolvem políticas que potencialmente poderiam atender a este público, no caso a SEPPIR, a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), dirigida pela nossa companheira que está aqui ao nosso lado, a Severine; e a Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura.

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha No artigo que depois disponibilizarei para vocês, há a explanação de dados de como é realizada a execução de cada uma das políticas, quais são os recursos destinados a elas, qual o número de atendidos, bem como os objetivos que tais ações públicas procuram alcançar. É importante lembrar que as duas temáticas que estão unidas na expressão jovens negros são objetos recentes da ação do Executivo, tendo apenas recentemente os seus marcos institucionais constituídos, a saber, a SEPPIR e a SNJ, que foram criadas em 2003 e 2005, respectivamente. O que procura orientar esse trabalho é uma pergunta: em que medida o reconhecimento das diferenças tem pautado a agenda das políticas públicas desenvolvidas pelo governo federal? E qual é a relação entre a valorização da diversidade e o desenvolvimento? O meu artigo está organizado dessa maneira, com uma introdução, onde faço um histórico das políticas nacionais dirigidas à juventude negra. Nesse ponto, não tem jeito. Tenho que separar em dois espaços. Primeiro as políticas de igualdade racial, depois as políticas de juventude, para então chegar às políticas públicas de juventude negra, pois elas tiveram desenvolvimentos diferentes, com percursos diferentes, teorias que as informaram diferentes. Tem um marco nas políticas de igualdade racial que é o ano de 2003, quando a SEPPIR e a Lei n. 10.639 foram criadas, sendo sancionadas pelo presidente da República. O que isso significa? Significa que, por exemplo, a Lei da discriminação racial e a Fundação Cultural Palmares deixaram de fazer parte de ações específicas e passaram a ter uma dimensão institucional diferenciada frente ao conjunto das políticas anteriores. A Lei n. 10.639 estabelece um conjunto de ações que inclusive mudam as leis maiores, que é o caso da LDB. As políticas de juventude também têm um marco, que é o ano de 2005, quando são criados a SNJ, o Conselho

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Nacional de Juventude e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens. Antes disso, o que nós tínhamos eram subprojetos de programas de subprogramas. Em 2005, então é que podemos estabelecer um marco para o desenvolvimento das políticas públicas para juventude. Para entender e compreender o que estamos falando, quando tratamos de políticas públicas de juventude, fui buscar uma autora chamada Regina Novaes. Ela já trabalhou na Secretaria Nacional de Juventude e foi presidente do Conselho Nacional de Juventude durante o governo Lula. Num texto chamado “De que estamos falando quando falamos de políticas públicas de juventude”, ela estabelece três tipos de políticas de juventude. As políticas universais de juventude são aquelas que dizem respeito a demandas de distribuição e à universalização de acessos que deveriam contemplar todos os cidadãos, até mesmo os jovens. As políticas atrativas são dirigidas a públicos definidos por critério de renda, ocupação, atividade, local de moradia e outros particionamentos. Porém, mesmo não tendo a idade como critério, atraem mais pessoas jovens, seja porque se referem às dimensões societárias que os atraem − os pontos de cultura, por exemplo −; seja porque respondem a problemas que tocam diretamente significativa parcela dessa geração de jovens brasileiros, na medida em que se referem ao envolvimento com drogas, segurança e combate à violência − como o Proteja, segmento do Pronaf. O terceiro tipo de políticas de juventude são as preferenciais, aquelas que se destinam apenas a grupos etários, entre 15 e 29 anos, e são desenhadas de acordo com as características e demandas do segmento juvenil que foi definido como público alvo. De maneira geral, as políticas específicas se pretendem inclusivas, oferecendo escolaridade e inserção produtiva, social e cultural para grupos de jovens que vivem em situação de exclusão. Se formos aplicar esses conceitos para a ideia de política pública de juventude negra, onde, por exemplo, formos colocar juventude e adicionar o adjetivo negro, nós

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vamos ter alguns probleminhas. O PROJOVEM Integral seria uma política universal de juventude negra; a Lei n. 10.639 seria uma política atrativa, porque tem a questão racial como critério; o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica, que é o PIBIC Ação Afirmativa, também tem recorte racial como critério, então seria uma política atrativa; Programa Ciências Sem Fronteiras idem; o PROUNI do MEC idem, o PROUNI também tem recorte racial como critério; uma política específica seria o Projeto Farol. Realizei uma adequação dos conceitos e estabeleci três tipos também de políticas públicas de juventude negra. Utilizei a política atrativa, a com recorte e a específica. As políticas atrativas de juventude negra são aquelas que dizem respeito a demandas de distribuição e universalização de acessos que deveriam contemplar todos os cidadãos, até mesmo os jovens, mas que, por sua característica de exigir públicos excluídos, atrai mais jovens negros. Para políticas com recorte de juventude negra, a autora considera que essa classe de política de juventude é aquela que atinge majoritariamente um público de 15 a 29 anos. Mesmo não tendo a idade como critério, a adequação da utilização dessa categoria para esse trabalho reside no conceito. São políticas com recorte as políticas de juventude negra que oferecem o pertencimento racial como critério de atendimento. Políticas específicas são aquelas que se destinam apenas a grupos etários entre 15 e 29 anos, de cor preta ou parda, assim autodeclarados. E aí a classificação muda, o PROJOVEM passa a ser uma política atrativa; o Plano Nacional passa a ser uma política com recorte; o PIBIC/AA, uma política com recorte; Programa Sem Fronteiras, o PROUN/MEC e o Farol passam a ser políticas específicas de juventude negra. Todas essas políticas têm impactos diferentes, e elas não têm impactos diferentes a depender se elas são com recorte, atrativas ou específicas. Eu classifiquei as que têm menos e mais impacto. O que diferencia essas

políticas é não apenas o recurso destinado a elas, ou a dimensão, o número de cidades que cada uma atinge. O que diferencia essas políticas – PROUNI (recorte), PROJOVEM (atrativa) e FAROL (específica) − são os fundamentos, o modo como elas são formadas. Primeiramente, no que diz respeito à formação das políticas de juventude, era preciso ter medidas que não fossem, como o Artur disse, puxadinhos. Ou seja, políticas que fossem “universais”, no sentido de pegar toda a juventude, e pautadas pelo reconhecimento e pela transversalidade. O que forma as políticas de igualdade racial são as ações afirmativas. E aí eu recortei alguns trechos do trabalho do ministro do STF, Joaquim Barbosa, quando ele fala de ação afirmativa, pois estas têm um impacto muito maior no sentido de lidar com a linguagem estatal. Então, quando você chega no Ministério da Justiça, onde está o entrave em geral, ou no Ministério do Planejamento, que é outro entrave, o que informa política de ação afirmativa tem mais força do que o que informa a Política Nacional de Juventude. Mas isso tudo é resultado de um processo de elaboração. Outro desafio quando falamos de política pública de juventude negra é superar a transversalidade, porque toda política pública é transversal. Quando a Saúde vai fazer alguma coisa, ela vai ter que lidar com diversos outros Ministérios, como Educação, Transporte, Meio Ambiente. O que essas políticas têm que as políticas de juventude negra ou de igualdade racial não têm? A autoridade da autoria então sempre vai ter que chamar a SEPPIR e a SNJ. Antes de 2011, o maior problema era saber de quem era a demanda da Conferência Nacional de Juventude. O ex-secretário executivo de juventude chegou a falar que a implementação da Primeira Conferência Nacional de Juventude não era problema da SNJ. No evento da SEPPIR, o então o secretário de ação afirmativa teve que chamá-lo à fala. Isso é um problema da Conferência Nacional da Juventude. Para

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quem não sabe a I Conferência Nacional de Juventude deliberou que a prioridade número 1 das políticas públicas de juventude era a juventude negra. Esse é um dos problemas, a autoria: de quem é a bola? Outro ponto é o reconhecimento dentro do reconhecimento, que é promover essa multiplicidade de reconhecimentos, de raça, sexualidade, gênero, território, geração. Esse que é o dilema que a política pública de juventude tem.

Severine Macedo Secretária Nacional de Juventude Boa tarde a todas e todos, gostaria de saudar os meus colegas de mesa, na pessoa da Thaís, do Paulinho, do Ernandes, da Raquel, do Artur, que têm se debruçado conosco ativamente nos últimos meses para a construção do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Juventude Negra; saudar a cada um e cada uma que está aqui no debate; e também saudar a organização do Festival Latinidades. A temática sobre a violência contra a juventude negra é um tema recorrente nos últimos anos. Não é uma novidade para o movimento social, mas finalmente o governo resolveu assumir também uma parte importante nesse debate ao reconhecer que tem uma dívida histórica em relação ao enfrentamento à violência e à exclusão dos jovens negros no Brasil. Muitas coisas vêm sendo feitas nos últimos anos. Acho que vale recuperar isso que o Paulinho colocou. Esse histórico da construção da SEPPIR em 2003, da criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Secretaria Nacional de Juventude, no governo do presidente Lula, como parte de um reconhecimento da importância de construir e promover políticas públicas de inserção e inclusão de alguns segmentos da população que sempre estiveram à margem das políticas de Estado no nosso país. Sobretudo no caso a juventude, que vem sendo tratada muitas vezes mais como um problema social

do que como um segmento que é efetivamente sujeito de direitos e que é estratégico ao desenvolvimento sustentável do Brasil. Como o colega Artur falou, a juventude brasileira hoje representa mais de 50 milhões de pessoas. A nossa população está começando a envelhecer e numa velocidade muito rápida, diferentemente de alguns países da Europa. Em vinte anos, vimos uma inversão muito drástica da nossa pirâmide demográfica, e a juventude tem uma importância não só econômica, mas também social, política e cultural. Isso não pode ser desprezado. Então, toda a nossa luta na Secretaria Nacional de Juventude é continuar reafirmando os jovens como sujeitos de direitos, que foi uma marca importante do governo do presidente Lula, da própria constituição da Secretaria da Política Nacional de Juventude. É também reafirmar esse outro entendimento dos jovens como estratégicos para o desenvolvimento sustentável. Esse debate não está sendo travado apenas aqui no Brasil. Não é uma invenção da SNJ, mas uma pauta que já está há tempos colocada na rua, a despeito dos olhares por parte da sociedade, até mesmo dentro dos espaços em que atuamos, que insistem em tratar a igualdade racial e a juventude como pautas menores. Esse contingente não é minoria. Nos primeiros debates sobre a política pública de juventude no Brasil, havia sempre os grupos de trabalho para as “minorias”. Estavam lá a juventude negra, os LGBT, as mulheres, população rural, tudo em um “balaio de gato”. O movimento social que foi trazendo à tona as discussões, se posicionando frente às temáticas da diversidade da juventude. Outra marca importantíssima do debate da juventude no Brasil, das políticas públicas, é reconhecer que temos uma diversidade enorme, não só de maneiras de organização, mas que essa diversidade é marcada também por raça, etnia, gênero, orientação sexual,

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha bandeiras que aglutinam essa juventude. O território também define muita coisa. Se esse jovem é da periferia, do centro, das cidades, do campo, por exemplo, não dá para reduzir território a isso. De todo modo, serve como exemplo muito claro de que esses fatores podem ser positivos efetivamente para valorizar essas diferenças da juventude, mas que também não pode continuar justificando as desigualdades que enfrentamos hoje. Como já foi muito bem falado aqui, quando desdobramos as informações sobre a situação da juventude brasileira, fica explícito o impacto das variáveis de raça, etnia, gênero, se é do campo ou da cidade. A desigualdade que a gente encontra na sociedade como um todo isso reflete com mais força na juventude. Os indicadores de trabalho decente são um exemplo. Os piores índices de trabalho indecente no Brasil não vêm apenas da informalidade, mas da ausência dos direitos trabalhistas, da dificuldade de conciliar estudo e trabalho, vida familiar, vida comunitária. Estamos falando dos piores e mais mal pagos trabalhos que existem na sociedade, nos quais está inserida a juventude, especialmente as jovens negras. Então a estratificação começa a ser vista de fato. Os problemas começam a vir à tona. Qual a origem da maior parte dos registros de exclusão da população juvenil no nosso país? Indicadores de pobreza, de acesso à educação, a oportunidade de inserção e de desenvolvimento integral da juventude a mesma coisa... Isso demonstra que há a necessidade da articulação da política pública e da superação dessa dicotomia entre política estruturante e política específica, e entre política transversal e política específica. Não se deve tratar essa questão como uma dicotomia, mas sim como algo complementar. Se continuarmos discutindo a política macro sem conseguir trazer as especificidades dos segmentos mais vulneráveis, essa política vai continuar não atingindo esses jovens.

Se nós formos ver os indicadores sobre as jovens mulheres negras, a situação é bem grave do que a da população jovem branca como um todo, ou mesmo a dos jovens homens negros. É necessário tratar essa especificidade sem, obviamente, guetizar, como bem falou o Artur, ou tratar essas políticas públicas como “puxadinho”, mas sim referendar o que efetivamente há de específico e diverso dentro dessa atuação mais global. Esse é um exercício que a Secretaria Nacional de Juventude vem fazendo, desde 2005. Algo que começou com a criação da própria secretaria, do Conselho Nacional de Juventude, do PROJOVEM. Isso marcou o início dessa construção com mais força, com um olhar específico sobre as políticas de juventude no Brasil, dando uma marca muito forte da política de juventude nas políticas de inclusão social, que não estão superadas. Diga-se de passagem, não estamos falando aqui que já passamos a fase da inclusão. Muito pelo contrário. É visto que há grande prioridade do governo da presidenta Dilma no combate à extrema pobreza. A extrema pobreza no Brasil está concentrada no Nordeste, região que concentra a população negra. Metade dos 16 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza no Brasil são crianças e adolescentes. Então, tem uma reprodução da pobreza que continua atingindo as nossas famílias e que têm essas características. Por isso é importante que programas como a Ação Brasil Carinhoso, o Plano Brasil Sem Miséria ganhem mais força porque nisso há possibilidade de fato de tratar o problema. Uma política obviamente não resolver sozinha o problema, mas sem dúvida dará um upgrade em relação à primeira infância. Estamos, portanto, falando de uma população que precisa ter política protetiva. Isso não deve ser confundido com política de tutela, sobretudo porque

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estamos falando de uma população juvenil, que precisa de políticas que promovam mais a sua autonomia e a sua emancipação, com a garantia do desenvolvimento integral. Não é só política de emprego, de trabalho decente, ou só de educação, como uma maneira de salvar a juventude. Os índices em relação à educação e ao trabalho demonstram que temos de fato garantido o crescimento do acesso da juventude à educação, por mais que ainda tenhamos muitos jovens fora da escola. A questão é que essa escola ainda não consegue refletir e ser suficientemente atrativa para a nossa juventude; e muitos jovens acabam desistindo de estudar para conseguir trabalhar. Por outro lado, aqueles jovens que estudam não conseguem ter uma entrada automática no mercado de trabalho, na mesma medida em que aumenta a escolaridade. Então, discutir a inserção em educação e trabalho, que é um dos temas da Agenda Nacional de Trabalho Decente, é extremamente importante, especialmente para uma população juvenil. A juventude negra muitas vezes não tem o direito à opção. Muitas vezes o que resta é ir para os piores empregos para efetivamente garantir o mínimo de condição de renda para a sua família. Então, focar sobre essas especificidades é importante. A nossa tentativa na SNJ, no que temos chamado de segundo ciclo das políticas públicas, é continuar reforçando a característica da inclusão social e, ao mesmo tempo, fortalecer as políticas que promovam uma maior autonomia e emancipação. Essas propostas não são contraditórias entre si, mas sim complementares, no nosso entendimento. No início deste ano, a implementação do PROJOVEM Urbano, que era gestado pela SNJ, já passou para o Ministério da Educação, para a SECADI. Conseguimos garantir um diálogo e algumas melhorias importantes.

Estamos falando do PROJOVEM, em que 70% dos educandos são negros e negras e que garante salas de acolhimento para os filhos dos educandos e das educandas do programa. Não é creche, não é educação infantil, mas é uma maneira de garantir que esses jovens não precisem desistir de um programa que já é para quem saiu da escola, já foi expulso da escola por falta de ter com quem deixar seus filhos, por exemplo. O Ministério da Educação garantiu que o PROJOVEM vai ser implementado em todos os 132 municípios que possuem hoje os maiores índices de violência no Brasil. São os mesmos 132 municípios que o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência contra a Juventude Negra prioriza como polos prioritários de implementação da agenda, porque respondem por 70% dos índices de mortalidade da juventude no Brasil. Isso significa dizer que a secretaria assumiu a agenda do fortalecimento da Política Nacional de Juventude, tratando com mais ênfase o fortalecimento dos segmentos mais vulneráveis da juventude, das agendas dos jovens negros, das jovens mulheres e da juventude rural, entre outras dimensões. Assim, outras questões acabam também passando por um processo de visibilidade. O Plano Nacional de Enfrentamento à Violência é uma agenda coordenada pela Secretaria Geral da Presidência, por nós da SNJ, a Secretaria Executiva, a SEPPIR e uma série de Ministérios. Há um ano estamos discutindo com vários órgãos do governo, propondo uma série de ações que vão ao encontro de alguns eixos, mais no sentido da prevenção à violência que acomete principalmente a juventude negra. Há um eixo específico sobre a desconstrução da cultura da violência que agrega um conjunto de ações; um eixo de inclusão, emancipação e garantia de direitos; um eixo de transformação no território; e um eixo de aperfeiçoamento institucional, no qual tratamos sobre o enfrentamento ao racismo institucional.

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Obviamente, teremos de ter uma face de mudança também, um viés de segurança pública. Então, há a necessidade de fazermos uma interface com o Plano Brasil Mais Seguro, do Ministério da Justiça.

negro é mais normal ainda; ou ainda de que o modo de alguém se vestir ou o fato de morar na periferia de uma grande cidade e ser negro ou negra autoriza que outra pessoa o/a mate.

Essa é uma ação extremamente importante que não se dá porque a Secretaria de Juventude é mais ou menos sensível à importância da construção de políticas da juventude negra no Brasil, tendo em vista o enfrentamento da violência. Vale aqui referendar, mais uma vez, que esse tema vem sendo debatido, cobrado e construído efetivamente no dia a dia. Temos ações concretas construídas pelos movimentos sociais, pelo movimento negro, pelo movimento Hip Hop, pelo movimento juvenil. Uma parte importante do movimento juvenil já vem fazendo ações em relação a esse tema. Como bem lembrou o Paulo, essa é a primeira resolução da I Conferência Nacional de Juventude, que entrou como uma das grandes prioridades da Segunda Conferência Nacional, e que o governo está buscando, a partir desse plano, responder efetivamente.

Essa que é uma das principais agendas que vamos ter no próximo período. Nossa meta agora é afunilar a construção do Plano para lançar ainda neste ano. Vai depender de um pacto muito forte com os estados e municípios. Não é uma responsabilidade só do governo federal, e vai precisar de muita ajuda também, de modo que essa mobilização que acontece no Brasil reflita numa pressão mais forte também sobre os estados e municípios, para que o Plano possa ser efetivado com pactos locais que garantam a vida da juventude negra. Além do Plano, há as ações específicas de execução na Secretaria Nacional de Juventude, como as Estações Juventude e o participatório, que é o Observatório Participativo da Juventude. A execução deles tem como foco os territórios com maiores índices de violência contra a juventude negra no Brasil. Não é uma ação que resolve tudo o que foi debatido aqui na mesa, mas é um compromisso, uma prioridade da SNJ, trabalhar com mais ênfase, com mais força na temática da juventude negra, bem como com as agendas das jovens mulheres e da juventude rural. Obrigada.

Trata-se de um problema histórico que temos no Brasil e que precisa ser de fato respondido. E a participação social é base da construção desse plano. Já fizemos cinco ou seis consultas aos movimentos e aos conselhos para a construção dessa agenda. Essa parceria também vai ser extremamente importante para ajudarmos a fortalecer as ações que o movimento já vem fazendo, por meio de uma rede nacional de mobilização e campanhas. Não estou falando apenas de campanhas de grandes meios de comunicação, mas de discussão no dia a dia na sociedade, a fim de pautar esse tema, porque precisamos ter garantia de direitos e políticas públicas que promovam não só a prevenção à violência, mas também a redução dos homicídios entre a juventude negra no nosso país. Isso, efetivamente, exige uma mudança de cultura. É preciso acabar com essa visão de que a violência é normal e de que matar um jovem

Thais Zimbwe Obrigada, Severine. Irei me privar aqui de conclusões para poder privilegiar mais a participação de vocês. Temos quinze minutos. Gostaria que estabelecêssemos um acordo: seis intervenções e em seguida passamos para os palestrantes fazerem comentários e considerações finais.

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Intervenções do Público Murilo Mangabeira Boa tarde a todas e todos, meu nome é Murilo Mangabeira, sou professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal na cidade de Samambaia, periferia do Distrito Federal. Uma pergunta, na verdade, uma provocação para o Ernandes, da SEPIR-DF. Gostaria de frisar, como política para a juventude, um eixo sobre religiosidade de matriz africana, porque geralmente se tem uma visão da religiosidade como algo de pessoas maduras e mais velhas. Existe uma juventude que está crescendo e desenvolvendo sua espiritualidade, mas que, socialmente, é vetada de se ver respeitada nos espaços sociais. Tudo isso fica muito mais difícil quando vários terreiros são invadidos, desrespeitados; e o DF não tem uma política territorial voltada para essas propriedades que fazem parte da nossa religiosidade afro-brasileira. Onde está o investimento nas políticas voltadas para a infância, com foco na atenção às crianças? Observo na escola que as crianças que não tiveram um cuidado com o crescimento e com o desenvolvimento da sua sexualidade acabam se tornando jovens com uma sexualidade confusa. São as crianças não cuidadas que, por sua vez, engravidam na 7ª série, e nós professores temos que levar uma tarefa para elas realizarem em casa. Considerando a distorção idade/série, observo que é muito precoce e pouco orientada a questão da sexualidade. Portanto, acredito que investir em políticas de infância seria uma espécie de prevenção importante que teria impacto na juventude.

de autoria a que você se referiu, não é, Paulo Ramos? Na verdade, não quero dirigir exatamente uma pergunta, mas não poderia deixar também de aproveitar a oportunidade para falar do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Juventude Negra. Como mencionou o Ernandes, estamos na unidade da Federação onde esse problema é mais evidente, é mais patente, onde essa violência se exerce todos os dias com resultados absolutamente trágicos. Pode ser que algum dado como, por exemplo, o Mapa da Violência, vá dizer que não somos os primeiros da Federação, mas quem é do DF sabe bem do que estou falando. É porque há uma distorção, não é, Ernandes? Costuma-se comparar o Distrito Federal com outros Estados. Mas comparar o Distrito Federal com Tocantins, Goiás, São Paulo ou Rio de Janeiro não faz sentido algum, do ponto de vista estatístico. Precisamos verificar o que diz a região metropolitana do Rio de Janeiro, a Baixada Fluminense, por exemplo, a região metropolitana de São Paulo, a região metropolitana do Recife. Essas comparações podem ser feitas com o Distrito Federal, mas comparar o Distrito Federal com outros Estados não faz sentido. Se formos fazer realmente a distinção estatística correta, com certeza nós estamos numa posição vergonhosa no que diz respeito à violência contra a juventude negra. Nesse sentido, Severine, mais de uma vez tivemos a oportunidade de conversar sobre isso, e acho que falo também em conjunto com a SEPIR-DF. Gostaríamos de colocar o governo do Distrito Federal à disposição para implementarmos as primeiras experiências concretas de políticas públicas com relação ao Plano Nacional de Enfrentamento da Violência contra a Juventude Negra. Estamos dispostos a isso. Estamos preparados para isso. Estamos aguardando o fechamento. E estamos aqui nos preparando também para fazer essa intervenção. Portanto, gostaria de saudar, novamente, a organização desse evento e dizer que estamos à disposição também para fazer política pública para a juventude negra do Distrito Federal.

Artur Sinimbu Silva Carlos Odas Boa tarde. Sou Carlos Odas, coordenador de juventude do GDF. Não poderia deixar de aproveitar a oportunidade para fazer uma saudação muito breve à organização do Festival Afro-Latinidades, e a todos aqui presentes. Tive a oportunidade de trabalhar com quase todos e vejo que estamos nos construindo como quadro também. Estamos nos tornando autoridades dos nossos próprios eventos, do nosso próprio tema. Isso é fantástico, porque é aquela autoridade

Gostaria de agradecer em nome da SEPPIR do governo federal a possibilidade de participar desse debate. Apesar de estar participando da elaboração do Plano de Enfrentamento à Violência, não entrei muito nas minúcias do plano porque vai ter uma mesa específica sobre isso. Então, estou aqui também à disposição para contribuir com a Fernanda Papa, que é da SNJ e que vem participando ativamente dessa construção. Acho que a ideia foi um apresentar esse desafio de uma maneira mais geral, falar sobre como é difícil introduzir essa dimensão estruturante da questão racial nas políticas públicas. Acho que o Paulo acabou trazendo um elemento que foi muito importante, que foi essa questão de superar a transversalidade. Realmente, acho que o desafio vá mesmo além da ideia de transversalidade. O desafio é a intersecção. É preciso construir um diagnóstico

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e é importante trazer o Estado. O governo por si só não consegue construir esse diagnóstico. Acho que, apesar de todas as informações que podemos captar a partir de estudos de pesquisas, levantamentos, experiências de outras políticas, consultorias, talvez existam dimensões desses problemas que não conseguimos abarcar ainda. Para dar um exemplo, eu acho que as letras de Rap e Hip Hop conseguem trabalhar uma série de dimensões do problema da violência e da posição social da juventude negra como nenhum diagnóstico no âmbito do governo consegue trazer. Para finalizar, gostaria de enfatizar essa dimensão de que essas políticas para a juventude negra só fazem sentido, só têm eficácia a partir de uma sinergia entre a ação de instâncias governamentais e a sociedade civil. Sabemos que os jovens muitas vezes não se encantam pelas políticas públicas tradicionais que são oferecidas a eles. Eles se encantam por outros espaços, outras referências que talvez aliadas com o esforço governamental podem fazer diferença na vida desses jovens. Obrigado.

Ernandes Macário Só vou responder à provocação do Murilo, dizendo que no Distrito Federal, no governo do Agnelo, não houve nenhuma derrubada de terreiro. Só para podermos enegrecer esse debate aqui. O que houve foi uma intervenção no ano passado, uma deliberação no ano retrasado da AGEFIS. A mídia publicizou como se tivesse sido uma derrubada e na verdade não foi o que ocorreu. Mas, paralelamente a isso, essa temática acabou sendo movimentada dentro do governo. Foi criado um grupo de trabalho de templos religiosos, no qual iremos justamente tratar sobre essa questão da liberdade de culto, da questão da cedência do solo para as atividades religiosas, no qual a religião de matriz africana está sendo contemplada. O Sebastião, que é o nosso diretor de comunidades tradicionais, está acompanhando esse GT e está dando resposta à comunidade de religiões de matriz

africana, no sentido de atendermos as necessidades históricas desse segmento do DF. Outra provocação importante para debater aqui, que o companheiro educador colocou, é a de começarmos a discutir a questão racial desde a infância, porque é justamente da infância que vêm todos os malefícios da confusão. Muitas vezes, a criança abandona a escola pelo fato de ter sido xingada e não ter nenhuma política educacional que acolha criança negra. Gostaria de agradecer a oportunidade de a SEPIRDF estar aqui em seu primeiro ano de gestão. Obrigado.

Paulo Ramos Mais uma vez, agradeço a presença de todos e todas. É muito legal poder participar desse evento, que está lindo e muito bem organizado. Vi a programação e para uma próxima, vou citar a pessoa da Jaque. Se juntássemos todo mundo aqui daria para realizar um novo encontro nacional de juventude negra e rever gente super legal. Meu e-mail está também na apresentação, é ramos.pauloc@gmail.com, e o artigo também está na apresentação. Obrigado.

Severine Macedo Gostaria de agradecer o convite, especialmente à Ionara, nossa colega que foi conselheira do CONJUVE e que contribuiu muito no debate da Política Nacional de Juventude. Concordo com as questões colocadas, o tema do respeito às religiões de matriz africana é extremamente importante, assim como as políticas para a juventude quilombola e as agendas mais gerais que dizem respeito às políticas de igualdade racial. Acabamos abordando aqui alguns elementos a mais no que diz respeito ao Plano de Enfrentamento, mas esse tem que ser um exercício conjunto. O próprio Conselho Nacional de Juventude tem se debruçado muito sobre isso quando falamos em fortalecer a diversidade e reconhecer as diferentes juventudes. Isso faz parte efetivamente dessa

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premissa: o olhar sobre essa diferença e a promoção dos direitos dessa juventude. Sobre a questão das políticas para a primeira infância, acho que ainda há muito a ser feito, mas estamos comemorando mais de vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é um instrumento extremamente importante na defesa da garantia dos direitos das crianças e adolescentes no nosso Brasil. A presidenta Dilma tem apostado muito nas políticas da primeira infância e acho que temos dado passos importantes no governo federal. Um dos principais objetivos, inclusive, para a erradicação da extrema pobreza é o investimento nessa população dos brasileirinhos, como fala a presidenta. O que chamamos a atenção é que o segmento da juventude teve historicamente uma ausência do Estado na promoção dos direitos, pois não existia um olhar voltado para as políticas direcionadas às crianças e aos adolescentes, e depois para a terceira idade. A juventude era vista somente como uma fase de transição. Então, acho que um dos principais avanços da construção da secretaria, do conselho, das políticas para a juventude e do que chamamos de marco legal, é a garantia de que a política de juventude se torne uma política de Estado, com a aprovação do Estatuto da Juventude. A criação do Plano Nacional, a emenda, a PEC da Juventude, que já foi garantida na Constituição, e a criação de um Sistema Nacional de Juventude devem convergir para a consolidação da política de juventude. O desafio é que essas políticas sejam asseguradas. Nossa proposta é poder rodar todos os estados. Naturalmente, precisamos começar por aqui. Estamos juntos nessa perspectiva com o GDF. A nossa tarefa vai ser muito grande na coordenação do plano com a SEPPIR e na pactuação com os estados, que são responsáveis pela segurança pública efetivamente. A ação é no território, no município, nas periferias, nas comunidades mais violentas do Brasil. E isso exigirá uma pactuação com os governos estaduais. Então, gostaria de reafirmar mais uma vez a importância dessa parceria com vocês, com os movimentos

organizados para que isso deixe de ser um desejo nosso e se torne de fato uma agenda implementada, que consiga a médio e longo prazos reverter o que dizem os indicadores. Gostaria, ainda, de socializar com vocês outra iniciativa da Secretaria Nacional de Juventude, que é a criação de um comitê interministerial para tratar efetivamente do tema da juventude a fim de trabalhar sobre as resoluções da II Conferência Nacional de Juventude, na perspectiva de transformá-las em plano de juventude e criar instrumentos concretos que promovam uma maior articulação e a promoção do tema dentro do governo federal. Espero no próximo Afro-Latinidades poder apresentar ainda mais ações concretas a partir dessa ampliação do compromisso do governo federal como um todo em relação ao tema da juventude. Obrigada e estamos à disposição. Nosso site é www.secretariajuventude.gov.br, e o e-mail é juventudenacional@planalto.gov.br. Logo teremos um observatório participativo, um espaço interativo para podermos debater todos os temas da juventude, que é o Participatório, e vamos começar com o tema da juventude negra. Portanto, com certeza vamos demandar também para que a rede do Afro-Latinidades possa se envolver e ajudar a construir essa rede participatória. Obrigada, Thaís.

Thais Zimbwe Obrigada Severine. Queria mais uma vez agradecer o convite para participar desse evento tão importante e agradecer a participação de todos e todas. Uma boa noite para todos nós.

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Emprego e Renda Mesa 03 Paula Balduino de Melo – Mediadora Doutoranda em Antropologia (UnB), Diretora do Coletivo Pretas Candangas Boa tarde a todas e todos. Queria inicialmente agradecer nossas expositoras e expositor. Inicio a mesa com algumas observações elucidativas. Emprego e renda foi o tema do Festival no ano passado. Discutindo Mulheres Negras e Mercado de Trabalho, tivemos debates que trouxeram dados relevantes. Como se sabe, a população negra está entre os estratos de menor renda no Brasil. Por exemplo, entre as pessoas que estão em situação de extrema pobreza, que são 16,27 milhões, 70,8% são negras. Estes são dados de 2010. Conforme o Censo de 2010, somos 50,8% da população brasileira, incluindo pessoas pretas e pardas. Em relação à ocupação de postos de trabalho, sabemos que a população negra é sub-representada em determinadas categorias profissionais e sobre-representada em outras. Os indicadores sociais estão melhorando no campo do trabalho e da renda, mas as desigualdades permanecem. É importante pensar de forma específica e em segmentos específicos para a resolução dessas desigualdades. Quando pensamos juventude negra, o tema de trabalho e renda é fundamental. Estamos aqui para conhecer a experiência das nossas expositoras e do nosso expositor.

Rosana Souza de Deus Secretária Nacional de Juventude da CUT Boa tarde a todas as companheiras. Sou oriunda do Movimento Sindical, no qual há uma participação muito pequena de mulheres. Esse debate é estratégico

e tem o intuito de diminuir as diferenças no país. Saber que há homens contribuindo é muito importante para nossa organização e mobilização. No movimento sindical, trabalhamos muito com dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Temos um coletivo organizado há aproximadamente quinze anos na Central Única dos Trabalhadores, que desenvolve um trabalho nacional e estadual. A companheira Júlia, secretária de combate ao racismo da CUT, faz parte do Conselho; eu faço parte do Conselho de Juventude também. Nos debates sobre a inserção da mulher e da mulher jovem no mercado de trabalho, não há como não fazer o recorte de raça. A inserção é muito mais precária quando relacionada à mulher jovem negra. Pude constatar que eu tenho a cara da pobreza brasileira. Infelizmente, a pobreza brasileira tem cara, sexo e cor. A grande maioria da população pobre nesse país é de mulheres, jovens e negras. Estão principalmente no Norte e no Nordeste. Salvador, Recife e Fortaleza são as três principais grandes cidades do Nordeste, que concentram o maior número de mulheres jovens no mundo do trabalho. Isso seria bom se elas estivessem inseridas em postos de trabalho qualificados, mas não é o que acontece. Estão inseridas no mundo do trabalho de forma precarizada. Têm as menores remunerações, estão nos serviços mais vulneráveis e de maior rotatividade, entre eles, o emprego doméstico.

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha As trabalhadoras jovens negras são 96% das trabalhadoras domésticas; 80% das mulheres jovens que entra no mercado de trabalho hoje estão nas empresas de transformação, nos telemarketings ou no trabalho doméstico. Grande parte das mulheres também é inserida a partir de concurso público. Quando nós falamos sobre telemarketing, é muito claro porque há um grande número de mulheres jovens trabalhando nesse setor, assim como homossexuais. Porque é um setor onde não se trabalha com a imagem. Quando você está em casa, atende o telefone e tem alguém vendendo ou cobrando um serviço, seja ele qual for. Você não sabe com quem está falando. Não sabe se é negro, se é idoso, se é nordestino. Eu entrei no mundo do trabalho a partir de uma indústria de transformação. Ou seja, não é um simples dado, é real.

políticas públicas específicas. Grande parte das mulheres jovens que deixam de estudar e de se qualificar são mulheres que têm filhos, porque não têm onde deixar os seus filhos. Então, é importante o investimento em creches públicas em todas as capitais e na zona rural. É importante também ter ensino de qualidade no campo e na cidade. Em especial é importante aprovar a redução da jornada de trabalho sem redução de salário. E por que reduzir jornada de trabalho? Se as mulheres jovens negras estão fora do mercado de trabalho, é só a partir da criação de novos postos que se pode inserir essas mulheres de forma qualificada. Além disso, as mulheres jovens devem ter tempo para cultura, esporte, lazer e inclusão digital. Para completar sua renda, a população negra é quem mais faz hora extra. Assim, não há tempo para ir ao cinema, namorar, viver sua juventude.

Construir políticas hoje para esses setores é estratégico para realmente retirar da marginalidade as mulheres jovens negras. Nesses últimos nove anos, percebemos que houve um aumento na renda acumulada pelas mulheres, mas isso não implicou a diminuição de diferenças sociais no Brasil. Quem concentra a renda continua concentrando a riqueza do país e quem está na zona de marginalidade continua aí. Porém, reconhecemos avanços no tocante à valorização do salário das mulheres negras. Há uma maior inserção dessas mulheres no mundo do trabalho, principalmente a partir da política de valorização do salário-mínimo, já que mulheres jovens negras, em especial as nordestinas, são em sua maioria trabalhadoras domésticas. Então, quando há uma política de valorização, é saber que essas mulheres terão melhores condições de sustentar sua família, sabendo que a maioria delas é chefe de família, responsável pelo cuidado do lar e muitas vezes também pelo cuidado dos idosos e idosas.

Há outra grande questão que é o assédio sexual e o assédio moral que as mulheres sofrem todos os dias em seu local de trabalho. E, quando se trata do trabalho doméstico, o assédio é muito elevado porque ainda há uma ideia no Brasil de que as mulheres são sinônimo de sexualidade, em especial as mulheres negras. Se vende isso para fora do Brasil e nós muitas vezes acabamos reproduzindo isso dentro das nossas casas. Pensa-se que as trabalhadoras podem sofrer todo tipo de pressão, de sofrimento, de humilhação, porque lá no tempo da escravidão era assim. Então, a sociedade brasileira como um todo tem uma parcela de culpa nesse processo.

Outro fator importante, principalmente para nós do movimento sindical, é a necessidade de constituição de

Precisamos de fato unir forças, constituir aparelhos, fortalecer políticas públicas que garantam melhor qualidade, melhor situação de empregabilidade, melhores condições de educação pública para que a mulher jovem e negra, quando entre no mundo do trabalho, entre de forma qualificada. Não é possível que ainda hoje a cor da pele diga ou dite para a sociedade brasileira quem tem de ser o mais pobre, quem tem de ser o mais rico. Não é possível que entre homens e

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mulheres tenham tantas diferenças nesse país. Hoje no Brasil a mulher jovem negra recebe 51% a menos que um homem jovem branco. E um dos estados que mais tem precarização da mão de obra de mulheres jovens é o Distrito Federal. Assim, precisamos buscar um mundo do trabalho em que não existam diferenças entre homens e mulheres, entre negros e não negros, entre jovens e adultos. Criemos um espaço de empregabilidade onde todos sejam iguais. Queria agradecer, em nome da Central Única dos Trabalhadores, de nosso novo presidente Vagner Freitas, pelo convite e por poder apresentar um pouquinho sobre o mundo do trabalho relacionado ao tema da mulher negra, em um dia tão especial como o dia de amanhã.

João Paulo Cunha Pesquisador do Data Popular Queria começar agradecendo o convite em nome da Data Popular, instituto de pesquisa focado em produzir conhecimento sobre os estratos mais pobres da população brasileira, para empresas e para instituições de outras naturezas. A população negra é maioria da população brasileira, o que por si só daria relevância para o estudo desse tema, mas, infelizmente, por processos históricos que vêm de longa data de discriminação, ela é a população mais representativa das camadas pobres, o que nos aproxima mais do tema. Minha exposição está baseada em um trabalho que fizemos com a Fundação Baobá. Falarei do cenário, depois sobre alguns indicadores, buscando delinear como evoluiu a situação nessa última década, em seguida destaco o que considero a centralidade para transformações no cenário da juventude negra. Em comparação à história brasileira, a última década

poderia ser caracterizada como um momento de avanços, embora combinados com uma manutenção da desigualdade em níveis alarmantes. Foi um processo que envolveu o controle da inflação e uma ampliação dos programas de transferência de renda, acompanhado de crescimento econômico, aumento real da renda, formalização do trabalho, queda do desemprego, universalização da educação básica. Como isso afetou a situação de bem-estar da população negra? Em primeiro lugar há um momento importante em que a população negra passa a se identificar de fato como maioria da população brasileira, embora isso entre as classes econômicas se dê de uma forma extremamente diversa. Vemos no gráfico que, entre a classe A, os negros são apenas 15%, mas, na camada mais pobre, classe C, os negros são 70%. Em 2004, havia uma imensa maioria da população negra concentrada nas classes mais pobres da população brasileira (D e E), mais de 60% da população negra. Em 2009, 45% da população negra passa a estar incluída na chamada classe média, classe C. Isso é um avanço. De fato, as pessoas tiveram uma melhoria de renda, mas infelizmente está longe de ser suficiente. A renda é apenas uma das dimensões da pobreza e do bem-estar. Infelizmente, outros aspectos não estão melhorando na mesma velocidade. Comparando com dados de 2009 da população não negra, nota-se que persiste uma radical diferença entre as classes econômicas dos negros e dos não negros. A população negra está muito mais concentrada nas classes D e E. Nós fazemos muita pesquisa de mercado. Um ponto que não é muito discutido é a relevância que a população negra tem para o consumo. Em 2012, a população negra movimentou 673 bilhões de reais em renda própria. É curioso esse dado para vermos o quanto isso não se reflete, por exemplo, em campanhas publicitárias, ou como isso está distante das estratégias de produtos

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massificados. Os padrões de publicidade não representam de fato o perfil das famílias populares do Brasil, que são em sua maioria negras. No seguinte gráfico, a classe C, a tão falada nova classe média, já tem 43% de todos os seus recursos, ou seja, de cada 100 reais que são movimentados pela classe média brasileira, 43 são movimentados por pessoas negras. Nas classes D e E, esse percentual é ainda maior. E as mulheres movimentam 37% da renda da população negra. Ou seja, de 670 bilhões, quase 40% é movimentado com renda própria das mulheres, indicando também a relevância e a centralidade do papel dessas mulheres. Dando sequência, esse aumento da renda, embora esteja longe de resolver os problemas, permitiu algumas melhoras pontuais, como o acesso a eletroeletrônicos, que são bens de conforto há muito tempo presentes em famílias de maior renda, mas que infelizmente não estavam na vida de famílias chefiadas por pessoas negras. Então, de 2004 a 2009, sobre de 80% para 93% os domicílios com televisão chefiados por pessoas negras, de 80% para 90% os com geladeira. Para bens menos massificados, esse aumento é ainda maior. Passou de 19% para 30% as famílias que têm acesso à máquina de lavar e de 8% para 24% as famílias que conseguem ter um computador. Isso representa um avanço na rotina das mulheres que estão nessas casas, tendo que lavar roupa, e que agora têm uma máquina de lavar. Também poderíamos destacar um avanço em relação à situação de trabalho da população negra. Passa de 49% para 63% as pessoas empregadas que dizem ter carteira assinada. Isso traz benefícios em relação à estabilidade do emprego e uma série de amparos sociais que a carteira de trabalho implica. Apesar dos avanços, as desigualdades ainda são extremamente grandes. A renda média de uma mulher negra é de R$ 672,00. De um homem não negro é de R$ 1.795,00. É uma diferença abissal, demonstrativo de que as discriminações são cumulativas,

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o que deixa as mulheres negras em uma situação de dupla penalização. Isso se expressa nos mais diversos indicadores: 10% dos domicílios chefiados por pessoas negras não têm água encanada ainda, e só 3% dos domicílios não negros estão na mesma situação; 65% das pessoas não negras não têm plano de saúde, para a população negra 82% não tem; 20% da população negra diz que está muito bem de saúde, contra 26% da população não negra. E para finalizar, qual é o papel da juventude negra na manutenção dos avanços e na redução da desigualdade? Em primeiro lugar, a população negra é mais jovem do que a população branca: 56% dos negros do Brasil têm até trinta anos. No tocante à escolaridade, que tem impactos sobre a renda futura das pessoas, há um aumento razoável da escolaridade da população negra de 2004 para 2009, especialmente entre a população jovem negra. Um típico jovem negro de dezesseis anos, nesta idade, tem uma escolaridade superior à do pai e à da mãe dele, que tiveram condições mais difíceis. Isso precisa ser trabalhado, até mesmo as políticas afirmativas para a educação superior são importantes para fazer com que esses avanços continuem por esse caminho. Podemos destacar o mesmo avanço com relação à informação. A população negra tem muito menos acesso à internet do que a população não negra, de 35 para 49%. A internet é um capital importante para acesso às vagas de emprego, inserção das pessoas no mercado de trabalho e expansão da renda. Novamente, vemos que quanto mais jovem a população negra maior o acesso dela à internet. Por fim, com relação à inserção no mercado de trabalho, em comparação à população branca, são de fato ocupações com salários muito inferiores, com nível

de status profissional inferior também, que sofrem muito mais preconceitos. No entanto, nós notamos uma mobilidade ao comparar o ranking de ocupações mais frequentes dos jovens negros e da população negra mais velha. Entre a população de 45 a 60 anos, em primeiro lugar estão trabalhadores do serviço doméstico em geral. Para a população negra jovem, esse percentual deixa de estar em primeiro lugar e cede espaço a ocupações como operadores de comércio, assistentes e auxiliares administrativos. Estão longe de serem ocupações que oferecem grandes salários, mas já fornecem perspectivas de melhora muito maior do que as ocupações que a população negra mais velha tinha acesso. Para terminar, algumas conclusões: a escolaridade, o acesso à carteira assinada da população negra tem avançado rapidamente nos últimos anos, assegurando padrões de ascensão. A inserção da população no consumo de bens e serviços também aumentou significativamente, melhorando o padrão de vida material. No entanto, as desigualdades permanecem. A grande questão é como garantir que essa trajetória de evolução se mantenha. Garantir que a população jovem negra tenha uma inserção social melhor do que a geração anterior é um fator estratégico nesse sentido. Muito obrigado.

Nilva Schroder Coordenadora do Pronatec / MEC Boa tarde a todos, quero inicialmente agradecer o convite e dizer que é uma satisfação para o Ministério da Educação e a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica poder compartilhar dessa conversa com um foco tão relevante para o desenvolvimento humano e a transformação da nossa sociedade. Eu venho dizer um pouco sobre o PRONATEC, mais

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especificamente sobre a chamada Bolsa Formação, que é uma das iniciativas desse programa. O PRONATEC foi lançado por meio de uma lei, em 26 de outubro de 2011, e já em novembro iniciou suas atividades. Embora tenha esse nome de Programa, traz elementos de indução para se constituir políticas públicas de educação profissional e tecnológica. Ele vem articular todas as iniciativas que o país possui nesse tocante. Trata da expansão da rede federal de educação profissional e tecnológica, que é onde estão os institutos federais: instituições dedicadas a ensino, pesquisa e extensão, que vêm alcançando lugares antes não atendidos no Brasil. Compõe o PRONATEC também a Rede e-Tec Brasil, educação profissional e tecnológica por meio da educação à distância, que oferta cursos técnicos e de formação inicial e continuada. Tem ainda o princípio de gratuidade do sistema S (SENAI, SENAC, SESC, SESI). Ele tem que alcançar até 2014 no mínimo 66,6% da sua aplicação orçamentária em gratuidade. E o Brasil profissionalizado, que é a educação profissional nas redes estaduais. O governo federal faz um investimento nas redes estaduais para que elas possam estruturar, desenvolver e ampliar a oferta de educação profissional. E ainda o Fies Técnico-Empresa, que traz o financiamento tanto individual

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quanto para as empresas realizarem a formação dos seus trabalhadores. O PRONATEC promete oito milhões de novas vagas até 2014, que estão distribuídas nesse conjunto de ações. Para a Bolsa-Formação, são 3 milhões de vagas e o restante para as demais iniciativas. Traçando um histórico, 2011 tinha uma previsão de 72 mil vagas novas, 2012, 79.560, chegando em 343.080 até 2014. E a chamada Bolsa-Formação é uma iniciativa inovadora. Embora tenha esse nome, não se trata de um repasse financeiro para o beneficiário. Trata-se sim do repasse de recurso do governo federal para as instituições ofertantes, as quais oferecem o curso totalmente gratuito para os beneficiários. Pode haver um repasse de recurso no que se refere a auxílioalimentação e transporte. Mas o desejável é que seja repassado o próprio serviço: transporte, alimentação e todos os insumos relacionados ao curso (equipamentos de segurança, pagamento dos profissionais, estrutura completa e de qualidade). A Bolsa-Formação se apresenta de duas maneiras: Oferta de cursos técnicos concomitantes para estudantes matriculados no Ensino Médio das redes públicas, para que os jovens possam ter perspectiva de formação profissional e inserção socioprofissional. Aqui está um conjunto grande de pessoas que têm a ver com o foco desse evento. São necessariamente os cursos do catálogo nacional de cursos técnicos do Brasil, que têm no mínimo 800 horas. Bolsa-Formação trabalhadora, em que são oferecidos cursos de 160 a 400 horas, contemplados no chamado Guia PRONATEC de Cursos FIC, que foi organizado justamente para ofertar esse tipo de curso. São beneficiários basicamente três grandes públicos: estudantes de Ensino Médio de rede pública, predominantemente redes estaduais;

trabalhadores de um modo geral, com especial atenção a grupos sociais historicamente em condição de vulnerabilidade: negros, pescadores, silvicultores, quilombolas e indígenas; beneficiários de programas federais de transferência de renda, como Bolsa-Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC), pessoas com deficiência, enfim, todo cidadão que esteja cadastrado no CadÚnico. Com certeza aí está um grupo significativo com o perfil que nós conversamos aqui. Qual é o desenho da Bolsa-Formação? De um modo geral, quando nós falamos de educação, conhecemos uma lógica ofertista, ou seja, a instituição ofertante vai lá e diz: nós oferecemos tais cursos. Aqui na BolsaFormação, desenha-se outra lógica, que busca escutar os chamados demandantes, que são, em um primeiro nível, as instituições em nível federal que têm relação direta com os grupos sociais considerados prioritários. Como exemplo, na implantação da Bolsa-Formação PRONATEC Campo, voltada às populações que vivem no campo, dialogamos com o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), que está na ponta representando o poder público na relação com as populações do campo. Busca-se também a participação dos movimentos sociais, agentes que conhecem as expectativas dos grupos sociais foco daquela oferta. Neste caso, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), representação da Pastoral da Juventude, enfim, todos aqueles agentes que historicamente vêm acompanhando e que compreendem as necessidades desses grupos sociais. Entre os demandantes, até o momento temos a participação dos Ministérios do Desenvolvimento Social, Turismo, Defesa, Trabalho e Emprego, Direitos Humanos e Desenvolvimento Agrário. Os ofertantes, quem são? A rede federal de educação

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profissional e tecnológica: os institutos federais (CEFETs, Colégio Pedro Segundo) e as chamadas escolas vinculadas às universidades. Além disso, as redes estaduais e os sistemas nacionais de aprendizagem (SENAI, SENAC, SENAR e SENAT). Quais são as modalidades com as quais a gente vem trabalhando? Busquei ressaltar as modalidades em que esteja presente o público foco desse evento: Na inclusão produtiva, na Bolsa-Formação Brasil Sem Miséria, estão os beneficiários de programas de transferência de renda inscritos no CadÚnico. PRONATEC Copa, uma oferta muito pontual para o atendimento das demandas da Copa, voltado para todo e qualquer trabalhador que esteja atuando no eixo hospitalidade, lazer e curso de idiomas. Soldado Cidadão é uma oferta específica para aqueles soldados praças que dão baixa do Exército e que historicamente são vítimas de precarização do trabalho, às vezes até cooptados pelo crime organizado. PRONATEC Campo. PROJOVEM, que é uma oferta específica para o programa que antes era do Ministério do Trabalho e agora está no MEC. Seguro Desemprego, no qual se atende beneficiários do Seguro Desemprego e desempregados de modo geral, mesmo que não tenham benefício. A oferta do curso técnico concomitante e cursos de formação inicial e continuada atende jovens que estão no Ensino Médio e na Educação de Jovens e Adultos. Aqui são atendidos jovens em conflito com a lei e jovens que estão em medidas socioeducativas. Por último, no âmbito do Plano Viver sem Limite, contempla-se o atendimento às pessoas com deficiência. A discussão aqui seria como mobilizar o público de jovens negros que estão dentro desses grupos. Finalizando, pontuo os desafios da Bolsa-Formação. O

ponto de partida é o entendimento de que a educação é um direito. Temos de tê-lo como princípio presente em nossas discussões. Em seguida, o entendimento de que não podemos oferecer educação isoladamente, o que demanda a necessária integração entre políticas de trabalho, educação e desenvolvimento social e econômico. Não se trabalha só por um certificado na mão, mas na perspectiva de inserção socioprofissional. Daí a necessidade de um regime de coordenação e cooperação entre os diferentes agentes que fazem educação e que tratam das demais políticas públicas. Outro desafio é a promoção de ações afirmativas buscando um tratamento diferenciado para pessoas que vêm sendo discriminadas. Agradeço e me coloco à disposição para qualquer esclarecimento.

Eunice Léa de Morais Gerente de projetos da SEPPIR/PR Boa tarde a todas e a todos. Vim para contribuir com esse debate, que não é novo, sobre a situação das mulheres negras. As mulheres negras estão lutando há muitas décadas, numa luta grande até mesmo com o feminismo, porque quando nós falamos de mulheres, eu sempre pergunto: que mulheres, cara pálida? Porque nós temos que falar de nós mulheres cara preta. E não somos iguais, somos muito diferentes. Precisamos falar do racismo. Cresceu a presença da população nos postos de trabalho, o grande problema é que o fosso continua. Porque este é um país racista. Em função disso, as mulheres negras foram colocadas historicamente num lugar que demonstra a desigualdade no acesso, na permanência e no sucesso da sua inserção no mercado formal de trabalho. Essa situação se manifesta de várias formas, na ocupação dos postos mais baixos na escala salarial, com maior precarização. A remuneração é desigual,

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mesmo em ocupações de igual categoria, considerando a admissão, a promoção e a qualificação. Somado a isso, temos de se conciliar as nossas tarefas domésticas com as profissionais. Enfrentamos uma dupla e tripla jornada de trabalho. E, além disso, há relações de poder entre mulheres e homens, brancos e negros, nesses espaços do trabalho. É nas relações de trabalho em que temos a maior concentração, a maior efetivação das relações desiguais entre brancos e negros, entre mulheres e homens e entre mulheres brancas e mulheres negras. Como população negra, somos mais da metade da população brasileira, 97 milhões de pessoas. As mulheres são 49,9%, 49 milhões de mulheres. O trabalho do movimento negro e de mulheres negras, bem como as políticas de governo reforçaram a identificação da população como pretas ou pardas, por ocasião do Censo. A maioria ainda se diz parda, não se diz preta. Onde nós estamos nessa situação de emprego e renda? 15% dos nossos jovens de 10 a 15 anos e 8,3% das mulheres negras estão em trabalhos precarizados. Entre as pessoas não negras, o índice das mulheres é 6,9% e dos homens 11,5%. Na idade de 16 a 19 anos, os homens negros estão 63,5% e as mulheres 43,7% em empregos precarizados. Nessa faixa etária deviam estar na escola. A população negra não pode ser classificada como população vulnerável. Nós fomos excluídos por um processo perverso de organização da sociedade brasileira. Em nossa trajetória de emprego e renda, sempre estamos com a taxa maior, até mesmo de desemprego. Quer dizer, em qualquer processo de crise de uma empresa, a primeira pessoa a ser demitida é a mulher negra, a jovem ou o jovem negro. Nossa taxa de formalidade na ocupação de cargos de trabalho, entre os homens negros, é de 49,81%, e entre nós mulheres é de 42,51%. Outro indicador importante é o rendimento. Mesmo com o grau de escolaridade mais elevado, as mulheres negras ganham menos que as não negras. Em 2004, os negros recebiam 53% do rendimento dos brancos. Em 2009, a relação ficou em aproximadamente 58%. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística

e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em 2009, em todas as regiões analisadas pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), o rendimento da mulher negra foi menor quando comparado ao de homens negros e não negros. Por exemplo, em Salvador, as mulheres ganham 48,2%. Qual é o setor em que estão em grande maioria as mulheres negras? Somos 34% da força de trabalho no setor de serviço. No caso de concursos públicos, estamos principalmente nas áreas de cuidado e educação, mas onde? Como atendente, na limpeza, nos serviços sociais. No trabalho doméstico, há 7,2 milhões de pessoas, entre as quais 93% são mulheres, 6,7 milhões em números absolutos. Todas as mulheres que estão no trabalho doméstico remunerado representam 17% da ocupação feminina. Esse trabalho doméstico remunerado contribui no Produto Interno Bruto (PIB), apesar de os economistas não considerarem o trabalho doméstico como uma atividade econômica. A taxa de mulheres negras que não trabalham ou não estudam é superior à das mulheres jovens em geral, é de 23,1%, dos homens jovens é de 13,9%, enquanto que dos homens negros é de 18,8%. Porém, a mulher negra jovem ou adulta trabalha muito: ou ela apoia as redes de proteção social, ou ela concilia família e trabalho, ou ela cuida dos irmãos menores. Quer dizer, na verdade nós estamos sempre trabalhando. As nomenclaturas que a pesquisa usa são complicadas, como por exemplo “mulheres inativas”. Imagina se alguma mulher é inativa? Quais são os nossos desafios? Em primeiro lugar a superação do racismo institucional. Em segundo lugar, reverter as representações negativas que criaram sobre nós. A questão da formalização do trabalho, da equiparação do salário feminino com o masculino e do salário da mulher branca com o da mulher negra, o acesso às esferas do poder e o fomento à nossa produtividade, tudo isso precisa acontecer tanto na esfera púbica como na privada. A garantia de autonomia econômica é fundamental para a transformação das condições de desigualdade vividas pelas mulheres, especialmente aquelas decorrentes das clivagens entre a desigualdade

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social, de gênero e racial no país. Em pesquisa do Ministério do Trabalho, de janeiro a junho de 2012, de 622.334 mulheres negras inscritas na intermediação de mão de obra, apenas 62.740 mulheres negras foram colocadas no mercado de trabalho. Apenas 10% de mulheres negras que estão ofertando seu trabalho foi colocada no mercado de trabalho. Há iniciativas do governo, desde 2003, que há de se registrar. Por exemplo, o Eixo 9, “Enfrentamento ao racismo, sexismo e lesbofobia”, do segundo Plano Nacional de Política para as Mulheres, resultado da luta de mulheres negras e mulheres lésbicas na segunda Conferência de Políticas para as Mulheres. O programa para a superação das desigualdades de gênero e raça, também da Secretaria de Políticas para as Mulheres, atua dentro das empresas. O nosso programa na SEPPIR “Enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial” tem um direcionamento específico para as mulheres negras, com ênfase nas mulheres jovens. É uma agenda transversal com 25 programas temáticos, 63 objetivos, 52 iniciativas, 10 ações orçamentárias em vários ministérios. O nosso estatuto, que é de 2010. Isso é o que gostaria de ressaltar ao fim, destacando que temos de combater as práticas discriminatórias que se proliferam e se ancoram em culturas organizativas orientadas pela crença da supremacia do masculino sobre o feminino e do branco sobre o negro. Muito obrigada.

Makota Kizandembu Mestra em Indumentária Africana, GT de Moda Afro do CNPC Boa tarde a todas. Eu vou falar de moda afrobrasileira, considerando que no Brasil, depois da última Conferência Nacional de Cultura, conseguiu-

se construir um colegiado de moda no âmbito do Conselho Nacional de Cultura, no qual temos Goya Lopes representando a moda afro-brasileira. O Grupo de Trabalho de Moda Afro foi formado a partir da présetorial de moda anterior à última Conferência Nacional de Cultura, que foi em 2010. Estamos discutindo com a Fundação Cultural Palmares sobre o primeiro seminário nacional de moda afro-brasileira, que deve acontecer agora entre setembro e outubro de 2012. Essa discussão sobre moda no Brasil, e por aí afora, é nova. Agora é que o Ministério da Cultura lançou um livro baseado no Seminário Nacional de Moda, fazendo uma pesquisa com pessoas ligadas à moda. Devo dizer que, apesar de Goya Lopes ter assento no Conselho e de ser a única referência de design de moda afro no mundo, no livro não tem ela. Então, se a pesquisa sobre moda é nova, a de moda afro-brasileira ainda está por ser feita e decorre da nossa recente mobilização. A moda afro-brasileira é uma combinação de cores alegres e vibrantes, com contrastes marcantes, que a diferencia das demais. Não se constitui como uma tendência, e sim um estilo criado, usado e elaborado por protagonistas que compreendem sua originalidade e o seu diferencial, ao se tornar elegante, marcante, sem cair no folclórico. Quando nos posicionamos claramente como mulheres negras, mulheres afro-brasileiras ou mulheres africanas na diáspora, nós sabemos que somos vistas como exóticas. Para mim, exótico é sinônimo de folclore. Por aí fica difícil a inserção dessa moda como material gerador de trabalho e renda. O empreendedor é um conceito novo, mas é uma prática antiga. Aquele que utiliza seu talento para o seu fazer econômico, para o seu negócio. O empresário é aquele que utiliza o talento de terceiros para o seu ganho financeiro, para o seu negócio. Sabemos que a mulher negra entra no mercado de trabalho bem antes dos homens negros. Durante o processo abolicionista e após esse momento, as mulheres já estavam lá ganhando dinheiro para libertar outras mulheres, em melhores

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condições econômicas que os homens. Então, por que agora estamos ganhando salário inferior ao dos homens negros e das mulheres brancas? Isso é consequência daquele racismo que eles dizem que é coisa da nossa cabeça, esse racismo estrutural.

tinha um grande turismo de fora. O turista valoriza a nossa moda afro-brasileira não como exótico e folclórico, mas pela questão cultural; como uma coisa que vem com identidade, com raiz, que movimenta dinheiro e gera trabalho.

Empreendedores negros eram 32% em 2009. Mulheres negras eram 39% das empregadoras. No mundo da moda, onde estamos? É um setor com intensiva aplicação de mão de obra feminina, certo? Parte disso resulta justamente do fato de ser funcional, ou seja, uma coisa para ser usada, na classificação dos economistas. Todas nós provavelmente temos uma tia, uma mãe, uma avó, uma prima, uma parente nossa que foi costureira, ou bordadeira, ou crocheteira, qualquer coisa nesse sentido. Onde estão nossas mulheres no mercado de trabalho? São mão de obra informal. A mulher trabalha em sua casa, com filhos ao redor. E cadê as creches que nós estamos pedindo, que é direito de toda mulher? Não tem. Trabalham em casa sem carteira assinada, sem coisas que a gente sabe não serem muito, mas que a lei permite, como, por exemplo, licença maternidade e direito à amamentação. Então os profissionais de moda e os economistas estão achando ótimo que a moda absorva mão de obra informal. Isso é bom para mim quando eu faço parte daqueles 39% de mulheres empregadoras. Mas não é bom para as empregadas, que têm de exercer a “resiliência”, palavra que conheci esses dias. Resiliência é a capacidade que nosso povo tem de se desdobrar para vencer as dificuldades e vencer o racismo. Goya Lopes fala que a moda afro-brasileira tem três desafios a enfrentar: produção, circulação e mídia positiva. Concordo plenamente com ela.

Mídia positiva: a moda afro nunca está na mídia positiva. Na rede Globo não está a moda afro, nem nas propagandas do setor de moda.

Produção: para quem? A partir de quem? Como? De que forma? Circulação: para onde vai nossa produção? Vender para quem? Colocar em que mercado? Por exemplo, Salvador, Maranhão, João Pessoa, Santa Catarina são lugares onde eu vendia muito bem moda afro, porque

Temos de considerar o tema cultura, tradição, inovação e tecnologias. As tecnologias de hoje não são novas, vêm de outras tecnologias, e o nosso povo já dominava tecnologia. Então, o que fez o processo de escravização e o processo pós-abolição? Ele nos excluiu das tecnologias. E na moda não é diferente. A mulher negra, seja na moda afro-brasileira como na moda que é o sexto PIB do país, está como modelista, costureira, bordadeira, tricoteira, mas nunca como a design ou a dona da marca. Só que nossa juventude negra está fazendo uma coisa muito interessante. Dou um exemplo que aconteceu na sexta edição do Festival de Arte Negra, em Belo Horizonte, um festival internacional que acontece de dois em dois anos, na mesa onde estava um rapaz que representa o Hip Hop na cidade, um dos produtores da revista Raça, um ministro do Senegal e Suzana Baca, que foi ministra da Cultura do Peru. Eu perguntei para esse rapaz se o Hip Hop estava preocupado com a influência da moda africana no movimento. E ele me informou que aconteceu no Festival uma mesa só para tratar dessa questão e me disse que estão discutindo como se inserir no mercado, como fazer design, como entrar na universidade de moda. Às avessas, grife de Hip Hop de Belo Horizonte, faz toda essa pesquisa que eu venho fazendo há vinte anos, só que agora usando essas tecnologias. Aí você conversa com fulano na África via Skype e vai conseguindo trocar. No Rio de Janeiro, tem aquele movimento chamado

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Charme, que realmente é um charme! Você vê as nossas jovens com Black Power, trança dali, roupa colorida, roupa assim, roupa assado, tudo lembrando a moda afro-brasileira. Em Belo Horizonte, tem um movimento Hip Hop que acontece todas as sextas-feiras debaixo do viaduto. Quando chega lá você encontra uma estética ligada à questão África, assim como na população negra de todo o mundo.

Quando eu ficava na frente da loja “propositalmente”, assim dizia minha chefa, as clientes falavam: “Nossa... você é exótica”. Eu não era bonita. Depois eu vi que elas queriam dizer que eu estava bonita. Mas é realmente uma visão que existe. Infelizmente, uma negra bonita ainda é exótica.

Mônica Oliveira

Considero importante, para qualquer produção, a pesquisa e a capacitação. As universidades são um fator-chave. Você só vai conseguir ser uma boa crocheteira em roupa se você fizer modelagem, se você fizer design. Precisamos fortalecer os cursos de designers e as universidades de moda. Precisamos cobrar que as universidades de moda, quando forem falar de história da arte, falem de arte africana, do movimento do soul, da Black music, do funk, do Hip Hop. Todos esses movimentos influenciam, fazem, criam a moda. A moda urbana gera muita renda, mas para quem? Para onde? De que forma? E onde está a nossa juventude inserida nessa produção?

Uma pergunta para a Makota. Estamos em um processo de construção de políticas para mulheres negras. Há uma constatação geral de que não existem políticas voltadas especificamente para as mulheres negras. Há políticas para mulheres e ações afirmativas para a população negra. Peço, em sua fala final, sugestões diretas. Quando nós vamos trabalhar com empreendedorismo de mulheres negras, o que é mais importante focar a partir da sua experiência de tantos anos nesse campo? Obrigada.

Eu agradeço muito o convite. Na minha tradição religiosa de Angola digo Zeulma Naquatezar, que o criador as abençoe, que vocês possam fazer muitos outros eventos. Devo dizer que vocês dão um pontapé quando me convidam para falar de moda aqui. Até onde sei, em eventos de grande porte, fizemos essa discussão no Sexto Festival de Arte Negra em Belo Horizonte e aqui. Então, estamos saindo na frente.

Faço um breve comentário em relação ao PRONATEC. Quando as políticas públicas são universais, ou seja, quando pretendem atender a todos os brasileiros e brasileiras, em geral elas não atendem pessoas negras. Essa categorização do público beneficiário do PRONATEC “negros” e “quilombolas” vai ser suficiente para realmente atender a população negra na representatividade que ela tem dentro do público que o programa pretende atender? Temos o privilégio de ter aqui a SEPPIR e o Ministério da Educação. Senti falta da presença da SEPPIR entre os Ministérios com os quais o MEC está dialogando para a construção e a implementação desse programa, porque a SEPPIR é a Secretaria de Governo que trabalha a temática da igualdade racial. Da mesma forma que está dialogando com o MDA para atender à população do

Intervenções do Público Janine Eu tenho um comentário a fazer. Trabalhei dois anos e meio em uma loja com certo status, a Zara, em Curitiba. Eu era a única negra que trabalhava no shopping.

Paula Balduino de Melo

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campo, acho que caberia esse contato entre os dois ministérios no sentido de atender jovens negros e negras. À SEPPIR, gostaria de dizer que precisamos avançar para além da reflexão sobre nossa situação de marginalização e trazer para espaços como esse festival as políticas que efetivamente o Estado está desenvolvendo. Se ele não está desenvolvendo, então vamos assumir isso e a partir daí nós poderemos avançar.

Rosana Souza de Deus Nota-se a relevância da diminuição das desigualdades entre homens e mulheres, em especial entre os negros e negras no mercado de trabalho. Mas precisamos ainda ampliar o debate sobre a inserção da mulher negra no mundo do trabalho, em especial da mulher jovem. Ressalto temas como a precarização, o trabalho doméstico, a qualificação, a educação.

João Paulo Cunha O que levo desse debate é a complexidade das formas como o racismo e o machismo se exercem sobre mulheres negras, de uma maneira global e por meio de diferentes mecanismos. Já sabemos sua origem, é importante agora entender como ele se reproduz, desde questões estruturais (mercado de trabalho, educação) até os

detalhes, como as formas através das quais a população não negra se refere a mulheres negras. As respostas para isso precisam atuar em diferentes frentes, que vão das políticas à construção de espaços como esse. É uma luta que precisa ser exercida no cotidiano, de maneira que possamos criar contradiscursos que atuem no sentido oposto.

Nilva Schroder Respondendo a Paula Balduino, o Ministério da Educação está articulando a partir da Presidência da República conversas com a Secretaria Nacional das Mulheres e com a SEPPIR. Nós temos participado de várias reuniões com essas duas secretarias, entre elas destaco a oficina que discutiu o chamado documento-referência da Bolsa-Formação Trabalhador e uma reunião em torno do PRONATEC Campo. Não necessariamente vamos conseguir fazer um recorte como demandante para cada frente, porém entendemos que os grupos aqui focados estão em praticamente todas as modalidades trabalhadas. Então, é um atendimento transversal. Se educação é um direito, o jovem negro e a jovem negra que escolhe estar nesse ou naquele curso tem de ter seu direito garantido. Como faremos para que esse jovem tome conhecimento da possibilidade de realizar um curso, seja técnico, seja um FIC? Para a Makota, quero dizer sobre o Instituto Federal de Santa Catarina, onde há

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cursos técnicos de moda em Araranguá e Jaraguá do Sul que trabalham as questões colocadas. Quero te passar o contato. Quero também dizer que, na educação profissional e tecnológica, já não fazemos uma abordagem apenas racionalista, instrumental. Existe uma preocupação com a questão à dimensão cultural.

Eunice Léa de Morais A política de igualdade social tem esse caráter transversal. O grande problema é que ela fica invisível nessa transversalidade. Eu tenho debatido muito com o MEC, o Ministério do Trabalho, e outros Ministérios, porque é preciso dar visibilidade. Temos uma agenda da juventude negra para os homens, de que o MEC participa. Em relação ao PRONATEC, queremos a presença de jovens negros em cursos nos quais historicamente essa presença não se nota. Queremos ir para o mercado lá de cima. No caso da SEPPIR, apesar de a secretaria não ser uma secretaria finalística, estamos trabalhando o programa de Enfrentamento ao Racismo, que, pela primeira vez, foi para o Plano Plurianual (PPA). O nosso desafio, de governo e movimento social, é monitorar o que está posto na agenda transversal.

capacitado para aquela criação? A produção vai ser vendida para onde? Vai circular onde? Não adianta só capacitar sem pensar na circulação de mercado. E também não se pode crer que edital contempla todo o povo. Até porque é feito para épocas específicas. Se muda a Secretaria, se mudar o Governo, o edital não existe mais, depende da verba. Então, temos de pensar na inserção mesmo do povo no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, nossos profissionais de comunicação também precisam ser capacitados para poder aprender a lidar com o nosso povo negro, para a gente sair do exótico.

Makota Kizandembu Respondendo à Mônica Oliveira, o primeiro passo é saber com que tipo de empreendedor nós vamos lidar. Para isso, nós vamos retomar as etapas de criação, produção e mídia positiva. É necessário construir as políticas públicas junto com os seus beneficiários. Há de se perguntar: Ele tem condições de criação? Ele está

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Saúde da População Negra Mesa 04 Cecília Bizerra − Mediadora Jornalista, Diretora do Coletivo Pretas Candangas Muito boa tarde a todas. É com muito prazer que eu participo como mediadora desta mesa que tem mulheres negras lindas, ilustres e muito bem preparadas como palestrantes. É também com muito prazer que participo do Festival Latinidades, uma iniciativa belíssima de trazer para a reflexão esses temas que atingem a população negra em geral, e mais especificamente a nós, mulheres negras, que já nascemos guerreiras, com a carga de resistência, herdada dos nossos ancestrais, e continuamos resistindo. É muito importante trazer todos esses temas que nos cercam para a reflexão, sobretudo com outras mulheres negras também. O tema da mesa é Saúde Integral da Mulher Negra, tendo como o foco a juventude negra. Então, a mulher jovem e negra está em foco, mas, obviamente, a população negra em geral está incluída.

Fernanda Lopes Oficial de Programa em Saúde Reprodutiva e Direitos do Fundo de População das Nações Unidas-UNFPA Bom, boa tarde. É um prazer estar aqui neste espaço de construção coletiva. O Festival é uma iniciativa de suma importância e traz para nós o convite a pensar desde o lugar de mulheres afro-latino-americanas e caribenhas. É um lugar diferenciado, um lugar de intercâmbio, um lugar, como eu coloquei no início, de construção coletiva. Isso é muito importante. Eu trouxe uma sequência de dados, informações e reflexões para

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compartilhar com vocês. A ideia é que nós possamos seguir junto com os slides. Como o convite vinha nos instigando a pensar como construir uma plataforma de ampliação do repertório de direitos, como subsidiar a ação para o exercício dos direitos e também o exercício do controle social das políticas públicas, o convite que eu trago aqui é para reiterar de que lugar nós falamos. Atualmente, eu desempenho uma função no Fundo de População das Nações Unidas, que é uma agência de desenvolvimento internacional que tem como mandato a agenda de população e desenvolvimento. Então, são duas vias de atuação prioritárias: uma de produção e estímulo ao uso de dados sociodemográficos para a tomada de decisão, em especial a tomada de decisão para a redução de pobreza e a garantia do desenvolvimento com a equidade; e a outra gira em torno da promoção e da proteção dos direitos reprodutivos. E é importante que a gente situe a discussão de saúde no contexto de direitos humanos. A gente fala sempre que a alma e o coração das Nações Unidas são os princípios de direitos humanos, expressos na Declaração Universal de Direitos Humanos. Portanto, é importante reiterar essa discussão de saúde como um direito tão importante e tão conectado a tantos outros direitos, sejam eles mais relacionados às potencialidades econômicas, sociais, culturais, ou à vida no âmbito mais político. A saúde, assim como todos os outros direitos que aqui estão apresentados, tem igual valor, validade, interdependência e inter-relação. É desse lugar que, tanto nos documentos que orientam o exercício do direito no campo internacional quanto no pacto de direitos econômicos, sociais e culturais e na Constituição Federal, nós reiteramos que, se a saúde é um direito, é dever do Estado formular, implementar, monitorar ações econômicas, sociais, políticas culturais para garantir a preservação desse direito, a promoção,

a proteção e a recuperação da saúde. Pensar a saúde é pensar num bem público global, é pensar num indicador de desenvolvimento. E pensar saúde das mulheres e saúde das mulheres negras também o é, porque nós não fazemos desenvolvimento sem saúde, nós não promovemos saúde, não promovemos direito sem reconhecer o racismo como um fator impeditivo. O racismo, o sexismo, o adultocentrismo são fatores impeditivos para o desenvolvimento, sobretudo quando nós falamos de uma outra perspectiva de desenvolvimento, que não está restrita ao crescimento econômico, que tem e está relacionada à ampliação das potencialidades das pessoas, dos coletivos, à ampliação das liberdades fundamentais. É importante que a gente sempre tenha em mente que a saúde e a doença não são fatalidades, mas sim processos construídos. A saúde, a doença e o cuidado são processos influenciados por vários fatores (econômicos, sociais, culturais, políticos). A saúde e a doença se constroem de acordo com a forma como a sociedade se organiza, se produz e se reproduz. E é por isso que a gente traz essa lógica da determinação social das condições de saúde. A saúde, como um conjunto de condições individuais e coletivas, é definida pelas condições em que as pessoas nascem, pelas condições de trabalho, o local de moradia, o acesso à informação, o acesso aos serviços disponíveis. Mas ela também é influenciada pelas desigualdades, pelo pertencimento racial, pela orientação sexual, pela identidade de gênero, pela idade. Todos esses fatores influenciam e não se trata de experiências isoladas. Por isso que as respostas para a garantia do direito não podem ser uníssonas. Não existe uma mulher que seja o denominador comum de todas as demais. Para pensar a saúde, para pensar o direito na sua integralidade, nós temos que pensar na diversidade, nós temos que pensar em especificidades

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para alguns grupos, para a população negra, em sua maioria. Não se trata de especificidades em saúde, mas de compreender como o racismo, sendo uma forma de inferiorização social conectada a várias outras, se reflete no corpo, na mente, na vida, na condição de saúde das pessoas. É por isso que eu trago essa discussão do racismo como elemento de violação de direitos. A gente já sabe que, na dimensão ideológica, o racismo atribui características relativas a um dado coletivo, e essa atribuição de significados sociais negativos é utilizada como justificativa para a desigualdade, para a inferiorização, para o tratamento desigual, cruel e desumano. Essa dimensão ideológica do racismo é reiterada na linguagem e nas nossas práticas cotidianas e influencia a forma como as pessoas se relacionam. Ela influencia o modo como as instituições são organizadas, como os serviços são prestados, como a qualidade daqueles serviços é avaliada. Então, você não tem como promover saúde para a população brasileira, que inclui a população negra, se você não reconhece o racismo como um dos determinantes sociais das condições de saúde. Não há como promover saúde para a população negra e nem para as mulheres negras se você − seja gestor, profissional de saúde ou mesmo usuária − não se dispuser a identificar situações discriminatórias e de violação de direitos, enfrentá-las e definir estratégias para a mudança desse quadro. As regras de convivência, a organização social, os movimentos de construção de identidade e pertencimento, a socialização dos conhecimentos e das experiências, tudo isso é influenciado pelo racismo, pelas interseccionalidades entre racismo, sexismo, homofobia, lesbofobia,

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adultocentrismo, etc. Nós estamos falando de algo que sabemos que impacta as nossas vidas e também define a nossa condição de saúde. Eu falei há alguns minutos sobre a inexistência de um denominador comum, de uma identidade única que agregue todas as mulheres sobre um mesmo denominador. Isso é muito importante, porque falar em política de saúde da mulher é falar nessa identidade única, falar em saúde integral da mulher negra também é falar dessa identidade única. Então, de que lugar nós queremos falar? Nós queremos falar de saúde da mulher ou nós queremos falar de saúde das mulheres? Nós queremos construir ações que sejam integradas, criativas e que respondam à diversidade e à pluralidade, ou nós queremos seguir nomeando problemas? Para tanto, precisamos pensar na integralidade. Esse é o princípio que move, por exemplo, o SUS como uma política de Estado, ou o que pelo menos deveria mover. Mas a realidade que eu vejo, a foto instantânea que eu estou tirando, não necessariamente é aquilo que eu quero ter. Então, como é que eu vou influenciar nisso? Como é que eu vou deixar construir a minha resposta a partir das necessidades e da dinâmica daquele território, grupo ou família? Como nós vamos promover uma saúde focada no indivíduo, mas que não seja uma saúde individual, e sim uma saúde coletiva? Pensar o SUS, por exemplo, como uma política de Estado de direito é pensar desde esse lugar. Por isso que é tão importante discutir saúde da população negra. Essa discussão recoloca o sistema, põe as pessoas que dão vida ao sistema para pensar nessas dinâmicas, no modo como essas dinâmicas produzem saúde e diferenciações. Pensar sobre equidade é reconhecer que as desigualdades demandam abordagens diversificadas. Somente concebendo esses princípios que a gente consegue compreender os dados.

Eu adoro números, mas dessa vez eu também trouxe falas. E algumas são ilustrações daquilo que as pessoas vivem nos serviços de saúde. Entre as histórias, há a de uma menina que conta: “Quando passamos pelo serviço de saúde, os próprios médicos têm nojo de nos tocar, têm preconceito. Tratam-nos como um bicho. Se você fica grávida então...” A partir daí, ela segue discutindo como é ser uma mulher negra, jovem, grávida e moradora de uma comunidade carente. Essa é uma fala de uma adolescente que participou de um projeto coordenado pela professora Stella Taquette no Rio. Outra fala vem de uma mulher usuária de uma unidade de abrigo para mulheres em situação de violência: “Então, as brancas se relacionam melhor com algumas funcionárias da casa e outras são menos compreendidas. A gente vai falar alguma coisa e elas já revidam. Sei lá, têm essas diferenças”. Isso é um fragmento de um artigo falando sobre violência simbólica e violência psicológica impetradas contra mulheres negras já em situação de violência. Mulheres que foram para a Casa Abrigo e que lá viveram várias situações de violência psicológica com o viés de racismo. As instituições também reiteram estereótipos. Hoje em todas as discussões sobre políticas de planejamento reprodutivo, que é o grande mote do UNFPA, nós temos tido o zelo de trazer a reflexão para o direito à informação, aos insumos e, sobretudo, à tomada de decisão voluntária. Em muitos lugares, discute-se estratégia de redução de pobreza como sendo uma estratégia de controle dos corpos das mulheres e do seu direito de reprodução, porque os estereótipos estão colocados. Nessa perspectiva, mulheres pobres e negras, ao parirem, estão produzindo futuros bandidos. É deste lugar que muitos cuidadores e profissionais de saúde partem. Ainda que estejam habituados com as situações que reiteram o racismo como ideologia e parte do funcionamento das instituições, não se percebem reiterando também situações como essas de violação

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de direitos. E se aparece nos veículos de comunicação é porque a sociedade pensa dessa forma. Para fechar eu gostaria de trazer os dados de morte materna. Acho que a Cláudia também vai falar um pouco mais sobre isso; e depois na conversa a gente pode voltar ao assunto. É muito importante dizer que uma das vias de transformação é o acesso à informação. É também necessário que a informação seja correta, que esteja numa linguagem adequada. A gente sempre brinca sobre a importância da tradução daquilo que está registrado. Então, a nossa construção, o nosso investimento no UNFPA em parceria com o Ministério da Saúde, a SEPPIR e a sociedade civil tem sido o de traduzir alguns dados. E os dados de morte materna marcam muito bem como as sociedades secundarizam esses sujeitos de direitos que são as mulheres. A morte materna é um indicador com muita acurácia para definir quais são os modelos de desenvolvimento que as sociedades adotam. Os países desenvolvidos têm os mais baixos índices de morte materna. O Brasil tem percorrido um caminho muito fortuito para a redução das mortes maternas, mas nós sabemos que ainda estamos muito aquém daquilo que queremos alcançar. Todos nós temos que trabalhar e contribuir para que as ações de governo sejam resolutivas, mas também temos que fazer o exercício do olhar para dentro dos grupos. Por outro lado, os dados sobre morte materna revelam como são gritantes as desigualdades entre mulheres negras e mulheres brancas em todo o período reprodutivo, em toda a faixa de idade fértil, de 10 a 49 anos. Contudo, as mulheres jovens estão numa situação bem mais delicada. E essas desigualdades são persistentes ao longo dos últimos trinta anos. Essas desigualdades persistem e têm aumentado. Então, esse é um pouco do convite para pensar a saúde desde essa perspectiva de enfrentamento ao racismo

e de valorização da diversidade, da pluralidade e, ao mesmo tempo, compreender as condições de saúde como socialmente determinadas. Os fatores biológicos e genéticos têm um peso, mas o peso daquilo que é socialmente construído vem se mostrando cada dia maior. Obrigada.

Crisfanny Souza Soares Psicóloga, Articuladora da Mobilização Nacional PróSaúde da População Negra Boa tarde. Queria igualmente agradecer o convite e dizer que para mim é muito significativo participar do Latinidades. É muito satisfatório aceitar esse convite e participar com vocês de uma discussão sobre saúde num evento que eu considero, sobretudo, mobilizador. Eu sou oriunda de uma política de ação afirmativa. Eu sou da primeira turma de cotas da Universidade Federal do Paraná, me formei há dois anos em Psicologia. Na universidade, conheci o debate racial, que foi algo transformador para mim. Então, só para registrar, aquela política pública em educação influencia hoje o meu trabalho e o meu debate na área da saúde, com bastante orgulho. Eu inicio falando também da saúde como um direito. Entendo que a saúde é um direito de todos, dever do Estado e que ela tem um instrumento para acontecer. Esse instrumento são as políticas sociais e econômicas, que têm por objetivo garantir esse direito humano fundamental. E o que é esse direito humano fundamental? Ele deve garantir o quê? Redução do risco de doenças; acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a promoção de saúde; proteção à saúde e recuperação da saúde. Então, quando a gente entende mais a fundo, a gente vai vendo que a saúde tem vários setores: tem a atenção, tem o cuidado, tem

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a prevenção. É importante que a gente olhe para isso ao pensar em saúde da população negra e da mulher negra, para que as políticas tenham um olhar em todas essas instâncias da saúde e do direito. Sobre o conceito de saúde integral, eu cheguei a procurar esse conceito no Google, tentei encontrar uma definição, mas só havia aquelas coisas de ioga, de relaxamento... Foi, então, que me dei conta que, talvez, para muitas pessoas, esse ainda seja conceito bem abstrato Como que a gente, sobretudo da sociedade civil, compreende isso? Eu acredito que a ideia de saúde integral deriva do conceito de desfragmentação da saúde, na busca de um olhar que veja o sujeito inteiro. Não se trata de descontruir as especialidades médicas, mas de contemplar o sujeito, observando-o como um ser integral, e também entendendo tudo o que interfere como fatores determinantes e condicionantes da saúde. E aí entra um calhamaço de coisas em que a saúde está envolvida: alimentação, transporte, lazer, cultura, educação, trabalho e renda, que foi um tema discutido hoje pela manhã, saneamento básico, meio ambiente, acesso aos bens e serviços essenciais, religiosidade, bem-estar físico, mental e social. As condições de participação social também são bem importantes nessa perspectiva. Como esses sujeitos da saúde são entendidos no seu direito de participação, de controle, de discussão da saúde de maneira geral? No que se refere à saúde integral da população negra, o que a gente tem no espelho contrário dessa árvore de problemas? A gente tem um cenário bastante desfavorável, e essa é uma denúncia que vem sendo feita ao longo dos anos. Demorou muito para que, em 2006, o governo assumisse o racismo como um determinante e um fator importante nas situações de saúde. Mas a gente ainda não tem o reconhecimento de práticas tradicionais em saúde, sendo exemplo disso a situação das parteiras e dos saberes tradicionais.

O racismo institucional, associado ao machismo e ao sexismo, alimenta uma violência cotidiana que vai gerar vários complicadores na saúde mental dos sujeitos, relacionados à violência de gênero, à discriminação religiosa, ao tratamento desigual no acolhimento e no atendimento, às condições habitacionais ruins, à falta de acesso a informações para exercício do controle social, ao racismo ambiental, e à questão geográfica. A gente pode entrar também na discussão dos quilombos, no desconhecimento dos quadros e agravos relativos a doenças que atingem mais a população negra, por parte dos organismos de saúde, dos profissionais de saúde, das equipes e dos próprios sujeitos que, muitas vezes, nem sabem quais os cuidados necessários para exercer o controle social e exigir o cumprimento de seus direitos. Nesse sentido, a gente pode problematizar sobre os fatores internos do sujeito em relação à saúde integral da população negra. Já a restrição no acesso, a qualidade dos serviços, as oportunidades para esse acesso, a segregação e a discriminação entram como fatores externos. Esses últimos estão relacionados ao nível de renda dessas pessoas, ao tipo de ocupação, ao lugar de residência, aos estilos de vida, etc. Quanto à saúde integral da mulher negra, se a gente for observar, há algumas doenças que sempre aparecem listadas quando se fala da saúde da mulher negra, que são aquelas em que a gente tem quadros agravantes, ou condições genéticas. Eu decidi destacar um dado apenas que mostra, de acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2006, que nós não avançamos muito nos últimos anos. A realização de exames clínicos de mama durante uma consulta ginecológica é menos frequente para mulheres negras do que para mulheres brancas. E eu acho que os outros

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dados dessas tantas outras doenças que aparecem aqui não seriam muito diferentes desse. Dados como esse mostram que há negligências desde as pesquisas, que não envolvem os temas que se referem à saúde da população negra, até o atendimento na ponta. Isso é chamado racismo institucional, uma prática muito difícil de a gente minar, porque está nos sujeitos, sendo difícil que eles reconheçam. Muitas vezes os movimentos vão até um dado estágio para a implementação de uma política, mas emperra numa instituição ou numa pessoa que têm dificuldades de assimilar a proposta. A erradicação do racismo institucional é um desafio enorme, porque as instituições são feitas de pessoas e culturas. Tomemos alguns exemplos. Como está a saúde das jovens e dos jovens negros? O que a gente tem? Em relação às mortalidades, como estão as condições de vida e morte? A população negra apresenta maior risco de morte por causas externas, mais acentuadamente por homicídios. Esse é um dado conhecido, tem sido veiculado até em mídia que normalmente não coloca e não pauta os nossos temas, de tanto que a situação está complicada de resolver. Isso envolve várias questões e tem ultimamente sido discutido a partir da perspectiva de saúde. É uma violência que atinge majoritariamente os jovens homens negros. O risco de o negro ser vítima de homicídios é 130% maior. Então a gente tem para os jovens negros uma condição bastante agravada na condição de vida. A morte materna ocorre com mais frequência entre mulheres negras, e as principais causas dessas mortes são eclampses, o pré-eclampse agudo. Hoje, quando eu cheguei, conversei com a Maria Paula e ela estava me relatando o próprio histórico dela e as situações por que ela passou quando grávida e jovem. Só não sofreu negligência porque tinha ali algum profissional que conseguiu contornar a situação e evitar que algo ruim acontecesse.

Agora discutindo condições de vida: como estão as condições de vida dessa população jovem negra? A maioria das mulheres que engravidam ainda que não queiram é adolescente e jovem, e muitas são negras. Eu coloquei ali a Preciosa, uma história transformada em filme que muitas pessoas conhecem, que relata muito bem um sofrimento que, além de tudo, vai discutir a violência doméstica, o abuso. Temos também muitos jovens negros encarcerados, que é outra situação grave. Se num primeiro instante a gente discutiu os que morrem por homicídio, a gente também tem muitas e muitos jovens presos, sofrendo violências e impedidos de gozar os seus direitos. Outra questão é que as mortes de jovens negros atingem as famílias, sobretudo aquelas chefiadas por mulheres. Ou seja, por um lado, temos o dado que diz respeito a esses jovens negros mortos, por outro, precisamos reconhecer o drama das pessoas que ficam e as formas como elas são afetadas por essas mortes. É bem interessante também pensar a saúde pela perspectiva de juventude, porque a gente fala do tratamento de doenças, mas a gente consegue pensar a partir das ações de prevenção e promoção de saúde integral. Tecnicamente, o jovem tem melhor condição de saúde. Discutindo a partir desse jovem, a gente consegue visualizar que não está para o fim, mas para o desenvolvimento da vida. A gente consegue lidar com um momento que permite discutir essa integralidade e pensar melhor as condições de vida para quem ainda não está doente, ou ainda não tem tanto agravo na sua doença. Por isso eu acho interessante pensar a saúde a partir da perspectiva de juventude. Cabe também pensar a partir da perspectiva “saúde e masculinidade”, discutir com os jovens homens a importância do cuidado, da corresponsabilidade e do autocuidado, pois isso vai influenciar nos fatores de violência, até mesmo no risco da mortalidade por

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homicídios. Acho muito importante que jovens atuem nos processos de decisão. A gente já tem amostras felizes de coisas que vêm acontecendo e de pessoas que vêm se envolvendo mais em soluções em saúde da população negra. Então, a gente tem essa perspectiva de que os jovens podem, com criatividade, no mundo da tecnologia, da mídia, do contato rápido, pensar em soluções estratégicas. Sobre a implementação da saúde da população negra, há uma dificuldade acerca do levantamento dos dados para um acompanhamento efetivo, para saber como isso vem acontecendo nos estados, o quanto tem avançado. É importante ressaltar que nos últimos seis meses vêm acontecendo ações para a elaboração e a reelaboração de planos operativos. É interessante estar atento a isso também. Está para sair em novembro o Plano de Enfrentamento ao Extermínio da Juventude Negra e tem se aberto espaço para discutir a questão das mulheres jovens. Estão para acontecer em breve o Seminário Saúde da População Negra em Debate, o II Encontro de Lideranças Caminhos e Possibilidades, para fortalecer o debate em torno da Política Nacional de Serviço Integral, a partir do diálogo entre ciência, cultura e políticas públicas, criar diretrizes, fomentar as redes para atuação social e preparar mulheres para fazer esse controle. Onde estão as mulheres negras? E o que podemos fazer nesses espaços de poder ou de contra poder? A gente está na comunidade, nos movimentos sociais, na universidade, na mídia, nos Conselhos, Comissões e Comitês, na cultura. Isso é uma questão muito interessante, porque o Latinidades, por exemplo, tem esse viés cultural, essa chamada cultural que é fundamental para a gente pensar sobre os problemas da saúde da população negra. Eu acredito que a cultura é um espaço onde a gente pode dialogar muito bem e atingir nossos objetivos políticos.

Eu queria apresentar uma das nossas ações exitosas que é a Mobilização Nacional Pró-Saúde da População Negra, uma experiência de sucesso porque conta com a participação de muitos sujeitos: homens, mulheres, jovens, adultos, profissionais de saúde, gestoras e gestores, ativistas, pesquisadoras, pesquisadores, cidadãos, cidadãs, que realizam atividades para promover e defender o direito da saúde da população negra. É uma atividade realizada por diversas redes. Trata-se de um coletivo e não de uma organização fechada, e envolve ações dos mais diversos atores, até mesmo de pessoas que não participam de qualquer instituição. Juntos nós somos mais fortes do que cada um separadamente. E é mais ou menos a partir desse pensamento que a mobilização constrói suas estratégias. A gente sabe que tem muita coisa sendo feita em saúde da população negra no Brasil. Mas como aglutinar essas experiências, pensar em boas práticas, em lições aprendidas, para que a gente passe a não só olhar para o problema, mas a ver soluções que já foram encontradas, ações que foram incorporadas em municípios e estados, e que tiveram resultado positivo e, sobretudo, compartilhá-las? No ano passado, a gente teve mais de cem atividades realizadas. Foram seminários, rodas de conversa, ações que foram desenvolvidas nos estados, especificamente direcionadas para a saúde de mulheres. Discutiu-se até mesmo sobre a Copa do Mundo. Foram bem interessantes temas discutidos nos estados. O lema desse ano é “Vida Longa com Saúde e Sem Racismo”. Estamos discutindo expectativa de vida, e o nosso convite é para que vocês participem conosco desse diálogo. A mobilização acontece a partir de iniciativas de instituições, articuladas com o governo, articulada entre movimentos sociais, e podem, enfim, partir de qualquer pessoa, qualquer sujeito que esteja aberto a incorporar essas ações, articulá-las e torná-las mais visíveis. Obrigada pessoal.

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha Cláudia Araújo de Lima Área Técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde Boa tarde a todas. É muito bom estar aqui. Gostaria de agradecer ao convite no âmbito do Ministério da Saúde. Para nós da saúde da mulher, é um gosto poder estar aqui nesse espaço que é tão representativo pró-saúde das mulheres no Brasil. Bom, aqui estão alguns dados sobre a população negra do IBGE que nem precisamos entrar em detalhes. Nós, pardos e pretos, somos 51% da população brasileira, mas infelizmente isso não é reconhecido totalmente. Há uma dificuldade da sociedade brasileira de se enxergar como negra. Ainda há alto preconceito circulando. Há alguns outros dados demográficos que podem ficar para o grupo ou para a gente discutir depois, como os relativos à expectativa de vida, que vem aumentando bastante nas últimas décadas, e infelizmente às taxas de mortalidade, que também vêm aumentando a largas passadas nas últimas décadas. Temos também algumas informações epidemiológicas recentes em relação à saúde da mulher negra. Uma grande dificuldade é a localização dos bancos de dados com o recorte de raça/cor em todas as especificidades de saúde pública, mas a gente pegou as informações clássicas e trouxe para vocês. Na internação hospitalar, em 2010, houve um crescimento de internações entre todas as raças e cores de pessoas, mas houve um crescimento que vem nos preocupando, que é o da internação de mulheres pardas e pretas. Há várias causas para esse crescimento da internação de mulheres negras. Por outro lado, há um detalhe que precisa ser observado: em 35% dos registros da internação hospitalar por um ou mais dias não se registra o quesito raça e cor. É uma deficiência da formação e da qualificação de profissionais de saúde, que estão imbuídos dessa missão de registrar a informação epidemiológica com qualidade.

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Ainda na internação hospitalar por raça e cor, os registros por gravidez, parto e puerpério para mulheres brancas, pretas e pardas estão em evolução disparada. A mulher brasileira vem parindo cada vez mais. Os óbitos também chamam a atenção, por isso temos uma preocupação em torno do que vem acontecendo na última década para mulheres em geral. Quando a gente analisa óbitos no Brasil, nos últimos 40 ou 50 anos, os homens morrem mais do que as mulheres, desde o nascer; mas de alguns anos para cá temos observado uma evolução nos índices de mortalidade de mulheres. Na faixa etária de 10 a 49 anos, a partir de quatro a cinco anos de idade, há uma curva em evolução de óbito entre as meninas. As principais causas de óbitos de mulheres brancas e negras no Brasil são os tumores, as causas externas, as doenças do aparelho circulatório, as infecciosas e parasitárias, do aparelho respiratório, sinais e achados anormais, clínicos e laboratoriais, doenças do aparelho digestivo, doenças endócrinas e nutricionais, do sistema nervoso, gravidez e parto puerpério. Quanto à violência, que é a área que eu domino dentro da saúde da mulher, nós temos uma incidência bastante alta de homicídios nos últimos anos – o que nós temos chamado de feminicídio. A informação epidemiológica de violência contra as mulheres vem mostrando que há um aumento expressivo do número de assassinatos de mulheres no Brasil, por várias formas. Isso, infelizmente, coloca a gente numa posição no ranking internacional bastante desagradável. Dos 80 países com níveis mais elevados de homicídios de mulheres (feminicídios), nós ocupamos a sétima posição. Essa é uma situação bastante delicada para o país. De 1980 a 2010, 91 mil mulheres foram assinadas no Brasil. Isso dá uma média de 4.350 mulheres assassinada por ano, 362,5 mulheres por mês, 12,1 mulheres por dia, e uma mulher assassinada no Brasil a cada duas horas. Portanto, há uma coisa errada. A violência está

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canalizada para nós, que somos tratadas como objetos. Assim, devem aumentar os estudos sobre homicídios no Brasil, para que a gente consiga identificar as causas e efetivamente fazer o enfrentamento dessa situação. Quanto à mortalidade materna, todo mundo apontou as causas, e a gente reitera esses dados. Existe uma preocupação da Área Técnica de Saúde da Mulher e da Secretaria de Gestão Participativa do Ministério da Saúde em fazer a integração dessas políticas. Nós, na nossa crença institucional, lançamos as duas políticas, tanto a de Saúde da Mulher, no ano de 2004, quanto a de Saúde da População Negra, que é uma política mais nova, de 2009. Cabe registrar que nós somos a área técnica mais antiga do Ministério da Saúde. Nós vamos fazer trinta anos, metade do percurso do Ministério da Saúde. Isso significa enfrentamentos dentro da estrutura do Ministério da Saúde. Isso significa que a interface das nossas políticas se dá diariamente, que os enfrentamentos também e os reconhecimentos também são cotidianos. Essas duas políticas são exemplos clássicos do que é a construção de saúde pública no Brasil. A Saúde da Mulher perpassa toda e qualquer política de saúde, mas com muitas dificuldades. Isso porque ainda que as mulheres sejam as maiores usuárias do SUS, elas ainda são as maiores discriminadas no Sistema Único, tendo em vista a classe social, raça e cor, local de residência, etc. No caso da Política de Saúde da População Negra, é ainda mais difícil. Na nossa inocência institucional, acreditamos que um Plano Nacional para a Política de Saúde da População Negra, que foi posto no período de 2008 até agora, iria acontecer sem o empurrão institucional necessário. Isso fez com que a gente passasse a ser não operador. Assim, não avançamos no primeiro plano da Política de Saúde da População Negra. Avançamos o mínimo possível e tivemos que mudar as estratégias.

Tivemos que nos organizar, nos fortalecer tecnicamente e buscar novas metodologias de trabalho. Uma delas é a combinação das duas políticas. A política de saúde da mulher trata de dezoito subtemas em saúde, dos mais representativos, e ela se mistura e necessita da articulação de outros Ministérios e de outras interfaces internas e externas para se fortalecer como política. Não existe saúde da mulher no Brasil se não houver outras iniciativas que se coloquem a nosso dispor. Quando a Crisfanny fala daquele emaranhado de coisas que são determinantes em saúde, aquilo tudo está descrito no texto da VIII Conferência Nacional de Saúde, de 1986, quando se discutiu pela primeira vez a Política de Saúde da Mulher em plenária. Havia muita gente da sociedade civil. Ali se apontava o significado de saúde para as pessoas, que não é a relação com as doenças. Hoje a gente consegue, com muito esforço, dentro da Área Técnica de Saúde da Mulher, tirar a saúde da mulher negra do conjunto de populações especiais e vulneráveis. Após muito debate e muita persistência, a gente conseguiu tirar a saúde da mulher negra do espaço das pessoas em situações de vulnerabilidade ou populações especiais, a exemplo de pessoas em situação de prisão, em situação de rua, etc., e puxar a política para dentro das diretrizes maiores da Política de Saúde da Mulher. Isso significa que teremos outros tantos embates para garantir que todas as especificidades da população negra sejam contempladas nas ações em saúde. O primeiro deles passa por contemplar o quesito raça/cor dentro das ações. O segundo é que a saúde da mulher negra não seja somente um complemento nos finais das frases das questões e ações em saúde. Quando a gente fala de desigualdade, igualdade e universalidade, o que está sendo discutido dentro do Ministério da Saúde? A ideia é que a construção das políticas setoriais, como as de saúde da mulher, do homem, da criança, do

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adolescente, do penitenciário, do idoso, do portador de deficiência, caminhe observando o que é recomendado pela Política Nacional de Saúde da População Negra. No novo plano de ações da Política de Saúde da População Negra, que estamos construindo, nós definimos internamente que os determinantes sociais em saúde são as nossas linhas de observação para a condução de políticas de saúde. Para isso vamos trabalhar com princípios norteadores e orientadores para ações em saúde. O princípio orientador de práticas que precisará ser muito visitado para que consigamos dar seguimento ao acolhimento e ao atendimento de pessoas negras no SUS é o da organização do trabalho. Isso vai nos remeter a refazer documentos, a reordenar as normativas do Ministério da Saúde em relação à saúde da população negra. Trata-se do princípio orientador para as políticas setoriais, as políticas de área, no que elas estão contemplando ações em saúde da população negra efetivamente, de verdade. Não é só dizer que estou fazendo para todos. Outro é o princípio da participação e do controle social do SUS, que nós desejamos que seja não somente pontual nos Comitês e nas Comissões, mas se estenda também aos serviços, ajudando a levantar a discussão em saúde da população negra. O plano está contemplando todas as áreas técnicas do Ministério da Saúde. Nós estamos fazendo reuniões internas mensais; e de agora até o final de agosto, serão quinzenais, a fim de fecharmos todas as propostas que o Ministério da Saúde tem como metas e os modos de avaliação, para que não fiquem só no papel. Como ocorre a respeito das medidas de redução da mortalidade, estão sendo discutidas dentro da área técnica e para fora da área técnica todas as medidas possíveis para que a gente consiga fazer com que a Rede Cegonha tenha um olhar diferenciado para mulheres negras grávidas.

Todos esses recortes e falas que foram colocados pelas parceiras anteriores fazem parte também do nosso repertório para a discussão interna do que significa atendimento dentro do sistema de saúde. É importante lembrar das metas do milênio, que temos que cumprir até 2015, e mais uma que está sendo atribuída por nós, Ministério da Saúde, que é reduzir o racismo social e institucional. Hoje de manhã, tivemos uma roda de conversa sobre a política e o que o Ministério já vem desenvolvendo além do processo do plano. Para a nossa alegria, a secretaria-executiva autorizou junto com a Secretaria de Ciência de Tecnologia o aporte de 2 milhões de reais para pesquisas em saúde da população negra, o que para a gente é uma satisfação. E também o gabinete do ministro autorizou uma campanha institucional do Ministério da Saúde para o SUS a respeito da questão do racismo institucional. Então, a gente vai trabalhar em mais essas ações durante este ano. A campanha deverá ser lançada em novembro. Em agosto começam a ser desenvolvidos os primeiros editais para as pesquisas. Muito obrigada e eu fico à disposição.

Mônica Oliveira Diretora de Programas da SEPPIR/PR Boa tarde a todas as pessoas presentes. Queria agradecer pelo convite. Para nós da SEPPIR, é um prazer estar aqui fazendo essa discussão, não só como apoiadores do festival, mas também porque entendemos que é uma tarefa permanente nossa colaborar com as discussões, as reflexões em todas as áreas de políticas nas quais trabalhamos pela promoção, a defesa dos direitos da população negra e da construção de políticas em torno desses direitos. Uma das vantagens de a gente falar por último é que a gente vai cortando várias coisas que já foram sendo ditas pelas pessoas que falaram anteriormente. Isso

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de alguma forma facilita o trabalho e permite que a gente foque melhor. Então, eu não vou fazer falas sobre dados, sobre essas abordagens que já foram colocadas. Antes de mais nada, eu acho que é interessante lembrar de que lugar eu falo, que é como SEPPIR, um lugar diferente, mesmo sendo governo federal, mesmo sendo Poder Executivo. É um lugar diferente, por exemplo, do lugar que fala o Ministério da Saúde. E por que é importante destacar isso? A SEPPIR é um Ministério que está incluído entre aqueles quatro órgãos que são considerados as Secretarias Transversais: Secretaria de Política para Mulheres, a Secretaria Nacional de Juventude, Secretaria de Direitos Humanos e nós. São órgãos que devem trabalhar para que a abordagem que lhes é mais específica perpasse o conjunto das políticas. Então, a SEPPIR tem como atribuições fundamentais colaborar na formulação, no acompanhamento e na avaliação das políticas. Para nós, é um grande desafio atuar em interface com os 38 Ministérios que trabalham diferentes políticas e buscar fazer com que a perspectiva racial seja incorporada no conjunto dessas políticas. Temos um exemplo disso nessa atividade. Eunice estava mais cedo discutindo o tema de trabalho, renda e empreendedorismo a partir da perspectiva da população negra, das mulheres negras; e cá estou eu para trabalhar isso a partir da perspectiva da saúde. Considerando tudo o que já foi colocado aqui, para mim, o que se faz mais presente nessa discussão é a necessidade do enfrentamento cotidiano frente à persistência do racismo. As falas anteriores, especialmente a fala da Cláudia, como Ministério da Saúde, até nos deixa um pouco à vontade, já que ela mesma traz a afirmação de que para fazer política de saúde para mulheres, para fazer política de saúde para a população negra, o enfrentamento é cotidiano. E cotidianamente a gente tem que renovar estratégias, discursos e buscar renovar também as práticas para esse enfrentamento. E essa discussão em torno do racismo institucional traz alguns

elementos fundamentais, sobretudo aquilo que diz respeito ao institucional. Para mim esse conceito de racismo institucional traz um grande diferencial, que é abordar a discriminação racial para além das relações interpessoais. Trata-se responsabilizar as instituições pela atitude cotidiana dos seus profissionais. Ou seja, se uma pessoa é atendida de maneira diferenciada no sistema público de saúde por ser negra, é responsabilidade da instituição que mantém esse sistema o dano, o prejuízo que esse profissional causou àquela pessoa que deveria receber um serviço profissional e de qualidade. E é partindo dessa compreensão que nós conduzimos a nossa atuação como Secretaria de Promoção de Igualdade Racial. Esse enfrentamento cotidiano tem muito a ver com algo que infelizmente ainda é um desafio permanente, a saber, o enfrentamento da negação e da naturalização do racismo. Nós ainda vivemos situações de naturalização que são absolutamente perversas. E aí quando tratamos da saúde das mulheres negras, esse é um dado permanente. Semana passada nós estávamos no Copene discutindo pesquisa em saúde da população negra, e Lucinha repetiu isso várias vezes, dizendo: “Eu estou o tempo inteiro me lembrando da frase do Professor Kabengele Munanga, que diz que o racismo é um crime perfeito”. O racismo é um crime perfeito. Ele é um crime que é cometido por alguém e a culpa é da vítima. Quando a gente fala de naturalização, de negação, a gente está falando exatamente disso. Como é possível, em grande parte das situações, a culpa ser da vítima, da pessoa negra que é complexada, que se sente inferior, que não procurou, que não acessou, etc.? Por que vocês do movimento negro não estão fazendo isso? Ou por que vocês do Organismo de Igualdade Racial não estão fazendo isso e aquilo? Não estou colocando todos na mesma posição. Nós como governo temos outro papel,

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diferente do da sociedade civil, dos especialistas, dos pesquisadores, etc. Mas essa é uma realidade cotidiana. Quando Eunice falou na mesa de trabalho e renda sobre a importância que temos dado ao fato de o programa temático do PPA da SEPPIR se chamar “Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial”, da importância que atribuída ao fato de se ter enfrentamento ao racismo no nome do programa, é porque esse é um dado politicamente muito significativo. Trazer à tona que não se faz promoção da igualdade racial sem fazer enfrentamento ao racismo é algo fundamental para discutir política pública, é algo fundamental para construir política pública; não só construir, mas para buscar dar efetividade às políticas públicas, torná-las eficazes. Nesse sentido, dentro desse programa de enfrentamento ao racismo, nós temos três metas que se relacionam com a discussão de saúde. Uma primeira meta é a redução da morbidade e da mortalidade materna, que é a meta que nos tem dirigido à discussão da saúde da mulher negra. Uma segunda meta é a redução dos homicídios contra a juventude negra. Há aí a informação da agenda de enfrentamento à violência contra a juventude negra, da qual a SEPPIR está participando. E por último a terceira meta que é a implementação de programas de enfrentamento ao racismo institucional em diferentes Ministérios. Isso é algo que temos trabalhado no nosso cotidiano. No caso do Ministério da Saúde, nós já temos uma experiência de alguns anos de discussão em torno dessa questão do enfrentamento ao racismo. A Cláudia e Crisfanny citaram a Política de Saúde da População Negra, mas anteriormente à formalização da política de saúde da população negra, o Ministério da Saúde viveu a experiência do Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI). E o que está se propondo é que essa experiência seja retomada. No final de 2011,

a SEPPIR assinou um protocolo de intenções com o Ministério da Saúde em que se destacam três ações estratégicas. Uma primeira ação é a retomada desse programa de enfrentamento ao racismo institucional no âmbito do Ministério da Saúde e no âmbito do SUS. A outra ação é a realização de uma campanha pela Secretaria-Executiva. Que bom que Cláudia trouxe a informação de que essa campanha foi aprovada, pois essa é uma das ações estratégicas desse protocolo de intenções. E por último a criação de uma instância de gestão da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que foi também citada na apresentação anterior. Tratando especificamente da questão da saúde da mulher, uma das frentes em que nós temos buscado atuar permanentemente tem sido no programa Rede Cegonha. Quais são as questões fundamentais? É fato que, a partir da promulgação do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, Política Nacional de Saúde da População Negra deixou de ser uma Portaria do Ministério da Saúde e passou a ter força de lei federal, por ser citada dentro do Estatuto. Porém, ainda que a Política tenha todo esse nível de formalização, o grau de implementação ainda é muito baixo; e os indicadores de saúde da população negra continuam sendo muito preocupantes, como destacado nas falas anteriores. É importante trazer de volta a compreensão de que defender a necessidade de uma Política de Saúde Integral da População Negra é trabalhar por uma população que representa 70% dos usuários do SUS. Sim, 70% das pessoas atendidas pelo SUS são negras. O que esse dado deveria nos dizer, a nós governo, Ministério da Saúde, SEPPIR? O que podemos pensar ao confrontar esse dado com o baixo grau de implementação da política? No início de julho, nós tivemos um Fórum Nacional sobre o enfrentamento ao racismo para a promoção de saúde da população negra, com a participação de diversos

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estados. Nesse Fórum, foram feitas duas denúncias, que nos têm causado muita preocupação. Uma primeira denúncia diz respeito ao fato de que, em 2011, um setor do Ministério da Saúde retirou o quesito cor da Declaração Nacional dos Nascidos Vivos. Isso é muito sério, porque a saúde é considerada a área em que mais se avançou do ponto de vista da incorporação da desagregação de dados por raça/cor. Para além de qualquer outro, o Ministério da Saúde foi o que mais avançou nesse sentido. Mas aí você tem uma decisão interna do Ministério de retirar o quesito cor da Declaração de Nascidos Vivos, que é um formulário que gera uma série de dados absolutamente fundamentais para o acompanhamento das condições de saúde da população negra. E isso foi retirado de maneira unilateral, sem diálogo com o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, a SEPPIR. Dialogou-se internamente naquele setor e promoveu-se a retirada. Para a nossa surpresa, quando a ministra Luiza Bairros foi conversar com o ministro Padilha, ele mesmo disse não saber que tinha sido retirado, que estava sabendo a partir do momento que aquela denúncia tinha sido feita no Fórum. Nós, então, mandamos um documento demandando solução para a situação, porque é preciso retroceder, é preciso recuperar o que havia antes e é preciso trabalhar em torno disso. A segunda denúncia diz respeito aos medicamentos para controle da hipertensão. O professor Luís Eduardo Batista, de São Paulo, trouxe a informação de que na grade de medicamentos anti-hipertensivos há dois remédios que não respondem às necessidades de pessoas negras do ponto de vista do tratamento. São medicamentos que não têm os efeitos desejados quando administrados em pessoas negras, mas que são largamente distribuídos pelo SUS.

Essas duas denúncias trazem para nós com absoluta atualidade o que é racismo institucional na saúde e por que é necessário fazer um trabalho permanente de defesa de saúde da população negra. No caso da Rede Cegonha, no que toca a saúde das mulheres negras, para nós tem sido mais difícil trabalhar essa abordagem, porque o próprio desenho do programa dificulta uma abordagem a partir da perspectiva das mulheres negras. O desenho do programa Rede Cegonha, por exemplo, não traz metas por meio das quais seja possível dimensionar o impacto em relação a mulheres brancas e negras. Ora, há toda uma série de pesquisas que comprovam que as mulheres negras morrem mais de determinadas causas evitáveis no processo de gravidez, parto e puerpério. Por que, sendo as mulheres negras as que mais morrem, a gente não tem metas diferenciadas para elas? Esse é o programa que está sendo apresentado como a melhor estratégia, como a estratégia prioritária do governo brasileiro para alcançar o quinto objetivo de desenvolvimento do milênio, de redução de mortalidade materna. O Brasil provavelmente não vai alcançar esse objetivo de reduzir em 75% o índice de morte materna até 2015. E, de alguma forma, não vai alcançar porque não trata a dimensão racial dentro das políticas. Os resultados obtidos quanto à redução da morte materna não têm alcançado as mulheres negras. Há uma redução entre outras mulheres, mas não na maneira como se necessita para as mulheres negras, considerando a diferenciação desses indicadores. Para concluir, dentro das discussões que temos feito com especialistas e parceiros da sociedade civil, algumas questões se destacam como importantes dentro da Rede Cegonha. Uma primeira questão é a incorporação de uma estratégia de enfrentamento ao racismo institucional no programa Rede Cegonha, não como uma coisa geral do Ministério da Saúde, mas como algo específico ao programa. É preciso que haja

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mecanismos de identificação e enfrentamento desse racismo; e metas diferenciadas em relação à morte materna das mulheres negras. Isso é algo sobre o que temos dialogado com o Ministério da Saúde, não só a SEPPIR, mas esse conjunto de especialistas e ativistas que trabalham no campo da saúde da população negra. Eu acho que esse é o momento também para que a gente possa avançar nesses diálogos. Estamos aqui o Ministério da Saúde, a SEPPIR e esses outros segmentos. É excelente que o festival crie uma oportunidade como essa. Muito obrigada.

Cecília Bizerra Ficou bem evidente que o racismo é tão violento a ponto de influenciar na produção de condições de vida e saúde da população negra. E agregado com o sexismo e o machismo, ele se torna mais violento ainda, por isso que realmente é muito louvável a iniciativa desse festival de discutir as especificidades da situação, da condição da mulher negra latino-americana e caribenha, mais especificamente brasileira. E aí, para reflexão e como provocação: diante de tantos dados graves, violentos, alarmantes e até chocantes, o que mais que podemos fazer? Embora estejamos por aí, nós não somos tantos nas universidades, nos espaços de poder como um todo, enfim, nós não somos tantos. E aí eu convido, faço a provocação para a gente refletir em torno disso.

Juliana Cézar Nunes Boa tarde. Meu nome é Juliana, eu faço parte do coletivo Pretas Candangas e sou jornalista. Para a gente que já trabalha há um tempo com saúde da população negra, essa mesa dá uma sensação muito ruim, por um lado, porque a gente vê que as coisas não estão avançando. Por outro lado, a sensação é boa, porque a gente vê que existem algumas iniciativas bem interessantes, não só da sociedade civil, mas dos organismos internacionais e do governo. Mas persiste a sensação ruim. Se a gente continuar nesses espaços, aonde a gente vai chegar? E quando? Então, a pergunta vai principalmente para o Ministério da Saúde, para a Cláudia e a Mônica. Dentro dessa estratégia do Ministério da Saúde que vocês estão redesenhando agora, a partir da constatação de que a política não foi implementada, como está sendo pensado o contato com as secretarias estaduais e municipais de saúde? A gente sente que a política não

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chega às secretarias. Há uns dois ou três anos a gente teve uma reunião com a Secretaria de Saúde do DF, e eles diziam que nunca tinham sido acionados pelo Ministério sobre esse tema, desconheciam, parecia que a gente estava apresentando a pólvora para eles. E a mesma coisa acontece com as Secretarias de Promoção da Igualdade Racial Regionais. Como a SEPPIR vem dialogando com essas instâncias locais? Obrigada.

Tatiana Boa tarde. Vou estender minha pergunta a todas as palestrantes. Eu sou Tatiana, atualmente sou colega da Cláudia, trabalho lá no Ministério da Saúde, mas sou recém-chegada da Secretaria Estadual de Saúde do Estado da Bahia. Eu estava muito inquieta quando a colega lá do Ministério começou a pautar a questão da saúde da população negra de uma forma geral. Pelas experiências que a gente tem acompanhado, e por meio de algumas falas, eu acho que o grande desafio é a institucionalização dessa política dentro desses espaços. É um grande avanço hoje a gente reconhecer que existe uma política, mas se a gente não consegue operacionalizar aquilo que está posto como diretriz para dentro do próprio Ministério da Saúde, das secretarias estaduais e municipais. Eu acho que esse documento vira mais um documento sem valor prático, sem valor de uso. A colega tocou no ponto da Rede Cegonha também. Eu tive a oportunidade de participar das discussões da elaboração do plano da Rede Cegonha no estado da Bahia, onde a gente tem um alto percentual de mulheres negras. Era uma grande dificuldade para a gente conseguir pautar e sugerir indicadores. E acho que o primeiro grande elemento de dificuldade foi o próprio modelo que saiu proposto pelo Ministério da Saúde para ser implementado e qualificado nos estados. Então, hoje a gente fala muito em fazer junto, de construir junto, na perspectiva da participação coletiva, mas não sai da caixinha

fechadinha, amarradinha. A gente tem quatro eixos, e dentro desses quatro eixos, só pode trabalhar essas metas e esses indicadores. Quando a gente se propõe a trabalhar questões como gestão do trabalho, como a gente vai trabalhar acolhimento e humanização sem estar pautando a questão do racismo na questão do acolhimento e do acesso a esses serviços de saúde? O problema é que o pacote está fechado. A gente só tem esses campos para alimentar o sistema. Ou seja, isso não é uma prioridade a se discutir agora.

Adelina Boa tarde. Eu sou Adelina, trabalho na Secretaria da Educação. Atualmente trabalho com direitos humanos com professores na regional de Ceilândia. Só uma contribuição. Meu esposo era hipertenso e em 2005 houve a troca da medicação. Com isso ele veio a óbito por falta até de informação e de divulgação. Há a necessidade de uma maior informação para a população negra em relação à medicação da hipertensão e de outros medicamentos. É necessário perder vidas por ignorância nossa, pela falta de conhecimento do efeito da medicação? É preciso haver essa divulgação, até mesmo por meio da mídia e outros meios, para que a gente possa tomar conhecimento. Quantos e quantos da minha família têm esse problema de hipertensão e não sabiam desse informe da medicação que não fazia efeito? É um tanto quanto assustador. Eu trabalho muito com a questão etnicorracial na aplicabilidade da Lei n. 10.639 em sala de aula. Vou acrescentar mais isso para os meus professores, os meus colegas de trabalho. E o que fazer dentro da minha casa? Eu tenho um filho, Samuel, decidiu ser enfermeiro. Na época em que o pai faleceu, ele tinha 13 anos. Hoje, com 21 anos, ele é um enfermeiro, está na área de saúde dando a contribuição. Obrigada.

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha Maria Paula Só complementando, como Adelina falou, ela precisou perder o marido, o companheiro. Meu nome é Maria Paula, sou jornalista, e eu tenho como experiência de vida que isso fica só na teoria, fica em mesas de debate como essa que nós estamos tendo aqui, mas na prática as informações não chegam realmente ao público que necessita. Eu digo isso porque tenho uma filha e tive um problema muito sério na minha gestação. Como eu tinha condição, eu tinha médico que dizia: “Olha Maria Paula, você tem pressão alta. Durante a gravidez, é esse o remédio para você. Você é uma mulher negra. Para mulher branca é esse outro”. Do contrário, eu poderia teria morrido, ou ter perdido a minha filha. Isso há quinze anos, mas hoje a gente se vê na mesma situação. Muitas mulheres morrendo. E não só mulheres, há muitos homens que são hipertensos. E aí? Quando isso vai sair da teoria e vai para a prática?

Maraisa Almeida Eu acho que sempre que a gente fala de saúde, a gente precisa situar em que campo a gente está. Eu sinto falta sempre de dizer o que é o SUS, de trazer dados... Até porque eu acho que, se é ruim com ele, pior sem ele. Acho que precisamos contextualizar essas coisas. A gente fica muito sem esperança, sem ver avanços, mas, desde quando eu comecei a acompanhar, acho que a gente vive a melhor situação no Ministério da Saúde. A gente tem uma política pactuada em todos os níveis, tem um grupo internamente, tem mobilização social. Vocês não fazem ideia do que são os outros Ministérios. E também acho que é importante trazer o que é o SUS, os dados, o atendimento... Eu trabalhei bastante tempo fazendo oficinas, discutindo com mulheres em comunidades. Quando a gente está perto dessas mulheres, a gente vê mais o SUS. Eu acho que daqui de Brasília muitas vezes a gente que está falando, mas nem usa o SUS. Acho legal a gente dosar também esse sentimento às vezes de inoperância, de impotência. Precisamos brigar muito ainda. Nós não podemos esquecer que o SUS está em disputa. E não haverá saúde da mulher, de população negra, LGBT, adolescente, o qualquer outra sem o SUS. Acho que têm questões, mas essa questão precede. Acho que a gente deve utilizar esses espaços para dizer: “Olha, a gente precisa brigar pelo SUS para que dentro dele a gente garanta as especificidades”. Porque senão a gente sai repetindo um monte de coisas e detonando conquistas, que muita gente e nós próprias brigamos. Precisamos também garantir a permanência.

Ana Flávia Magalhães Pinto Boa noite. Eu concordo apenas em parte com essa colocação de Maraisa, porque diante dos dados apresentados, diante de uma infinidade de relatos trágicos que nós temos colecionado, eu acho que a defesa da nossa vida precede a defesa do SUS, sim. O SUS só vai fazer sentido efetivamente no Brasil se ele fizer sentido para a população negra. Essa sensação de inoperância em alguma medida se dá porque a gente está discutindo com os representantes de instituições maiores, sendo que essas políticas estão circulando precariamente em espaços muito distintos, nas mãos daqueles e daquelas que fazem o cotidiano da saúde, seja na prevenção ou nos cuidados da atenção básica. Ocorre que, se nós que viemos da sociedade civil transigirmos com toda essa morosidade que organiza a burocracia do Estado, nós não vamos ver resultado jamais. Um debate como esse, seria uma oportunidade ímpar para a gente confrontar pessoas que estão no cotidiano de promoção de saúde com gestores do alto escalão. Porque, embora falte informação, existem pessoas que fazem uma série de esforços, que garantem que muita gente não morra. O

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próprio trabalho desenvolvido pelas redes de terreiro é um trabalho digno de servir como modelo para muitos, para políticas públicas do SUS. Mas parece que essas experiências não têm nada a ver com gestão de saúde... Há uma discussão infinita sobre o princípio da transversalidade na gestão, mas muito do que se viu até então é um engodo, sobretudo quando você chega a um hospital público, ou lida com as áreas de educação e de trabalho, renda e emprego. Há uma peça de ficção sendo gerada e alimentada. Então, se a gente retrocede para defender a dimensão teórico-burocrática do SUS, a gente vai continuar nesse lugar de receptores de uma infinidade de histórias trágicas e se doendo por isso. Diante da violência com a qual nós somos tratados, nós deveríamos nos tornar um pouco mais intransigente. Eu reconheço a grandeza do projeto do SUS e que sem pelo menos essa possibilidade poderia ser pior, mas o que temos ouvido em conversas entre amigas é: “Fulana ficou quatro dias com o feto morto mesmo depois de ter feito uma ecografia, porque os médicos falaram que não precisavam socorrê-la imediatamente, que iriam priorizar as mulheres que estavam em trabalho de parto adiantado. Ela quase morreu”. O fato é esse cotidiano de não assistência no SUS tem gerado casos de pessoas que dizem: “Eu não vou ao médico, porque eu não vou ser atendido mesmo”. Só que as pessoas acabam morrendo em casa. Para mim, a defesa da vida é muito mais urgente do que a defesa do conceito teórico do SUS. Se o SUS não servir para salvar as vidas da população negra, que são 70% dos seus usuários, ele não vai servir de nada. O mais trágico não será perder o SUS para as manobras das empresas privadas de saúde, mas o SUS não ter a sua razão de existir. Obrigada.

Cláudia Araújo de Lima Vou fazer o encadeamento das colocações. A sensação de força e a sensação de fraqueza em alguns momentos nas discussões políticas sobre o Sistema Único de Saúde

perpassam pelo sentimento de todos nós, tanto de quem está na posição em que nós estamos, de técnicos do governo federal, quanto de quem está no governo estadual, no governo municipal ou dentro do serviço. Quando se diz que a potência do Sistema Único de Saúde ou a inoperância do Sistema Único de Saúde é um sinal de fraqueza do que significa saúde pública no Brasil, é importante colocar para vocês que do espaço onde eu estou, que é o Ministério da Saúde, onde eu trabalho há 30 anos, a evolução das políticas de saúde no Brasil é uma realidade. Quando nós pensamos que a política de saúde operacionalizada é feita por pessoas, a formação dessas pessoas é que precisa ser modificada. As faculdades de saúde precisam pautar as especificidades da população brasileira. Em algumas oportunidades, nós, Ministério da Saúde, já tivemos a condição de apoiar universidades para cursos de especialização em saúde da mulher negra, com o tratamento de todos os temas que são afetos a essa especificidade da população. Só que isso precisa ser mais disseminado, mais discutido, mais implantado e aí nós precisamos dos parceiros intersetoriais para a discussão. Nós também sofremos muito com a dificuldade de desdobramento da política pública desenvolvida aqui em Brasília, construída com muita gente, com muitas opiniões para dentro do sistema, para os serviços, para a operacionalização. Mas nenhuma política pública de saúde ou qualquer outra do governo federal está fechada na caixinha. Se ela estiver na caixinha, ela morrerá fechada na caixinha. Então, é dever da sociedade civil, é dever de outros órgãos públicos apontar para o parceiro que está em algum momento fazendo uma intervenção numa área específica e que possa não ser a desejável, para que ele ajuste o seu caminhar, para que ele se adeque à medida que precisa ser desenvolvida. Estou me referindo à Rede Cegonha. Ela está dada, está colocada na praça, mas ela está em permanente construção. Então, apontem formalmente as coisas que precisam ser reformuladas e readequadas. Quanto à colocação das questões

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medicamentosas, das discussões em torno da assistência farmacêutica do Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e várias áreas técnicas vêm discutindo a questão de medicamentos por grupos populacionais e os efeitos em populações específicas. Nem todos os especialistas em saúde conseguem perceber esse perigo de óbito de um paciente, mas as pesquisas podem fazer apontamentos que deem respostas a essas situações. Para finalizar, sempre que possível reflitam sobre as questões que vocês acreditam que sejam importantes de serem discutidas e remetam correspondências com suas observações para a Ouvidoria do sistema de saúde, direcionadas para nós que somos dos níveis de gestão, porque senão não se faz mudanças na ação em saúde. Fazer com que as políticas se desdobrem até chegar ao profissional que atende diretamente, isso só acontece a partir dessas observações das pessoas que são usuárias do sistema. A gente vai adaptando e adequando aquilo que precisa ser feito. A nossa grande dificuldade de fazer uma política pública chegar ao município é exatamente a qualificação das pessoas que estão na gestão, é a dificuldade de acesso do usuário a essas políticas. A saúde da população negra é uma das especificidades que precisam de um melhor olhar pelo sistema. E o sistema público de saúde precisa ser defendido. Existe um grande projeto extra Sistema Único de Saúde que tem o objetivo de extingui-lo. E se nós temos uma saúde pública ainda deficiente, que serve a essa população brasileira − porque 80% da população brasileira é usuária do SUS; e dessa população, 70% é a população negra −, nós todos precisamos defender o sistema. As pessoas que estão aqui são muito jovens e não se lembram o que era saúde não pública no Brasil, não se lembram, não conheceram isso. Vocês não tinham nascido. Só tinha saúde no Brasil quem era empregado com carteira assinada, senão morria. E foi muito difícil a luta dos profissionais de saúde e da sociedade civil brasileira para se construir o que nós temos hoje. Então, o que nós construímos precisa ser fortalecido, precisa reformular-se, e o Sistema Único de Saúde é um processo, é um projeto de longa permanência nesse país. Muito obrigada e esperamos que no próximo outras áreas do Ministério da Saúde estejam participando para ajudar naquilo que for pertinente. Boa noite.

Mônica Oliveira Eu vou começar pelo final da fala de Cláudia. Gente, eu acho que não é isso ou aquilo. Eu acho que é isso e aquilo. Isso quer dizer o quê? Para mim a fala de Maraisa e a fala de Ana são fundamentais. O SUS é uma

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referência mundial de saúde pública sim. A gente serve como referência internacional do ponto de vista de ofertar serviços de saúde à população mais pobre. E aí é importante a gente destacar que, quando a gente questiona o SUS, não é a gente queira acabar com o SUS, mas porque a gente quer que o SUS funcione. Então, é importante reconhecer sim que a área de saúde é a área mais avançada do ponto de vista da incorporação da perspectiva racial, mas há enormes caminhos a serem feitos ainda, e isso precisa ser dito e repetido sempre. Então, eu acho que as duas falas são fundamentais. A gente tem que considerar esses dois ângulos todo o tempo. Ninguém vai jogar fora o que a gente tem como SUS. Só que esse não é o SUS que queremos ainda. Eu fui para o Encontro Nacional de Mulheres com Doenças Falciforme, em Recife, cujo título era “O que estamos fazendo pelo SUS que queremos?”. Esse SUS que nós queremos não existe ainda. Por isso, a gente precisa sim questionar profundamente o que existe. É inaceitável o grau de mortalidade das mulheres negras. É inaceitável ter remédios que não funcionam para pacientes hipertensos negros. Tudo isso é inaceitável, é escandaloso. E aí a gente precisa ter isso presente, sim. A perspectiva racial em qualquer das políticas está em permanente disputa. Está em disputa na educação, no trabalho, no empreendedorismo, na saúde, nas relações internacionais. Então, esse trabalho que a gente faz de enfrentamento permanente é uma realidade que não pode ser negada. Às vezes, as pessoas dizem: “Ah, mas vocês às vezes fazem falas como se fossem movimento social”. Não é essa a questão. Eu estou falando aqui como gestora, gestora de uma abordagem que não é uma temática, de uma abordagem permanentemente em disputa, em confronto, em conflito com as outras áreas do governo. Obviamente que isso tem um peso diferenciado em um campo como a saúde, que junto com a segurança são aqueles que lidam mais diretamente com vida e morte. E quem é gestor e profissional de

saúde tem sim que ter consciência disso e a gente tem que ajudar quem não tem a ter, não é? Então é incômodo, mas é necessário. Eu acho que algumas questões são extremamente importantes: o desafio da institucionalização da política é uma questão fundamental, porque a política ainda não foi institucionalizada. Por que, quais são as respostas? Por que a gente ainda não consegue que essa política, apesar de formalizada mais de uma vez, se constitua no cotidiano? Isso é algo importantíssimo. E aí eu trago uma reflexão que eu acho fundamental: as perspectivas de gênero e de raça trazem um desafio permanente para o modo de fazer política pública. Há pouco tempo eu estou no governo. Eu venho de movimento social. No campo das ONGs, a gente discutia muito sobre o problema da integração entre as políticas. Como as políticas não são integradas entre si? Como você tem muitas vezes uma situação em que determinado Ministério desenvolve um programa, coloca na rua sem consulta alguma e esse programa entra em contradição com outros programas que estão em andamento? A capacidade de agir de maneira fragmentada é muito grande, certo? E como é que eu acho que a gente se relaciona com isso? Para mim, a abordagem de gênero e de raça, de alguma forma, obriga a atuar de maneira integrada. E isso é um problema para o modelo de governo que a gente tem, para os modelos de fazer política que a gente tem. A Rede Cegonha foi lançada, eu conversei com pessoas do Ministério da Saúde que disseram: “A gente não foi consultado”. Isso é uma realidade de vários programas, não só da Rede Cegonha. Não dialogou com a SPM, com a SEPPIR, e aí você tem um modelo de programa que tem várias lacunas. Agora, esse é um programa que tem praticamente um ano. Nesse um ano mudou o quê? Quando Cláudia diz: “Formalizem isso e isso...” Tudo bem, as pessoas que estão na plateia até podem não ter formalizado, mas nós formalizamos. Nós da SEPPIR estivemos no Comitê de Mobilização do Registro. Nós

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estamos no Comitê de Mobilização da Rede Cegonha. Estivemos em abril/maio desse ano quando o ministro Padilha apresentou o primeiro balanço do programa. Nós éramos o único Ministério que estava lá presencialmente na videoconferência em que o ministro Padilha apresentou os primeiros resultados do programa. Então, a gente tem feito esse acompanhamento corpo a corpo, mas ainda não há incorporação daquilo que tem sido demandado. E isso não tem como a gente não deixar explícito. Vou tentar concluir. E aí as questões de acesso à informação são fundamentais. Por diversas vezes, a população negra nem sequer chega a acessar o direito, porque não sabe que tem o direito. E isso, num grau em que a gente está tratando de direitos, direitos sociais, econômicos, culturais, etc. Nesse outro grau, que é de saber que aquele medicamento não funciona para a doença, que é algo muito mais básico, é ainda mais grave a percepção de quanto a falta de informação é danosa. Eu acho que esses momentos são importantes, porque esses depoimentos puxam a gente para a realidade mesmo. Por isso que deve ser permanente o movimento de a gente de ir para os espaços de diálogo, porque realmente a gente precisa o tempo inteiro estar lidando com essas realidades. Eu queria fazer um comentário sobre um dado da apresentação de Cláudia que me preocupou. Essa dificuldade que a gente tem de atuar junto. Isso não é um problema do Ministério da Saúde. A gente tem isso como cultura institucional dentro do governo. Em 2011, ocorreu um exemplo muito evidente, que foi a Conferência Mundial de Determinantes Sociais em Saúde. A SEPPIR foi convidada, aliás, a SEPPIR não foi convidada, ela se convidou. Nós nos convidamos para o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) que preparou a Conferência Mundial de Determinantes Sociais em Saúde. O Brasil recebeu em outubro de 2011 mais de cem países para uma conferência com esse tema. Nós passamos meses preparando essa Conferência, e o documento feito pela FIOCRUZ com o Ministério da

Saúde não trazia o racismo como determinante social de saúde. Eu estava fazendo a representação da SEPPIR nesse processo. Nós discutimos permanentemente durante meses sobre a necessária incorporação do racismo como determinante social de saúde, ressaltamos o fato de que todas as organizações internacionais de saúde reconhecem o racismo como determinante social de saúde, a OMS, a OPAS, etc. Mas nós chegamos ao final do processo, na pré-conferência, e nada tinha entrado. Então, qual foi a nossa decisão? A SEPPIR vai fazer uma publicação a partir dela e vai distribuir na Conferência. Nós fizemos uma publicação com Fernanda Lopes, com o apoio total e irrestrito do UNFPA, especificamente sobre racismo como determinante social de saúde. A princípio, tinha que ser assim, se internacionalmente isso já é reconhecido, se o próprio governo brasileiro já reconheceu isso quando criou a Comissão de Determinantes Sociais em Saúde? Há documentos brasileiros que já dizem isso, mas nesse processo a gente teve que chegar nesse ponto e dizer: “Infelizmente, já que a gente não consegue junto, a gente vai fazer separadamente”. Então, Cláudia, naquele quadro em que você trouxe os determinantes, o racismo não está presente. Tem que estar. Quando você diz que aquilo está guiando os próximos passos, tem que estar. Quando olhei para o quadro, eu olhei para a Fernanda e disse: cadê o racismo ali? Então a gente tem que tratar disso. A gente tem que trabalhar isso. Por último, eu gostaria de registrar que nós estamos construindo uma proposta de mapear experiências exitosas em saúde da população negra, pois elas existem. E uma das grandes perguntas que os gestores sempre fazem é: “Como é que se faz para tratar racismo institucional?”. Há experiências exitosas na Bahia; Porto Alegre foi premiado ano passado com experiências de área técnica de saúde da população negra; há experiências exitosas em vários lugares no Brasil, e elas precisam ser visibilizadas, porque há avanços e há passos dados sim. Só que o racismo ainda invisibiliza

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isso de uma maneira muito cruel e permanente. Isso é fruto do racismo institucional. Você tem experiências de sucesso que não são vistas, por isso as pessoas continuam perguntando para a gente como faziam há quinze anos. Tem gente fazendo e tem gente fazendo bem. A gente precisa espalhar isso. Essa é uma das ações estratégicas que a gente vem discutindo, que foi reforçada no Fórum, no COPENE, e que a gente está trabalhando para colocar em prática. Muito obrigada e desculpe ter estourado o tempo. Agradeço muito à participação de vocês, às questões colocadas, as contribuições. Agradeço o convite do festival. A gente está sempre à disposição. Foi um prazer estar com essas mulheres aqui nessa mesa. Obrigada.

Fernanda Lopes Eu vou tentar dividir essa minha fala em três momentos, porque eu vou colocar três chapeuzinhos. O primeiro é o de sanitarista, para reiterar a necessidade de seguir em defesa do SUS. Os princípios do SUS, de universalidade, equidade, integralidade, participação social e descentralização, trazem para a gente que é necessária essa política de Estado de direito. Ela foi concebida para oferecer tudo a todas as pessoas de acordo com as diferentes necessidades, partindo de uma construção democrática e descentralizada. E agora, o segundo chapéu é o da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que foi concebida como uma política em defesa do SUS. E eu posso falar isso de cadeira, porque eu fiz parte da gestação da política. Ela foi concebida para defender o SUS. Porque nós temos certeza de que o SUS não é uma política para pobre, o SUS é a política de um Estado democrático de direito que o Brasil quer se construir, e não existe outra política de Estado que seja efetivamente de direito, só o SUS. E a gente tem que seguir em defesa dele. A gente tem que compreender que o SUS não é só atenção básica. O SUS é alta complexidade. O SUS é a comida

que a gente come no avião. O SUS é o batom que a gente coloca na boca. O SUS é tudo isso. E o SUS também é aquilo que a gente paga, porque quando a gente paga a mais, nós estamos pagando duas vezes. E num Estado democrático de direito, as pessoas não deveriam se sentir bem em ter que pagar duas vezes para ter um mínimo de atenção em saúde. Então, isso é muito importante para que a gente tenha certeza daquilo que a gente quer construir. A gente quer uma sociedade democrática, uma sociedade justa, a gente quer saúde para todas as pessoas, e a gente quer saúde para a população negra, porque nós somos todas as pessoas. Mas a gente precisa ter nitidez de onde a gente quer chegar, o que a gente quer atacar, porque senão a gente não consegue construir diferenciais nas linhas de cuidado, a gente não consegue investir na formação, não consegue investir na educação para o trabalho em saúde, ampliar o escopo das pesquisas, investir na educação para o exercício do controle social, das políticas de saúde e na efetivação da participação social, e muito menos investir em informação, comunicação e mobilização como direitos fundamentais. E para construir esse perfil de saúde que a gente quer e para garantir que todas as pessoas tenham o preservado o direito à saúde, a gente tem que seguir tendo essa meta como parte do nosso horizonte. O outro chapéu é o chapéu das Nações Unidas. A nós, sobretudo agora na década de afrodescendentes, cabe seguir contribuindo com o governo no desenvolvimento e no aprimoramento das capacidades institucionais, dos processos de institucionalização, em especial no que toca ao enfrentamento ao racismo. Eles não são simples. As falas da Cláudia e da Tatiana mostraram muito bem que não existe um único Ministério da Saúde, que não existe uma única área técnica de saúde da mulher, que não existe tanta harmonia assim nos processos de institucionalização, assim como também não existe um processo de harmonia na defesa da institucionalização da discussão de saúde na SEPPIR. Assim como não existe no Fundo de

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População, que trabalha com a agenda de população, desenvolvimento e direito num processo consolidado de institucionalização do enfrentamento ao racismo, ainda que exista a Convenção para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas, ainda que Durban e o ano e a década dos afrodescendentes sejam ações das Nações Unidas. Esses processos são muito complexos, mas a nós, em todos os países onde estamos, cabe contribuir para o desenvolvimento das capacidades institucionais, seja nos governos ou na sociedade civil, para seguir em busca de resultados que sejam de efetivação dos direitos. Também cabe a nós apoiar a sociedade civil e promover a ampliação do acesso à informação como meio de viabilização do repertório, um meio para operacionalizar o exercício de direitos, porque, quando a gente tem informação, pode alcançar várias outras coisas. A nós, esse espaço que é promovido pelo festival, é de suma importância. Por isso que também, como apoiadores, reiteramos o valor dessa iniciativa, por ser, sobretudo, uma estratégia de mobilização, uma estratégia de democratização da informação e uma estratégia de reiteração da comunicação, da informação como um direito. Eu vou deixar os dados, porque a gente também não faz saúde se não souber o que funciona, o que não funciona, como as coisas estão, e isso é essencial. E esses dados todos são dados do Ministério da Saúde. Embora nem todos os documentos oficiais apresentem esses dados desagregados, os dados existem. Quando esses dados não estiverem disponíveis, devem ser solicitados, porque os dados existem. Em quase todos os sistemas de informação em saúde o quesito cor está lá. Quando a Cláudia trouxe um dos primeiros slides falando sobre as internações e falando que 35% da informação sobre cor ainda não é registrada, é porque aquele sistema é um dos mais novos. Naquele sistema o quesito cor entrou em 2008. É por isso que as informações ainda não estão tão consistentes. Mas nos sistemas de informação onde o quesito já figura há mais tempo, pelo menos 90%

dos dados têm a informação sobre cor. É a partir daí que todos os argumentos podem ser construídos. A nós também cabe contribuir com os processos nessa democratização do acesso à informação. Então, está aí um pouquinho de informação, usando os dados oficiais, que são esses os válidos. Obrigada.

Crisfanny Souza Soares Tenho vários olhos sobre mim para que eu fale rápido. Mas me chama atenção a referência à necessidade de fazer as denúncias por meio da Ouvidoria, de dizer ao Ministério como a gente quer fazer saúde, como a gente quer o nosso SUS. Nesse aspecto, fiquei pensando que realmente não existe um caminho apenas, e que as possibilidades de transformação dessa realidade são tão complexas quanto os resultados e o quadro que nós temos. E por ser um problema complexo exige soluções complexas. Eu acho que isso envolve trabalhar de cima para baixo, e também de baixo para cima no nosso papel como controle social, e não só controle, mas com a atuação social também. E para se fazer denúncias a gente precisa saber o que é, precisa conhecer os direitos para poder exercê-los, poder fazer o controle social, cobrar. E aí fica até a pergunta: como eu poderia saber que aquele remédio não é o adequado para a minha saúde? O número da Ouvidoria é 136. Então, conhecer para poder fazer as denúncias, para poder fazer o controle social, é um passo importante. E da perspectiva do governo, eu acho que já foi recomendado que é necessário investir nessas tecnologias para que as pessoas na ponta tenham esse conhecimento. De fato, não é à toa que nós não temos o conhecimento. Mas pensando positivamente, lembrando das estratégias positivas que nós já temos no país, no combate ao racismo e na incorporação das políticas de saúde, fica também a dica para a gente pensar junto as estratégias. Eu vejo muitas estratégias no âmbito da comunicação mesmo. Pensando no âmbito da linguagem, a gente tem muitos documentos

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institucionais, internacionais, brasileiros, políticas, mas qual é a nossa possibilidade de acesso? Mesmo eu que entendo os documentos, nem sempre eu consigo parar, ler, estudar, entender, porque esses documentos já são feitos numa linguagem bastante complicada. Enfim, isso demanda bastante tempo. Então, eu acredito na possibilidade de transformação desses documentos para uma linguagem acessível, que dialogue com a academia e as pessoas em geral. Isso está muito no campo da cultura também. A gente pode muito bem usar a cultura, a música, a cena para transformar essas informações em informações acessíveis para a base. Por que não dizer também a esses organismos como eles podem nos ajudar a transformar isso em uma linguagem acessível, para que a gente consiga construir a saúde da forma que a gente quer? Isso passa por intensificar as ações cotidianas, o que é muito importante, usando os espaços em que a gente está. Realmente a gente não está em grande número na academia ainda, não tem grande número em muitos espaços de poder, mas eu acredito que a gente pode e deve usar as capacidades e os locais em que a gente está para dialogar e dialogar juntos, porque quanto mais juntos estivermos mais é possível a gente pensar em estratégias e promover ações de real impacto. E eu queria convidar a nós, jovens, que nascemos depois do SUS, mas estamos com todo o gás e dispostos a contribuir para desenvolver o SUS que a gente quer. A gente tem pensado num movimento e quer convidá-los, os jovens que estão aqui ou até os mais velhos que têm interesse em discutir saúde, que participaram ou já participam há mais tempo. O movimento se chama Jovens pelo SUS que Queremos. Ele não tem nenhuma legenda ainda, senão o convite à participação aberta das pessoas para a gente discutir essas possibilidades dentro da saúde e principalmente pensar estratégias, novas tecnologias em comunicação, em efetivação de direitos, em participação social para transformar essa realidade e conseguir o SUS que a gente quer. Obrigada pela participação, eu fiquei muito honrada com o convite e me coloco à disposição. Foi bom estar aqui mesmo que rapidinho. Quem quiser, podemos conversar mais sobre a mobilização nacional para a saúde da população negra. Os folders estão lá fora, tanto esses quanto os da mobilização para a saúde da mulher e a redução da morte materna. Vocês podem clicar no Facebook, curtir e ir acompanhando as notícias. Aquilo é um instrumento muito valioso também. Muito obrigada pelas contribuições e vamos lá.

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Cultura Negra Mesa 05 Maria Paula de Andrade – Mediadora Jornalista e apresentadora

Verônica Nairobi Representante Regional Cultural Palmares

Bahia/Sergipe

da

Fundação

Estou aqui falando na verdade de diversos lugares. Sou mulher, jovem, negra, mãe, historiadora, mas convidada para falar como Fundação Cultural Palmares, regionais Bahia e Sergipe. Quando fui convidada a coordenar os trabalhos dessas regionais, uma mulher bem mais velha e branca me disse que, a partir de então, eu teria que me vestir como uma velha para que as pessoas me respeitassem. Na visão dela, a juventude não está capacitada, não está preparada para lidar com o dia a dia e ocupar os espaços estratégicos de poder. Mas eu como uma jovem mulher feita e danada rebati: eu vou conquistar o respeito das pessoas pelo trabalho que eu vou desenvolver no meu dia a dia e vou continuar me vestindo da forma que eu sempre me vesti. Digo isso porque as pessoas acham que a juventude é sinônimo de irresponsabilidade, falta de compromisso. Quando a gente fala de cultura afro-brasileira, a gente fala de todo um histórico de luta, resistência e estratégias para burlar o sistema escravocrata. Fazendo uma retrospectiva, a gente pode saber que várias mulheres negras conseguiram utilizar a culinária como ferramenta para envenenar senhores e sinhás de engenho em momentos críticos, por exemplo. A capoeira, que é uma mistura de dança com luta, também funcionou como estratégia de resistência do povo negro. Posso falar

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que a musicalidade, os tambores também são grandes símbolos de luta e de resistência. E de que forma que essa resistência hoje pode ser revertida em torno do empreendedorismo negro? Falando especificamente da Bahia, como uma forma de resistência, nossa Alaíde do Feijão, uma pessoa que é uma empreendedora negra, utiliza a nossa culinária para poder tirar o pão de cada dia, alimentar os seus filhos, suas filhas e as pessoas que estão ao seu redor. Eu encontrei ontem no hotel Gerusa, que já foi Deusa do Ébano e hoje também é empreendedora negra, uma pessoa que tem um salão de beleza no Curuzu e que faz penteados Afros e turbantes e que está também empreendendo e ganhando em cima da cultura negra. Há duas questões que deixo aqui muito fortes. A primeira: de que forma, então, essa resistência se dá e como tem se convertido para nós em forma econômica, de empreender, de se fortalecer, de se identificar? E também como nosso processo cultural está afirmando uma identidade, no nosso caso, a identidade negra, a identidade do povo negro?

Cristiane Sobral Escritora e atriz, criadora da Cia de Arte Negra Cabeça Feita Eu quero mandar um axé para todos que se levantaram nessa manhã, uma manhã fria em Brasília para estar aqui conosco nesse momento. Saudar os meus mais velhos. Saudar também os mais novos. Parabenizar as

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115 organizadoras do evento e dizer que realmente este projeto é um marco na história da nossa cidade. Nós que moramos aqui em Brasília sabemos de que maneira estamos diariamente resistindo às tentações enganosas do embranquecimento, que esse não é um detalhe. Essa plateia é visivelmente um marco na história do nosso país que insiste na nossa ausência. Eu começo a falar dessa ausência, incluindo aqui o nosso tema de juventude negra. Eu sou a primeira atriz negra formada pela Universidade de Brasília num curso de interpretação teatral. E a minha entrada na academia foi, como eu digo, um chute na porta, porque eu entrei com a perspectiva de questionar de alguma forma a não participação dos

V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha negros e negras no teatro, essa forma eurocêntrica de abordar a dramaturgia, de abordar as histórias, de contar as histórias, esse ponto de vista de história única que é o ponto de vista que nos é apresentado. Para vocês terem uma ideia, eu era muito convocada para fazer as mulatas gostosas ou para fazer os homens. Não raro, a gente vai estudar livros, por exemplo, como os da Miriam Mendes, que relatam dentro da história do teatro brasileiro os estereótipos que os negros costumam desempenhar dentro da teatralidade, dentro do nosso ambiente cultural. Hoje estou no mestrado e também leciono no departamento. A resistência de alguns professores, na verdade, me empodera mais do que me entristece. Vamos colocar aqui de outra maneira, a resistência de alguns professores em considerar o teatro negro como uma modalidade. Existem professores dentro da academia que dizem que não existe teatro negro. Literatura negra, então, nem se fala, porque o Brasil não é um país de pessoas negras. Tudo isso gera

questionamentos. Por que um teatro negro? Para que um teatro negro? Não seria um teatro racista? E a gente volta à pergunta ao contrário: Há um número expressivo de companhias de teatros no nosso país, mas quantas dessas companhias têm nos seus elencos atores negros ou recuperam de alguma maneira a nossa história, a nossa ancestralidade nas suas representações? Shakespeare não escreveu dentro da nossa perspectiva, só para citar um dos autores mais renomados. A sua estrutura dramática não contempla a nossa especificidade, não contempla a nossa ancestralidade. Fica aí a questão de quem é que vai escrever essas histórias. Então, a pergunta que trago para o debate nessa mesa é: como a cultura sustenta a resistência negra? Eu acho que existem muitos tecidos para serem revisitados, para serem abertos aí. Há muitos temas sobre os quais ainda não se escreveu, o que por si só justifica a existência de uma pesquisa, de um estudo sobre a teatralidade negra. A nossa experiência de negros e negras brasileiros não é igual à experiência estadunidense. Ela tem referências, mas ela tem também especificidades. Se a gente for falar da experiência africana também, vai encontrar referências, mas a gente vai ver que ser negro e negra no Brasil é uma experiência única. A forma como nós nos constituímos aqui e aprendemos a afirmar e defender a nossa negritude é única. Então, onde nós vamos encontrar essas referências? Entristecem-me hoje os programas que apresentam o stand up e os comediantes negros que estão se projetando na mídia por meio de um desmazelamento das nossas referências, que se promovem mediante um esculacho que é feito com as nossas características. E essa coisa de empreguetes na novela é uma brincadeira muito séria para quem ainda não entendeu o que está por trás desse discurso de “Vamos voltar a valorizar o papel das empregadas domésticas”, porque a população negra está indo para as universidades. Eu escutei dentro da academia o discurso de alguns professores que diziam:

sou contra o sistema de cotas porque quem é que vai limpar os nossos banheiros? Então, vamos fazer uma novela de empreguetes e mostrar o glamour para que você ganhe o concurso da empregada cheia de charme, para que você ganhe o concurso do Raul Gil da melhor empregada, empregada mais bonita do Brasil e volte, afinal, negrinho, negrinha, a ocupar ao espaço que você deveria nunca ter deixado dentro desse país. Então, essa perspectiva estética não me ilude. Eu acho que nós continuamos na perspectiva de luta, luta que foi empreendida pelo movimento negro e que muitos de nós hoje em dia acham que está tudo bem, que está tudo lindo, que já podemos garantir que a situação está resolvida. Como diretora de um grupo de teatro negro eu digo a vocês: o primeiro trabalho que eu tenho que fazer com os meus atores é fazer com que eles admitam que são negros. Antes de começar o trabalho de interpretação, parto do trabalho de conscientização porque tem pessoas que dizem: “Quando eu era negro...” E esse momento dessa chamada transição chega quando a conta bancária aumenta e vêm os métodos estéticos de tratamentos para embranquecimento. Um dia acontece como num dos meus contos, O tapete voador, onde o personagem é o presidente da empresa, ele é negro, ninguém sabia que ele era negro porque ele não aparecia nos eventos. Um dia, ele vai conversar com uma funcionária e diz: “Aumenta o ar condicionado para que fique cada vez mais europeu o ambiente”. E diz a ela: “Quando eu era negro...” Para que assumir ser negra num país que não acredita nisso? Então vá lá, alise seu cabelo, progressiva para frente. A raiz é agressiva, para que investir num cabelo ruim? Raspa até o fim. Compra uma peruca. É mais fácil para que sejamos incluídos dentro da estética padrão, não é verdade? Esse genocídio que nós sofremos é uma coisa muito séria. Eu ainda escrevo muitos textos que falam de cabelo. Eu quero que vocês se lembrem de que ele está

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na cabeça e é por isso que eu falo muito de cabelo. Eu acho que a grande questão é: Como nós vamos fazer as cabeças dos nossos filhos, daqueles que estão entre nós, para que realmente dentro dessas cabeças comecem a acontecer algum movimento de aceitação? Porque nós não podemos deixar de ser aquilo que somos. A gente só pode ser aquilo que a gente é. E como foi falado aqui, nós temos que trazer esses outros saberes para a academia, temos que desafiar o cânone. Aí, já falando da literatura negra, temos que desafiar o cânone e acreditar que a nossa literatura negra tem que ser inserida na literatura brasileira, porque nem considerada como literatura brasileira ela é. Ela não é apenas um discurso politico. Ela é também uma elaboração estética. Outra questão séria é o imperativo de a cultura gerar riquezas para a população negra. No caso do teatro, isso é complicado. Porque você precisa avaliar que tipo de teatro você vai fazer. Porque se você for fazer um stand up de King Kong, ou outras dessas coisas horríveis que têm por aí, você vai conseguir um espaço na mídia, mas será que você vai conseguir olhar a sua cara no espelho? Então, eu começo com essas provocações e espero que depois, quando eu for apresentar aqui alguns textos, a coisa fique um pouquinho mais escura. Obrigada.

Renata Felinto Educadora, artista plástica, pesquisadora Fico muito feliz em estar aqui. Fiquei muito emocionada em conhecer a Makota Valdina hoje e quero também cumprimentar todas as colegas aqui da mesa. Eu não consigo mais falar sem esse aparato, sem o computador, até porque eu vou falar de cultura, vou falar do ponto de vista das artes visuais também. Então, eu trouxe algumas imagens, porque eu vou falar muito a partir da minha experiência como artista também. Arte para mim não é só uma questão de apreciar o

belo, mas um ponto de reflexão. Eu acho que no caso das artes visuais brasileiras, a gente está caminhando para um momento onde toda arte é conceitual, para um formalismo da arte de você observar cor, composição, movimento, as intervenções urbanas. Eu acho que tem muita produção com visibilidade dentro de algumas instituições, como a própria bienal, que é um dos eventos mais importantes de artes visuais do mundo. Mas na bienal de São Paulo, a gente não vê a produção dos artistas brasileiros falando sobre problemas que a gente tem na nossa sociedade. A gente tem uma discussão formalista e conceitual. Existe nas artes visuais um medo muito grande dessa rotulação da produção de arte e uma invisibilidade dos artistas negros que produzem esse tipo de trabalho. Recentemente eu vi o Hilton Cobra, da Companhia dos Comuns, num vídeo no YouTube. Depois eu o vi ao vivo falando sobre a invisibilidade da produção de uma atriz africana de arte negra, que não é contemplada por editais púbicos. Por que não é contemplada e por que a produção de artes que trazem essa nossa ancestralidade, essa nossa herança visual, nunca é premiada? Então eu trouxe alguns tópicos que são reflexões sobre como a gente consegue cruzar origem, identidade e cultura. Esses passos são institucionais. E tudo isso também voltado à educação. Sou formada em artes visuais. Eu penso muito sobre a cultura como um instrumento para transformar visões de mundo. Durante muito tempo, eu fui educadora de museus. Eu deixei de ser educadora há quatro anos. Minha atuação era de fazer a mediação entre obra e público para tentar trazer para o público o que o artista fala. Considero que a arte visual é uma das mais difíceis de a gente conseguir ter contato. Ela é altamente intelectualizada. As pessoas vão a um show de música, às vezes até num espetáculo de teatro, mas as artes visuais são para ficar naquele olimpo da arte erudita. As pessoas não conseguem ter essa conexão com o que está produzido. Eu acho que, quando não tem conexão, é porque o artista realmente falhou, ele

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não está comunicando nada a ninguém a não ser a ele, a meia dúzia de amigos e, quem sabe, alguns críticos de arte. Então eu tenho pensado nesse papel da cultura como instrumentos de transformação de visão, a partir do que eu tenho visto em várias instituições. Eu passei por várias instituições em São Paulo até chegar ao museu Afro-Brasil, onde fiquei por um longo período. Fui umas das pessoas que trabalhou desde a fundação daquele museu. Lá eu me dei conta que eu precisaria ter aquele lugar desde a universidade, desde a graduação. Ali consegui enxergar a produção de artistas, mulheres e homens negros. Ao mesmo tempo, existe uma mentalidade de copiar o pensamento estético do que o branco construiu. Então, eu acho que é o momento de quebrar um pouco e tentar trazer algo que seja inovador. A gente pensa muito na cultura pela chave da educação formal, dessa educação da escola, que é uma educação eurocêntrica. A gente que está naquele banco escolar não tem qualquer conexão direta com que se aprende. Como venho discutindo muito com meus amigos rappers de São Paulo, é certo que a rua forma, mas é o momento de a gente encontrar maneiras de juntar esses conhecimentos: os conhecimentos da rua, da casa e do lar e o conhecimento da universidade. Porém, a gente não vai se fortalecer só excluindo a universidade da nossa vida, como pensam algumas pessoas. Na verdade, eu acho que o fortalecimento vem justamente a partir do momento que a gente consegue unir esse conhecimento eurocêntrico com o que a gente já sabe, o que a gente traz. Aí é que a gente se fortalece por já conhecer também as armas dos que nos desmerecem, daqueles que nos excluem. Com isso, a gente pode criar algo novo, numa espécie da antropofagia. Você come essa cultura do outro, que é uma cultura que te oprime, transforma e devolve com o seu saber familiar, ancestral e doméstico. Ainda pensando a cultura como outra forma de aprender, uma questão importante é a alteridade. Com efeito, trata-se ainda de um termo muito difícil de ser trabalhado, porque nós negros conseguimos mais ver os outros do que os outros nos veem e às nossas particularidades como segmentos social e ético aqui no Brasil. De todo modo, há várias instituições que considero exemplares. Eu trouxe os nomes para quem quiser buscar mais informações. Há

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também projetos interessantes que conseguem reunir juventude, identidade etnicorracial e estética. Coloquei aqui o nome do CENTEC e do Itaú Social, que tem um projeto importantíssimo voltado a preparar jovens da periferia de São Paulo para que se apropriem desses espaços culturais que tem na cidade. Infelizmente, os jovens ainda não vão aos museus. Eu acho que temos que ter estratégias de empoderamento desses jovens para ocupar esses espaços. No caso do Museu Afro-Brasil, onde estive durante muito tempo, uns dos motivos da minha saída foi porque esses jovens não o frequentam, e não o fazem porque eles não se sentem também acolhidos desde o momento da entrada. Existe a figura do segurança, que é o mesmo segurança do shopping, do banco. A formação é a mesma. Então, mesmo sendo um museu que fala de culturas afrobrasileiras, vai perseguir os jovens lá dentro. Isso acontece muito. Quando eu saí do museu no ano passado, o fiz porque eu vi que o trabalho que eu fazia de coordenação não atingia os jovens que eu queria que fossem ao museu. Assim não tinha sentido algum que eu realizasse pesquisas e elaborasse estratégias de mediação para apresentar personalidades negras, populações africanas trazidas para o Brasil. Sobre a religiosidade afro-brasileira, como eu estava falando há pouco com a Makota Valdina, por que só os povos iorubanos são mostrados, esquecendo-se dos povos bantus, por exemplo? O recorte de população afro-brasileira está muito ligado também a uma ideia de turismo. A cultura iorubana é preponderante, é isso o que o turista gosta de ver. Então, é ela que acaba sendo ressaltada quando a gente estuda, e todos os outros povos acabam sendo omitidos. Então a minha saída teve a ver com tudo isso, porque eu fui buscar outras maneiras de trabalhar com juventude negra, cultura e educação. Daí, eu criei um projeto com os meus irmãos. Nós fomos criados lá em Itaquera, um bairro da periferia que tem vários apelidos pejorativos. É na Zona leste, que virou

zona lost por causa do seriado e porque é longe. A gente cresceu ali no conjunto habitacional. Eu e meus irmãos somos as primeiras pessoas da minha família a ir para a universidade. Todo mundo acabou se formando. Então, a gente virou uma referência para os nossos amigos. E a gente pensou em criar um projeto pensando nesses artistas viajantes que vieram para o Brasil nos séculos XVIII e XIX. Saímos, então, pelo bairro de Itaquera apresentando o bairro, apresentando aquela casa antiga que todo mundo passa em frente e não sabe o que é, como se fosse um ponto turístico do bairro. O que era essa casa? O que quer dizer Itaquera? E os nomes dessas ruas? A gente criou esse projeto para as pessoas saírem desenhando pelo bairro como se tivesse observando e redescobrindo esse lugar, apresentando a história dessas construções, dessas ruas, das plantas que a gente encontrou pelo caminho. Foi um projeto contemplado pelo VAI − Valorização de Iniciativas Culturais, que é um programa da prefeitura. Infelizmente, ele é só um. Era preciso ter uns dez pelo menos para dar conta da quantidade de projetos que os jovens da periferia de São Paulo têm tocado sem qualquer apoio público. Eu gostaria que quem pudesse depois entrasse. A gente ainda não conseguiu fazer o VAI esse ano, mas a ideia é tirar esse olhar dos bairros privilegiados do centro e fazer as pessoas se sentirem donas do próprio bairro. Tem uma importante educadora e ex-professora da USP chamada Anabi Barbosa, de quem eu gosto muito, que fala em uns dos seus livros que uma pessoa que não conhece sua própria cultura, a cultura local, é uma estrangeira em sua própria terra. Eu acho que a gente no Brasil sofre dessa síndrome de ser estrangeiro na nossa própria terra, porque a gente valoriza tudo o que vem de fora e às vezes a gente não olha o que está no nosso próprio bairro. Por isso, a gente foi tentar resgatar as histórias de moradores. Comecei a fazer uma série de inciativas com os meus irmãos, com amigos próximos, muito sem

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apoio, mas acabei criando uma empresa que chama Cubo Preto em contrapartida ao Cubo Branco. Para que não sabe, é um termo muito especifico de arte Cubo Branco é o termo que a gente usa para falar dos espaços de um museu. Um pesquisador chamado Brian O’Doherty criou esse termo para falar de uma possibilidade de imersão na obra de arte. É como se não tivesse mais nada no mundo, só você e a obra. Isso é meio absurdo, porque você tem que deixar suas referências pessoais fora para compreender o universo das artes visuais. Aí eu criei essa empresa que é o Cubo Preto. Na semana passada, nós da Cubo Preto fizemos um evento na pinacoteca do estado, com o título Africanofagias Paulistanas, a fim de fazer lembrar que há cultura africana em São Paulo, apesar de as pessoas não falarem sobre a cultura africana de São Paulo. Fizemos várias palestras e vários shows. Agora, a terá uma exposição dos meus trabalhos que começa na semana. Como eu trabalho com artes visuais, eu tenho pensado sobre a população negra em São Paulo muito a partir da minha família. Tem uma série chamada Resistindo, com o intuito de pensar resistências e reexistências. Entram muitas fotos que tenho da minha família. Tem muita foto de primeira comunhão, casamento, batizado. É uma oportunidade de pensar como a igreja católica acaba fazendo uma lavagem cerebral nas pessoas em relação à cultura africana, aos povos negros. Esse trabalho “Iguais, mas diferentes” fala um pouco sobre esses vários povos africanos que vêm para cá. Eu peguei foto de várias famílias negras para esse trabalho. Vai saber se não são parentes. Eu peguei registros de muitas famílias negras e fui sobrepondo essas imagens para pensar nessas diferenciações. É uma série que tem sempre rasgos. Esses riscos são para falar de cicatrizes, das marcas internas que o povo negro carrega. A Isildinha Baptista Nogueira, que é uma psicanalista de São Paulo, fala que é como se a gente carregasse essa cicatriz interna que não vai cicatrizar nunca. Por isso

que a gente tem que falar muito sobre esse assunto, por mais que os brancos achem que cansa. Se tem que falar é porque não está resolvido. Não vai dar para mostrar todos, mas eu acho que esse trabalho é fundamental. É a capa do livro que será lançado à tarde sobre o sistema de ensino do Brasil. É um trabalho que se chama “Escola do esquecimento”. Acho que o currículo da nossa escola é voltado para a gente esquecer mesmo. Esquecer que a gente é povo negro. A gente só é citado quando se fala sobre escravidão e, ainda sim, não é nem do ponto de vista dos saberes africanos trazidos para cá para que houvesse um Brasil colonialista, não é sobre o saber da mineração, da agricultura. Não é sobre isso que se fala. É só sobre a parte do castigo mesmo, porque o povo brasileiro é meio sádico. Basta ver jornal a partir das 3 horas da tarde que a gente entende. Só tem sadismo. Quando a gente fala sobre o povo negro, parece que as pessoas adoram uma novela de escravidão e ver as pessoas apanhando. Isso é incrível. Nunca vi quilombo em novela. Mas, enfim, eu acho que temos uma escola que serve mesmo para colocar nos para baixo, para desvalorizar a população negra e para nos fazer esquecer coisas que não temos nem como lembrar, coisas que nem nossos pais sabem nos passar. Eu tenho feito trabalhos de arte. Eu acho que a arte tem que ter pensamento estético, mas tem que ter também conexão com o mundo real, tem que ter conexão com a vida. As pessoas têm que olhar os trabalhos e entender alguma coisa, sem precisar de um mediador ali. Eu acho importante um trabalho de educador num museu. Eu fui educadora por muito tempo. Mas o trabalho de alguma maneira tem que despertar uma opinião na pessoa, sem que ela precise de um educador para ficar dando as pistas, como se a relação com a arte fosse uma charada. Então, eu tenho investido nesse caminho ao fazer trabalhos, de modo que reflitam sobre mim, e que essa reflexão consiga ser estendida para outras pessoas.

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121 Ou seja, que, de alguma maneira, ele traga a história da população negra, nem que seja a partir do micro universo que é a minha família e, a partir dela, eu consiga passar por outras famílias.

Valdina Pinto Liderança política e religiosa, Makota (auxiliar direta da Mãe de Santo) do Terreiro Tanuri Junsara Nós negros temos que aprender a compor mesa, a fazer mesa como negro, e não como branco. Cultura, a palavra cultura, o que é cultura para mim? É um conceito tão amplo que cultura para mim é tudo. Do nascer ao morrer, você faz cultura. Você é cultura. Você produz cultura, independentemente de ir à universidade, de ter um curso acadêmico, de ter nascido lá na Cochinchina, de ser vermelho, amarelo, verde, azul, lilás. O que você faz é cultura. Isso está ligado ao ambiente onde as pessoas estão e ao tempo vivido. A cultura é dinâmica, mas, ao mesmo tempo, está presa a um fio que a conduz, que muda aqui, que ramifica para lá. Mas tem algo que aponta para o início, para o ponto de partida daquela cultura. Por que eu digo que é assim que eu vejo? Porque eu sou produto da minha história. Eu nasci em 1943 no Engenho Velho da Federação. Ali era um gueto de negros, contavam assim os brancos daquela época. A base da minha cultura hoje foi aquilo ali. Foi o fazer e um fazer cuja realidade hoje é outra. Hoje eu escuto “Não vou mais lavar os pratos”, mas eu continuo lavando e adorando. Entendeu? Eu entendo o que você quer dizer, mas o que faz falta hoje para essa juventude, para a infância, é o exemplo vivo. Há coisas que eu sei e faço hoje que eu aprendi vendo, observando a repetição, o compartilhar daquele fazer, o tentar querer fazer aquilo que era um fazer de uma comunidade, a comunidade negra. Nós estamos perdendo realmente nossas comunidades negras, são bairros, não são comunidades. Eu posso falar de cátedra. Eu nasci num lugar, me criei nesse lugar,

V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha vivo ali até hoje e assisti a todas as transformações desde quando eu era criança até agora. Posso dizer que na minha infância aquilo era uma comunidade, era uma família extensa. Hoje é um bairro. Hoje tem os guetos, hoje tem graças a Deus o Quilombo dos Pintos, que é um beco onde só mora família. A gente pode fazer coisas de negro ali, coisas que muitos negros no bairro já não fazem mais, mas que todos faziam, todas as famílias faziam. Isso é a realidade. Essa é a cultura de hoje, a cultura do matar, do morrer. A gente não morria como morre hoje. Eu vi as crianças que não chegaram a jovens, jovens que não chegaram a adultos por causa de toda uma conjuntura que está posta. Há pouco eu tomei conhecimento de que há agora uma lei que não permite mais ao médico atender em casa para fazer o parto e, por extensão, exclui a parteira. Eu e meus irmãos nascemos em casa com parteira. Existia o rito do nascer. Nós da nossa família e todas as crianças daquela época fomos aguardados com amor. Nós fomos preparados. Eu sou a terceira dos filhos, primeira das mulheres. Minha mãe teve catorze filhos, criou dez. Eu sentei muitas vezes na esteira para costurar e bordar roupinha de pagão. Aprendi a fazer uma bainha, a fazer um vestido, a fazer coisas que muitas meninas que hoje estão de barriga não querem saber. Estão querendo homem, e não sabem fritar um ovo, lavar um prato, arear uma panela. Naquela época não tinha Bombril, era com folha e areia, entendeu? Hoje as meninas vão para minha irmã suspender a bainha. Há mulher que vai com a camisa de um marido para pregar um botão, absurdo isso! Eu sou mulher, mas eu acho um absurdo isso. Tem que estudar. Você vai pegar seu anel, seu diploma, mas vai aprender essas coisas. Isso é básico, pelo amor de Deus. Isso é ser mulher negra. Mulher negra que não dá conta de seus filhos. Tem mulher negra aí que está criando filho como dondoca e vem para cá me falar de negritude, mulher negra? Eu fico cheia de dedo para falar, porque nunca pari filho, mas criei muito irmão, ajudei a criar muito irmão, a cuidar de muitas crianças

que não eram meus irmãos. Às vezes, as mães saíam, iam lá para casa e a gente cuidava. Hoje eu sou a mulher ativista, guerreira que está aqui. Isso é uma cultura. Eu estou falando de cultura ou não? Isso é um traço cultural ou não é? Cultura para mim é isso. Cultura é tudo. São as expressões culturais, o fazer, o viver até o morrer. E apesar de todas as interferências sofridas, os terreiros ainda são um espaço onde a gente mantém os fazeres, os seres e os saberes do cotidiano. Eu empunhei a bandeira como militante negra a partir da minha religiosidade. Por isso que você me conhece como Makota. Eu poderia muito bem me apresentar como a professora, a educadora Valdina, mas eu quis dar visibilidade a um espaço de poder que a mulher tinha e que muitas vezes não vinha à tona. Quando vinha era dos Ogãs, ninguém falava de Ekedi. A mulher de candomblé que era fateira. A mulher de candomblé era a lavadeira, a engomadeira. Mas a mulher de candomblé era quem organizava gente para fazer o nosso teatro negro, as comédias de final de ano, de São João. Teatro a gente sempre fez, representação a gente sempre fez. A gente de certo modo ainda mantém essas coisas nos terreiros. É por isso que eu brigo tanto pela cultura dos povos bantus. Aliás, essa coisa de só ver o panteão ioruba foi algo muito bem pensado. Isso aí foi uma construção. Eles são os mais recentes. Estamos falando da memória mais recente que o tal do Nina Rodrigues encontrou, porque os bantus já tinham forjado o povo e a cultura brasileira. Eles criaram um padrão de candomblé, então, por que eles não buscaram termos em ioruba? Candomblé não é ioruba. A origem, a etimologia da palavra é bantu, e todas as nações usam. Por que eles não encontraram isso? Porque já existia, porque a gente, desde que teve quilombo, desde que teve senzala, teve cultos africanos aqui. As modalidades a gente não vai saber dizer, porque não estava lá, mas sempre teve. Mas candomblé começou no quilombo. Foi no quilombo que

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o negro teve espaço para ser o que ele era na África, que ele reconstruiu nessa terra o que não tinha nos espaços brancos. Nos primeiros candomblés não tinha esse negócio de casa, nem parede. Era tudo embaixo do pé de pau mesmo. Eram as trouxas amarradas nas costas como em muitos lugares da África. O candomblé tem sua importância como espaço de resistência, como espaço de identidade do negro brasileiro. Isso não é só para quem é de candomblé, é para todos nós que somos descendentes de africanos escravizados. Mas eu também fico muito aborrecida quando eu vejo os estereótipos que são criados, o exotismo, a folclorização do candomblé, como se a única fonte de cultura visse de lá. Que nada! Vai buscar o samba, o jongo, os batuques, as congadas, os moçambiques, o xambá, o xangô, são tantos nomes que nós temos por esse Brasil afora. Quando se fala em africanidades, em religiosidades de matriz africana, o candomblé é somente um dos aspectos. Sem falar do que está por traz da máscara da religião católica. Onde tem negro tem tudo isso. Eu não tenho vergonha de dizer eu fui católica praticante. Eu fui catequista. Minha mãe me mandava para o catecismo, que também era obrigado na escola, mas ela ia para o candomblé. O meu dia a dia era outro. Então, eu acho que o que a gente precisa passar para as crianças, para a juventude, é aquilo realmente que somos. Hoje, fala-se muito em autoestima. Antes, não usávamos esse nome, mas para que mais autoestima do que a minha mãe me deu? Ela não admitia que, num dia de domingo ou feriado, a gente não subisse para ver o povo fazer o samba, para ver o povo jogar capoeira. E a gente tinha que ir com a roupa de domingo, porque a gente tinha roupa de domingo. Podia ser de chita, não era de seda. Durante a semana, era o tamanco de madeira, mas no domingo a gente botava alpercata de verdureiro, que era alpercata de couro cru. A fita de botar no cabelo para ir para a escola era uma, a fita de

domingo era outra. Isso não dá autoestima? Claro que dá autoestima. Eu não me soube negra com o Movimento Negro Unificado. Eu sempre me soube negra. Eu fui criada como negra. Eu só via negro, fazia o que negro fazia. A gente precisa fazer coisa de negro na frente das crianças e dos jovens. A gente muitas vezes tem que se policiar, porque, embora a gente esteja falando de negritude, muitas vezes praticamos uma branquitude. E aí como que fica? Falando de negro com jeito de branco, como é que fica? Temos que mostrar a negritude. Não é só falar. É viver diante da criança, diante do jovem a negritude para eles irem aprendendo o jeito diferente. Por que dizer que fulano é diferente? Esse jeito é gostoso, é bonito, é legal. É isso que a gente tem que fazer. Não tem escola para isso. A escola é o corpo de cada um. A escola é o agir de cada um. A escola é o fazer de cada um. A escola é o criar que cada um precisa retomar com as crianças negras e os jovens negros. Eu não sei onde foi que a gente se perdeu. A gente quis fazer muito conforme a televisão e esqueceu o nosso jeitinho. É muito bom usarmos toda a tecnologia, mas temos que aprender a moquear a nossa carne, porque, no dia de um piripaque, é preciso saber qual é a raiz, qual é o mato que se come. A gente se embrenhava para brincar no mato, e eu fazia cozido, brincava com boneca e cozinhava comida de verdade. A gente aprendeu a colocar panela no fogo não foi indo para aula de arte culinária não, foi cozinhando com a mãe. Aprendeu as coisas de casa fazendo. Foi lavando as próprias calcinhas. Desculpa, mas foi isso mesmo. Desde a idade de cinco anos. Agora, uma mãe não ensina mais. A menina larga lá e dá para a empregada, entendeu? Eu sei que minha mãe relavava depois, mas a gente que tinha que pegar e esfregar. Hoje tudo é descartável, a começar das fraldas das crianças. A gente aprendeu a lavar as fraldinhas feitas em casa. A gente nascia em casa e não tinha alergia, não tinha nada dessas frescuras

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de hoje. Agora, não pode dar isso, não pode fazer aquilo. Assim, as meninas não aprendem. Eu acho que têm umas coisas aí nesse meio campo que não está certo. A primeira coisa com a qual eu discordo é com o feminismo. Esse diabo de feminismo não tem nada a ver com mulher negra. Feminismo é coisa que foi importada, é coisa de mulher branca, não é coisa de mulher negra. A mulher negra hoje realmente vai atrás de empoderamento. Ela vai exercer as profissões que estão aí para elas. Elas vão ser políticas, administradoras. Elas vão e tudo bem. O que eu acho errado é essa coisa de você enveredar por esse lado e, de repente, estar competindo com homem. Eu não sei onde isso começou. Na minha infância, no início da minha juventude lá na comunidade, eu via mulher e homem juntos. Iam pai, mãe, menino e menina, e tinha lugar para todo mundo, e todo mundo fazia o todo. Não tinha esse negócio de homem aqui. Havia até umas coisas separadas, mas que se completavam. Agora não. Eu não sei onde foi que começou essa briga de mulher negra não gostar de homem negro, não querer homem negro por perto. Eu vejo muito dessa coisa por aí, e, então, eu digo: eu não entendo, porque eu já fiz muita coisa com homem. As meninas e os meninos se juntavam. Primeiro que lá em casa não tinha como não fazer isso. Cinco mulheres, cinco homens, como não fazer as coisas juntos? Tinha que fazer. Aprendi a conviver com homem numa boa e a fazer coisa junto numa boa. Aí hoje em dia eu vejo essa coisa desse jeito... Quando é que vamos retomar a nossa cultura do junto, para realmente juntos ocupemos espaços e poder nesse país? Nem o homem sozinho vai conseguir, nem a mulher sozinha vai conseguir. Tem coisa que nós, homens e mulheres negras, temos que fazer juntos, sim. Temos que ir à busca de nosso jeito negro, sim. É isso que eu acho. E para mim isso é cultura também. É algo que realmente está mudando, mas mudando a favor de quem? A nosso favor ou a favor do outro que está reinando, dominando e cada vez mais se apropriando do que nós somos, do que nós

temos para nos dominar? Temos que nos atentar para isso cada vez que conquistamos mais uma coisinha. Eu que não tenho o rabo preso com ninguém. Eu sou do candomblé e posso falar o que eu vivi e o que eu vivo hoje. Na década de 1970, houve realmente uma revolução no Brasil, mas eu quero falar do lugar de onde eu sou, o qual eu conheço, que é Salvador. Realmente Salvador começou a ter outro comportamento, outra cara. Hoje a gente realmente avançou. Eu acho que algumas entidades em Salvador deveriam estar a milhões hoje, porque têm mais condições do que naquela época. Em relação às possibilidades que a gente tem de fazer, de realizar atualmente, algumas portas foram abertas de fato e a gente não pode negar isso. A gente faz muito pouco. Eu acho que essas entidades, da mesma forma que tiveram um papel fundamental

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naquela época, precisam assumir sua responsabilidade no hoje. Agora parece que está todo mundo numa ótima. Mas a droga está lá, os negros estão morrendo, os jovens morrendo. Têm alguns que levantam a voz, que faz algum movimento, mas e essas entidades que são mais tradicionais? Eu acho que deveriam puxar a coisa. Quando me dão alguma oportunidade, eu largo o pau mesmo. Não tenho nada com político nenhum, e eu acho que como grupo a gente poderia estar fazendo muito mais. Enfim, eu chamo atenção para isso: a gente está indo, está avançando, mas avançando como? Eu aplaudo as conquistas que tivemos, mas às vezes eu fico com medo porque está sendo muito rápido e nem sempre está dando tempo de a gente tomar folego e se armar novamente, contra-atacar o que vem lá na frente. Mas eu, como uma representante da religiosidade de matriz africana, o que eu tenho que dizer é: Isso ainda é um lugar. Ainda é um reduto onde a gente mantem essas identidades, coisas, fazeres, jeitos de antes. E precisamos tomar cuidado, principalmente quem lida com as artes, com as expressões culturais. Não vamos repetir o que o branco faz, porque dói muito. Do branco eu já espero tudo, mas me dói quando eu vejo que é um negro que está folclorizando, estereotipando a cultura negra.

Participante não identificado Minha pergunta vai para a Renata Felinto. Na semana passada, eu me peguei com uma pergunta que minha filha de 14 anos me fez, a partir de um viral que está tendo com a imagem do Mussum. Eu, como militante do movimento negro e com um pouco de radicalismo, falei que era racismo mesmo e que não era nenhuma economia de dádiva, como eles colocam. Hoje a gente vê o Mussum como a Dilma. De repente vai até surgir com o GOG. Eu queria saber o que você pensa sobre isso. Como que é essa dimensão das artes plásticas pode estar indo para a cabeça do jovem negro hoje?

Margot Ribeiro

Participante não identificada

Presidenta do Instituto Cultural Congo Nya

Bom dia, eu gostaria de saudar a mesa, em especial a Makota Valdina, saudar a mesa mais linda que teve no festival até agora. Foram falas sensacionais. Eu tinha muitas perguntas para fazer, só que eu vou me ater aos comentários e fazer uma pergunta. Eu sou do Núcleo Akofena, que é um núcleo de militância negra no recôncavo da Bahia, em especial na cidade de Cachoeira. Sou oriunda de Salvador, lá do Nordeste de Amaralina. Eu acredito que a Makota conheça. Fico muito feliz, a sua fala me emocionou o tempo todo. Eu estava aqui me arrepiando em diversos momentos. Eu fico muito feliz quando a senhora fala da noção de família, da noção de família extensa, que é uma noção que o movimento negro deve resgatar sim. Nós não somos companheiros de militância, nós somos irmãos e essa é a noção fundamental com que o Núcleo Akofena trabalha. A gente também tem uma máxima da senhora que é uma frase que molda a nossa militância: “Não dá para achar que nós vencemos, agora é a hora do enfrentamento”. A gente é extremamente discriminado dentro da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), que é uma universidade que se orgulha de dizer que já nasceu com cotas, que se propõe ao

Infelizmente, em virtude de um problema técnico na gravação do áudio, a comunicação da senhora Margot Ribeiro não pode ser degravada.

Intervenções do Público Jaqueline Fernandes Eu queria primeiro ouvir da Margot. A gente esteve numa roda de conversa no Instituto Congo Nya, que é um instituto que fica em São Sebastião. A gente conversou muito sobre essa perspectiva da mulher inserida na cultura rastafári. Você poderia trazer essa coisa que é muito bacana? Eu queria que você contasse um pouco mais para a gente para todo mundo entender a sua participação dentro do Congo Nya e como você se sente inserida dentro da cultura rastafári. Outra coisa é que eu queria ter o olhar de cada uma em relação a essa questão dos editais. Aqui em Brasília, a gente se confronta muito com esse formato de edital onde não nos cabe. Eu sou da Griô Produções, e na Griô se a gente, por exemplo, fizer uma roda de capoeira, não pode pagar os mestres e as mestras, porque eles não têm carteira da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB). A gente inscreveu um terreiro dessa cidade para participar do aniversário de Brasília num palco que se chamava Diversidade, e nos foram cobradas as OMBs dos ogãs. Ou seja, a gente tem que o tempo inteiro entrar nos editais com as regras brancas que não nos contemplam. Fazem a gente ter ordem dos músicos, pagar ECAD e não receber, porque as nossas coisas são de domínio público e o direito autoral dos brancos parece que é vitalício. Então, eu queria saber sobre o olhar das diversas áreas e estados.

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novo modelo de universidade, mas está aí o tempo todo reafirmando os vários preconceitos, os velhos racismos, machismos, homofobias e preconceito de classe, enfim. Aí teve diversos momentos engraçados até, a senhora falou: quem foi que inventou isso de que homens e mulheres pretos são inimigos? Não discordo da senhora, mas eu discordo disso que nós mulheres e homens pretos somos inimigos. Não somos e quem inventou foram as brancas com o feminismo de 1970. O Núcleo Akofena hoje está quebrando com a noção de feminismo. A gente está quebrando com a noção de socialismo, de anarquia. A gente não quer os ismos da Europa. Nós somos militância preta, macumbeira, mulherista e quilombista e é isso. Nós nunca chegamos a espaço nenhum para não ser radical. Somos radicais, sim. Aliás, eu não vejo problema nenhum em a mulher pregar o botão da camisa do homem, como não vejo problema nenhum de o homem lavar a calcinha da mulher. É a nossa principal perspectiva. Eu gostaria de saudar também a Cristiane Sobral. Eu comprei o seu livro, não sei se você lembra. Comprei seu livro quando você esteve na Bahia, no Sarau Bem Black. Eu já conhecia o seu trabalho. Eu li “Não vou mais lavar os pratos”, no caderno de poesia marginal. Eu lembro que fiquei alucinada. Eu gostaria de direcionar a minha pergunta para a irmã Verônica Nairobi, da Fundação Palmares. Acredito que todos aqui estejam cientes do que está acontecendo hoje com o Quilombo Rio dos Macacos. Trata-se de um quilombo que fica situado entre Simões Filho e Salvador, uma comunidade que está lá há cerca de 200 anos, e o movimento negro, Quilombo X, a Campanha Reaja, o Núcleo Akofena, a Universidade Autônoma Preta Popular (UNIAPP), entre outros, estão travando uma luta diária. São realmente os movimentos negros que ainda estão com uma perspectiva revolucionária em Salvador, porque tem muito militante nosso que realmente passou para o outro lado e eu não tenho vergonha nenhuma de dizer isso. Como a senhora disse, a senhora é só do candomblé,

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eu sou militante do movimento negro sim, não sou negra em movimento e não tenho vergonha. Enfim, o que está acontecendo é que essa comunidade está ameaçada de sair do território que é um direito ancestral. A Marinha chegou lá por volta de 1960, eles estão lá há cerca de 200 anos. Há moradores centenários que nasceram lá e que os pais também nasceram lá. Há mais ou menos cinco meses que estava marcada a desapropriação. Não é reintegração, é desapropriação, porque as terras são do Quilombo, e não da Marinha. Corre-se o risco de, entre o dia 1º e 5 de agosto, essas pessoas terem de sair do seu território. Vai acontecer um novo massacre de Pinheirinho. Já têm cerca de 2 mil Fuzileiros da Marinha acampados lá. Eu recebi essa notícia ontem dos irmãos que estão lá. Estamos realmente muito preocupados. Não fazemos mais nada sem pensar em Rose, sem pensar no pessoal. Então, eu queria saber qual é o posicionamento da Fundação Palmares em relação a essa tragédia eminente. Obrigada.

Nelson Inocêncio Boa tarde já para todos e, sobretudo, para todas. Makota, eu quero agradecer e discordar quando a senhora diz que não é mãe, porque uma mãe espiritual que diz que não é mãe eu desconheço. A espiritualidade é fundamental e a senhora sabe disso. Muitas vezes as mães espirituais exercem o papel imprescindível e até superior, ou melhor, diferente, distinto e tão significativo quanto o papel das mães carnais. Então, mãe espiritual é mãe, não deixa de ser. Eu quero dizer o seguinte, eu também acho importante essa discussão sobre cultura. Muitas coisas foram ditas aqui que eu acho que são interessantes, sobretudo, acho que vocês deram uma noção da dimensão de cultura, da complexidade e da diversidade que existe entre nós. Isso que é fundamental. Quem já tiver a oportunidade de ir à Serra da Bahia, ao Quilombo dos Palmares, uns dos primeiros sítios tombados, vai ver que as

homenagens são todas em ioruba. Os palmarinos não eram iorubanos. Os iorubanos foram trazidos para cá um certo tempo depois da queda de Palmares, em 1695. Então a gente tem que ter esse cuidado, senão a gente nega a própria história. A gente desconhece a própria história. E já que estamos falando de produção do conhecimento, eu acho fundamental que entendamos que essa diversidade é vasta. Ela é muito ampla. Nós não lidamos apenas com orixás, lidamos com inquices, voduns, lidamos com uma diversidade imensa. É esse sentido antropológico de cultura, a sua diversidade, a sua complexidade que precisa ser entendido por nós todos. Outra questão que eu penso que é pertinente diz respeito a essa ideia da cultura como algo, como diria Jurema Batista no Rio, absolutamente lúdico ou da cidadania lúdica. A cultura não é isso, a cultura ela transcende. Ela é muito maior, é vasta e complexa. Então como eu já disse, a gente precisa também discutir isso à exaustão. Eu sou professor de artes, mas acho que é uma limitação quando a gente pensa a cultura apenas a partir da produção artística. A produção cultural na verdade alimenta a produção artística. Então, é outra coisa. E também com relação ainda a esse aspecto que se atribui à cultura, sobretudo à cultura negra, ou às culturas indígenas, ou às não hegemônicas, que é esse caráter de lúdico absoluto, como se não houvesse dentro dessas culturas a produção do conhecimento. A indústria cultural insiste em dizer que nós somos isso, que nós somos alegres, que nós somos folclóricos, que a nossa arte é tudo isso. As pessoas até mesmo acham que são solidárias a nós quando dizem que gostam muito do que a gente faz. Não é verdade. A gente sabe que não é o fato de alguém gostar de choro, jazz ou maracatu que o faz menos racista. Ninguém se torna menos racista porque gosta dessas produções. Essas contradições elas existem sim. É possível gostar disso e não ser necessariamente uma pessoa aberta ao enfrentamento, ao combate ao racismo. Então eu acho que essas questões são importantes. Só para concluir

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mesmo, gostaria de ouvir de cada uma de vocês sobre o entendimento das políticas culturais. Apesar de a gente ter editais, eles estão muito localizados na Palmares, na SEPPIR. Quando a gente fala do MINC ser acolhedor de editais que de alguma forma mostrem a diversidade que existe na cultura brasileira, há uma dificuldade muito grande. Existe uma cultura visual no Brasil que, como disse a Cristiane Sobral, é uma cultura do esculacho. Quer dizer, sem querer privilegiar o campo das artes visuais onde eu trabalho, existe um imaginário que está na literatura, no teatro, no cinema, nas artes plásticas, enfim, há um imaginário que nos desqualifica. Você poderia falar de qualquer produção em qualquer área específica que você veria isso. Enfim, qual o entendimento que vocês têm sobre como nós vamos trabalhar as nossas demandas, mas não de uma forma guetizada, levando para o Ministério da Cultura as nossas reivindicações. Obrigado.

Makota Kizandembu Bom dia a todas as pessoas. Eu vou começar aqui conversando com a Margot. Margot você falou do trabalho do Congo Nya junto com as mulheres na produção de roupas, bordado e das histórias que surgem quando essas mulheres se reúnem. Nós mulheres, quando nos reunimos, faz parte da nossa cultura bem dita pela Makota Valdina, sempre foi para trocas e para o nosso fortalecimento como mulheres. Aí você falou da questão da capacitação pelo trabalho com roupas e com bordados. Sobre isso, eu tenho uma pergunta e ao mesmo tempo uma sugestão. Nós estamos naquela discussão sobre a função da moda afro-brasileira como setor de inclusão social e econômica e sobre o nosso fortalecimento dentro da cadeia produtiva da moda. Queria saber se o Congo Nya vai, se já está fazendo isso, se ele se propõe a fazer isso para que a gente possa realmente capacitar essas mulheres para a criação, a produção e a circulação? Para companheira Cristiane

e todo mundo que falou no papel da comunicação, sobretudo, para o amigo que citou a questão do facebook, essa questão do Mussum está muito feia gente. Por que os nossos amigos militantes estão compartilhando, mesmo que seja no sentido de crítica? Se você não botar sua crítica bem escrita, é perigoso esse compartilhamento. Então, a gente tem que pensar também as formas de uso dessas ferramentas. Nós, população negra usuária do facebook, temos que fazer o marketing de nós mesmos. Estou muito preocupada com essa história do Mussum, tanto é que eu não compartilhei nem no sentido positivo e nem no negativo. Eu estou fingindo que não estou vendo. Agora, com a Makota Valdina. A senhora falou da questão da mulher. Nós temos mulheres na costura, no bordado, na academia, no salão de beleza, na televisão, no jornalismo, na antropologia, nas artes. Mas a senhora disse que nós temos que rever o nosso papel social, político e o nosso papel como mulher. A senhora fez um comentário no nosso encontro mulheres de axé no Rio sobre a questão dos homens com os torsos. A senhora fez isso muito rapidamente e eu quero que o assunto fique em pauta. A Makota Valdina fez um comentário muito sério no que diz respeito à questão da ancestralidade e a presença dos torsos na cabeça dos homens dentro do terreiro. Eu agradeço a presença de todas vocês. Realmente essa mesa está maravilhosa. Foi um prazer conhecê-las.

Participante não identificada A minha pergunta é para a Cristiane. Ela falou muito bem sobre a representação do negro na mídia. Falou sobre cabelo e isso foi um presente para mim. O meu questionamento é o seguinte: Hoje eu trabalho numa instituição de valorização ao negro. Mas eu venho de outras experiências profissionais, nas quais eu tinha uma grande dificuldade para reafirmar. Eu falo particularmente do Itamaraty, onde eu fiquei durante quatro anos e tive muita dificuldade para circular no

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ambiente, nos corredores, sobretudo por causa do meu cabelo. Eu tinha que manter o meu cabelo ou preso ou alisado. Então, a minha pergunta é: Como que na prática a gente pode enfrentar esse racismo, essa discriminação nesses espaços? O Itamaraty agora tem essa questão de cotas para a entrada no Rio Branco, mas ainda sim eu não acredito que esteja preparado para receber esses negros que chegarem lá com o black, que o chegarem lá com o dread. Como que a gente pode se reafirmar nesses espaços efetivamente, ser respeitado nesse espaço predominantemente branco, racista e discriminatório?

Zulu Araújo Acompanho o Latinidades desde o primeiro ano. Sei do esforço, do trabalho e das dificuldades para a realização de um festival como esse. Quero fazer um comentário para minha amiga e referência maior da religiosidade afro-baiana Makota Valdina Pinto. Você, João Jorge, Vovô e tantos outros de Salvador, nós vivemos o movimento negro no momento talvez mais forte que ele teve dos últimos trinta ou quarenta anos. Foi um tempo de enfrentamento contra o racismo vigente, consolidado e inabalável que existia numa cidade como Salvador e que também existia no restante do Brasil. Tínhamos, ao mesmo tempo, o olhar permanente na proposta, um olhar permanente do fazer, não era tanto do resistir. Aliás eu aproveito para fazer um comentário, muita coisa foi construída particularmente de 1970 para cá, muitos passos foram dados, muitos avanços foram conquistados. Um desses foi chancelado de maneira unânime pelo Supremo Tribunal Federal, que trata do acesso da comunidade negra ao ensino superior no Brasil. São vitórias importantíssimas que alteraram não apenas a cara da universidade, mas que estão alterando a cara e o comportamento da sociedade brasileira. Eu tive oportunidade de ser parte dessa geração e dessa militância. Eu acho que a gente já pode ter menos “Re”,

menos resistência, menos reparação, menos refazer. Acho que a gente está numa etapa de poder avançar, porque as conquistas que nós tivemos podem nos atrapalhar se nós não soubermos avançar, se a gente continuar imaginando que nada foi construído. A gente está aqui no momento de Sísifo, que a todo dia tem que levantar para fazer a pedra chegar lá no morro e depois descer. Não teria valido a pena todo esse esforço que milhares de militantes fizeram ao longo desse tempo e que você é um exemplo vivo. Você não é a referência maior da cidade de Salvador porque isso lhe foi dado de mãos beijadas. Foi conquistado. Hoje eu posso afirmar que Makota Valdina Pinto é a maior referência religiosa na cidade de Salvador. Você não precisa mais resistir para ser isso. Você precisa avançar e tem feito isso com uma maestria fenomenal. Como a juventude tem por hábito e é normal e natural experimentar e buscar novas perspectivas, às vezes se esquece do acúmulo que já foi produzido e, consequentemente, tem um trabalho maior, porque negar aquilo que está pronto é como não reconhecer a realidade. Então eu vejo muito “Re”, e muito “Re”, do ponto de vista etimológico, é atraso. É importante dizer isso. Reconstruir é você construir de novo, e eu acho que nós estamos na etapa de reduzir as “Re” e aumentar os avanços. GOG é um exemplo disso na sua música. Ele está com o ISO 9000. Eu estou falando isso porque eu vi a matéria sobre ele, e o fato de um cara de Rap colocar no seu CD a marca ISO 9000 é de uma simbologia do avanço que merece aplausos e merece ser seguida. Feito o comentário, uma pergunta e uma sugestão. A Jaqueline tocou em algum ponto da área da cultura que é fundamental a gente enfrentar. Uma coisa é a cultura do ponto de vista da sua produção, da sua criação. Nós fazemos isso muito bem. Mas há uma coisa chamada economia da cultura. A cultura hoje gera emprego e renda para milhares de pessoas. Eu diria que, para milhões de pessoas, a cultura gera hoje no Brasil algo em torno de 8,2% do PIB brasileiro. Só que há uma dificuldade objetiva de a comunidade negra

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ser beneficiária dessa riqueza cultural que está sendo produzida. Há limitações nessa história dos editais. Eu fui gestor público e eu sei disso. É bom até certo ponto. O edital é para quem está incluído. O edital não alcança aqueles que estão excluídos, consequentemente uma parte da cultura brasileira ou uma parte da cultura afrobrasileira não é alcançada pelos editais. É importante que as instituições negras que nós construímos estabeleçam esse debate também. Não dá para ficar choramingando apenas. As nossas instituições que eu, Makota Valdina e tantos outros criamos na década de 1980 precisam deixar de ser apenas depositárias dos nossos reclamos e passarem a ser objetivamente agressivas na cobrança do reconhecimento econômico da nossa cultura. Essa dificuldade que a Jaqueline está colocando está permeando todo o Brasil, particularmente a cidade de Salvador, onde se vive durante o ano inteiro da cultura negra. De um 1 bilhão e 200 milhões que são arrecadados nos quatro meses do carnaval, apenas 5% vai para a comunidade. Desses 95% restantes, 5% são apropriados pela prefeitura de Salvador por meio dos impostos, e 90% vão para as mãos dos donos de blocos de trio. São de trinta a quarenta empresas na cidade de Salvador que trabalham depois com o próprio Estado para reprimir, para excluir. Um bloco de trio que ganha até 5 milhões de reais no carnaval não paga nada para usar o solo da cidade de Salvador, enquanto nós cidadãos pagamos a polícia militar para tomar conta, o serviço de saúde para cuidar das pessoas, o serviço de limpeza para poder deixar a cidade limpa. Uma baiana de acarajé paga uma taxa de quase 300 reais para colocar seu tabuleiro na rua. É assim que o jogo é feito. Então, eu gostaria de ouvir a Cristiane Sobral a esse respeito, porque, além de escritora, ela é produtora, dirige um grupo de teatro e deve lidar com essa situação. Como a gente poderia ou como vocês acham que a gente poderia interferir dentro do governo, no caso aqui em Brasília, no plano federal e no plano distrital, para que a produção cultural negra seja reconhecida também

como produto econômico, que consequentemente deve gerar emprego e renda para aqueles que a produzem? Do jeito que está, a gente vai viver de empreguete. Obrigado.

GOG Primeiramente é uma honra estar aqui nesse dia para me inebriar mais ainda. Já vi a Sueli Carneiro, satisfação. Jorge Washington, Zulu, Makota Valdina. Eu, como cantor de Rap, acho que talvez o fundamento principal do Hip Hop seja a autoestima que vem sendo machucada, maculada e sempre colocada como pano de fundo da nossa história, e ainda transformada em ego. Quando a autoestima é transformada em ego não é mais coletiva. Esse protagonismo é algo que se busca como ferramenta para um todo. Então, rapidamente, só pincelando sobre o Hip Hop dos anos 1990. Grupos como DMN; o XIS, que é ex-DMN; Racionais MCs; Milton Sales − a gente praticamente não vê na historiografia do Hip Hop a importância de Milton Sales, que foi praticamente o mentor de Racionais −, Zezé Vital estão muitas vezes sendo deixados à parte pelos heróis nossos que passaram e que continuam. Makota tocou num ponto muito importante que é esse passar a vivência à frente, essa longevidade que a nossa ancestralidade traz. Para o caso do Hip Hop, tem se esquecido disso muito rápido. Então, qual a evolução do Hip Hop? A mudança do tema do Hip Hop é tida como a revolução do Hip Hop. Eu já percebo que a nossa revolução está no aprofundamento de temas, na busca do tema. Qual foi a alegria? Qual foi a tristeza? Hoje, por exemplo, as cotas raciais são um ponto porque, quando você vai conversar com o produtor fonográfico, ele fala: “GOG, você vai escrever uma música alegre”. E já se lembra de uma boate, uma festa, a menina dançando. Mas nós precisamos celebrar a alegria da política de cotas, o avanço quanto às profissões. Estamos formando engenheiros químicos, biólogos, cientistas, políticos.

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Precisamos discutir a política pública dessa forma e fazer muito mais, no momento em que a gente transgride essa cultura eurocêntrica, quando a nossa formação dá retorno para a nossa comunidade, de modo que os nossos tenham mais referências que como o GOG, como a Cristiane, por exemplo. A Cristiane é uma referência não porque ela é uma cantora de Rap, uma sambista ou uma dançarina. Ela é uma escritora, uma escritora nossa. A mesma discussão tem de acontecer quando a gente fala em cultura. Qual cultura? Os nossos livros têm que ser reescritos. A nossa história não foi contada porque a história foi muito mal contada pela ótica de alguém que venceu, por exemplo. Quando se fala em pretos Fujões, na realidade, estamos diante de estratégias de resistência. Precisamos fugir mesmo para voltar com a estratégia montada. Vários fujões formariam uma grande aliança. Um dos temas de discussão mais importantes vem de uma frase do professor Nelson Maca, que diz: “Guerra preta, estratégia quilombola”. Só que a nossa estratégia quilombola ainda está muito desvirtuada, para poder resolver os nossos temas atuais. Vários artistas de Hip Hop já estão moldados, praticamente todo mundo está com o mesmo discurso. Como Makota, quem me despertou foi uma geração James Brown, a geração Michael Jackson. O que eu vejo no movimento negro? Nós somos movimento negro, mas, quando você coloca lupa, há muitos negros e negras em movimento. Isso é uma contradição. Só que esse somatório é que dá o movimento. Quando o Bill falou “não sou do movimento negro e sim um negro em movimento”, houve um embate, mas na realidade eu acho que essa discussão tem que acontecer para que uma coisa não seja dissociada da outra. Teria mais o que falar, mas estou com vontade de ouvir e agradecer.

Margot Ribeiro Com relação ao trabalho com a questão da moda. Nós já realizamos em São Sebastião a quinta edição do desfile.

Como isso acontece? Quando tem projeto, beleza. Quando não tem projeto, a gente trabalha nas escolas e reúne as mulheres da comunidade lá de São Sebastião mesmo para fazer essas roupas. Isso começou em 2003. Quando eu assumi essa gigantesca obrigação, eu não tinha nenhum conhecimento, mas a gente tinha que fazer isso acontecer. Nós sabíamos que tínhamos que produzir as nossas roupas. A comunidade precisava participar. E como isso aconteceu? Eu não tinha nenhum conhecimento da área, não sabia como atuar, mas eu estava com a responsabilidade de fazer aquilo acontecer. É evidente que sozinha eu não poderia, mas, junto com as mulheres, isso foi possível e vimos que com o tempo as peças foram se aperfeiçoando. Essas mulheres foram para o mercado de trabalho. Começaram fazendo as oficinas. Muitas delas achavam que não eram capazes de fazer uma peça, que não dariam conta de operar a máquina com não sei quantas agulhas para enfiar. Mas dois, três messes depois elas já estavam todas felizes, sorrindo e vendo uma peça de roupa linda que elas tinham feito. A Sabrina Faria também foi uma das professoras nesse trabalho e acredito que continuará. Ela foi uma das pessoas responsáveis pela criação da dança afro, que deu visibilidade para esse trabalho. Nós queríamos fazer dança afro e juntar teatro, dança, percussão e costura. As mulheres fazem a oficina de costura, se capacitam, ficam responsáveis pelos figurinos de todo o espetáculo. São roupas exclusivas, ousadas mesmo. A gente tem coragem de chegar lá e fazer o negócio dar certo. Isso tem sido para mim, como coordenadora do Instituto Cultural Congo Nya, muito gratificante, porque o projeto envolve todo mundo. Todo mundo fica feliz da vida. Bom, quanto à outra questão, eu entrei na cultura rastafári através de um grupo que veio da República da Guiana, fazendo um intercâmbio cultural pelo Brasil. Viajaram doze estados do Brasil e, quando chegaram a São Sebastião, eu me encantei pelo trabalho, pela filosofia de vida. Eu olhava para o cabelo deles e falava assim: eu nunca vou deixar

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meu cabelo ficar desse jeito. Essa galera é muito legal, mas eu jamais vou deixar meu cabelo embuchar. Foi através da chegada desse grupo Congo Nya no Distrito Federal que eu me descobri como negra. Eu até sabia que era, mas eles trouxeram isso muito presente, muito forte. Eu não posso falar muito sobre mulher rastafári, porque, quando eles chegaram, eram vários homens e eu me inseri para ajudar. Eu me aproximei para desenvolver as ações. Então, eu fiquei na linha de frente das ações. Eu não me preocupei muito em estudar, em saber como que era a filosofia rastafári. Eu sou rastafári viva. Entrei de cabeça nisso. Sinto muito presença na questão espiritual também. Para mim, o trabalho da mulher rastafári é o trabalho social, buscar fazer as coisas acontecerem independentemente de você estar capacitado ou não. Você tem que ir lá e fazer acontecer, porque Jah Rastafári vai te dar forças e iluminação para que você consiga fazer tudo que você tem que fazer. Na verdade, não sou eu apenas como mulher. Há uma forma além, uma força espiritual.

Verônica Nairobi Faço minhas palavras as palavras do Zulu Araújo, que foi presidente da Fundação Cultural Palmares e tem um acúmulo muito maior em relação a essa política dos editais. Acho que a gente tem que realmente avançar muito mais. A gente sabe que fica preso a burocracias mesmo. O sistema que exclui muito a nossa gente. Eu acho que realmente a gente tem que levar essa discussão para dentro das organizações governamentais e saber de que forma contemplar muito mais o nosso povo e a nossa gente. Ainda sobre a questão de políticas para a cultura negra, a gente sabe que a questão cultural é muito desvalorizada no âmbito governamental, porque cultura só é vista como dança, música, festa e evento. A gente sabe também que precisa avançar no sentido de expandir o orçamento do Ministério da Cultura, da Fundação Cultural Palmares. Hoje, dentro

do Ministério da Cultura, a Palmares é a quem tem o menor orçamento, porque cultura de preto tem menos relevância ainda. Ao mesmo tempo, acho que essa discussão de política cultural para população negra tem que ser mesmo transversal. Ela tem que ir além do Ministério da Cultura, além da Fundação Cultural Palmares. Deve estar presente na política educacional. Tem que estar em diálogo com a saúde da população negra. Para poder concluir, passo à questão da terra. A Fundação Cultural Palmares tem como missão a preservação do patrimônio, da cultura afro-brasileira. Ela também cuida da preservação de comunidade quilombolas, sendo um dos seus papeis tratar das certificações de comunidades quilombolas. Sobre a ação da Fundação Cultural Palmares no caso da comunidade Rio dos Macacos, localizada lá na Bahia... Esse caso ganhou até mesmo uma dimensão internacional. Nós recebemos informações da comunidade e temos acompanhado também pela mídia o que a Marinha vem fazendo com aquela comunidade negra, que é o extermínio simbólico. A Palmares cumpriu seu papel ao reconhecer a comunidade como quilombola, em tempo recorde, em menos de um mês. Nós fizemos a visita técnica, fizemos o laudo e apresentamos o relatório técnico, que foi encaminhado para o órgão competente, no caso a Secretaria Geral da União. Então, apesar de algumas pessoas terem manifestando isso pela rede, nós não deixamos de acompanhar. A partir do momento em que a Palmares certifica a comunidade como quilombola, o governo brasileiro a reconhece como tal. Logo depois da certificação, as atrocidades continuaram a acontecer na comunidade. Várias denúncias se seguiram, mesmo de coisas antigas, de abusos sexuais dentro da comunidade em relação a mulheres, abuso de autoridade promovidos por alguns marinheiros durante o treinamento dentro da comunidade, ameaçando a vida dos moradores. A comunidade sabe que a gente está acompanhando. Só que é preciso entender as limitações institucionais. A

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Palmares pediu a formação da Câmara de Conciliação e também está tendo várias reuniões em âmbito nacional com a presidenta Dilma para poder garantir a permanência da comunidade. Só que a gente sabe que o papel do movimento é justamente esse mesmo. É resistir, questionar, reivindicar e dar visibilidade.

Cristiane Sobral Eu vou falar da minha experiência. Eu sempre procurei utilizar a academia como uma estratégia. Então, a minha passagem pela academia me fez ser chancelada para participar de várias comissões de seleção de editais, como, por exemplo, do Ministério da Cultura. Eu entendi muito rapidamente que ser membro dessas comissões me ensinaria. Isso é uma das coisas que faltam aos grupos, na minha opinião. Ali você aprende como deve ser elaborado um projeto, como esse projeto precisa estar configurado. Falando da experiência do Fórum de

Performance Negra − que já aconteceu em várias edições em Salvador, com o Bando de Teatro do Olodum, a Cia. dos Comuns −, ali houve o mapeamento de mais de oitenta grupos e companhias negras de teatro e dança no Brasil. Uma grande constatação foi a de que muitos grupos não tinham pessoa jurídica, não tinham o conhecimento de como manipular essas leis para a inscrição nesses editais. Então ter representantes negros nessas comissões influencia e muito. Eu tive a experiência de participar de um prêmio luso-brasileiro e percebi que vários textos de proponentes negros poderiam ter sido excluídos da discussão, se eu não estivesse ali. E os meus argumentos foram acadêmicos. Eu acho que é a hora de colocar esses argumentos na mesa para que os nossos projetos que estejam de acordo com os critérios de qualidade tenham vez. Assim como devem existir esses editais específicos, que ajudam bastante a contemplar as nossas questões, a gente também precisa descobrir estratégias para participar de todos os editais e insistir nisso, cobrando até mesmo juridicamente uma proporcionalidade. A gente tem condições de fazer isso. Já começa a acontecer um processo de

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descentralização. Há uma pressão para que os editais não sejam só Sul e Sudeste, para que eles possam contemplar regionalmente as necessidades do país e que também tenha um recorte temático. Mas aí, a gente volta ao ponto de ter que trabalhar com as nossas comunidades, para fortalecer a elaboração desses projetos, porque esse é uma grande questão. Eu já li muitos projetos, avaliando o que faltava para a aprovação. E isso tem que ser devolvido para a nossa comunidade. Aproveitando a oportunidade, eu também quero falar do nome desse livro Não vou mais lavar os pratos. Do que se trata? De que tipo de questão eu estou falando? Esse texto começa assim: “Não vou mais lavar os pratos e nem vou limpar a sujeiras dos móveis, sinto muito comecei a ler”. Para vocês terem uma ideia, eu fiz o lançamento desse livro em São Paulo, e uma moça me procurou e disse que queria um autógrafo no

livro dela. Ela contou que era empregada doméstica. Que um dia, na casa em que ela trabalhava, estava limpando uma estante quando caiu o livro. Ela o abriu, leu esse primeiro texto e ficou muito impactada. Pensou que nunca na vida tinha se colocado numa perspectiva de fazer da sua existência uma outra seara, uma outra caminhada. Chegou para o chefe e disse: “Olha, eu quero a minha demissão. Estou pedindo a minha demissão agora e gostaria de levar apenas esse livro”. O chefe riu e falou: “Pelo amor de Deus, leva que isso é de um evento que minha mulher foi. Ela anda misturada com umas mulheres que ficam falando uns negócios meio estranhos. Até agradeço se você levar esse livro embora”. Ela disse que pegou o livro colocou debaixo do braço e saiu por uma grande avenida de São Paulo. Começou a andar pela rua, começou a chorar e disse: “Sou louca, porque estou demitida, não tenho mais emprego, estou com o livro debaixo do braço, não vou mais

lavar os pratos, e agora?” Entrou numa igreja católica, resolveu se confessar e ouviu do padre: “Olha, eu vou te ajudar com uma cesta básica por mês e vou te encaminhar para um pré-vestibular específico para negros. você se interessa?” E ela falou: “É tudo o que eu quero”. E ela terminou a história me entregando o cartão de visitas. Ela hoje é advogada. Tinha o número da OAB no cartão. Então é disso que eu falo em Não vou mais lavar os pratos. Tem a ver muito com a minha história. Eu sou uma menina negra que não conheceu a família biológica, que foi abandonada recém-nascida, que tem a história de muitas crianças negras nesse país. Eu lidei a minha vida inteira com a possibilidade de um não lugar, porque os filhos adotivos são tratados de uma maneira muito preconceituosa no nosso país. Imagine o que é para um filho adotivo negro? Esse livro fala justamente dessa ruptura, da possibilidade de descobrir outras possibilidades. Eu tenho vários chefes, começando pelo marido terminando nos filhos. Isso é só para que vocês entendam que não é uma perspectiva de saída disso que a Makota Valdina estava

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha falando. Eu tenho que sair daqui rapidamente para o almoço dos meus dois bebês, que acabei de adotar. Eles são meus chefes. Eu vivo primordialmente para eles, para que a existência deles possa ser garantida, e vou morrendo um pouquinho para que eles continuem com isso. Aqui eu entro nessa questão da comunidade negra. Eu passei cinco anos à espera da adoção dessas crianças negras, que ficam definitivamente esquecidas nos abrigos, porque a maioria das famílias no nosso país não se interessa pelo perfil delas. Eu vi duas mulheres brancas se estapeando porque tinha um menino clarinho, dos olhos clarinhos e que elas queriam de qualquer maneira leva-lo para poder colocar na vitrine e no portaretratos. Como reverter a questão das novelas? Eu também não assisto a novelas, mas, como educadora, procuro nem que seja pela internet ficar sabendo do que está acontecendo, porque os meus alunos perguntam a minha opinião, e eu tenho de certa forma me posicionar, ainda que eu me recuse a postar em facebook minha opinião sobre essas coisas. Eu acho que isso alimenta a audiência dele. Faz com que eles cada vez cresçam. Agora, como interferir no governo para que a produção cultural seja reconhecida? Eu acho que a gente tem que estar por dentro desses editais. A gente não pode perder as nossas referências daquilo que já foi construído e precisa fazer parte de alguma forma dessas comissões, desses grupos. Eu trabalhei durante doze anos numa embaixada e minha função lá era justamente estudar elaboração de projetos. Fiz vários cursos de elaboração de projeto para que isso pudesse ser revertido para a produção dos grupos. Talvez a gente esteja caminhando não com a velocidade que a gente gostaria, mas o importante é que a gente não se perca no caminho e que continue dando os passos que

definitivamente precisam ser dados para não esquecer a nossa juventude negra. A gente tem que ter a referência desse exercício da maternidade, que é um exercício primordial, seja ele iniciado na barriga, na cabeça, ou onde puder, porque eu acho que isso faz de nós mulheres mais poderosas. Eu acho que é algo que nos coloca adiante e com muito mais poder. Quanto à imagem do Mussum. É uma figura tão forte essa do negro representado com os olhos arregalados, com aquela boca meio não sei. Quem viu aquele filme A hora do show, do Spike Lee? Então, é aquele tipo de personagem que está sendo resgatado, do negro ridicularizado, tal como em alguns desenhos do Pica-Pau, o negro canibal. Infelizmente, esse Mussum que está aí no facebook traz à tona toda essa trajetória da representação do negro como uma imagem criada para a diversão dos outros. São imagens muito perversas, que ridicularizam os nossos traços físicos, o nosso fenótipo. Mas não se pode perder de vista que o Mussum do facebook é apenas a ponta do iceberg formado por vários outros problemas. Temos a Juliana Paes pintada de negra, de mestiça, para representar a Gabriela. Parece até que não tem nenhuma atriz negra que possa representar uma Gabriela de acordo com a obra de Jorge Amado. A mesma coisa aconteceu com a Deborah Secco pintada de índia para ser uma caramuru. É um problema que a gente tem aí. O papel do negro é para fazer rir. Se não é para fazer rir, pinta algumas pessoas que possam fazer o papel. Usando a figura do Mussum, viram uma forma de as pessoas rirem e ridicularizarem. Eu só queria fazer um adendo. Eu não acho que o problema seja todos os brancos. Eu acho que a gente, como negro, tem que ter muito cuidado. Eu tenho muitos amigos brancos que estudam e que apoiam as nossas lutas, mas a gente tem o

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segmento branco perverso que precisa disso para se sustentar na sociedade. E só para fechar. Vocês ouviram falar do musical Tim, que está em cartaz em São Paulo e no Rio de Janeiro, que tem o neto do Silvio Santos pintado de negro para fazer o Tim Maia? Por outro lado, há o trabalho de grupos bem interessantes, como Os Crespos, de São Paulo. Eles se pintaram todos de branco e botaram peruca na intenção de falar sobre essa construção da imagem do negro na nossa sociedade e sobre como a nossa autorrepresentação é feita. Ou seja, existem várias modos de se usar esses veículos de comunicação. Houve uma moça que me fez uma pergunta específica sobre o racismo institucional, sobre o problema que ela enfrentou com a questão do cabelo: Como combater isso num ambiente de trabalho onde há a exigência de um padrão estético? Vou falar de uma experiência que aconteceu comigo. Eu dava aula numa faculdade e, sempre que possível, procurava discutir as questões relacionadas como a Lei n. 10. 639. Pois eu fui chamada na direção algumas vezes em virtude de queixas de alunos, dizendo que não estavam vendo aquilo muito bem, que eu era muito negra. Daí eu falei: “O que eu posso fazer para ser outra coisa?” A coisa foi seguindo por aí, até que, um belo dia, meu cabelo incomodou também. Uma aluna escreveu uma carta dizendo que ela não era obrigada a usar o cabelo natural, que ela se sentia incomodada porque ela usava chapinha desde que nasceu e a minha figura a agredia dentro de sala de aula. Outro aluno disse que não era obrigado a ter uma professora que parecia com a empregada doméstica que trabalhava na casa dele. Eu entrei com um processo e tudo, mas, finalmente, a faculdade me demitiu por conta da minha não adequação ao perfil da empresa. Como reagir a isso? Eu estou com uma causa na justiça. Minha audiência está marcada para agosto. Reuni todas as provas, toda a documentação, e estou entrando com muita força na justiça. Para mim, é uma questão de honra que isso seja enfrentado. Em momento algum eu me arrependo de

não ter cedido às pressões, às tentações enganosas do embranquecimento. Sou o que sou. Se tiver que perder emprego, eu vou perder. Arranjo outro. Estou aqui para qualquer coisa. É isso.

Makota Valdina Eu queria só agradecer a oportunidade de estar com essas irmãs, essas guerreiras mais jovens que eu, por eu ter aprendido um pouco com cada uma de vocês aqui. Só se lembrem de fazer a mesa mais enxuta para a gente ter mais tempo. Quanto à questão dos editais, desde o início, eu sou não contra os editais. No caso de Salvador, eu acho que tem que ter edital mesmo para acabar com aquele negócio de balcão, de apadrinhamento. Agora da forma como está parece que é para nos excluir ainda mais. Às vezes me incomodo que as algumas pessoas vejam instituições como a Palmares, a SEPROMI, a SEPPIR, a SEMUR como governo. Isso existe porque a gente lutou para ter. Eu vejo como um elo entre a comunidade e o governo. O negro e a negra que estão nessas instituições estão lá para nos representar da mesma maneira. Eu faço parte de um órgão do governo que é a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, mas eu estou lá por ser uma representante da comunidade negra. Não estou lá para dizer amém ao governo, nem à Secretaria de Cultura e nem ao Conselho de Cultura. Eu acho que está precisando mais disso. Essas instituições têm que lutar e sinalizar que esses editais não nos contemplam. Quando alguém consegue chegar até lá, é um milagre, porque a dinâmica não nos contempla mesmo.

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Extermínio da Juventude Negra Mesa 06 Daniela Luciana Silva – Mediadora Jornalista, Diretora do Coletivo Pretas Candangas

Eneida Paiva Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde Gostaria de agradecer em nome da Secretaria de Vigilância em Saúde pelo convite e fazer um agradecimento particular aos colegas técnicos do Departamento de Análise de Situação de Saúde, que trabalharam na confecção e na elaboração dos dados. É uma missão espinhosa falar de uma tragédia e apresentar dados sobre o triste genocídio da juventude afro-latina. Eu trouxe um panorama das principais causas de mortes por faixa etária no Brasil. São dados de 2010, disponíveis no Sistema de Informação de Mortalidades do DATASUS. Na faixa etária de 1 a 4 anos, as principais causas de morte são as externas. Quando desmembramos os dados por faixa etária e chegamos às faixas etárias de 15 a 19, 20 a 29 e 30 a 39 anos, os homicídios são as principais causas de morte. Temos isso numa série histórica de onze anos, de 2000 a 2010 e observamos a tremenda iniquidade com recorte raça/ cor por meio dos números. Para 2010, a gente tem uma taxa de mortalidade de jovens negros por homicídios de 66,2 óbitos por 100 mil habitantes, enquanto na população branca, essa taxa é 28,4 óbitos por 100.000 habitantes. Fazendo um recorte de jovens negros e jovens brancos por tipo de arma, observamos que o jovem negro morre mais e morre mais por arma de fogo. Apesar de os números das taxas de mortalidade por homicídio serem bem menores em relação à população feminina, as mulheres negras ainda morrem mais do que as mulheres brancas. No recorte da população de 15 a 29 anos, essa taxa também é maior do que na população geral e se mantém a iniquidade com relação à raça/cor. As armas de fogo são as principais responsáveis por esses óbitos violentos e atingem mais as jovens negras.

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha Percebemos que os jovens negros têm 2,5 vezes mais chances de morrer por homicídio do que os jovens brancos no Brasil hoje. Em 2010 temos 449.932 óbitos, 26,2 óbitos a cada 100.000 habitantes, 91,3% das vítimas de homicídios eram do sexo masculino, 70,6% das vítimas são negros, 74,6% dos jovens assassinados eram negros. Esses dados da violência institucional revelam uma tragédia que a gente acompanha diariamente. Em 2010, dos óbitos por intervenção legal, 51,9% das vítimas eram jovens negros. Isso representa 92 jovens a cada 100.000 habitantes, o que é uma taxa muito alta. Trago alguns dados de notificação de violência doméstica sexual e outras violências na faixa etária de 15 a 29 anos. No Brasil, os serviços de saúde são obrigados por lei a notificar a violência contra mulher, crianças, adolescentes e idosos. A violência contra os homens também é passível de notificação em alguns casos. Os tipos de violência que mais atingem os jovens negros são a tortura, a violência sexual, e principalmente o tráfico de seres humanos e o trabalho infantil. A violência física e a psicológica são expressões importantes da violência doméstica. Essas violências atingem principalmente o público feminino e ocorrem principalmente nas residências e, em alguns números, na via pública. A Política de Redução de Mortalidade por Acidentes e Violência e a Política de Promoção de Saúde, da Secretaria de Vigilância em Saúde, buscam alternativas para enfrentar essas situações. Temos um

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financiamento para projetos em municípios para a prevenção de violência. O município, de acordo com seu diagnóstico situacional, apresenta o projeto e o Ministério de Saúde financia essas ações de prevenção, que estarão articuladas nessa rede de prevenção. É uma rede intersetorial, não é só da Saúde, não é só do governo. Essa rede também inclui universidades e sociedades organizadas. A gente entende que o enfrentamento da violência não pode ser apenas setorial. Quando eu estava preparando esta apresentação, eu tive nas mãos um estudo do IPEA de 2010 que falava de demografia e violência. Dois dados chamaram atenção, além desses números trágicos da violência contra jovens negros. O estudo destacava que as jovens na faixa de 15 a 19 anos tinham uma taxa de fecundidade decrescendo menos do que a fecundidade da população em geral. Não tem nenhum tratamento estatístico que permita fazer esta afirmação, mas me lembrando de uma experiência que tive num grupo de pré-natal na periferia de Salvador, por ocasião do meu estágio de residência. Estávamos discutindo com as meninas se a gestação era desejada, planejada, o que elas podiam falar dessa experiência de ser mãe tão jovem. Uma das meninas chamada Leide – nunca vou esquecer o nome dela − respondeu que, se ela não tivesse seu filho naquela idade, ela não iria ter mais filho, porque os homens dela estavam morrendo. Isto ficou na minha memória. Com este estudo do IPEA, isso veio à tona e fica para nossa reflexão e debate. Obrigada.

Daniela Luciana da Silva Ninguém disse que esse tema era fácil. A gente está vendo aqui a emoção da nossa palestrante. A gente trabalha, racionaliza, mas somos seres humanos. Muito obrigada! É importante que pessoas como você, que tem sensibilidade e não apenas frieza, trabalhem nessa área e na gestão pública.

Fernanda Papa Coordenadora do Programa Juventude Viva da Secretaria Nacional de Juventude Quero agradecer o convite para estar nessa conversa. Trago um abraço da Secretária Severine Macedo, da Secretária Adjunta Ângela Guimarães, duas mulheres fortes, que nessa gestão defendem como prioridade número 1 do nosso trabalho a construção da agenda de enfrentamento à violência contra a juventude negra, que agora chamamos de Plano Juventude Viva ou Plano Juventude Negra Viva – o nome ainda está a ser definido. Vou contar o que tem sido este processo de construção, que conta com a participação de várias pessoas que estão aqui. Vou contar qual é a resposta atual que está sendo desenhada a partir do governo federal para o enfrentamento da questão da mortalidade da juventude negra. As pessoas que estão aqui vão trazer depoimentos vivos, fortes sobre as vivências e os processos que fazem com que esta agenda chegue ao Estado. Não é uma benevolência do poder público responder a esta questão. É uma situação grave, e há pressão dos movimentos sociais, há a denúncia histórica do movimento negro com relação a essa situação. A gente sabe que existem hoje várias campanhas e iniciativas na sociedade civil, entre os movimentos sociais, que precisam se somar e fortalecer os esforços do poder público para a construção das políticas de prevenção. A gente sabe que é um tema complexo, sistêmico. Existe uma arquitetura institucional nova, um esforço de diferentes áreas do governo para responder a essa temática, e a gente está dando novos passos. Outros já existiram. Os governos locais trabalham essa questão da maneira como podem. Agora o Plano Juventude

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Negra chega com algumas soluções que esperamos que possam mobilizar mais. O que é importante dizer é que é uma iniciativa que consideramos relativamente histórica, porque, pela primeira vez, o governo federal reconhece isso como um problema de fundo da democracia. Não temos democracia com essa quantidade de pessoas sendo assassinadas todo dia. Isso exige uma resposta combinada, integrada, que inclua um conjunto de diferentes setores do governo. Para tanto, contamos muito com os Ministérios da Saúde, da Justiça, da Educação, da Cultura, dos Esportes, entre outros parceiros. Vamos mostrar quais são os eixos e de que forma estamos chegando à ideia deste Plano. A gente olhou os números de mortes no Brasil por homicídios por arma de fogo de 2004 a 2007. Morre mais gente aqui do que pelo menos em 6 ou 7 conflitos armados entre Iraque, Paquistão, Sri Lanka, entre outros. Os homicídios concentram-se sobre a população jovem negra que tem baixa escolaridade, tem de 4 a 7 anos de escolaridade, residente nos espaços populares, principalmente de bairros pobres. A gente fala que as mortes por agressão são uma expressão não só da violência física, mas principalmente da simbólica, e que é importante reconhecer o componente do racismo em relação a essas mortes. Por que são os jovens negros que morrem mais? Existe um problema histórico na nossa sociedade que precisa ser atacado com políticas e com a declaração de que esse problema existe entre nós. É uma violência física que cresce e aflige nossa sociedade. Raça, cor, idade e território são determinantes para a gente reconhecer e atacar o problema. A gente tem falado de uma oportunidade do governo tratar essa questão como uma dívida histórica que tem com a sociedade, principalmente com a população jovem negra. Vou contar um pouco do processo de formulação da

agenda. É uma agenda que teve muita participação de diferentes setores até o momento de sua elaboração e até o momento atual. A gente considera todos esses momentos de consulta e de diálogo. Esse fórum é uma oportunidade muito importante porque é nessa troca que a gente vai tentando aperfeiçoar as ações e melhorando os argumentos para fazer a discussão interna no governo. A ideia da agenda nasce do Fórum de Direito e Cidadania, que a presidente Dilma Rousseff criou em 2011, para tratar os direitos sociais que precisam ser garantidos e que ainda não são garantidos no país. Três temas foram considerados prioritários por esse Fórum que reúne vários ministérios: a questão da autonomia econômica das mulheres – e aí tem a importância de pensar nas mulheres negras −, a questão dos resíduos sólidos e dos catadores e catadoras de lixo, e a questão da mortalidade da juventude negra. É uma agenda que ganhou força por ter aprovação e prioridade presidencial para ser articulada no conjunto do governo. De julho de 2011 até agora, foram várias reuniões envolvendo o Conselho Nacional de Juventude, o Conselho da Promoção da Igualdade Racial, um Fórum Interconselhos que também participa do Conselho da Segurança Pública e o Conselho de Cultura. Teve uma reunião específica com o movimento Hip Hop e pessoas que vieram de vários estados, realizada em São Paulo, bem como ocorreram as discussões com especialistas em segurança pública, em políticas de juventude, de igualdade racial, na área de saúde, entre outros. Tem todo um trabalho de convencimento nas políticas de educação, de saúde, de trabalho, do esporte, entre outras. A gente tem que discutir a condição juvenil, os jovens como sujeitos de direitos, discutir o fato de que, para um jovem negro ou uma jovem negra estar na eminência de sua morte, da sua eliminação, outros direitos foram violados. A gente sabe que uma pessoa jovem que vive numa

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outra condição social não passa esses constrangimentos, essas violações do direito à educação, à saúde, à moradia, ao trabalho, à mobilidade urbana. E que por isso essas pessoas estão mais expostas à violência, sem falar de uma condição socioeconômica que precisa ser olhada pelo conjunto de todas as políticas. Falar de uma agenda de enfrentamento à violência contra a juventude negra não é falar apenas de segurança pública. A gente está falando de uma série de direitos que precisam ser garantidos e que são violados. Aí, sim, enfrentar essa letalidade e enfrentar o alto índice de homicídios, o que tem de mais gritante e de mais urgente nessa agenda. O Plano Juventude Viva está focado nos 132 municípios onde, segundo os dados do Ministério da Saúde, ocorrem mais de 70% desses homicídios contra a juventude negra. São 132 municípios no país que vão ter a prioridade da chegada das ações e vão ter critérios de pontuação maiores para os editais voltados para as políticas públicas de enfrentamento à violência. São ações de políticas universais e também algumas de ações afirmativas. O nosso esforço tem sido de brigar pela compreensão e pela incorporação da dimensão racial e das discussões da condição juvenil como aquele momento particular e específico da trajetória do ser humano. Trata-se de uma fase que precisa de uma atenção específica do governo no diz que respeito às suas necessidades e direitos. O Plano vai ser voltado para a população jovem negra e pretendemos atingir jovens que estão em situações de vulnerabilidade social. São aqueles jovens de 15 a 29 anos, negros e negras, que moram em bairros com altos índices de violência, que têm uma renda per capita de até R$ 140,00, que estão fora da escola e com importante defasagem escolar, ou estão com uma baixa escolaridade, com ensino fundamental incompleto, fora do mercado de trabalho, ou desempregados, ou em situação de trabalho muito precário. Sabemos que isso atinge a maior parte dos jovens que estão entrando

no mercado de trabalho. Esse é aquele jovem que não necessariamente está envolvido numa situação de violência, mas que vive no contexto, que está muito próximo de uma situação de violência urbana ou doméstica. Outro grupo prioritário é dos adolescentes e jovens de 15 a 29 anos que estão nesses municípios selecionados, que estão ameaçados de morte, ou em situação de conhecida violência doméstica, ou de violência urbana de forma geral, em situação de rua, fora de seu ambiente familiar, até mesmo por conflito, por apanhar ou por sofrer violência em casa. Pessoas também que estão cumprindo medidas socioeducativas ou são egressos do sistema socioeducativo, usuários de drogas e que ainda não estão em tratamento, e pessoas que estão vivendo a prostituição, o que as coloca numa situação de vulnerabilidade muito grande. Agora, vamos mostrar os eixos em torno dos quais as ações estão organizadas. Há o eixo de desconstrução da cultura de violência. Estamos prevendo uma campanha nacional com identidade para dialogar com as diferentes regiões do país. Campanha de mídia, mas também de mobilização social, que some e fortaleça outras campanhas que já existem contra a banalização da violência contra a juventude negra. Uma campanha que não aprofunde estigmas e que promova os direitos e a autoestima da juventude negra, e que faça, obviamente, a denúncia contra a situação de letalidade, cometida até mesmo pelo Estado contra esse grupo da população. Já está sendo articulada uma rede de mobilização pró Juventude Negra Viva, que deve envolver várias entidades. Aqui vai nosso convite para as entidades presentes. A gente quer dialogar com vocês, saber o que cada um está fazendo. A ideia é criar editais, apoiar projetos e fortalecer ações em curso para a desconstrução da cultura da violência.

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Um eixo muito importante para a gente é o de inclusão, emancipação e garantia de direitos da juventude. Tem uma série de programas que devem focar a situação de vulnerabilidade e contribuir para transformar as trajetórias desses jovens e dessas jovens, promovendo a sua inclusão e autonomia: terminar o ensino fundamental, ter a possibilidade de uma formação profissional. Aí entram o PROJOVEM, entra o PRONATEC, para acessar a universidade, o PROUNI. Do Ministério da Saúde, tem o Vivajovem.com, que é um novo edital para a formação de jovens multiplicadores de saúde, de prevenção da violência e uso de álcool e drogas. Há o edital para agentes culturais negros, que a Fundação Cultural Palmares está lançando essa semana, entre outras ações que focam o sujeito, os direitos e a trajetória de inserção social desses jovens. O eixo de transformação dos territórios busca dialogar com os territórios violentos, onde acontece a maior parte dos crimes violentos e homicídios. A ideia é levar a presença do Estado, com equipamentos não só culturais, como também dialogando com uma ressignificação da escola. Aí tem um diálogo forte com o MEC com relação à implementação da Lei n. 10.639. Entram também as praças de cultura e lazer e o Programa Segundo Tempo, do Ministério do Esporte. Há três coisas que consideramos inovadoras, que não existiam e que estão sendo criadas para este Plano. A primeira delas são as usinas culturais do Ministério da Cultura, que vão reformar equipamentos ociosos, lugares abandonados nesses territórios violentos para a produção cultural dos jovens. A Estação Juventude é um programa novo da Secretaria Nacional de Juventude que pretende dar as boas vindas para o jovem e apresentar quais são as políticas públicas para a juventude desde a cidade, do estado até o governo federal, que pode contribuir para uma trajetória de inclusão social dessas pessoas. A última são os núcleos de Economia Solidária, que devem estar ligados às usinas culturais para incubação de empreendimentos

solidários juvenis voltados especificamente para os grupos juvenis negros. No Ministério da Saúde, têm as academias de saúde para promover esporte noturno, os consultórios de rua e outros programas. Há também o aperfeiçoamento institucional, para o que estamos falando que é o eixo de enfrentamento ao racismo institucional. Aqui estão todas as ações voltadas principalmente para a área de segurança pública, formação de agentes de segurança e de agentes penitenciários. Devemos lançar uma nova orientação para o procedimento operacional padrão de abordagem policial. O baculejo é um momento de tensão onde muitas vidas são eliminadas no conflito com a polícia. Então, estamos trabalhando com novas diretrizes para a abordagem policial. Há um projeto de lei para coibir o auto de resistência. O Disque Igualdade Racial, que a SEPPIR está criando, vai ter um módulo específico para denúncia de violência contra a juventude negra. Estamos trabalhando por uma nova matriz curricular para as polícias e uma série de ações com sistema de justiça.

em Maceió (AL), a primeira etapa do Plano Nacional de Prevenção à Violência contra a Juventude Negra, intitulado “Juventude Viva”.

Daniela Luciana da Silva Obrigada, Fernanda Papa. Nós observamos o primeiro diagnóstico e temos o que o poder público está fazendo. Agora teremos três falas da sociedade civil, feitas por pessoas que, independentemente de terem salário, cargos, funções institucionais, realizam trabalhos nessa área. Depois dessas falas, a gente quer saber como contribuir para esse Plano, se vai ter consulta ou audiência pública, quais são os processos de participação popular, porque isso é muito importante e esse é um dos espaços de construção para a gente interferir e contribuir para que a coisa saia do papel.

Alane Reis Representante do Núcleo de Estudantes Akofena da UFRB

Até novembro, devemos lançar esse Plano. Estamos num momento de negociar com os estados, de fechar as ações com os Ministérios, fechar esse orçamento. Estamos abertos na Secretaria Nacional de Juventude e na SEPPIR. Nós fomos apelidados de Secretaria Nacional da Juventude Negra, porque esse é o momento de fechamento desse Plano e de levar para a sociedade, fazer essas disputas de significado também com essa campanha, agitar um pouco mais, somando com o trabalho de vocês, que já vem sendo feito e que é fundamental para a gente. Obrigada. Nota da edição: O governo federal, por meio da Secretaria Nacional de Juventude, da Secretaria Geral, e da Secretaria de Promoção de Políticas da Igualdade Racial (SEPPIR), lançou em 27 de setembro de 2012,

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A campanha Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta não é um movimento, não é um coletivo. Como o nome indica, é uma campanha contra o genocídio da juventude negra que começou por volta de 2002, puxada por militantes do movimento negro em Salvador. Militantes como Hamilton Borges, Lio N’Zumbi, Vilma Reis, Andrea Beatriz são referências para nós que começamos a militar depois. Para mim, é um prestígio muito grande têlos hoje como parceiros, irmãos e estar com eles nesta militância. O principal eixo da campanha Reaja é o trabalho com a população carcerária nas penitenciárias de Salvador. Nós temos três penitenciárias, duas

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha masculinas e uma feminina, onde a Reaja faz um trabalho de base contínuo. O que Hamilton costuma falar muito: trabalhar com preso, trabalhar com ladrão, trabalhar com assassino, trabalhar com estuprador é uma coisa que ninguém quer. Eles realmente são considerados o lixo da sociedade, até mesmo dentro do próprio movimento social. Quem trabalha com essas pessoas que são discriminadas? Sempre tem gente falando: “Não tinha outro trabalho para exercer?” Vou fazer a denúncia de três casos. Um deles é o caso do Quilombo Rio dos Macacos, que está localizado entre Salvador e Simões Filho. O quilombo está sendo invadido pela Marinha desde 1960. Uma base naval foi construída lá e há mais ou menos três anos existe um trabalho contínuo da Marinha de tortura contra essas pessoas, tortura física, tortura psicológica. No dia 1º de março de 2012, estava marcada a desapropriação das terras do quilombo. O movimento negro junto com o movimento do quilombo, a Campanha Reaja e outros organizações que apoiam o quilombo conseguiram adiar essa reintegração, que na verdade é desapropriação, para que isso acontecesse de forma pacífica. A próxima desapropriação está marcada para início de agosto, entre 1º a 5. Não tem data específica, e nós estamos vivendo em tensão diária por causa dessas pessoas. Isso acaba criando uma relação pessoal com Rose, uma mulher preta que é liderança do quilombo. Eu gostaria que vocês, quando voltassem para suas cidades, divulgassem esse fato, porque realmente pode acontecer outra tragédia de Pinheirinhos na Bahia e é uma preocupação muito latente nossa.

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Outro caso é o do Ricardo, um jovem de Porto Seguro que foi preso por furto há um mês, e na semana passada foi espancado até à morte por policiais dentro de uma delegacia. As câmeras internas de segurança da delegacia mostram até mesmo os policiais fazendo chacota com a morte do Ricardo. O vídeo não mostra o que aconteceu, porque isso foi do lado de dentro, mas o mostra saindo carregado, indo para o hospital. Ele morreu horas depois por traumatismo craniano.

polícia que eles saem correndo. É um terror contínuo, de verdade, nessa comunidade. A gente tem um trabalho chamado de Escola de Hip Hop, trazendo elementos do Rap, do break, do grafite e DJ. Paralelamente a isso, no outro turno, temos o Curso de Cidadania e Consciência Negra (CCN). Estamos na comunidade Viradouro, tentando mudar essa face. Obrigada pela atenção.

MC Leonardo APA Funk

Outro caso é o da Almerinda, uma mulher negra que durante um ensaio do Olodum no verão, em janeiro deste ano, perdeu um olho por causa de um policial militar que a agrediu. Ela estava lá no ensaio do Olodum se divertindo e o policial deu uma cacetada no olho dela. Ela perdeu o olho. A campanha Reaja tem acompanhado também esses casos. Agora vou falar um pouco do Núcleo Akofena, sobre o qual tenho mais propriedade para falar. É um núcleo de negras estudantes que tem um trabalho contínuo no Recôncavo da Bahia, mais especificamente na cidade de Cachoeira, uma cidade conhecida nacional e internacionalmente. É onde se localiza a Irmandade da Boa Morte, um lugar que turistas frequentemente estão lá, uma cidade universitária. Lá existe uma universidade federal. Somos estudantes. Essa cidade tem pontos turísticos. É uma cidade linda, só que tem muita periferia e não é isso que os turistas veem. Nessas periferias – tal como em todas as outras, em todos os outros quilombos rurais e urbanos –, a polícia chega tocando terror, literalmente, sobretudo na comunidade chamada Viradouro, um lugar em que a gente tem o nosso trabalho. Para vocês terem noção, a revista se dá tirando o torso de mulheres do axé. Abordam até crianças de sete anos de idade. Há meninos lá que são traumatizados. Quando chega uma viatura, eles saem correndo. Eles podem estar brincando, mas é só falar de

Boa tarde! Para mim é um prazer imenso estar aqui rodeado de mulher. Participei na semana passada de um debate sobre Violeta Parra no cinema e só colocaram homem no palco. A mulherada caiu de pau e tem que cair mesmo. Cada um de nós é agente das mudanças que a gente quer para a sociedade em que vivemos. Uso a cultura em que estou há vinte anos. Meu pai tocou com Jackson do Pandeiro, fui criado no meio do coco, do xaxado, do baião, do xote, da cultura nordestina em geral, mas foi por meio de funk que eu consegui colocar tudo que eu pensava sobre a sociedade. Ainda novo, com 17 anos, ganhei meu primeiro concurso de Rap, em 1992, e é o funk que me sustenta até hoje. O que eu faço, o que quero para o funk, o que espero do funk está longe do mercado. Mas, continuo usando o funk para poder falar do que está acontecendo no Rio de Janeiro. Vocês devem ter ouvido falar da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro, onde toda mídia está sendo usada para vender uma imagem positiva dessas ações, as quais eu sou contra. A UPP não tem nada de pacífico porque se mata não só a vida, mata-se cultura. Você pode assassinar um povo matando a cultura dele. Eles estão assassinando. A lei do “circulando” voltou. Cinco moleques conversando

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depois de 10 horas da noite: “Meu irmão, rala!”. Isso não é matar também? Ninguém quer falar sobre, todo mundo fala que é legal, que está tudo bem. Por que quem fala mal não aparece? Quem fala mal da Unidade de Polícia Pacificadora não é da polícia. A polícia é outro assunto. A UPP é um projeto de governo. A UPP daria certo se fosse unidade de políticas públicas, em que a polícia fosse parte do projeto. O fato de a polícia ser o projeto não deu certo no passado, não está dando certo agora e não vai dar certo no futuro.

não é pornográfico. E a culpa é do funk? Cenas de motel, seis, sete horas da noite todo dia na televisão, e a culpa é do funk? Querem que, quando o moleque da favela vai falar sobre sexo, fale assim: “Usem a camisinha, senão vai dar barriguinha”? Querem que, quando o moleque vai falar sobre o cotidiano dele de guerra e de paz, ele diga: “Amanhã será melhor, teremos paz”? Não é assim que o moleque vai falar! Primeiro, porque ele não vê isso no futuro, e segundo, é porque o papo é reto, direto. Eles estão falando deles para eles mesmos.

O que as favelas estão vivendo no Rio de Janeiro é uma ditadura militar, com tudo o que se pode imaginar, tortura, assassinato, desaparecimento, privação da liberdade, etc. Tem secretaria do governo que não entra na favela porque não quer se relacionar com a polícia. Lógico, quem é que vai? A Liga do dia 17 de julho foi a primeira a mostrar realmente o que está acontecendo nas favelas do Rio. Foi feito dentro da Mangueira, mas aquilo está acontecendo em todas as favelas. O Funk passa por isso. Por quê? Eles têm uma ótima justificativa para proibir. Dizem que é porque os moleques estão falando, mas vinte anos atrás, quando eu entrei, o funk mal falava português e a gente já tomava porrada. O Funk está há 37 anos no Rio de Janeiro. Há apenas 22 anos que ele fala português. Mas nos bailes black já tomava porrada, já era difícil fazer. Então, não é pelo que a gente fala. O que o moleque da favela está falando... Ele não tem que ter responsabilidade alguma sobre a educação, porque não é papel da cultura promover a educação. A cultura é o termômetro de quanto um povo é ou não é educado. Se o moleque está falando no fuzil, no senta-senta, é o tipo de educação que a ele faltou ou é o tipo de educação que ele está tendo mesmo dentro do colégio. Se ele assina canais pornográficos a torto e à direita? Antigamente tinha um, agora há quatro, cinco, seis. Eu fui jornaleiro. Antigamente, dentro das bancas de jornal, tinha um pedaço para pornografia. Hoje em dia tem para o que

Calar, tentar calar é normal. Tudo o que a juventude fez no mundo foi perseguido. É normal. Dizer que o funk é feio? Gosto não se discute. Em 1992, saiu a primeira pesquisa sobre funk que dizia que os bailes do Rio só perdiam em número de frequência para as praias, e isso no verão. Naquele momento, o governo teria que investido em segurança e transporte para todo mundo nos lugares onde aconteciam os bailes. Mas não, o que fez foi proibir até que em 1996 não tinha mais um baile de clube. Os políticos achavam o quê? Que os traficantes iam olhar um para a cara do outro e falar assim: “Não podemos mais colocar baile de funk porque agora está proibido”? Não. Ficaram rindo de orelha a orelha: “Se não vai ter lá embaixo, então, vai ter aqui em cima”. O funk foi para as bocas de fumo. Virou o que virou. E agora o funk é culpado de tudo? Não. Nós da APAFUNK fizemos o estado de Rio de Janeiro reconhecer o funk como cultura. O que muda com isso? O que muda é que agora vamos utilizar essa lei e fazêla valer. Para isso, temos que criar políticas públicas para nos aproximar do fenômeno que está crescente. Se você chegar ao Rio de Janeiro agora, não vai ter ninguém batendo numa caixa de fósforo. É o tambor da macumba e o tambor da capoeira que está tocando eletronicamente. Depois de tantos anos, o tambor ainda resiste. Todos nós precisamos nos aproximar e ver o que podemos fazer. Censurar não vale, senão a gente rasga

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a Constituição. O moleque da favela tem 50 palavras no vocabulário: 25 são gírias, 25 são palavrões. E ele quer falar, ele tem o direito de falar. Se é grosseiro, não interessa, não se pode calá-lo dessa maneira. O funk está no centro da UPP porque a primeira ação que a polícia faz quando chega à favela é pegar tudo o que é caixa de som e sumir até com os microfones. Por que será? O funk é nosso veiculo de comunicação. Lá no Rio de Janeiro, temos o Wagner Montes. Eu acho que aqui em Brasília também deve ter, toda grande capital tem um apresentador sanguinário. O cara fala assim na televisão todos os dias na hora do almoço: “Faz ele falar! Faz um carinho nele!” Ele pagou tem uma opinião, ele tem um veículo, ele se ampara dentro de um direito. O moleque da favela também tem uma opinião, também tem um veículo, ele também tem o direito. Agora quem é que vai dizer se esse moleque tem esse direito ou não? De que maneira a gente faz o moleque entender isso? Se a UPP fosse boa, estava no Leblon, não estava dentro da Cidade de Deus. Aquilo não é um projeto de segurança pública. Aquilo é um projeto de cidade para os Jogos Olímpicos e ponto. Agora, quem está pagando este preço? O que estão pagando por isso? Quem é que vai falar? De que maneira vai falar? A mulher no programa da Liga perguntou para mim: “Você é contra a polícia?” Falei: “Não, eu sou contra a UPP”. Eu não posso ser contra a polícia, porque a sociedade precisa da polícia, mas tem que se discutir a polícia que a gente quer. “Ah, mas e a questão do Alemão?” A questão do Alemão é utópica. Eu não falo com soldado do Exército. O Exército em qualquer lugar que ele estiver já está errado. Ele não precisa dar tapa em ninguém, não. Quanto à polícia, eu tenho que me aproximar dela, porque preciso dela e preciso de uma polícia que me sirva e me proteja. É igual à namorada da gente. Se ela está do nosso lado, para servir, para proteger, tudo bem, mas se for para controlar e vigiar, a gente manda embora! Ninguém gosta de ser controlado, nem

homem, nem mulher. Tá com namorado do teu lado, ele está te servindo, está te protegendo, tu tá com ele. Agora ficar controlando, meu irmão? A gente tem um camarada no Rio de Janeiro chamado de Rodrigo Pimentel. Ele é porta voz da Globo para o que acontece. Ele foi contratado para explicar a UPP. No primeiro dia dele na televisão, um cara pergunta para ele: “O que é a UPP?”. Ele falou: “A UPP se divide em duas partes: primeiro, a imposição da paz, e segundo, o controle da paz”. Eu falei: Agora, ferrou! Como você impõe a paz? Seria mais ou menos assim: “Fica em paz aí, meu irmão, senão tu vai tomar um tiro. Melhor tu ficar quieto, meu irmão. Tá em paz, tá em paz!”. Não tem como dar certo, gente. Uma coisa que começa errado vai dar errado. Estão jogando policiais recém-formados para novas modalidades de venda de drogas. Eles mesmos falam que não têm como acabar com as drogas. Daí, argumentam que acabaram com as armas? Será? E a arma da polícia é de brinquedo? Continua todo mundo perambulando com os fuzis. Fuzil é apontado para quem mora dentro da favela, não é para aquele cara que vem querendo invadir a favela ou para o policial que está querendo invadir a favela. É para mim. O fuzil agora virou para mim! Favela é favela, aqui ou na África do Sul. Em qualquer favela que eu chegar, estarei em casa, meu irmão. Essa coisa de chamar policial de “meu chefe” tem que acabar. Polícia não é chefe de ninguém. Ele é um servidor público. Foi perguntado aqui o que a gente pode fazer, se a gente não poderia pegar todos os dados disponíveis e mobilizar a população. A pergunta era sobre formas de mobilização. Essa é a única coisa que muda. Pode fazer fórum, escrever livro, pode fazer música que não vai mexer com eles, não. A única maneira que a gente tem de incomodá-los é se mobilizando. Teve uma menina que uma vez falou assim: “Se minha mãe tivesse dinheiro, eu ia viver a vida toda estudando”. Eu falei: “Ah, é? Você vai ser o google com

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha 50 anos, prazer!”. Não adianta, vai se formar para quê? Você tem que se formar em alguma coisa e ajudar a sociedade dentro daquilo que ela precisa. É para isso que a gente se forma. Não adianta a gente se informar e ficar em casa reclamando do governo porque você tem informação. O que vale a informação se você não se mobiliza? O que vale mobilizar sem se informar? A sociedade não está preparada para tocar fogo num ônibus na rua, embora a mobilização um dia nos leve ao fechamento. Falaram aqui sobre a questão do auto de resistência, da associação ao tráfico, da associação ao crime. O que seria uma associação ao crime? Não está especificado, e não está porque associação ao crime só vale para pobre. Cachoeira foi pego e quem trabalha com ele respondeu? Quer dizer que Cachoeira faz tudo sozinho? Ele é como naquele comercial do Nextel: eu vim aqui, eu venci, eu sou isso, né? Associação ao crime é uma forma de aceleração da criminalização da pobreza e ponto. Não está especificado. O que será associação ao crime? Vender quentinha para o Nem? Alugar um barraco para o FB no Alemão? Não entendo isso. Não especifica por conta disso. Vou finalizar com a Resolução 013, que secretaria de Segurança Pública José Mariano Beltrame instituiu em 2007. Essa Resolução serve para qualquer evento esportivo, social ou cultural. É o documento que a UPP está usando para proibir os eventos de qualquer natureza dentro das favelas, embora ele tenha validade para toda a cidade. Em 2007, um pastor de igreja pediu um policiamento para um evento que havia na enseada de Botafogo, no aterro do Flamengo, e pediu policiamento para 30.000 fieis que iriam para o culto dele. Meio milhão de pessoas foram. Parou a cidade, pessoas perderam casamento, voos, enfim, foi o caos total. Aí a segurança pública lança mão da Resolução 013, uma portaria feita pelas secretarias, que não é lei

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porque não foram os deputados que votaram. Essa Resolução está valendo no Rio de Janeiro. Ela não pede nada além do que já era normal pedir: Juizado de Menor, se tiver menor; Corpo de Bombeiro, saída de emergência, etc. Só que tem um parágrafo único que diz que a autoridade policial pode ignorar qualquer item acima ou pode pedir qualquer outro item que ela ache que deva. Poxa, o cara vai chegar ali e vai pedir a tampinha de Coca-Cola premiada de 1982 e você tem que ter? Eles pedem coisas absurdas para o baile acontecer. Você vai cobrar uma acústica que custa dois milhões de reais para uma área dentro da Cidade de Deus? O cara não tem o que comer, não tem saúde, não educação, não tem nada, mas ele tem que dormir tranquilo! Ninguém está aqui querendo defender baile funk até 10 horas da manhã, mas o que custa uma vez por semana o baile durar das 11 da noite até 4 horas da manhã? Sobre o que tiver errado, a gente junta todos os órgãos para ver como se pode melhorar. Mas para eles o baile funk não tem problema, o baile funk é o problema, porque o moleque vai falar o que eles não querem que seja ouvido. É só por conta disso. Com essa Resolução, um PM faz um evento em lugar onde não tem alvará porque pode ignorar “qualquer item acima”. Ou seja, é a polícia quem manda no que pode e não pode acontecer no Rio de Janeiro. Só que pela Constituição, seria a Prefeitura através de seu alvará de funcionamento da casa. A polícia está passando por cima disso. A Resolução 013 não tem base legal. Ela cita um Decreto da Rosinha de 2006, só que o Decreto também não tem base legal, O decreto citado pela Rosinha tinha base legal, era a Lei de Censura do regime militar. A Resolução 013 é resíduo da Lei de Censura do regime militar, que está valendo no Rio de Janeiro. Nós do APAFUNK estamos na rua informando a população para tentar derrubar mais essa aí. Valeu, obrigado.

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Débora Maria da Silva Representante do Grupo Mães de Maio Boa tarde a todos e a todas. A gente tem acompanhado o que o Leonardo acabou de contar. A gente é parceira da rede contra violência no Rio de Janeiro. A rede é imbatível contra as UPPs. Nós sabemos que vocês estão vivendo uma ditadura muito mais do que continuada. Isso é inaceitável, é repudiável. A chacina de Acari foi a primeira chacina após a qual as mães enfrentaram o Estado. Está completando vinte anos. Estávamos preocupadas com a possibilidade de o crime prescrever, e o pessoal de Acari falou: “Vamos fazer um evento na Baixada Santista?”. Falei: Não! Vamos fazer o evento no Rio! Vai prescrever e eles não vão mais admitir. Nós mobilizamos, paramos a Linha Vermelha e a Linha Amarela e conseguimos um atestado de óbitos dos corpos que não apareceram. Acho que a mobilização é fundamental. Essa é a bandeira das Mães de Maio e tem que ser uma bandeira de todos nós, negros e negras, que estamos vendo o sangue de nossos filhos, o sangue dos nossos irmãos, sendo escorrido pelas vielas da favela, das periferias, para onde o Estado empurra a maioria pobre e negra da nossa sociedade. Eu venho do estado de São Paulo. Eu venho trazendo o rastro de seis pessoas exterminadas na noite de ontem na rede do extremo sul, que é o extremo da pobreza. Está tendo uma prática muito corriqueira de milicianos, importados do Rio para lá. Enquanto as mães ficavam falando de “grupo de extermínio”, a gente estava deixando o Estado muito acomodado. Nós vamos nos articular porque as mães têm autonomia de gritar e ficar na frente dos fuzis, se tiver que ficar. As mães não têm medo, não têm do que temer. O Estado pode ser um gigante, mas as mães são muito mais. Nós temos que ir para cima dele.

E foi o que aconteceu no estado de São Paulo. A gente provocou uma audiência pública que vai ser realizada amanhã. Temos visto o Estado matar os MCs na tentativa de calar a voz da periferia. O funk não é um modismo, mas uma necessidade periférica. Temos que aceitar isso e cair para cima. O povo não tem noção do poder que ele tem. Mas não é nas quatro paredes, é na rua. Vamos para a rua. O poder está na rua. Quando a gente tem o poder de tirar o presidente, a gente tem qualquer poder para fazer um movimento organizado, para não virar criminalização, que é o que eles querem. Eles vêm, criminalizam, atiram bala de borracha, spray de pimenta, mas se nós fizermos um movimento organizado, tenho certeza de que conseguiremos coloca-los debaixo do braço para eles virem junto com a gente. Em São Paulo, fazemos movimento gritando “Chega de chacina, polícia assassina”, e eles vão dando cobertura para as mães, abrindo ala. Tem que ir porque um movimento pequeno já faz barulho. Não precisamos de quantidade, queremos qualidade. Nós tentamos acordar essas mães que vivem no sofá chorando. Nós falamos para elas: “Não importa o que teu filho é, mas importa que não existe pena de morte no Brasil”. Nos crimes de maio de 2006, num espaço de uma semana, foram cerca de 600 mortes. Se vocês colocarem 600 caixões ou 600 cruzes no chão, vocês vão ver o tamanho da carnificina que foi feita em maio de 2006 no estado de São Paulo. A Baixada Santista foi a mais atingida, mas as Mães de Maio não conseguiram resultado no estado todo porque a gente não sabia onde estavam enterrados todos os corpos. Mas conseguimos preservar os corpos dos nossos filhos em Santos. Nós pleiteamos a federalização dos crimes de maio para poder chegar aos algozes. No ano passado, o Estado me indenizou, reconheceu que matou meu filho, mas eu quero que seja assim para todos. Todos eles eram meus filhos, não era um só. Se

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eles acharam que para desmobilizar o movimento, era só dar indenização para a coordenadora, enganaramse. Eu consegui exumar o corpo do meu filho há quinze dias. Quando um promotor pede o arquivamento de um inquérito num caso que ainda há um projétil no corpo de uma vítima, é uma pura omissão. E eu falei que tinha um projétil do corpo do meu filho e ninguém ia mexer naquela sepultura e não mexeram. Era para o corpo ser retirado com cinco anos, que foi no ano passado, mas não mexeram. Nós ganhamos na justiça. Quando nós não conseguimos com o prefeito, que estava demorando a responder, nós fomos à justiça porque alguém tinha que dar um jeito! O projeto de governo apresentado pela nossa companheira é muito bonito, mas nós corremos primeiro do que o projeto do governo. Nós queremos o fim do registro de morte seguida de resistência, porque esse é o caminho da prática de extermínio nas periferias. Nós queremos o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, queremos a desmilitarização da polícia. Aí nós vamos ter uma política de segurança pública para todos, não só para a burguesia. Do contrário, não adianta fazer movimentos para paz, não adianta fazer movimento para negro vivo! Negro quer viver! Esse é o verdadeiro movimento! Ninguém tem segurança. Ninguém tem direito de ir e vir. Isso nos foi roubado. Então, temos que gritar. Não é como o governo quer. Temos que debater como nós queremos. Isso é o poder popular. Nós é pagamos o governo. Nós somos os patrões e nós exigimos isso. Nós somos as mães de Maio, nós somos exigentes e nós queremos o fim do registro de resistência seguida de morte. Tem gente que critica, dizendo que assim nós não vamos saber dos homicídios da polícia. Vamos sim, porque a resistência seguida de morte é uma prática abusiva para matar, para arquivar sem ser investigado. A vítima fica como culpada e os assassinos como vítimas. Não aceitamos mais isso. Vocês não têm noção do quanto

a Rota de São Paulo matou. A gente não aceita isso. A Ouvidoria da polícia me deu uns dados na semana passada, mas esses dados são falsos, fictícios, porque, quando tem homicídio/chacina de quatro ou cinco pessoas, eles colocam uma vítima. Esses números são mentirosos. Por isso que não trago dados. Se eu trouxer dados, estarei compartilhando com a mentira. O negro quer viver e a maioria que está sendo assassinada é negra. Quando aconteceram os crimes de maio, a polícia foi muito bem aplaudida pelo Ministério Público da capital. Aplaudir a eficiência da polícia matando nossos filhos, não é por aí. Mas eles resolveram repetir a dose em 2010, e o governo do Estado de São Paulo não consegue comandar mais. De 2006 para cá, a matança foi insuportável. Cada filho que cai é como se fosse o meu. Vocês podem acreditar, nós sofremos. Eu estava conversando com as meninas lá fora sobre o fato de que não se discutem políticas para as mulheres. Essas mães são vítimas direta e indireta da instituição policial. A retirada brutal de um filho do seio de sua família é uma grande violência contra a mulher. Não se faz um acompanhamento disso. Nós exigimos da Presidência da República uma Comissão da Memória e da Verdade para investigar crimes cometidos por agentes do Estado. Nós protocolamos o pedido hoje, porque nós somos vítimas de uma ditadura continuada, porque ela nunca acabou. Se tivesse acabado, eles teriam avisado para a polícia e não avisaram. Então a polícia está por aí deitando e rolando, e não é só no estado de São Paulo, é no país inteiro. Em Salvador, por exemplo, os policiais fazem greve e se matam mais de 200 pessoas numa greve. Depois todo mundo foi achar ruim porque o bombeiro foi preso no Rio de Janeiro. Ele nem devia ter saído. Ele foi preso, mas saiu, nem devia ter saído, porque você imagina no Rio de Janeiro quantas pessoas não iam morrer? Eu apoio o bombeiro desmilitarizado, porque há bombeiros atuando nas milícias do Rio de Janeiro.

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A gente tem viajado no país inteiro. Fomos ao Espírito Santo. Lá é uma coisa macabra. Além de matar, eles queimam os corpos. Quando desci no aeroporto, a gente já sente cheiro de carne humana queimada! É uma coisa macabra o genocídio da nossa juventude pobre e negra no país inteiro. Mas por quê? O governo estadual tem que ter toda essa autonomia? Não tem. São crimes que lesam a humanidade. O governo federal tem que fazer intervenção, sim. Ele não fez intervenção no Rio de Janeiro, colocando o Exército no Complexo do Alemão para poder ver quando as pessoas a hora que saem, para controlar tudo? Eu fui ao Pavão-Pavãozinho para ver a situação do povo de lá. O governo federal tem que discutir essa questão da autonomia dos estados. Obrigada.

Daniela Luciana da Silva Eu quero agradecer a presença de todos vocês, palestrantes maravilhosos. A Débora é uma inspiração, uma pessoa que sofreu uma perda tão grande e transformou essa perda em ação. Como ela falou, vamos sair das quatro paredes e vamos para a rua ou outros espaços onde a gente possa fazer algo, no mínimo, parecido com o que a Débora faz, que inspira a ter realizações concretas. Estou feliz de ter estado na sua mesa, agradeço aos outros também, mas mãe é comigo mesma. Eu me solidarizo com você porque também sou mãe. Espero que todos que queiram ser mães sejam mães um dia, pais também, e que não sofram uma coisa dessas e façam coisas boas com essa maternidade/paternidade.

Intervenções do Público Thanísia Marcella Boa tarde gente. Meu nome é Thanísia Marcella. Sou estudante de Letras-Francês da UnB, não tenho ligação

com nenhum movimento. Nasci, cresci e moro na Ceilândia. Nunca tinha me tocado a respeito desse assunto, mas aconteceu comigo no domingo. Perdi um primo na Ceilândia. Chegaram num bar no domingo à noite, havia muitos veículos passando e foi um crime perfeito. Já sabiam que queriam essas pessoas para matar. Domingo na Ceilândia foi um terror, tiros para todos os lados. Meu primo morreu, foi uma fatalidade, mas a vida continua. Eu vim aqui hoje justamente para colher informações e para saber como agir para que isso não aconteça. Nossos homens estão morrendo, as jovens estão falando isso. Meu primo morreu com vinte anos e deixou um filho de quatro meses. Meu primo era um jovem em situação de exposição à violência. Inocente ele não era, mas era uma vida. Tem a questão de como a mídia lida com isso. Tem uma pessoa que está engasgada na minha garganta que é o Fred Linhares, que fala muita barbaridade. As pessoas de quem ele fala na TV têm família. Ele deveria ter um respeito maior. A Fernanda falou sobre o projeto de Plano. Eu pediria que fosse implantado rápido, porque o tempo está passando. Não foi somente meu primo, houve outros amigos dele, tem um hospitalizado, outros fugiram, e assim está andando. Eu moro na Ceilândia, para gente que mora lá, é diferente para uma pessoa que não mora. A gente arrumou um jeito para lidar com essa situação. Quem não mora lá, não tem contato e não sabe talvez nos julgar. O inquérito ainda não acabou, mas, pela perfeição do crime, acho que podem ter sido policiais, mas não podemos falar porque nada foi dito. Obrigada.

Ana Marques Boa tarde a todas e a todos. Eu me chamo Ana Marques, sou professora de História da Secretaria de Educação, estou como Coordenadora em Educação em Diversidade da Secretaria. Eu quero fazer uma pergunta específica para a Fernanda, da Secretaria Nacional de Juventude. O Distrito Federal está entre os cinco estados brasileiros onde mais morrem jovens negros por homicídio e os

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dados são alarmantes. A própria Secretaria de Educação, diante desses dados, está planejando ações. A gente vai lançar um Plano de Convivência em 152 escolas da rede, onde há maior incidência de violência. A gente acredita que é por meio da educação, por meio da convivência, que a gente vai conseguir melhorar esse índice. Você falou em 132 municípios. Só vão atender esses 132 municípios? Como está para que os estados também possam aderir a esse programa? Quais são as ações que vocês estão pensando, inclusive para esses cinco estados que se apresentam os maiores incidência de violência contra a juventude negra? Obrigada.

Janderson Boa tarde. Sou do Levante Popular da Juventude. Começo relembrando o Gato Preto do Rap dizendo assim: “Ontem foi a cavalo e hoje vai de quatro rodas. Ontem foi capitão do mato e hoje é da polícia militar”. Nós vivemos hoje o que foi a escravidão lá atrás. Para debater esse tema, nos temos que ir à raiz do problema, ao processo de escravidão em nosso país. Como foi colocado aqui pela manhã, estamos falando dos descentes dos africanos escravizados e de pessoas que também sofreram tortura. Quero trazer três momentos: primeiro foram os escravos que apanhavam e que eram torturados; depois veio a ditadura militar, hoje em dia é o genocídio da juventude negra que é resquício desses modelos passados. Portanto, se hoje nós vivemos livres, pelo menos é o que se diz, temos as nossas raízes de libertação em Zumbi, e Palmares temos como horizonte. Temos que fazer igual a Zumbi, igual a Palmares. Temos que resistir e dizer liberdade, com o povo organizado na rua, fazendo ocupações, fazendo marchas, gritando: “Que negócio é esse? Que tortura é essa? O que é isso?” E aí só o programa de governo, só o programa da Secretaria da Juventude, da SEPPIR, não resolve. Temos que ter o povo organizado na rua. Nesse sentido, o Levante Popular da Juventude, a organização de movimento social do qual

eu faço parte, vai para a rua esse ano para falar e lutar contra o extermínio da juventude negra, chamando a sociedade civil organizada para esse processo de luta. Levante Popular da Juventude é a organização que fez os escrachos para punir os torturadores da ditadura militar, e agora não vamos fugir dos torturadores, porque eles estão vivendo no nosso meio e continuam torturando o nosso povo. Então, é necessário colocar o povo na rua.

Marjorie Boa tarde, meu nome é Marjorie, sou Doutoranda em Política Social da UnB. Eu queria fazer uma pergunta para a Fernanda e para a Eneida. Ontem já houve uma mesa sobre a saúde integral da população negra. Já que esta mesa está tratando do genocídio da juventude negra, o que o Ministério da Saúde e a Secretaria Nacional de Juventude têm proposto em termos de políticas para a questão da mortalidade materna das jovens negras atendidas pelo SUS e vítimas do racismo institucional?

Aline Boa tarde a todos e a todas. Eu vou fazer uma pergunta à mesa, mas antes gostaria de também parabenizar o evento. Sou do Fórum da Juventude Negra do DF. A minha pergunta diz respeito à juventude quilombola. Como vocês estão tentando também fazer essa abordagem de prevenção à mortalidade da juventude negra e quilombola? Que dados vocês têm a respeito?

Vinícius Dias Boa tarde a todos. Meu nome é Vinicius Dias, trabalho na CUFA/DF, no projeto de Jovens de Expressão em Ceilândia. Queria fazer um pergunta para MC Leonardo. Sou carioca, sou de Santa Cruz, comunidade Cesarão, estou há um ano e meio em Brasília e quando saí de lá eu percebi que as UPPs estavam localizadas

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha em pontos estratégicos de passagem para pessoas importantes da Copa e esses eventos que o Rio está hospedando. O que acontecia lá na minha comunidade de Santa Cruz? O tráfico estava indo para lá. Lugares como Angra dos Reis e Mangaratiba, que não tinham um tráfico pesado, estavam começando a ter. É uma percepção minha. Eu queria saber de você que está lá se isso continua ou se isso é uma artimanha do governo para retirar aquele tráfico mais pesado, mais visível de algumas rotas onde vão passar pessoas, ministros, e jogar esse tráfico pesado lá para onde não tem muita visibilidade? Parabéns pelo excelente evento.

Deise Benedito Boa tarde a todas e todos. Eu quero mais uma vez cumprimentar essas jovens pelo desafio de fazer esta atividade. Sou Deise Benedito, eu trabalho na Secretaria de Direitos Humanos, no Departamento de Defesa. Quero dar uma notícia a todos e a você Débora. Já está no Congresso Nacional o Projeto de Lei, em que nós da Secretaria também atuamos, pedindo o fim dos autos de resistência. Entendemos que quem pratica crime não pode ser investigado por quem praticou crime. É uma discussão difícil. Ainda têm outros processos, mas é bom que vocês todos saibam do empenho da Secretaria de Direitos Humanos nesse caso, até porque nós sabemos das dificuldades que vive o jovem negro. Outro detalhe, a minha preocupação com as jovens viúvas negras, quando perdem seus companheiros mortos pela brutalidade da polícia e são obrigadas a criar seus filhos sozinhas. Eu não sei em que medida essas jovens poderiam ser amparadas por meio de uma indenização. Não é fácil ser uma mulher jovem viúva sem condições de educar seus filhos. Estamos em tratativas com a Secretaria de Diretos Humanos numa ação, podemos atuar onde está o maior índice de extermínios de jovens negros. Estamos implantando o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAM). Estamos em tratativas de ver a possibilidade de ampliação disso para outros jovens. Quando falamos em jovens que são mortos pela polícia, não podemos nos esquecer dos jovens oriundos do sistema prisional. Infelizmente, os relatórios não apresentam dados sobre esses jovens, sobre o número dos jovens oriundos do sistema da FEBEM e da Fundação Casa, não apresentam o número de jovens que são gays,

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não apresentam o número de jovens que são mortos pela intolerância religiosa. Então, a gente tem um leque muito grande dessas causas mortis. Hoje vimos pela manhã o número de mortos em São Paulo. Você fala de milícia, eu falo de esquadrão da morte, falo do pé de pato, falo dos manos, Scuderie Le Cocq, que eram grupos de extermínio das décadas de 1960, 1970 e 1980. Com o crescimento do narcotráfico, esse tipo de grupo adentrou aos anos 1990. É muito difícil hoje definir quem é bandido e quem é vagabundo. Quem tem que nos proteger comete muitos mais crimes, usando uma farda. A questão então é muito mais grave e séria. Quando falamos da questão da segurança pública, eu me lembra daquela atividade da SEPPIR, que foi o primeiro encontro que uniu policiais militares de todo o Brasil, das escolas e academias de polícia, no qual se tirou um grupo para discutir a nova grade curricular. Essa discussão é fundamental porque aí se constroem os estereótipos daqueles que são os elementos suspeitos, e essa construção vem desde a escravidão. Como eu defino que aquele jovem é um elemento suspeito ou de alta periculosidade? Nós temos que desconstruir essa política eugenista, racializada, lombrosiana que ainda está dentro das academias de polícia. Características físicas como preto, alto, nariz largo, orelha grande ainda estão fortemente arraigadas dentro da construção da segurança pública nesse país. Acho que a sociedade civil tem um papel fundamental nisso.

GOG Boa tarde a todas e a todos. Sou GOG, cantor de Rap, morador de Brasília, nascido e criado aqui no DF. Sou do Guará das ruas de terra, então posso dizer que sou resistência na cidade. O que me emociona principalmente na Débora é somos parceiros de primeira linha. Nós sabemos pelas andanças pelo país que Brasília é uma ilha da fantasia. O

Brasil são vários Brasis e o Brasil que sofre não é ouvido. Não sei se todos sabem, se tiveram acesso a isso, mas as polícias militares surgem na monarquia como brigadas militares para proteger a corte. Com o tempo as brigadas militares se estenderam do Rio de Janeiro, passaram a compor a função de proteger o patrimônio ameaçado na época dos senhores. E de toda a gramatura da patente ela oscila, mas o pensamento é o mesmo. Sempre pergunto às pessoas: será que existe o bom policial? Na estrutura, polícia + ser humano = policial. Quando há essa interação da polícia (instituição) com o ser humano, é impossível sair um bom policial, porque a polícia foi criada para proteger o patrimônio, não o ser humano. Roubos a bancos são registrados e contabilizados, são resolvidos com a máxima urgência e eficiência possível. Crimes contra a vida, principalmente contra negros e negras, caem no anonimato. Os autos de resistência que nos digam. A gente tem também essa discussão, que agora passa para o campo institucional, no sentido do que a gente fala da Comissão da Verdade no Brasil, dos direitos, da tortura. Se você for fazer o levantamento dos homicídios catalogados durante a ditadura militar, foram algo como quatro mil homicídios. Se alguém tiver um número maior, me corrija. Essa é uma matemática que atinge a juventude negra, a juventude periférica a cada seis meses. Até que ponto o Estado quer discutir? Até que ponto esse Estado realmente releva isso? Até que ponto a profundidade do racismo institucional é questionada? Até que ponto estamos sendo manipulados em conselhos? Até que ponto a esquerda teceu o esquerdismo no Brasil? Até que ponto nós estamos falando mais baixo e obedecendo muito mais e seguindo as leis quartelescas? Até que ponto que o movimento social desempenha seu papel? Até que ponto nós não teríamos que pensar sobre as ONGs que vão até a localidade, mas não andam nas esquinas? As universidades têm a extensão, mas não têm a intenção. Então que Brasil é esse? É esse Brasil que precisamos discutir como protagonistas. É esse

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Brasil que Makota Valdina falou agora cedo que a gente precisa revisar e buscar nós mesmos as soluções que estamos procurando nos outros. Então, a estratégia do movimento articulado no Brasil tem que pensar em voltar mais para nossos problemas e perceber que as armadilhas são muito grandes. O opressor mudou sua forma de pensar. Sintam o cheiro de enxofre deles no ar, travestidos, misturados em meio a multidão. Discursos progressistas, reacionários de plantão. O âncora se afunda no intervalo. Comentário, o lixeiro é o mais baixo da escala do trabalho. Filha da Folha, Barbara Garcia a escolha. O gueto vive a rua e você na sua bolha. Zottolo gritou para o mundo inteiro ouvir: “o Brasil não pode ser igual ao Piauí e tanto faz parar de existir”. Então, essas provocações que todo dia nós achamos que são normais e que são simplesmente divergências mostram um estado racista, no sentido de sua conivência, e mostram um movimento praticamente calado pela diferença entre esquerda e esquerdismo. Makota falou na víscera no sentido que “eu não tenho rabo preso”. Então a qual senhor tu serves, em qual caminhada você está? É preciso de nós o reconhecimento de seguir em frente e sempre de frente, como diz Hamilton Borges, com meu cruzado de direita. Percebam que essa situação não é mais de remédio para dor de cabeça, é situação de UTI. O tratamento tem que ser profundo, na estrutura. Esse país não nos ama, não nos respeita. A nossa Lei n. 10.639 não é essa lei que estão colocando, são as letras de Rap, são os livros de literatura divergente, são o Sarau Bem Black e a Cooperifa. Amanhã é uma prova para nós, hoje é uma prova quando o Ilê está aqui, quando Paula Lima está. Nós temos que estar presentes. Aí sim nós vamos trabalhar nas estatísticas deles com outra realidade, não como números de machucados, de maculados, de derrubados, mas como pessoas que estão lá, apoiando uma força. Não existe discussão que seja efetiva nesse campo sem força política. Nós chegamos num limite. Nós por nós. Não adianta tomar CocaCola nos intervalos e ficar aqui falando que o Brasil

sofre pela intervenção de vários e várias. É preciso ser de verdade, é preciso buscar, caminhar. Acho que o extermínio da juventude de negros e negras ocorre de várias formas. Essa morte mental é o que possibilita os outros autos dos quais somos vítimas. Você vai numa quebrada daqui, volta em seis meses, aquele cara que era o melhor para falar, para intervir, caiu, os homens levaram.

Fernanda Papa A gente fica na Secretaria Nacional de Juventude discutindo. Queremos uma primavera jovem negra. A gente quer ver a galera lá fora, que quem está do lado de cá do governo não tenha mais saída e tenha que fazer muito mais do que nesses 500 anos não foi feito. Agradeço a energia e o fortalecimento do compromisso para a gente seguir nessa construção. Eu também fico bastante emocionada com esse momento. A ideia era o Plano já estar na rua, mas, por causa do momento eleitoral, a gente ganhou um tempinho para melhor produzir a campanha de mobilização, de publicidade e criar os instrumentos para poder apoiar as organizações da sociedade nas suas atividades, nas suas mobilizações. Novembro é o mês da consciência negra e a ideia é trazer isso para a rua, sensibilizando os governadores. Os governos dos estados participam do Plano. São 132 municípios onde as pessoas vivem, mas os governos dos estados também participam. O DF não esta incluído. Vários municípios do entorno do DF estão entre os 132 mais violentos. O compromisso que o governo federal está construindo com os governos estaduais e municipais é a exigência de um plano local, seja estadual ou municipal, de enfrentamento à violência contra a juventude negra. Esses planos têm que ter metas, têm que partir de diagnósticos feitos com a comunidade, feito com os interlocutores do movimento social, a partir dos dados da Saúde. A necessidade de melhorar dados, de melhorar o diagnóstico, isso vai ser

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cobrado para que as ações possam chegar às localidades, chegar ao sistema de saúde e ao sistema de educação. Estão previstas várias videoconferências e atividades presenciais para a formação de professores, de gestores e gestoras do sistema de ensino com relação à discussão do racismo institucional, da condição do juvenil, da escola que precisa dialogar com a linguagem da pessoa jovem e não discriminar, não expulsar o jovem negro ou a jovem negra que não se vê identificada e acolhida. O Hip Hop tem sido um parceiro. Importa trazer o Rap para a escola, para a linguagem escolar. Há uma série de coisas previstas nesse sentido. O Ministério da Justiça tem ajudado ao promover conversas entre os policiais, identificar aqueles que a gente vai puxar para começar um trabalho diferenciado que até agora não existe. Quanto à provocação para a corporação policial, além da questão do auto de resistência, das abordagens policiais, vocês trouxeram temas que hoje não estão colocados no Plano. Eu acho que a oportunidade é essa, é ser provocado, levar coisas que vocês vivem no cotidiano e denunciam e que até agora não estão na esfera das preocupações do poder público. Sobre as mulheres jovens no sistema de saúde, não dá para falar de mulher de forma geral, sem olhar a cor e a idade dessas mulheres e de onde elas vêm. O Plano está focado nas áreas urbanas. A gente sabe que existem quilombos urbanos, mas a juventude quilombola rural ainda não é o foco das ações do Plano. A Comissão dos Jornalistas pela Igualdade Racial (COJIRA) é um parceiro fundamental. Nossa Assessoria de Imprensa já tem um plano de comunicação para essa iniciativa e faremos o que for possível para ajudar a inserir a opinião negra e não negra, mas antirracista, nesse debate. A gente está mapeando todos os meios de comunicação para fazer que esse debate reverbere mais. A gente sabe que só o que o governo faz não funciona. Temos que fazer aumentar a onda por fora. Esse é o momento de aumentar essa denúncia e tentar outros canais, porque a mídia nos boicota.

Débora Maria Eu falo de dentro da minha alma, porque quando a gente vê uma pessoa fazendo uma declaração de uma perda, eu vejo o meu filho, eu vejo a dor que sinto. A dor da perda é uma dor irreparável. Imagine uma mãe que não tem nome, mas vê, a cada dia, o numeral só crescendo, crescendo, crescendo. Muitas Mães de Maio acabam sendo mães do ano inteiro, vendo seus filhos sendo exterminados. A gente tem que discutir muito, aprofundar muito, porque o seu primo tem uma mãe e a dor dela é insuportável, que não tem remédio que cure. O caminho é a luta para uma transformação, porque a transformação está dentro de nós. A mídia não nos manipula, a mídia denominou junto com o governo de São Paulo que os crimes de maio eram os crimes do PCC. Opa, o PCC não matou nossos filhos. Foi retaliação da polícia. A gente tem que puxar a discussão, problematizar a situação, a gente vai encontrar um monte de barreira, mas...

Alane Reis Acho que todos os pretos afro-centrais de Brasília estão nessa plateia aqui agora. Debater racismo é extremamente importante, e esse tema Genocídio da Juventude Negra é de fato a urgência, é o que mais dói, é a nossa ferida aberta, a nossa ferida que vem sendo cutucada diariamente. A juventude negra precisa viver. Os jovens negros entre 14 e 29 anos têm que deixar de serem as vítimas preferenciais do Estado. A juventude negra precisa viver. Uma coisa que GOG se esqueceu de dizer sobre quando a polícia foi criada foi que ela surgiu também na intenção de reprimir Quilombos. E é isso que vem fazendo até hoje no Quilombo Rio dos Macacos, na Marambaia, em Alcântara e em todas as periferias e quilombos urbanos espalhados pelo Brasil. A população brasileira dorme e acorda indignada, come indignada, se diverte indignada, mas existe uma inércia que nos impede de melhorar. Só que essa melhora só

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha vem com a luta. O governo não vai fazer pela gente. Pode acreditar. É isso, valeu. Eneida Paiva Sobre a mobilização da comunidade junto aos núcleos de prevenção de violência, que às vezes estão ligados à vigilância epidemiológica nos municípios, às vezes estão ligados à saúde da mulher... A estrutura da Secretaria de Saúde deve fazer a proposta de um projeto de prevenção que contemple essa juventude Quilombola ou a juventude negra de um modo geral para que seu município possa realizar esse projeto de prevenção nessa área de violência. No mais, é agradecer a todos e parabenizar pela qualidade das intervenções da plateia. MC Leonardo Uma vez me falaram que os moleques da favela querem dinheiro, sexo e poder. Eu perguntei: E no Senado, os caras querem o quê? E na polícia? E o jovem que entra na polícia, ele é universitário? Ele é branco? A maioria não. Ele tem baixa escolaridade? Sim. Mesmo se tiver uma alta escolaridade, ele não tem uma boa formação. Quando morre um policial, morre um negro no país que foi ludibriado na corrida do ouro, onde está todo mundo a fim do melhor tênis, da melhor marca, do melhor tudo, do mesmo jeito que o moleque que porta o fuzil para ganhar mil reais por mês. Está feio o negócio. É um tipo de modalidade de crime que não dá mais dinheiro. A polícia deixou de ganhar propina. Hoje em dia ela é sócia majoritária de todas as

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bocas de fumo de qualquer lugar. O rapaz perguntou se eu acho que o tráfico migrou. O que migra são algumas pessoas que estão com mandado de prisão e que não podem ficar em determinados lugares. Agora, o tráfico jamais saiu. O tráfico continua em todos os lugares em que a polícia chegou. Modifica a maneira, mas o tráfico está ali. Aí ele falou sobre a estratégia... A UPP foi criada em volta do Maracanã e no corredor hoteleiro. As áreas onde têm favelas perto dos grandes hotéis cinco estrelas estão todas com a polícia lá para conter o pobre, não para dar segurança a ninguém. Essa repressão ligada aos dois grandes mega eventos está acontecendo de uma maneira muito acelerada e muito covarde mesmo. Quem diz “Ah, depois que sair da Rocinha, podia fazer uma UPP lá em Brasília” não sabe o que está falando. É a inocência, porque não tem conhecimento. O Exército não tem que estar em lugar nenhum. O Exército tem que estar fazendo um trabalho de fronteira ou sei lá o quê. Na porta da minha casa, eu não quero, não. Então, parabéns a quem organizou isso aqui. Podem me chamar que eu venho qualquer hora para esse tipo de coisa.

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Novas Perspectivas para a Militância Feminista e os Rumos do Feminismo Negro na América Latina Mesa 07 Larissa Borges – Mediadora

Jaqueline Lima Santos

Integrante dos grupos de rap Negras Ativas e Atitude de Mulher, do coletivo Hip Hop Chama e Assessora da Coordenadoria da Juventude da Prefeitura de Belo Horizonte

Pesquisadora com recorte geracional, racial e de gênero

Boa tarde a todas e a todos. Peço a licença e a benção dos ancestrais e das ancestrais para começarmos. Peço também a licença e a benção dos nossos contemporâneos e contemporâneas, dos mais novos, das mais novas para que possamos começar essa roda. Que essa mesa seja uma roda de conversas, um espaço de partilha sobre essa história que nós vimos construindo de feminismo negro na América Latina. Para começar, eu gostaria de falar um verso da organização Negra Ativas, uma organização feminista negra e também um grupo de Rap do qual eu faço parte. A nossa primeira música fala o seguinte: “O nosso feminismo se inspira nas guerreiras africanas / Mães, avós, bisavós, tataravós / Negra Dandara, Lélia Gonzáles, Luiza Mahin, / Guerreiras que lutaram por mim. / O racismo e o marxismo é demais / queremos estar ao lado e não atrás. / Nossas diferenças devem servir de força, não de empecilho / nós vamos calar a boca, exigimos / respeito dentro dos nossos direitos”. Então com essa inspiração poética, vamos começar a nossa roda de conversas, cuja ideia é discutir um pouco sobre essa história de feminismo negro e sobre que perspectivas podemos construir daqui para frente. O que tem acontecido no feminismo negro na América Latina? Quais são as organizações? Quais são as ações que têm sido desenvolvidas? Nessa roda maravilhosa, nós temos mulheres guerreiras, ativistas, rainhas que estão fazendo essa história acontecer.

Eu trabalho no Programa Diversidade, Raça e Participação da Ação Educativa, que é uma ONG que fica em São Paulo e sou pesquisadora não residente do Instituto Du Bois, que é um Instituto para Estudos Africanos e Afro-Americanos da Universidade de Harvard. Antes de começar a falar sobre essas novas perspectivas e o que eu penso sobre isso, eu queria pedir licença para a Sueli Carneiro, porque é quem tanto me inspirou nessa discussão. O primeiro texto sobre feminismo negro que eu li foi “Enegrecendo o Feminismo”, da Sueli Carneiro, num fanzine produzido pelo pessoal do Hip Hop. Então, foi ela quem me inspirou inicialmente. Sobre o tema desse ano, juventude negra, é importante lembrar que há tempos que esse seguimento vem se organizando, se colocando como protagonista de si próprio e discutindo e propondo sobre a realidade. Eu, por exemplo, em 2005-2006, participei da mobilização para o Encontro Nacional de Juventude Negra. A mobilização para o encontro envolveu 22 estados brasileiros, e no Encontro Nacional, propriamente, que aconteceu em Lauro de Freitas, Bahia, estiveram presentes 19 estados. É importante lembrar que nesse encontro a gente tirou um documento nacional da juventude negra com mais de 700 propostas para o Estado e para a sociedade civil, a fim de melhorar as nossas condições de vida e a nossa atuação política. Essas 700 propostas foram filtradas nos encontros estaduais e regionais, até chegarem ao nacional.

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O que a gente buscava nesse Encontro Nacional de Juventude Negra? A gente buscava novas perspectivas para a militância étnico-racial, porque a juventude revoltada com os vícios do movimento negro queria construir novas perspectivas, mas até hoje eu pergunto quais foram as novas perspectivas que a gente construiu nesse processo. Foi um processo importante, mas quais foram as novas perspectivas, por quê? Porque na busca das novas perspectivas, nós acabávamos deixando de lado alguns pontos importantes da história. A agonia era tanta para sermos protagonistas das nossas próprias histórias, que as novas perspectivas que buscávamos entravam em conflito com as gerações que nos antecederam. E acabávamos deixando de olhar para trás e aprender com o que deu certo e até mesmo com os erros da história. Na semana passada, eu estive em um encontro em Salvador no qual eu tive o prazer de ver Vera Benedito falando e Edson Cardoso. Eles falavam que há uma coisa que separa a nossa geração da geração deles, que é a questão da formação; e de a gente valorizar e trazer aquilo que foi produzido por eles. Eu acho que é uma autocrítica a ser feita pela nossa geração. Então, se é para falar de novas perspectivas, eu, como aprendiz, vou voltar na história exatamente porque eu acredito que essas novas perspectivas devem ter como referência o que o nosso povo tem produzido. E minhas novas perspectivas se pautam nas velhas, porém bem atuais ideias de Lélia Gonzalez sobre o feminismo afrolatino-americano. Volto à Lélia exatamente porque a maior parte da minha geração ainda não conhece de fato o trabalho dela. Muito de nós exaltamos o nome dela, mas não nos debruçamos sobre suas contribuições, que podem ser fundamentais para a construção dessa nova perspectiva. A militância também é estudo, a meu ver, e as novas perspectivas têm também que se valer das produções de

intelectuais e ativistas negros e negras. Senão fizermos isso, vamos continuar tendo dificuldades de discutir o aspecto estruturante do racismo e do sexismo na nossa sociedade. Nesse mês nós completamos dezoito anos sem Lélia Gonzalez, uma mulher negra intelectual que se tornou referência na luta negra em nível internacional. Avançou no debate teórico sobre a situação da população negra no Brasil, tratando cuidadosamente das mulheres negras. Seus textos não se reduzem somente a um elemento da vida dessas mulheres, mas Lélia tentou durante toda a sua militância acadêmica e nos movimentos sociais sensibilizar a sociedade brasileira de que raça e gênero atuam no nosso imaginário como operadores ideológicos que nos dividem hierarquicamente de uma maneira racializada e sexualizada. Lélia não se identificava com o modelo então vigente da produção acadêmica e preferia se apropriar do conhecimento e fazer a sua militância nas ruas, integrando o movimento negro e as articulações de formação e intervenção social desse seguimento. Suas produções concentram-se em palestrantes, seminários, textos e panfletos que contribuíram para a formação mais cidadã sobre as temáticas de raça, classe e gênero. A luta das mulheres negras na América Latina inicia-se com a travessia forçada pelo Atlântico, a partir do que o contato com o colonizador é marcado pela violência física, simbólica e moral, ao mesmo tempo em que se estabelecem a resistência e a criação de alternativas de sobrevivência por elas no Novo Mundo. A América Latina colonizada majoritariamente por Portugal e Espanha foi marcada pela construção de relações hierárquicas que privilegiaram o homem, o branco, o europeu e seus descendentes. Esses dois países antes da colonização do Novo Mundo tiveram experiências baseadas em guerras raciais, onde ideologias de classificação social, seja sexual ou racial, foram utilizadas para pensar as

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estruturas hierárquicas de suas sociedades, e que foram importadas para suas colônias nas Américas. A posição das mulheres negras e indígenas nesse continente foi construída a partir de operadores ideológicos comuns, raça e gênero. Em virtude dessa posição social, foram as que mais sofreram a discriminação e a desigualdade e ainda são. A experiência da colonização deixou como desafio para mulheres negras na América Latina, além da luta pelas condições básicas de vida, a necessidade de reconstruírem suas identidades, que foram atingidas pelo estereótipo de inferiorização diante do colonizador branco europeu. Antes do movimento de organizar-se como mulher negra, existe um movimento de reconhecer-se como mulher negra e poder assim refletir sobre sua condição diante das relações sociais. Esse movimento de reconhecimento é marcado antes por uma experiência de violência simbólica. O não reconhecimento do que se é exige uma reação diante dessa violência, que perpassa pelo reconhecimento da negritude como um movimento político de afirmação da identidade. Segundo Lélia, o estereótipo produz sobre a mulher negra um movimento de abolição da sua humanidade. Em suas palavras: “Elas são vistas como corpos animalizados: por um lado são os “burros de carga” (do qual as mulatas brasileiras são um modelo). Desse modo, se constata como a socioeconômica se faz aliada à super-exploração sexual das mulheres amefricanas”. Amefricanas e ameríndias foram conceitos criados pela Lélia para se referir às mulheres negras na América Latina e às mulheres indígenas na América Latina. O movimento feminista da América Latina até os anos 1980 teve grande dificuldade de trabalhar com as especificidades das mulheres ameríndias e amefricanas. No interior do seu debate político tendo como base no feminismo europeu, esse movimento compreendia

a categoria mulher como homogênea e universal. A inserção das mulheres negras e indígenas no movimento feminista dessa região foi um desafio enfrentado por esses segmentos para fazer valer a sua pauta entre as mulheres brancas. As mulheres que se articulavam dentro de movimento de mulheres e apontavam as suas especificidades, levando em consideração sua identidade racial, muitas vezes eram acusadas de racistas às avessas, sectárias e antifeministas. A dificuldade de se integrar ao movimento feminista fez com que esses grupos de mulheres violentadas racialmente tivessem sua militância organizada primeiro em outros movimentos. No caso do Brasil, a luta das mulheres negras começa também dentro de casa, o que as levava para o Movimento de Moradia e o Movimento Negro. A partir de suas experiências no Movimento Negro, essas mulheres ajudam a desmascarar categorias que se articulam para a exclusão de cidadãos e cidadãs brasileiros. As feministas brancas, de acordo com Lélia, ao se omitir sobre o debate racial acabam reproduzindo a mesma opressão que discursam criticamente na prática dos homens, mas nesse caso a opressão é racial e atinge as mulheres não brancas. Tentar universalizar a categoria mulher é negar as diferentes identidades existentes intragênero, e negar essas identidades que se configuram de alguma forma como diferenças entre as mulheres é negar a situação de opressão à qual estão submetidos esses diferentes segmentos. Segundo Lélia, o feminismo latino-americano desse período perdeu muito de sua força ao não levar em consideração as relações e diferenças intragênero. Esse movimento subtraiu a participação de diferentes segmentos femininos que tentavam articular sua identidade de gênero com a identidade racial, a fim de lutar politicamente contras diversas formas de violência a qual as mulheres estavam submetidas.

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Essa não é uma especificidade do movimento feminista da América Latina. Assistiu-se a isso em diversas experiências comuns na luta feminina em diversos lugares do mundo. Lélia compartilhou experiências comuns com mulheres negras de diferentes países da América Latina que levavam suas experiências para o debate nacional sobre a condição da mulher negra e a colonização. Ela foi uma entre as poucas mulheres negras do Brasil que teve a oportunidade de estar na agenda dos debates internacionais sobre o Movimento Feminista, tendo contato com mulheres negras organizadas na América Latina e na diáspora africana como um todo. A partir dessa vivência, Lélia defendia a construção de feminismo afro-latino-americano, pois, segundo ela, as mulheres negras em contextos diferenciados, que as submetiam a condições similares de desigualdades e discriminação, eram marcadas pelos mesmos operadores ideológicos, frutos de um processo de colonização que tinha muito em comum. Seriam esses operadores ideológicos as marcas projetadas em seus corpos pela cor e gênero. O feminismo afro-latinoamericano politicamente seria um debate defendido por Lélia Gonzalez, no qual raça, gênero e classe seriam pensados como elementos que se articulam e produzem a realidade vivida por essas mulheres. Em outras palavras, o feminismo afro-latino-americano seria construído a partir da experiência comum dessas mulheres negras. Aqui, como nova perspectiva, eu proponho que a gente se debruce sobre a produção dos nossos, como Lélia Gonzalez que nós tanto falamos, mas estudamos pouco, para entender os elementos estruturantes daquilo que nos exclui para construirmos assim as novas perspectivas.

Giselle Cristina Pesquisadora, autora do livro Somos Todas Rainhas Eu faço parte da Associação Frida Kahlo, que é uma organização de jovens feministas de São Paulo. Essa organização já tem seis anos e, atualmente, é composta apenas por meninas negras. Não que esse tenha sido o recorte inicial, mas, diante dessa realidade, fica impossível não problematizar a questão racial. Sou graduada em história pela PUC-São Paulo e sou mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia. A minha pesquisa, tanto na graduação quanto no mestrado, gira em torno das representações sobre as mulheres negras em Cuba num contexto revolucionário. Dando início propriamente à minha fala, sem dúvida, é um grande desafio pensar nas novas perspectivas para a militância feminista e os rumos do feminismo negro na América Latina. O título da mesa é grande, mas o desafio proposto é ainda maior. Eu prefiro dividir com vocês hoje essa experiência, a experiência da construção dessa publicação que foi lançada pela Associação Frida Kahlo neste ano. Não sei quem teve a oportunidade de ver por aí circulando o Somos todas rainhas, que também está disponível na internet. Eu acredito que a gente poderia pensar em várias estratégias para combater o racismo e o sexismo, afinal de contas eles são questões tangenciais que influenciam a nossa experiência, a nossa vida, de maneira geral. Eu penso bastante na questão da invisibilidade. A ideia que eu gostaria de dividir com vocês é a estratégia de contrapor a imposição da invisibilidade da figura da mulher negra e as suas especificidades de maneira geral. A invisibilidade que nos é imposta é uma das formas pelas quais o racismo e o sexismo agem para

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gerar a nossa exclusão. Pensando até na experiência da minha pesquisa, eu tive a oportunidade de ir para Cuba, pela segunda vez, no primeiro semestre desse ano. Eu tinha uma lista grande de livros que eu estava buscando e que eu não encontrava nas livrarias. Lá as tiragens de livros também são bastante curtas. Fui, então, conversar com um livreiro, um livreiro daqueles que vendem livros velhos, que vendem por talvez 300 vezes mais caro do que o comum. Mas eu levei essa lista porque me disseram que aquela pessoa vendia mais barato. Cheguei lá e entreguei a lista para ele. Ele deu uma olhada e falou: “Mas espera aí, me explica qual é o tema da sua pesquisa”. Eu falei: A minha pesquisa é sobre a representação acerca das mulheres negras em Cuba no contexto revolucionário. Ele ficou cerca de quarenta minutos tentando me convencer de que essa não seria uma pesquisa viável. Por que esse tema de pesquisa não seria viável, segundo as colocações desse senhor, um homem negro por sinal? Ele me disse que as mulheres negras não tinham feito nada de importante durante cinquenta anos de revolução. Então se eu quisesse falar sobre as mulheres negras nesse contexto histórico, a partir de 1959, eu teria que falar das mulheres de maneira geral e preferencialmente falar da Wilma Spinks, que foi a presidenta da Federação de Mulheres Cubanas (FMC) por mais de quarenta anos. Ela era casada com Raul Castro e foi, portanto, cunhada do Fidel Castro.

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Eu não queria falar, aliás, eu não desejo falar sobre a Wilma Spinks. Desejo falar sobre as mulheres negras nesse contexto. Mas por que eu estou contando essa pequena historinha para vocês? A questão é o quanto a invisibilidade nos mata. Como dizer que as mulheres negras não contribuíram para a história da sociedade cubana ou da sociedade brasileira? Como é que a gente avalia isso? Como é que a gente se apropria da produção dessas pessoas se elas quase não existem? Quando a gente abre os livros de história, os livros didáticos, quais são as mulheres negras citadas? Em um dos lançamentos da publicação, a gente conversou com um grupo grande de jovens de estudantes, e a gente fez essa provocação: Quais são as mulheres negras que contribuíram para a história brasileira? Primeiro houve um grande silêncio, depois de um tempo alguém falou: “Ah, talvez quem, quem?” Qual é o nome que sempre vem? É a Chica da Silva. Não que não seja importante destacar a trajetória dessa mulher, mas a partir de quais vieses ela é lembrada, a partir de quais estereótipos a figura dela é sempre ressaltada? Pensando em tudo isso é que a gente construiu o Somos Todas Rainhas. Essa publicação foi gerada a partir desse projeto de registrar a existência e a importância das mulheres negras, sendo essas histórias contadas por jovens negras. Ele teve duas frentes, um curso de formação que foi aplicado numa comunidade da Zona Norte de São Paulo, periferia; e a pesquisa que gerou o trabalho. Eu atuei especificamente neste segundo momento, tanto na elaboração da pesquisa quanto na redação do texto. As questões que nortearam o trabalho foram exatamente essas, o resgate histórico, a preocupação de que a investigação fosse norteada pelo conceito de interseccionalidade dos conceitos de gênero e raça e também a ideia de fortalecimento da comunidade e do movimento de mulheres negras. As dificuldades foram inúmeras. Para não ser muito extensa, destaco o esforço para se contrapor ao

silenciamento existente na historiografia, porque, de fato, não é somente nos livros didáticos que a gente encontra esse vazio, esse silêncio, essa invisibilidade. Isso se dá nos livros acadêmicos também. Na minha graduação, na minha formação de quase cinco anos na PUC, quais foram as mulheres negras que eu tive como referência, sobre as quais eu conheci a trajetória? Pouquíssimas. Outra coisa dificuldade foi de trabalhar com um recorte temporal muito amplo. A proposta que me foi apresentada inicialmente era de falar sobre a história das mulheres negras do Brasil. Eu falei: Mas será que é possível falar de 500 anos de história? Não, não é possível, até porque, diferentemente do que pensam tantas outras pessoas por aí, eu acredito que nós contribuímos muito. Existem muitas trajetórias, muitas histórias. Então não daria para falar de 500 anos, pelo menos não dentro da minha concepção como historiadora. Por isso eu propus um recorte um pouco mais delimitado, partindo não de uma perspectiva temporal, mas sim de uma noção temática, que seria falar sobre as rainhas guerreiras. Outro desafio foi construir o texto numa linguagem acessível ao público jovem, já que esse era o nosso foco primordial. Não sei se foi possível, mas a gente tentou. E quais são, na verdade, as mulheres cuja trajetória a gente trouxe à tona? São essas sete rainhas guerreiras: Cleópatra, Nzinga, Aqualtune, Taitu Bitul, Na Agontimé, Teresa do Quariterê e Luiza Mahin. A gente demorou um bom tempo para chegar a esses nomes. Havia tantos outros que sem dúvida poderiam estar aí. Por outro lado, as pessoas perguntam: “Mas espera aí, a Luiza Mahin foi rainha?” Se vocês lerem, vocês entenderão o porquê que ela está nessa lista de sete das nossas sete rainhas guerreiras. Eu não vou falar sobre a trajetória delas, até porque eu espero que todos leiam o trabalho. Além disso, como o tempo também é bastante limitado, eu vou falar

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um pouco da importância desse resgate histórico que foi uma das questões que nos nortearam. A história como conhecimento científico e ferramenta de poder quase sempre foi narrada a partir das perspectivas dos grupos dominantes. Como afirma o provérbio africano: “Enquanto os leões não começarem a escrever a sua própria história, a história continuará a ser história dos caçadores”. A experiência narrada e visibilizada pela história oficial na América Latina foi vivenciada pelos homens brancos heterossexuais e proprietários, portadores do status quo em sociedades estruturadas por valores racistas, sexistas, classistas e heteronormativos. O padrão constituído como modelo do status quo ainda prevalece como signo de referência nos grupos sociais excluídos. Ou seja, o egocentrismo, a branquitude, a heteronormatividade e o modelo burguês hierarquizam as relações de poder entre os grupos sociais desfavorecidos e as interações intragrupo. Não por acaso, quando a gente pensa ou quando se remete à ideia de mulheres, a representação que geralmente vem à tona é a da mulher branca e não a da mulher negra. E quando se fala da população negra, a referência, o signo associado é o homem negro. Ou seja, as mulheres negras, mesmo vivenciando esses dois problemas de gênero e de raça, que atingem esses grupos que também sofrem exclusão, são ainda mais vulnerabilizadas. Mas como superar toda essa invisibilidade, todo esse silenciamento? Eu acredito que o conceito de interseccionalidade pode dar uma força para que realmente se faça uma leitura da história a contrapelo. Até porque a maioria das fontes que falam sobre a atuação das mulheres no período da escravidão, por exemplo, não determina necessariamente se são mulheres, se são homens. Essas fontes históricas foram produzidas por homens brancos que faziam parte da estrutura, da máquina de poder dessa estrutura escravocrata. Como essas pessoas são definidas na maioria das fontes? Apenas como negros. Quantas pessoas foram

encontradas no Quilombo X ou no Quilombo Y? Negros, peças, não homens ou não mulheres, até porque a condição humana era negada para esses indivíduos. Eu acredito que o conceito de interseccionalidade pode trazer a força que a gente precisa para realmente subverter essa lógica. Segundo Kimberlé Crenshaw, esse conceito busca aprender as consequências estruturais e dinâmicas do cruzamento entre diferentes eixos de subordinação social vivenciados pelas mulheres. E nós buscamos construir essa pesquisa pautada na interação dos conceitos de gênero e raça, provocando uma leitura da história a contrapelo, ao resgatar o nosso legado e construir representações positivas que se contrapõem ao silêncio e a invisibilidade impostos às mulheres negras, impulsionando com isso o fortalecimento da comunidade e do movimento de mulheres negras. E aí por que fortalecimento? Numa das atividades de lançamento da publicação em São Paulo, em que nós trabalhamos com um grupo de adolescentes, apresentamos a seguinte provocação: Quando vocês pensam na palavra “negro”, o que vem à mente? Primeiro, ouvimos nada mais uma vez, depois as pessoas que se colocaram afirmaram a mesma coisa: escravo, escravo, escravo. Particularmente, não acho que a gente deva negar esse aspecto da história. Realmente, nós chegamos aqui nessa condição de escravizados. Mas a grande questão é: dentro dessa leitura que faz parte do imaginário desses jovens, o escravo foi somente subjugado, não foi o que resistiu, não foi o que lutou, não foi o que se organizou em Quilombos. Então, é preciso construir uma nova referência. Por isso que eu digo que essa publicação − pelo menos é o que a gente espera − vem ao encontro desse fortalecimento, tanto da comunidade quanto do movimento de mulheres negras. Eu confesso que, com essa pesquisa, também descobri inúmeras questões que até então não estavam postas para mim. Eu escrevi esse material no ano de 2010,

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha antes de entrar no mestrado. Mas eu já havia terminado a graduação de história, estava lá com o meu diploma. Esses nomes aqui foram negados para mim, nomes de mulheres que atuaram e foram lideranças em quilombos, que também possam não ser conhecidos por vocês. Então, é essa a nossa ideia, é ter como referência esses nomes, ter como referência não somente o lado doloroso, mas também o lado da resistência. Só para pontuar aqui, entre as mulheres que lideram quilombos no Brasil: Aqualtune e Acotirene, no Quilombo dos Palmares; rainha Teresa, que comandou o Quilombo do Quariterê no século XVIII; as duas irmãs Francisca e Mendecha Ferreira, que deram origem e lideraram o Quilombo de Conceição das Crioulas em Pernambuco no início do século XIX; Jacinda Gamba, que liderou um Quilombo na capitania do Espírito Santo; Zeferina no Quilombo do Urubu na Bahia do século XIX; Felipa Maria Aranha, que liderou um grande Quilombo entre o Grão Pará e Tocantins; Mãe Domingas, que esteve à frente do Quilombo Tapagem no Pará. Foi um trabalho muito prazeroso de fazer, mas ao mesmo tempo doloroso. Eu acho que a gente tem que de alguma maneira aprender a lidar com essas duas questões quando a gente se propõe a fazer esse tipo de trabalho. Num determinado momento as pessoas estavam me pressionando: “Já deu o tempo. A gente está em cima do prazo. Você precisa entregar”. E eu não sabia como finalizar o texto. Fiquei indecisa, mas, enfim, consegui de alguma maneira finalizar dessa maneira que eu gostaria de dividir com vocês agora.

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Já falaram que isso aqui está parecendo poesia, mas não me considero poetisa. Já disseram que poderia ser transformado numa letra de Rap, mas cantora sou muito menos. Mas tudo bem, vamos ver. Vamos ao texto: “É importante saber que nossos passos vêm de longe, por quê? Eu sou Nzinga, sou uma rainha e lutei contra a escravidão. Eu sou Carolina Maria de Jesus, escrevo a minha própria história. Eu sou Aqualtune, sou uma princesa Quilombola. Eu sou Chica da Silva, enfrentei a sociedade machista e racista; Eu sou Imperatriz Taitu Bitul, liderei exércitos em defesa da minha nação. Eu sou Léa Garcia e Ruth Cardoso, sou a arte, tenho múltiplas facetas. Eu sou Antonieta de Barros, fui a primeira deputada negra na história do Brasil. Eu sou Cleópatra, minha história já foi contada de mil maneiras. Eu sou Acotirene, fui liderança em Palmares. Eu sou Elenira Rezende, eu lutei contra a ditadura militar e morri no Araguaia. Eu sou Clementina de Jesus, a minha voz ecoou no mundo. Eu sou Na Agotimé, fui rainha no Daomé e na Casa das Minas no Maranhão. Eu sou Maria Firmina dos Reis, a primeira mulher a publicar um livro de literatura no Brasil. Eu sou Rainha Teresa do Quariterê, sou rainha, sou quilombola. Eu sou Lélia Gonzalez, sou militante do Movimento Negro e do Movimento Feminista. Eu sou Mãe Estela de Oxóssi, sou guardiã da cultura e das religiões de matriz africana no Brasil. Eu sou Luiza Mahin, lutei pela construção de uma sociedade mais justa. Eu sou Rainha de Sabá, meu nome está marcado na história. Eu sou Anastácia, sou símbolo de luta do povo negro no Brasil. Eu sou Zeferina, liderei revoltas. Eu sou minha mãe, eu sou minha avó, sou retirante nordestina. Eu sou essas e tantas outras mulheres negras anônimas. Contando a trajetória das mulheres negras, falo de mim simultaneamente, crio e recrio a nossa história, a história das mulheres negras, que não tiveram direito de conhecer o seu próprio passado. Eu sou todas essas, pois, quando conto a história de resistência delas, desconstruo

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o silêncio e a subalternidade destinada às mulheres negras do Brasil e a mim. Portanto, descubro que nossos passos vêm de longe e que somos todas rainhas”. É isso.

Bruna Pereira Pesquisadora da UnB na linha de Feminismo, Relações de Gênero e de Raça Eu gostaria de começar agradecendo à organização do evento. Eu acho que esses espaços de debate nos levam além de uma visão mais comum. Às vezes, nós até estamos inseridas no meio acadêmico, somos pesquisadoras e tudo, mas acabamos não tendo acesso a isso. Quando temos, mesmo assim é um acesso muito restrito, porque muitas dessas coisas não circulam nesses espaços, não são muito visibilizadas. Eu acho que um evento desse porte e desse nível só vem agregar e vem justamente disputar o espaço público, vem criar um espaço onde as mulheres negras são convidadas a elaborar, pensar e até mesmo colocar o que pensam. Eu vou falar um pouco mais sobre a minha experiência, que é acadêmica. Meu nome é Bruna, eu faço mestrado em Sociologia na UnB. Mais especificamente, o meu tema de pesquisa é a violência doméstica contra as mulheres negras. Assim como aconteceu com a Gisele, também me questionaram: “Por que violência doméstica contra mulheres negras? A violência doméstica acontece com todos os grupos de mulheres”. Só que na contramão desses desincentivos, eu já tenho alguns resultados que mostram que há muito a ser dito. Pois é a partir dessas percepções da minha pesquisa que eu gostaria de discutir um pouco sobre os novos rumos da militância feminista e do feminismo negro no Brasil e na América Latina. A violência doméstica e familiar contra as mulheres é um dos eixos que organizam os estudos de gênero

no Brasil. Esse é um campo já consolidado, que vem tomando parte da academia desde pelo menos a década de 1980. Mas é incrível que, mesmo assim, a gente tenha uma produção tão pequena sobre as experiências das mulheres negras. Um levantamento feito recentemente mostra que apenas 1% da produção dos últimos vinte anos sobre a violência doméstica traz algum recorte racial. Mesmo assim, há uma diferença muito grande entre ter um recorte racial e adotar uma perspectiva do feminismo negro. Só que mesmo essa produção muito restrita também não circula, é difícil de difícil acesso, não está disponível na internet, nem está nas bibliotecas públicas. Mas, como eu sou teimosa, isso me fez persistir, me fez decidir por esse tema de vez. De todo modo, eu acho muito estranho que esse silêncio tenha permanecido até agora, e seja tão constitutivo dos nossos estudos sobre gênero e violência, sobretudo num país onde as ciências sociais começaram a se formar na academia a partir dos estudos sobre raça. Claro que obviamente esses estudos nem sempre adotam uma perspectiva antirracista também, mas nós temos um campo muito vasto sobre raça na sociologia e na antropologia. Mais uma vez, a pergunta: Como que a gente tem falando tanto sobre raça, tanta sobre gênero, mas a produção acadêmica permanece tão restrita quanto às mulheres negras? Essa é uma dúvida que fui tirando assim aos poucos e também não da forma menos dolorosa. Como a Gisele disse, é esse tipo de questão que barra a produção de um conhecimento que não se pauta pelas linhas mais gerais da produção científica hegemônica. Vou resumir bem brevemente alguns pontos que eu tenho achado e depois eu comento com vocês como isso se refere aos novos rumos da militância feminista e do feminismo negro. Eu tenho percebido algumas persistências nas representações sociais das mulheres negras. A partir do que elas relatam sobre o que entendem como ofensa, eu tenho tentado fazer o

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caminho inverso e ver a que essas ofensas se referem, porque no contexto conflituoso aparecem muitas coisas do que as pessoas geralmente se permitem falar. Nesse contexto de violência, saem coisas que estavam ali o tempo todo. Ainda que as manifestações de racismo sejam mais criminalizadas, é nas situações de violência e conflito que as mulheres negras mais deparam explicitamente com esse fenômeno. Entre as ofensas raciais registradas, um agressor comentou com a sua companheira: “A gente comentava entre os homens que as mulheres negras são mais promíscuas. Eu devia mesmo ter sabido disso antes de me casar com você”. E isso é relatado por pessoas que têm coragem de dizer, porque muitas mulheres não concebem falar sobre isso. Obviamente, assumir que você sofre racismo, às vezes até de um companheiro negro, é uma experiência muito dolorosa. Se quando a ofensa vem de fora é algo difícil, imagina quanto vem de dentro do seu grupo. É uma coisa que, muitas vezes, as mulheres tentam negar para si próprias. A partir dessas ofensas, eu vejo certas tendências. As mulheres pardas geralmente se referem a ofensas à sua sexualidade, que associam a pessoa delas à promiscuidade. É curioso como isso está tão em consonância com o que a gente vê nas novelas, com o que a gente viu nas próprias ciências sociais. Ao mesmo tempo em que aparece como um elemento agregador da nação, também é aquilo que faz os homens perderem o controle. E essa é uma imagem que até mesmo se refere a mim diretamente. Isso limita as possibilidade dessa mulher como ser humano. Eu acho que as mulheres negras têm que ter o direito de se representar nos diversos espaços das diferentes formas. Eu posso ser sensual em um momento, mas eu também tenho o direito de ter uma figura associada à intelectualidade em outros momentos. Eu acho que essas representações aprisionam as possibilidades das mulheres negras.

As mulheres pretas, por sua vez, também têm de lidar com essa questão da sexualidade, mas estão muito mais associadas ao trabalho. Então quando o agressor quer ofender essas mulheres, ele fala: “Você é preguiçosa. O seu trabalho é mal feito”. Há ainda uma expectativa de que as mulheres pretas carreguem esse país nas costas. Assim, o que se ouve é: Você serve para trabalhar. Eu me casei com você, ou me juntei com você, ou estou com você com essa expectativa. É certo que o feminismo negro vem denunciando essas coisas há muito tempo, desde pelo menos a década de 1980. Mas eu acho é interessante que o feminismo acadêmico seja capaz de aprofundar esse debate. É importante que nós, feministas negras que estamos chegando cada vez mais na academia, sobretudo depois das cotas, sejamos capazes de destrinchar como essa discriminação denunciada há tanto tempo ocorre dentro de cada um dos espaços sociais. Evidenciar essa violência seja no espaço doméstico intrafamiliar, seja em outros espaços, é o desafio da nossa geração de feministas. Outra coisa importante para o nosso debate que eu queria trazer diz respeito às mulheres de classes mais baixas. Elas falam com muita facilidade da violência doméstica, conhecem a Lei Maria da Penha, mas isso não significa que elas não tolerem a violência doméstica, assim como acontece nossa sociedade em algum grau. Por outro lado, a questão do racismo ainda é muito tratada como coisa natural. Quando você pergunta: Você já foi ofendida pela sua raça? Muitas pessoas falavam que não. Mas, quando você acrescenta: E de brincadeira? Aí, não dá outra: “Ah, sim, mas só uma brincadeirinha inocente”. Quando você vai ver aquela brincadeira não tinha nada de inocente. Em vez disso, foi empregada no sentido de “coloque-se no seu lugar, porque eu estou te lembrando qual é a sua cor e qual é a sua função”.

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha Isso me leva ao desafio do feminismo negro de difundir suas reflexões sobre os dois marcos de gênero e raça, que anda juntos. A questão da violência tem sido debatida, mas a população tem acesso mais ao discurso sobre a violência contra a mulher, em geral. Temos novas representações que começam a se contrapor às antigas, mas, ao mesmo tempo, esse discurso segue silenciando outras dimensões. Isso favorece que a sua situação específica das mulheres negras, quanto à violência e quanto a diversas outras questões, permaneça invisibilizada. O que eu imagino que seja um desafio para a gente é justamente lembrar para cada setor, em cada pesquisa, em cada área de atuação, que as mulheres negras têm as suas especificidades. Eu não gosto muito de tratar como especificidade, porque isso reforça a ideia de que a experiências das mulheres brancas são a referência, mas é preciso reconhecer as formas de violência que atingem as mulheres negras. O fato de esse problema ser tratado de forma separada não favorece as mulheres negras, na medida em que nós experimentamos a realidade como mulheres e como negras ao mesmo tempo. É tal como eu ouço na minha pesquisa: “Primeiro você tem que falar de gênero e depois você tem que falar de raça”. Não é assim que a gente experimenta a realidade. Como vamos dar conta de fazer isso? Há quem diga: “Então, acaba a possibilidade de generalização e de ciência”. Desculpa, é uma dificuldade com que nós vamos ter que lidar. Ela já está aí, já existiu, sempre existiu, embora haja um esforço para ignorá-la. O fato de isso acontecer é que é um problema maior, não o desafio de pensar as coisas de uma maneira mais complexa. É isso, obrigada.

Larissa Borges Muito obrigada, Bruna. A gente vai ficando abafada, não é gente? Essas falas vão mostrando a importância de princípio registrado no ideograma Sankofa: a

gente precisa olhar para trás para pensar o presente e construir o futuro. Temos muito chão pela frente e algumas estratégias do capitalismo e do racismo têm atualizado alguns estereótipos, alguns mitos, de forma muito perversa e violenta. Eu tenho trabalhado na saúde mental, eu sou psicóloga, além de MC. Então, tenho visto muitas mulheres enlouquecendo, muitas mulheres negras jovens suicidando e muitas mulheres negras jovens sendo assassinadas. A gente precisa construir perspectivas e quem sabe criar aí uma estratégia para sistematizar um milhão de histórias de mulheres pretas. A gente precisa pôr essas histórias para o mundo.

Sueli Carneiro Doutora em Educação pela USP e diretora do Geledés − Instituto da Mulher Negra Eu achei muito curioso me colocarem numa mesa que chama “Novas Perspectivas para a Militância Feminista e os Rumos do Feminismo Negro na América Latina”, mas como eu era homenageada, eu não podia bater de frente. Aí cheguei aqui e pensei: Bom, meninas, já que o tema é esse, e eu estou nele, eu acho que, em sendo eu o passado, eu devo começar a falar e vocês que são futuro devem fechar essa mesa, posto que lhes cabe a continuidade dessa história, não é. Mas aí, por uma série de razões, elas acharam melhor me manter aqui. Então eu vou ter que fazer um retorno ao passado, porque é tudo que eu posso fazer, tendo em vista ser uma velha militante e com muita pouco chance de representar o futuro de algum feminismo preto. Eu vou falar um pouco das lutas que vêm sendo travadas pelas mulheres brasileiras para alcançar a igualdade de gênero e de raça. Eu vou falar um pouco de valores, crenças e sonhos que têm impulsionado essas lutas. Vou falar um pouco de avanços, retrocessos

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e desafios que se colocam permanentemente para o avanço ou a consolidação das nossas conquistas. Eu vou começar com um poema que eu gosto muito da Emily Dickinson, em que ela diz: “A água se aprende pela sede, a terra por mares navegados, o êxtase pela dor, a paz pela luta que se teve, os pássaros pela neve”. Eu acho que as mulheres que se engajaram, os movimentos de mulheres que se engajaram nisso chamado de feminismo − e eu falo inicialmente feminismo no sentido geral −, elas compreenderam o sentido das palavras liberdade e igualdade pela sede que a ausência de liberdade e igualdade nos provocou. Essa sede era tão intensa que transformou as noções de liberdade e igualdade nos princípios mais caros da nossa luta feminista, porque, além de entender que liberdade e igualdade são valores intrínsecos e inegociáveis para a pessoa humana, descobrimos também que, para conquistá-las e mantê-las, é preciso muita disposição de luta e uma vigilância permanente para defendê-las. Isso porque liberdade e igualdade são bens que estão sempre sendo colocados em perigo por diferentes ideologias, por diferentes variações do machismo, pelo racismo, pelos fundamentalismos religiosos, pelos neoliberalismos, pelas globalizações. São ideologias que invariavelmente colocam em risco as conquistas das mulheres. O que constitui a garantia da liberdade e a possibilidade da igualdade é a democracia. Esse é o único antídoto contra as diferentes formas de autoritarismos presentes no mundo. Autoritarismos que se reciclam e se renovam permanentemente, se apropriam de nossas lutas, nossos sonhos e nossas conquistas, subvertendo-os e colocando sempre em questão as noções de democracia, liberdade e a possibilidade de conquista da igualdade. Como essas ideologias se reciclam, apesar das lutas e das conquistas das mulheres, lutamos para que as mulheres pudessem estudar, ter uma carreira e trabalhar fora de casa. As mulheres entraram para o mercado de trabalho e nova

contradições se colocaram, e passamos a defrontar com as desigualdades dos salários das mulheres em relação aos dos homens, mesmo quando apresentamos as mesmas habilitações, mesmo quando desenvolvemos as mesmas tarefas, e mesmo quando temos índices superiores de educação do que os homens, como ocorre no Brasil nesse momento. O que permite essa desigualdade de gênero no mundo de trabalho? O que é que permite isso a não ser uma ideologia machista, que privilegia a mão de obra masculina em detrimento da feminina, mesmo quando essa se mostra mais apta para as mesmas funções? Por que as mulheres enfrentam ainda o mundo do trabalho, o veto nas promoções, especialmente para os cargos de chefias? Por que enfrentam o assédio sexual, a que muitas têm que se submeter para manter o emprego ou conseguir uma promoção, quando não perdem o emprego por se recusar a ceder a esse tipo de violência? A mulheres enfrentam a ausência de creches para assegurar a guarda dos filhos para poder se manter no mercado de trabalho – um equipamento que raras empresas garantem. Enfrentam a falta de solidariedade dos maridos e companheiros na divisão das tarefas domésticas e em relação à educação dos filhos. Portanto, conquistar a igualdade efetiva no mercado de trabalho, conquistar salário igual para tarefa igual e igualdade de oportunidade de promoção profissional, enfrentar a mudança na mentalidade masculina para assumirem suas responsabilidades com a reprodução cotidiana da vida são questões de gênero e permanecem ativas na agenda de luta das mulheres. Portanto, é um ponto da agenda das gerações de hoje e do futuro. Lutamos por liberdade sexual, pelo direito de ter controle sobre nossos próprios corpos, submetendo esses corpos que se supunham enfim livres a um processo brutal de mercantilização, que resulta hoje num espetáculo grotesco de exibição narcisista de corpos

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siliconados, nádegas expostas a granel, destinadas a vender de tudo, sabonetes, sexo, carro de luxo, cigarro, bebidas e o que mais vier, num grau de reificação do corpo feminino jamais imaginando ou sonhado por nós feministas nos nossos piores pesadelos. O que essa máquina de consumir corpos oferece com o seu aliciamento se reduz a fama e dinheiro rápidos gerados por corpos descartáveis. O desafio de ressacralizar o corpo feminino e resgatar a sua integridade e dignidade permanece uma questão da agenda feminista do presente e do futuro. Alteramos padrões de comportamento ao retirar a questão da violência doméstica do plano privado do casal ou da família para a esfera pública. Recusamos aquela máxima: “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Metemos a colher sim e transformamos a questão da violência contra a mulher em questão pública, objeto de políticas públicas, das quais uns dos exemplos foram a criação e a proliferação das delegacias de defesa das mulheres, a reivindicação de abrigos para a proteção das mulheres em situação de violência e mais recentemente a Lei Maria da Penha. No entanto, a impunidade permanece cúmplice da violência contra a mulher, e esse é mais um ponto do presente e do futuro da nossa agenda feminista. Assistimos nesse momento à expansão de fundamentalismos religiosos. Eles em geral professam a conversão das mulheres a valores conservadores que reiteram e justificam a submissão das mulheres aos homens, que atribuem às mulheres como missão superior de sua vida o cuidado de suas famílias e a aceitação de uma moralidade castradora, que lhes restringe a liberdade. Impedir que a intolerância religiosa seja um fator de retrocesso das conquistas das mulheres é mais uma tarefa que se impõe nesse cenário de expansão dos fundamentalismos religiosos.

E o racismo? Como é que ele limita a realização da igualdade e da liberdade das mulheres? Lutamos pela criminalização do racismo, conquistamos um dos princípios constitucional que torna o racismo um crime inafiançável e imprescritível. No entanto, a cultura de impunidade e intolerância em relação às práticas discriminatórias faz com que ninguém seja exemplarmente punido pelas ações racistas que provoque. Muito se comemora o avanço das mulheres no mercado de trabalho. É certo que a luta das mulheres vem promovendo, ainda que lentamente, a diversificação de sua presença na esfera do trabalho. No entanto, como o racismo limita essa possibilidade, as mulheres negras, pouco se beneficiaram dessa conquista das mulheres, permanecendo guetizadas nas ocupações profissionais de menor prestígio, via de regra em ocupações manuais, apresentando um índice de analfabetismo três vezes maior do que as mulheres brancas e percebendo os piores salários dentro da população economicamente ativa. Então onde estamos? Em muitos homens, as conquistas do feminismo provocou uma atitude cínica. Entenderam a igualdade de direitos como o direito de dividir despesas com as mulheres e se eximir de responsabilidades. Aceitaram de bom grado serem libertos da condição de provedores exclusivos de suas famílias, acostumaram-se rapidamente a contar com o salário das mulheres para equacionar o orçamento familiar sem assumir nenhum compromisso com as tarefas domésticas que permaneceram na forma de dupla jornada de trabalho, responsabilidade exclusiva das mulheres. Desfrutam a liberdade sexual e se eximem da responsabilidade em relação à contracepção. Desfrutam a liberdade sexual e se eximem da paternidade responsável. Desfrutam a liberdade sexual e se eximem da responsabilidade da prevenção em relação a doenças sexualmente transmissíveis, especialmente em relação à prevenção da Aids. Compartilham dos nossos direitos conquistados, compartilham os

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novos direitos conquistados pelas mulheres, mas não ampliam a sua carteira de deveres. A perspectiva feminista é uma ótica que encerra uma ética, e o distanciamento ou desconhecimento desse ideário feminista, de seus valores e princípios faz com que as mulheres se tornem presas fáceis dessa atitude cínica presente em muitos homens. São esses valores e essa ética que o feminismo advoga que permitem que a sexualidade possa ser exercida com responsabilidade e segurança. São eles que permitem saber o limite de cada um numa relação. Eles é que asseguraram o respeito à nossa individualidade e à nossa condição feminina. Eles é que dão substância às nossas posições, aos limites que nós temos que impor ao outro para sermos respeitadas. A reeducação masculina por meio de uma pedagogia diz respeito à dignidade humana das mulheres e é outro desafio que permanece como imperativo de nossa agenda. A ausência dessa ótica é que permite, entre outras coisas, que nossos corpos e nossas mentes sejam moldados por indústrias de silicone e de operações plásticas, pelos personal trainings dessas academias de ginástica em busca de um padrão estético, ou arbitrário ou opressor, a serviço de uma poderosa indústria de consumo que tudo transforma em mercadoria, destituindo pessoas de humanidade, dignidade e respeito. Tudo em nome do lucro. Uma indústria que traveste os nossos sonhos e nos impõe desejos que não são ou não deveriam ser nossos Portanto, nossos passos em busca da igualdade vêm de longe e temos atrás de nós séculos de opressão e lutas compartilhadas. Fomos educadas para cuidar dos outros, de nossos companheiros, de nossos filhos e nossos pais. Durante muitos séculos, a obrigatoriedade desses cuidados foram fatores de opressão, mas, dentro dessa opressão, desenvolvemos um forte sentimento de compaixão, que é um dos suportes da ética feminista que nos cabe aportar ao mundo para reeducá-lo sem

dor e sem opressão. Fomos privatizadas por longos tempos, confinadas ao espaço feminino da cozinha, do lar, dos haréns. Aí aprendemos a compartilhar dores, medos e inseguranças desconhecidas pelos homens, e elas nos ensinaram outro tipo de solidariedade e de sociabilidade, que devemos aportar ao futuro. Compartilhar é um verbo que as mulheres conjugam em maior escala do que os homens e de um jeito mais doce, às vezes fazendo doces para adoçar os homens e os seus filhos. Aprendemos a administrar a escassez e, como Cristo, temos multiplicado pão em nossas mesas, milagres que os responsáveis pelas economias do nosso país não sabem realizar. Com isso, aprendemos mais sobre solidariedade e fraternidade, contribuições que temos a dar a um tempo mais feminista e mais feminismo. Fomos escravizadas, discriminadas e inferiorizadas racialmente. Arrancaram nossos filhos de nossos seios, nos obrigaram a amamentar e criar filhos que não eram nossos. Essa experiência brutal explica o apreço que temos pela liberdade. Liberdade que é para nós um princípio inegociável. Essa experiência brutal também nos escreveu no paradigma do outro, do não ser. E aí nesse lugar que o eurocentrismo europeu nos colocou, aprendemos como se produzem subjetividades subalternas e hegemônicas, escravos e senhores, porque assistimos àquelas crianças brancas que alimentamos, que fizemos adormecer em nossos braços, confiantes de se tornarem feitores, comerciantes de carne humana, torturadores de negros, torturadores de quilombolas, estupradores de escravas. Mas é daquela experiência brutal que sabemos que podemos educar as pessoas tanto para discriminar e oprimir quanto para respeitar, acolher e se enriquecer com as diferenças raciais, étnicas e culturais dos seres humanos. Esse é outro ponto de desafio para o futuro. A feminista Carole Pateman diz que há um contrato sexual em vigor

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no mundo, cujo desvelamento manifesta o acordo oculto e injusto dos homens, sobre o qual, na verdade, se baseia o contrato social ostensivamente neutro em termos de gênero. Um contrato sexual suportado por um acordo oculto, que realiza na prática social a supremacia patriarcal no mundo. Há também, como formulado pelo filósofo afro-americano Charles Mills, um contrato racial em vigência no mundo, cujo desvelamento revela um sistema político não nomeado que é a supremacia branca no mundo. Portanto, vivemos ainda sob a égide dessas duas estruturas de poder que impedem a realização da democracia nas suas dimensões de raça e gênero. Porém, neste contrato racial todos os brancos são beneficiários, embora nem todas as pessoas brancas sejam deles signatárias. É então a certeza de que todas as mulheres brancas são beneficiárias, mas não necessariamente signatárias do contrato racial. É a certeza de que o contrato sexual que nos limita a todas é o que oferece a possibilidade de alianças e da construções coletiva da crítica política a esse sistema de dominação que oprime a todas, embora em diferentes graus. Do mergulho nesse mar de contradições, nós mulheres emergimos sempre mais fortes, ousando ofertar um projeto de radicalização democrática às nossas sociedades. Radicalização democrática que tem como vocação um novo pacto de gênero e um novo pacto racial em oposição ao contrato racial reservado aos racialmente hegemônicos, em oposição ao contrato sexual reservado ao sexualmente hegemônicos. Lutamos por novos pactos racial e de gênero sustentados nos princípios da igualdade, da diversidade,

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da participação, da solidariedade e da liberdade. A questão das mulheres faz essa diferença essencial, é um influxo na radicalização da democracia; e a plataforma feminista que assumimos, que orienta a nossa ação e a nossa agenda de reivindicações, defende, como disse minha companheira Guacira, aí presente, que a radicalização da democracia não existirá enquanto não houver igualdade, que não haverá igualdade sem distribuição das riquezas e não haverá distribuição de riquezas sem um reconhecimento das desigualdades entre os homens e entre mulheres, entre brancos e negros, entre urbanos e rurais, que são os fatores que estruturam a pobreza e a exclusão social no Brasil. Portanto, a perspectiva que anima o movimento de mulheres não é o da mera inversão de papeis de homens e mulheres. As mulheres ousam sonhar com um novo marco civilizatório, no qual possamos todas e todos viver em regime de igualdade, equidade e de justiça social. Muito obrigada.

Intervenções do Público Paula Balduino de Melo Sou Paula, do Coletivo Pretas Candangas. Eu queria propor uma conexão entre os temas dessa mesa e da mesa anterior, pensando a partir de alguns dados que a representante do Ministério da Saúde colocou para a gente. Pensando sobre quem morre e onde morre no Brasil hoje, eu acho que na América Latina não é muito diferente, os homens negros, principalmente jovens, são quem morrem fora do lar, na rua, e as mulheres negras são quem morrem dentro do lar, no ambiente doméstico. Quando a gente contrapõe essas duas realidades, a gente chega a uma realidade que é muito dolorosa. Eu acho que é um dos desafios para a gente pensar no que é, o que a gente quer construir nesse feminismo negro, como a Bruna colocou. Eu acho as pesquisas muito importantes, e têm muitas mulheres negras que estão sendo violentadas pelos seus

companheiros negros dentro de casa. É uma cultura de violência. A gente forma nossos homens numa cultura de violência. Eles chegam em casa e é isso que eles reproduzem. Quer dizer, um homem negro que vive um cotidiano de violência na rua reproduz isso dentro de casa com a sua companheira, com os seus filhos. Para superar essa cultura de violência, achei muito bonito o que a Sueli trouxe para a gente da ética feminina, da compaixão. Eu acho que esse é um desafio: construir uma cultura de amor e respeito entre nós, de nós para nós. A gente tem um desafio muito grande no tocante às relações íntimas, as relações sexuais afetivas. Isso não é pequeno, porque, apesar de ser uma dimensão micro, a partir daí a gente se constrói, a gente se coloca no mundo, mulheres e homens negras, brancos, enfim. Eu acho que mulheres negras hoje no Brasil têm crescido muito nas suas trajetórias escolares e profissionais. Então, eu acho que os nossos companheiros têm que aprender a admirar as nossas trajetórias, nossas trajetórias acadêmicas, profissionais, e não ter problema de ter uma mulher do seu lado ganhando mais que ele, ou com uma escolaridade maior do que a dele. Outra coisa muito importante é a gente discutir a paternidade. A ideia da maternidade é muito central, inclusive na construção do pensamento feminista de pensar a mulher pela maternidade. A gente tem que pensar o homem pela paternidade também. A paternidade também é uma experiência central na vida de uma pessoa. Enfim, são algumas questões para a gente refletir. Obrigada.

Ana Marques Eu sou Ana Marques, trabalho na Secretaria de Educação do Distrito Federal, como professora de História. Sou nascida e criada em Sobradinho, brasiliense de coração. Eu quero também dizer é que nós precisamos observar, desde a creche, a necessidade de uma educação antissexista, antimachista e antirracista, porque a gente observa que a escola da

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educação infantil tem produzido meninos machistas e meninas submissas, tem demarcado muito o lugar que é para criança do sexo masculino e o que é pra a criança do sexo feminino. Há pesquisas recentes que apontam isso. Então, eu queria que a Sueli Carneiro falasse um pouquinho sobre como que ela tem observado isso, já que ela é uma pessoa que caminha pelo Brasil afora, se ela tem percebido isso também na educação em outros lugares, se ela tem como falar sobre como tem sido a construção dessa questão do machismo, do sexismo desde a educação infantil. Aqui no Distrito Federal, a gente percebe que muitas escolas ainda trabalham nessa perspectiva de lugar de menino e lugar de menina, menina com rosa, menino com azul, coisas que para mim são elementares, mas que a escola ainda reproduz. Só que é a partir daí que isso vai num crescendo até chegar ao Ensino Médio, até chegar à violência doméstica. Enfim, a tudo isso que a gente está vendo hoje.

Bruna Pereira Bom, eu gostaria de começar pela questão da Paula. Obrigada Paula por ter colocado essa questão, porque eu estava com isso coçando, mas eu falei. Agora não vai dar tempo de falar um pouco dessa questão de homicídios. Na verdade, eu comecei a pensar em estudar a violência doméstica contra mulheres negras a partir dos índices de homicídios. Então, com base nos dados do DATASUS, quando se faz o recorte por gênero e raça, a gente vê que mesmo nos períodos em que os registros de homicídio de mulheres diminuem, o homicídio de mulheres negras aumenta. Isso é uma coisa assustadora, principalmente por ter tão pouca visibilidade. Eu não ouço muitas falas sobre isso. E o que é pior, esses índices são bem adequados para medir a mentalidade masculina, porque eles se referem à violência urbana, não a violência doméstica. Então a gente não tem como saber como essas mulheres

morrem. É preocupante e eu acho que a gente tem déficit muito grande de pesquisa sobre esses dados. Sem conhecimento eu acho muito difícil fazer um diagnóstico preciso. Obviamente que essas mulheres morrem em casa e por violência urbana também, mas a gente só pode especular.

Sueli Carneiro Nesse caso, a vantagem de falar por último é que todo mundo já disse o que precisava e a gente economiza. Mas tem um ponto que eu acho que é muito sério, muito grave e muito importante, que merece a nossa atenção, a nossa ação e estratégia política de combate. Trata-se da questão do fundamentalismo, que está adquirindo uma dimensão dramática, perversa, apavorante, assustadora, aterrorizante no nosso país, com destaque para o ensino religioso nas escolas. Isso é uma coisa grave, porque é o inverso de tudo o que se perguntou a respeito de educação infantil. Isso cria as condições para que se perpetue e se radicalize essa reprodução interminável da desigualdade de gênero. Não é preciso muita conversa para imaginar o que é que essas ideias religiosas circulando dentro do espaço da escola fazem em relação à questão da mulher. Ou seja, se já é suficientemente ruim que esse fundamentalismo esteja se proliferando na sociedade, o que dizer do fato de se permitir que isto se dê, que esse proselitismo vá para dentro das escolas com o ensino religioso nas escolas. É uma coisa dramática. Eu acho que toda mulher engajada, toda mãe, toda mulher feminista tem que acompanhar o que acontece nas escolas, ver onde essa prática está instaurada. A nós que estamos na militância nos cabe revigorar nossos esforços políticos para conter o avanço dessa coisa, porque a gente sabe perfeitamente que isso é a reprodução do que há de pior de ideologias de controle da mulher, do seu corpo, do seu destino e da sua vida. De todos os temas que temos aí nesse momento, esse me parece

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uns dos mais perigosos e mais ameaçadores das conquistas das mulheres. Trata-se da proliferação de ideias fundamentalistas que têm sempre uma concepção de que a mulher é por natureza e por criação divina um ser inferior e destinado a servir o ser sexualmente hegemônico. Essa é uma luta séria que precisa ser comprada e a gente não pode aceitar com passividade isso. Outra questão que eu queria comentar um pouco é essa coisa do desafio que as acadêmicas têm em relação a ajudar a desconstruir estereótipos, representações consagradas em relação a mulheres negras. Só que também há um desafio interno à própria produção do conhecimento, que é como lidar com categorias que estão por definição aceitas e definidas como academicamente corretas, mas que, por sua própria natureza, são elementos de exclusão. Então, o que a gente vê muitas vezes é a produção acadêmica de negros não superarem os problemas que a produção acadêmica de brancos apresenta. Isso me parece uma das dimensões da reprodução de uma episteme que é, por sua própria natureza, excludente da nossa capacidade de pensar essas realidades, porque essas realidades nem sequer são aceitas como objeto e nem sempre são objetos suficientemente bons para serem objetos de ciência. Outro drama é como se constitui na relação, no caso das relações raciais, entre a fonte e o pesquisador. Quando Gisele apresenta um rol de nossas rainhas para trabalhar, a construção dessas rainhas não se

deu dentro da academia. Ela se deu fora da academia. A construção de um caminho de visibilização das mulheres negras também não foi dado dentro da academia, nem das mulheres negras, nem das mulheres em geral. Na verdade, na história como ciência, há um duplo silêncio, porque ela é dos machos brancos vencedores, e o vencido nunca teve lugar na historiografia oficial. Então, eu me pergunto sobre que condições é possível estabelecer a ruptura com esse padrão de produção de conhecimento, que transforma o informante em fonte primária da pesquisa, e desaparece com ele como agente de transformação no processo de conclusão da pesquisa. O que é inviabilizado o tempo todo não são apenas as pessoas, mas são os sujeitos políticos, o que altera uma realidade demonstrada, que transforma um tema num objeto de ciência. Então, eu acho que isso é muito mais sério para nós, porque com a invisibilidade nós até sabemos lidar, mas a invisibilização da ação política dos negros pelos próprios negros, isso vai ser uma tragédia ter que administrar. E isso para atender a um conjunto de requisitos daquilo que é considerado ciência. Eu não sei se eu me fiz entender, se foi compreensível isso que eu estou dizendo, mas talvez esse seja o desafio que me parece mais preocupante. Eu citei na minha fala um filósofo afro-americano que eu gosto muito, que é o Charles Mills. Ele diz que, na ciência política norte-americana, é indistinguível se um filósofo é preto, ou se o

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filósofo é branco, porque você simplesmente não tem como saber, porque ambos estão submetidos a uma epistemologia que está instaurada e que eles repetem a mesma abordagem. E uma das características é a escolha de categorias cientificamente aceitas. Por que o racismo não é uma categoria aceita na ciência política como uma categoria essencial e estrutural? Por que o colonialismo não é uma categoria, uma noção e um conceito essencial para a ciência política, se nós vivemos sob a égide de um mundo que aqui foi construído pelo colonialismo? Por que as identidades não são categorias importantes significativas para a ciência política, se o mundo que está polarizado do jeito que está por conta dessas questões? Por que é que todas as categorias que são essenciais para nós que fomos dominados, escravizados, submetidos são irrelevantes para a ciência política ocidental branca? E você bem disse: o que fazemos é tourear com orientadores e professores. Mas como? Isto é importante? Mas como isso não é importante se o mundo foi construído com base nessas categorias? Eu quero só chamar a atenção que nós precisamos de conhecimento, nós precisamos de intelectuais, mas, sobretudo, nós precisamos de intelectuais rebeldes.

Larissa Borges Eu estou pesquisando sobre relação de higiene no Hip Hop e no Funk. Quando eu vou para o campo, começo a observar que têm outras coisas que a gente pode chamar de resistência diferentemente do que a gente chamou de resistência até então, e que para a gente às vezes é muito difícil olhar para isso e reconhecer que isso também é luta, que isso também é resistência. Eu acho que isso também é uma perspectiva do desafio que está colocado para nós. Assim, como que a gente reconhece e cria novas formas de resistência diante dessas opressões que estão se modificando, se atualizando, se rearticulando? Para encerrar eu quero agradecer profundamente à Gisele, à Bruna, à Jaqueline, que precisou sair, à Sueli, a cada uma de vocês que ficaram, à coordenação do evento. Gostaria também de frisar que esse evento é organizado por mulheres jovens, mulheres negras jovens. Isso é uma conquista. Trata-se de um evento muito grande e muito importante para o nosso calendário de lutas. Então, a gente precisa se apropriar desse evento, desse espaço e bombar com isso cada vez mais. Por isso eu quero encerrar com uma fala da poetiza Conceição Evaristo, que diz o seguinte: “Que a noite não adormeça nos olhos das mulheres negras, principalmente nos nossos maiores sonhos”. Ou seja, que a gente continue atenta, continue em luta e continue transformando o nosso corpo e o mundo inteiro. Muito obrigada.

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Identidade e Comunicação Mesa 8 Cláudia Maciel Mediadora

Gildean Panikinho Coordenador do WAPI Brasil É uma satisfação enorme fazer parte deste momento. Represento o projeto WAPI Brasil. Meu nome é Gildean. Panikinho é meu apelido, que me foi dado no movimento Hip Hop. Eu me identifico com o movimento desde os doze anos de idade. Costumo dizer que o Hip Hop foi o meu pré-vestibular e o que me ajudou a construir a minha identidade étnica, a conhecer os movimentos sociais, sobretudo o movimento negro. Peguei praticamente à segunda geração do Hip Hop em São Paulo. Uma geração que estava com um discurso muito contundente com relação à questão da violência policial e do racismo institucional paulista. Sabemos que, se estamos hoje falando sobre essas questões depois de praticamente duas décadas do início do meu envolvimento com o Hip Hop, é porque vários desses questionamentos não se deram por vencidos. Acredito que as várias manifestações de outros braços dos movimentos sociais e também as do movimento Hip Hop são extremamente importantes para a construção política da nossa sociedade, por construírem possibilidades de luta contra a hegemonia que acontece na sociedade brasileira. O meu envolvimento com o Hip Hop me trouxe algumas experiências, conhecimentos e algumas possibilidades. Uma delas foi o acesso às tecnologias.

Sempre fui muito ligado a isso. Lembro-me bem de uma fala do Milton Santos em um vídeo-documentário que assisti. Ele falava bastante sobre como o lixo tecnológico das elites poderia nos servir de ferramenta para inúmeras possibilidades de revolução. Isso vindo do Milton Santos me fez refletir e tentar, de alguma forma, transformar essa apropriação de conhecimento em algo positivo e útil para a nossa população. Em 2007 tive a oportunidade de participar de um Fórum Social Mundial no Quênia, por meio da Soweto, organização do movimento negro de que eu faço parte em São Paulo. Antes de ir, tentei estabelecer contato com o Hip Hop do Quênia, por meio das redes sociais e deparei com jovens que se manifestavam da mesma forma que eu. Partem de uma realidade diferente da minha, não falam minha língua e eu tive ainda assim a oportunidade de até mesmo, sem saber falar outra língua, me comunicar através dessas mesmas tecnologias e ter acesso, por exemplo, ao festival WAPI, que já acontecia. Estava iniciando no Quênia em 2007. WAPI é a abreviação de Words and Pictures, que em português que dizer “Palavras e Imagens”. No período em que fui ao Quênia, eles estavam organizando o festival. A ideia do festival é ser uma plataforma cultural para jovens artistas ou para artistas ligados às linguagens visuais, das letras, das palavras, poesia e música. A própria abreviação da palavra WAPI faz uma alusão a uma palavra em swahili que é a língua local, que quer dizer foco ou um caminho. Essa experiência no Quênia fez muito sentido para mim. Concordo com Malcolm X quando ele dizia que todo homem negro nas Américas, que fosse islâmico, deveria

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em algum momento na vida voltar ou ir para Meca. Tive essa mesma sensação de que todas as pessoas negras das Américas e nós, brasileiros, deveríamos pisar em algum momento na África ou visitar alguns dos nossos estados, como a Bahia, para que a gente pudesse se sentir em casa de verdade. Foi assim que eu me senti. Desde 2007 que tenho contato por meio das redes sociais com os organizadores e idealizadores desse festival. Eles me propuseram que, após cinco ou seis anos de consolidação do WAPI, trouxéssemos o festival para o Brasil. Ano passado o primeiro festival aconteceu em São Paulo. O tema do festival foi “Eu Africanizo São Paulo”. O primeiro tema foi inspirado em um dos artistas que participou do WAPI no Quênia, o rapper nova-iorquino chamado M-1, membro de um grupo extremamente polêmico nos Estados Unidos, chamado Dead Prez. Ele estava com uma camiseta que tinha a escrita “Eu africanizo Nova York”, que foi idealizada por um desses jovens talentos da moda queniana que estava presente no WAPI. Importante ressaltar que este festival servia também para descobrir esses talentos. Atualmente, o festival está em sete países do solo africano e também no Brasil e em Nova York. No Brasil, a campanha publicitária do WAPI foi absorvida pela massa das redes sociais. A campanha consistia em representar fotos em cartazes simbólicos da juventude negra, família negra, jovens negros e idosos negros. Uma das inspirações para esta ação foi observar como as campanhas publicitárias produzidas pelo sistema hegemônico brasileiro não nos representam. Se analisarmos a campanha do câncer de mama, podemos avaliar que é difícil uma mulher negra representada. Mas ao visitar os hospitais descobrimos que a grande maioria que morre de câncer de mama é de mulheres negras.

Como lançar uma campanha onde o seu público-alvo majoritário não está representado? “Eu africanizo São Paulo”, a priori, possibilitou que pessoas comuns pudessem se representar. Assim, incluímos também pessoas que desenvolvem trabalhos significativos para a comunidade negra como artistas, ativistas, profissionais liberais, que podem até ser profissionais ligados a alguma empresa privada, mas, de alguma forma, africanizam nesse conceito de representar a identidade étnica, a ideologia e a proposta de fortalecer a sua identidade. Em 2012 mudamos o perfil da campanha. Desta vez, a campanha aproximou jovens africanos que moram em São Paulo, mas que não tinham contato com a comunidade negra brasileira, sobretudo a comunidade dos movimentos negros. Em São Paulo, já falamos há muito tempo sobre a questão da africanidade e a relação com a África. Os negros brasileiros têm uma questão nostálgica com uma África que a gente não conhece e muitas vezes não tem contato direto com os imigrantes africanos.

Vanda Ferreira Mestra Griô, apresentadora do programa Reconhecer A Estimativa se faz presente nesse evento. Parabenizo esta quinta edição. Eu sou Vanda Ferreira, nega velha, mocotona, griô da felicidade. Faço parte da equipe de Sueli Carneiro, Vovô do Ilê Aiyê. Não viemos aqui à toa, estamos revoltados, revoltadas e insatisfeitas, mas não estamos de braços cruzados. A Estimativa também é uma instituição de mulheres jovens negras que tem grande preocupação com a continuidade desta luta que começou desde que o primeiro escravo e a primeira escrava estiveram nessa terra. Possui cinco anos, e foi inaugurada em 13 de julho de 2005,

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com vários projetos e está revolucionada à nossa cidade e ao nosso estado. Tudo que nasce naquela panela de pipoca explode. Um dos projetos da Estimativa é o programa Reconhecer, que vem nesta linha alternativa, do cinema em ação e da WEBTV. Fabricamos material que seja de fácil comunicação para que os professores possam aplicar a Lei n. 10.639. Aqui eu faço um aparte: não são apenas os professores que têm que aplicar a Lei n. 10.639. Essa lei veio com tanto atraso que todos nós temos a responsabilidade de fazer essa suplência. A maior dificuldade de aplicar esta lei é que toda a população brasileira desconhece a nossa história, e à medida que ingressamos na universidade, entramos num processo de “branquitude”. Poucos são os negros que estão na Universidade que se mantêm dentro da negritude. A partir do momento em que uma parcela mínima da população negra já está com um nível intelectual e se coloca de igual para igual à massa pensante desse país, mas concorda que não há racismo, estamos diante do sucesso de uma estratégia de poder e dominação. O programa Reconhecer é feito com toda a iniciativa e a garra das meninas da Estimativa. Fui convidada para ser a âncora do programa, mas não com o nome de âncora, mas de Griô, que, por ser professora, venho fazendo minha “griotice”. Este título me foi dado por Ney Lopes em 1992, um grande compositor, advogado e linguista. Ao pensar no tema “Identidade e Comunicação”, resgatei os primórdios de quando começa a comunicação e o conceito de Griô. Griô é uma palavra francesa muito empregada na África, que carrega o significado

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de povos para os quais a comunicação oral é o seu viés vital. A criação da “griotagem feminina” é oriunda do Brasil. São, por exemplo, as mães de santo e as tias que estão nas comunidades tomando conta dos filhos para que as mulheres possam ir para o serviço doméstico. Elas são exímias contadoras da nossa história. Outro Griô muito importante que a gente precisa resgatar é o vovô e a vovó que descem no templo de umbanda. Muitas das minhas convicções eu as obtive depois de sentada ao lado de vovó Joaquina, de Maria Conga, que vinham contando história do passar no Atlântico, de um continente para outro. O saudoso Chico Anysio tinha um personagem com o qual ele dava vida a um preto velho que conversava com duas crianças. Esse é o símbolo da nossa griotagem dentro de um templo de umbanda. Outra comunicação muito forte, que até hoje é entendida e válida, é o tambor. Foi a nossa primeira forma de comunicação. O tambor fala, é orixá, entidade e revela a tradição e a continuidade das histórias. O tambor representa o pulsar do coração. Esta comunicação quer dizer, continuidade, quer dizer vamos à luta. Hoje, no Rio de Janeiro, os atores e atrizes negras estão criando um movimento que se chama Akoben. Akoben quer dizer, “Vamos à luta”. Ele visa a chamar à atenção das autoridades para as dificuldades enfrentadas no que diz respeito ao apoio financeiro dos nossos projetos. Até 30 de dezembro de 2011, fui ouvidora da Petros, que é o fundo de pensão da Petrobras, e toda a minha intervenção perante esse empresa foi no sentido de que se criasse uma comissão com o olhar da negritude para analisar os nossos projetos. Outra grande comunicação que nós tivemos, e aí não entendo ou até entendo, é a força dos orixás. Exemplo disso que eu falo é o filme Amistad. Ele mostra muito de tudo isso que só ouvimos falar. O cineasta consegue trazer todo aquele martírio que a gente só ouvia a vovó,

a bisavó e todos os outros griôs contarem. E depois, já que estamos celebrando o 25 de julho, não posso deixar de citar a criação do candomblé no Brasil. A criação do candomblé no Brasil, que é uma religião genuinamente brasileira, com fio condutor africano, nasce da iniciativa de três mulheres que resolveram criar um espaço religioso onde pudéssemos cultuar os nossos orixás. São elas, Iyá Detá, Iyá Kalá e Iyá Nassô. O vocábulo candomblé quer dizer a casa dos costumes. Cada vez mais o nosso viés, a história de raiz, de religiosidade africana está mais aqui no Brasil. Concordo plenamente que temos que pisar na África e ter um olhar atento. Temos que fazer intercâmbios de negócios com a África. Um novo país africano está surgindo e é o Brasil. Temos que contribuir para a liberdade, porque enquanto houver africano vilipendiado, acusado e repudiado, nós não seremos livres aqui também. Então louvo essas mulheres que tiveram essa iniciativa de dar uma ressignificação na comunicação através do candomblé. Encerro declamando uma poesia de uma grande militante do movimento negro, também minha contemporânea, doutora Conceição Evaristo, que diz assim: “Vozes-mulheres. A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos de uma infância perdida. // A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. // A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias, debaixo das trouxas, roupagens sujas dos brancos, pelo caminho empoeirado rumo à favela. // A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. // A voz de minha filha [que são vocês] recolhe todas as nossas vozes, recolhe em si as vozes mudas, caladas, engasgada nas gargantas. // A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem − o hoje − o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância e o eco da vida-liberdade”. Conceição Evaristo.

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Enderson Araújo Representante do Mídia Periférica Falarei da minha experiência com a Mídia Periférica e como foi que comecei a fazer comunicação dentro da minha comunidade. Há mais ou menos dois anos, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) instalou em Sussuarana um projeto chamado “Promovendo Direito de Jovens”. Esse projeto dialogava sobre várias questões de sexualidade, direito à comunicação e direitos humanos. Eram três módulos temáticos e um módulo de intervenção urbana. A intervenção pública era o grafite, o rádio, o audiovisual, o teatro e a dança. Após as oficinas de direito à comunicação e produção de audiovisual e rádio é que começamos o grupo Mídia Periférica, com cerca de doze jovens. Atualmente somos apenas três, mas seguimos com a proposta de buscar o empoderamento, buscando sempre novas articulações. Gostaria que todos os outros jovens que participaram desta construção estivessem do mesmo jeito que estou, nas redes sociais e dialogando nos espaços, pois todas as comunidades têm que ter a sua comunicação local. Cito como exemplo também a experiência do complexo do Alemão com o Rene Silva, que tuitou em tempo real o que estava acontecendo na entrada da polícia no morro. Além do Mídia Periférica, sou correspondente do Correio Nagô, um portal de notícias de Salvador para postar textos dentro do portal de forma remunerada. Não sou jornalista, sou estudante do ensino médio, mas, por meio do trabalho que faço com o Mídia Periférica, as pessoas veem a possibilidade de ter a comunicação local dentro

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dos portais de notícias. Também sou correspondente da revista da Agência Jovem, da revista Viração, uma revista de São Paulo que reúne diversos jovens do Brasil. O Mídia Periférica e a comunicação tem me possibilitado estar em vários espaços de poder. Participei aqui em Brasília do programa Câmara Ligada em um debate sobre democratização da comunicação e estavam presentes o professor Fernando Paulino da UnB, o parlamentar Jean Willis e o Rapadura, que é um artista local. Dialoguei de igual para igual com eles sobre o que nós jovens e as comunidades pensam sobre a democratização da mídia. Falando sobre a democratização da mídia, criamos um blog, o facebook, o twitter e uma pequena TV. Elaboramos também um projeto de rádio que vamos colocar em prática assim que o Mídia Periférica completar dois anos e temos um projeto futuro de escrever dentro das comunidades um jornal impresso quinzenalmente. Com todas estas mídias, pretendemos mostrar as diversas culturas das periferias em todos os pontos, mesmo com pouco suporte. Temos muito cuidado com a linguagem, porque entendemos que estamos lidando com leitores de dentro da comunidade. Levamos como lema a inserção de negros na mídia. Por meio das redes sociais, consigo dialogar com diversas mídias de igual para igual. Por meio do twitter, conheci o Luís Erlanger, que é o diretor de comunicação da Globo; a Flávia Oliveira, jornalista do jornal O Globo, da coluna de economia, entre outros. A juventude está evoluindo, basta ter foco. Cito sempre meu exemplo para os jovens que dialogo. Eu não tinha computador quando comecei a fazer o Mídia Periférica. Fazia tudo em lan houses, até o Paulo Rogério, que é um dos meus mentores, me dar um netbook. Costumo citar sempre a frase: “Se você luta, você conquista”. Temos que ir adiante sempre. Obrigado.

DJ Branco Representante do CMA Hip Hop, radialista e comunicador social de Salvador Saúdo a todos e a todas presentes, em especial a Senhora Vanda por trazer essa experiência. Para o aprimoramento e o desenvolvimento do nosso povo, a gente aprende a beber na fonte dos mais velhos. Devemos tudo a pessoas como a senhora Vanda, que iniciaram essa luta debatendo a questão racial no Brasil para garantir a vida. No dia 25 de julho, comemoramos o Dia da Mulher Negra Afro-Latino Americano e Caribenha. Chamo-me Hamilton Oliveira, mais conhecido como DJ Branco, branco por nascer com a cor de pele mais clara da família. Faço um trabalho lá em Salvador junto com o movimento negro pelo Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado da Bahia, que monitora as políticas públicas do Estado para garantir que elas, no mínimo, tenham o recorte racial e atendam os anseios e as demandas da população negra, que é maioria no estado da Bahia. Na cidade de Salvador, 82% da população é negra, segunda cidade maior do mundo com contingente de pessoas negras. Não dá para um estado com esse não ter políticas que dialoguem e garantam o mínimo para essa parcela da população. A organização de comunicação que faço parte é a CMA Hip Hop. A CMA Hip Hop trabalha com comunicação e produção cultural. Surgiu em 2005, com o objetivo central de potencializar a comunicação do movimento Hip Hop e criar estratégias de divulgação do movimento. Consequentemente, não trabalhamos somente com Hip Hop, mas sim com a cultura e os assuntos que perpassam as políticas públicas, os direitos humanos e principalmente a questão racial em geral. Além disso, faço um programa de rádio há cinco anos na Educadora FM, de nome Evolução Hip Hop.

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Esse tema “Identidade e Comunicação” é um assunto sobre o qual não vamos parar de falar tão cedo, pois a mídia não respeita nosso povo, e nem a nossa juventude da forma que ela tem que ser respeitada e tratada. Ela não tem que ser tratada diferente de ninguém, somente como seres humanos, até porque somos seres humanos, e a mídia nunca tratou a juventude negra como seres humanos. Ao invés de pregar e propagar a educação e os direitos humanos, a mídia criminaliza e marginaliza essa parcela da juventude. A gente vê hoje, especificamente nos últimos anos, programas de televisão sensacionalistas mostrando corpos de jovens negros mortos, dizendo que morreram na periferia, envolvidos com o tráfico de drogas ou por briga de gangues, sem antes mesmo ter aberto inquérito para investigar se aquele jovem era culpado ou inocente. A forma de tratamento que a mídia tem com os jovens de pele clara ou de poder aquisitivo alto é diferente. Quando morre um jovem branco, artistas de TV vão para a rua, fazem caminhada pela paz, passa-se um ano falando sobre o assunto. Cito como exemplo o caso João Hélio. Perguntamos nas comunidades por que a sociedade clama por justiça por um jovem branco, enquanto o jovem negro para sociedade e para o Estado brasileiro é só mais um número? A partir disso começamos a pensar estratégias de comunicação para clamar pelos nossos também. Para ir contra esse sistema em que poucas famílias dominam a comunicação e se interessam somente com o mercado. Para eles somos quando muito consumidores e eles têm um produto para vender. Como combater isso? Criando estratégias.

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Uma das estratégias passa pela primeira Conferência Nacional de Comunicação. Nós jovens negros nos organizamos e criamos um grupo para ir para dentro da conferência debater a comunicação que queremos. Criou-se um grupo chamado Enegrecer Confecom. Qual o objetivo? Pautar as questões raciais nos veículos de comunicação, elaborar propostas para o caderno final da conferência para que, no mínimo, isso sirva de sensibilização e para fazer entender que a juventude negra, a população negra, não é diferente de qualquer outra etnia. Iguais, como se diz cientificamente, porque a raça é humana. Mas pregam o falso mito da democracia racial e a gente sabe que existe um projeto político de extermínio contra a população negra. E esse projeto de extermínio veio principalmente a partir da mídia, da péssima qualidade do ensino público, da saúde, do acesso à educação e também do mercado de trabalho, que excluem os jovens negros por não possuírem o “estereótipo padrão” para ingressar no mercado de trabalho. A mídia mostra o negro de forma pejorativa. Organizações como o Instituto de Mídia Étnica, que é uma instituição de jovens jornalistas e publicitários negros lá na Bahia, criaram uma estratégia que para mim é referência hoje no Brasil. Eles estão indo para as redações da imprensa pautar os diretores de redação, para conversar com jornalistas e também para fazer atividades de formação sobre a questão racial. Eles ensinam a ter cuidado ao tratar a identidade das pessoas, por mexerem com a autoestima. O jovem negro quando ele não se vê na televisão, quem vira a referência dele? A identidade desse menino é negada. A referência deste jovem negro é sempre o bandido, o drogado ou o traficante que foi preso.

Nas conferências de comunicação, cultura e promoção da igualdade racial, discutimos essas coisas que são taxadas de “chatas”. Aprovamos nossas propostas, porém elas sumiram do caderno final. É por isso que temos que ter estratégias. Um espaço como este aqui é estratégico. Vamos sair daqui e multiplicar isso em outros espaços. A gente costuma dizer que o maior veículo de comunicação de massa do Brasil, e até do mundo, voltado para juventude de periferia é a música. Uma música chamada Rap. São os iguais falando para os iguais. São músicas que muita gente critica e discrimina porque falam mal do governo, dos problemas sociais, das polícias, mas é a música que fala sobre a nossa história também. É a música que traz à tona as bandeiras de lutas do movimento negro e de nossos heróis. Essa música consegue chegar a locais geralmente esquecidos e propositalmente ignorados. Precisamos de mais campanhas como esta da WAPI Brasil, que resgatam a autoestima, fortalecem e mantém a nossa identidade. Uma outra estratégia, hoje no Brasil, segundo dados da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias, são as mais de 500 rádios comunitárias com programas de Rap, de Hip Hop. São programas idealizados, produzidos, apresentados por jovens de periferia com a sua forma de falar, com as suas gírias, mas dialogando com aquele povo e falando sobre coisas boas, sobre caminhos, falando sobre soluções. O governo federal está para lançar o programa nacional de combate à mortalidade da juventude negra. E por que o governo federal vai lançar esse programa? Porque é bonzinho? Não. Por conta dos grandes índices de violência que existem nos estados brasileiros. As organizações internacionais cobram isso do governo brasileiro há anos. Vocês têm que

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reduzir o índice de mortalidade dessa juventude. Como reduzir o índice de mortalidade da juventude? Investindo em políticas públicas de prevenção. Porém, ao serem cobrados, o que fizeram primeiro? Criaram um programa federal chamado Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), no qual 70% do orçamento do projeto se reverteram em verba para capacitar policiais, comprar viaturas, cassetetes, fardamento e construir mais delegacias. Apenas 30% do orçamento são destinados à assistência social, como o protejo que trabalhou com juventude em área de risco e o Mulheres da Paz. O programa Mulheres da Paz fez com que as mulheres ficassem com a imagem em todos os estados brasileiros de X9 (fofoqueiras). Para concluir, digo que precisamos pensar estratégias de comunicação, ocupar os espaços, dialogar com as redações da mídia, pedir direito de resposta a partir do momento em que a gente veja que aquela imagem do jovem negro, de uma mulher negra, de um homem negro, foi tratada de forma pejorativa. Porque atualmente discutir política pública de juventude está mais do que batido, seja no âmbito do governo federal, estadual e municipal, e entre nós organizações do movimento social.

Intervenções do Público

gente tem um mestre em comunicação, que é o Dalmir Francisco. Como ele faz sempre questão de dizer, um homem que foi criado dentro de um terreiro de umbanda. Ele fala sempre na Universidade que para poder estudar comunicação no Brasil temos que estudar a questão racial. Acredito que ele esteja certo, porque como tratar um tema do qual não há domínio? Se eles não sabem, vão retratar a gente sempre de forma pejorativa. Felizmente, para a discussão da moda e cultura, fundamos um Grupo de Trabalho para discutir moda afro-brasileira. Acho que agora é o caso de a gente discutir moda e comunicação. A moda na campanha WAPI Brasil é comunicação. A mãe Griô citou o candomblé como forma de comunicação. Nós do candomblé sempre o vemos como forma de comunicação, mas não dessa forma como ela colocou. Ter este outro olhar foi maravilhoso. Vou colocar esta exposição lá no terreiro, para que coloquemos a comunicação junto da questão da ancestralidade. O DJ Branco falou de uma coisa que pode parecer superficial sobre as conferências, sobre o sumiço das propostas do caderno. Se a gente não monitorar os encaminhamentos, isso continuará acontecendo. A gente tem que acompanhar não só o durante, mas o antes, o durante e o depois. Temos que participar das comissões de criação dessas conferências. Se não aprendermos a ocupar desde cedo os espaços de poder, que são conselhos, organizações de conferência, as coisas realmente não vão acontecer.

Makota Kizandembu Kiamaza

Juliana Cézar Nunes

Eu sou a Makota Kizandembu Kiamaza. Eu esperava várias coisas dessa mesa, mas fui surpreendida com a grandiosidade dos fatos apresentados, principalmente por pessoas tão jovens. Nesta perspectiva, acredito que a juventude é resultado da nossa militância. Parabéns para nós, que bom que estamos no caminho correto. Primeiro, eu quero citar que em Belo Horizonte a

Meu nome é Juliana, sou jornalista, faço parte do Coletivo Pretas Candangas. Considero de suma importância as experiências expostas neste evento de comunicação afro-centrada. São extremamente fortalecedoras para as nossas atividades e para a nossa reflexão sobre identidade e comunicação. É realmente um prazer conhecer melhor as experiências.

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha me se não podemos passar novamente como bibelô em certos momentos, ou se a gente vai conseguir fazer, de fato, uma mudança estrutural nesse sistema de comunicação no Brasil.

Cláudia Maciel

Queria colocar um pouco para as falas finais, tanto dos palestrantes quanto também da Cláudia, mediadora, a questão do financiamento. Como que vocês têm conseguido financiamento para essas atividades e quais as dificuldades nesse processo de relacionamento de financiamento tanto com a mídia comercial quanto com a mídia pública? A Cláudia e o Branco têm projetos com a mídia pública. O Enderson, a Vanda e o Panikinho mais na área privada. Quais são as dificuldades, principalmente editoriais, nessas negociações que vocês estabelecem? E por fim, gostaria de destacar que achei importante o Branco relembrar aqui a questão da Conferência de Comunicação. Foi em 2009 e até hoje o governo não lançou o marco regulatório das comunicações para que se possa mudar, minimamente, a política de concessões. Não criaram um Conselho Nacional de Comunicação para que a população negra possa estar representada, ou até para colocar

como critério de concessões a questão racial, para que as emissoras não continuem perpetuando o racismo. É algo que realmente nós, nas nossas organizações, precisamos nos articular melhor. Infelizmente, é fato que todo debate sobre política pública de comunicação de forma geral está extremamente embranquecido. Na própria conferência de comunicação, a gente teve dificuldades tanto com as empresas privadas quanto com movimentos sociais para discutir cotas para profissionais negros nos meios de comunicação. Pergunto-me se ás vezes a Globo, a Bandeirantes ou mesmo mídias públicas aceitam receber nossos produtos porque estão de olho na tal da classe C. A minha dúvida é se esse olhar é meramente comercial ou se eles conseguem alcançar o que realmente queremos, que é o nosso direito à vida, acima de tudo, e o fim desse extermínio da população negra no Brasil. São armadilhas que às vezes não percebemos. Pergunto-

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Meu nome é Cláudia Maciel, tenho um programa na Empresa Brasil de Comunicação (EBC). É o Ação Periferia, um programa de Rap na Rádio Nacional AM. Quanto à questão de financiamento, quem financia o nosso programa é a Empresa Brasil de Comunicação. Financia para que a gente entregue, por ano, 52 programas. A parceria vem dando tão certo e vemos o investimento deles, tanto que o nosso programa é gravado, mas já fizemos três edições ao vivo, fugindo dos horários destinados a nós. Houve vezes de, no mesmo sábado, termos três horas dedicadas ao Hip Hop por meio do nosso programa. O Ação Periferia surgiu por meio de um colóquio de parcerias no qual foram convidadas ONGs, outras rádios públicas, comunitárias e também particulares. A EBC abriu o espaço das rádios para quem quisesse contribuir com programas, sugestões de pauta ou conteúdo. Faço parte da Central Única das Favelas (CUFA) do Distrito Federal. O Ação Periferia é uma parceria da CUFA com a EBC. Até foi engraçado que fomos os únicos que chegaram com o projeto pronto. Chegamos com o projeto, apresentamos e tivemos nossa proposta aprovada. No dia 3 de janeiro, primeiro sábado de 2009, a gente começou o Ação Periferia. É importante citar que o Pavão MC, que hoje é locutor do Ação, também estava no mesmo colóquio, mas representando o Aquilombando. Vimos naquele dia a potencialidade dele, inclusive por ser MC, para incorporar o projeto. Então, a gente uniu o útil ao agradável e o trouxemos para o corpo. Quanto ao financiamento, este só veio a acontecer após um ano de programa no ar. Com relação ao editorial, nunca tivemos. É uma rádio pública, mas

temos cuidado com o linguajar. A Rádio Nacional, principalmente as AM’s, é uma rádio onde a audiência é composta por idosos. Não estão acostumados com muitas gírias. Nunca fomos vetados em nada. Sempre falamos do movimento negro e de qualquer outra pauta. O Ação Periferia é um programa de Rap, mas também traz muita pauta extra ao movimento. Não nos vemos acuados na Rádio Nacional AM por questão editorial. Evitamos palavrões, apologias, até porque isso não condiz com o editorial do próprio programa.

DJ Branco Na Bahia, não recebemos investimento. O programa não ganha dez centavos, só ganha se tiver patrocínio. E do patrocínio, 40% fica para a instituição, que é o Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia. A gente tem a concessão de espaço para pautar as nossas questões, um espaço para divulgar as nossas ações. O que ganhamos com isso? Ganhamos espaço que chamamos de capital político. A partir daquele espaço que se comunica com milhares de pessoas, podemos entrar em outros espaços. Nem tudo na vida tem que ser dinheiro imediato. A gente sabe que é necessário, mas não existe. Sou eu que assino o editorial. Existe um contrato que regulamenta isso. Juridicamente quem responde pelo programa sou eu. Inicialmente a grande elite da Bahia não queria um programa como o Evolução Hip Hop dentro da grade, por puro preconceito. No dia 8 de janeiro de 2008, chegou a pesquisa do Ibope, e estávamos em primeiro lugar no horário, num dia de sábado, ganhando de todas as rádios da Bahia. É um desafio todos os dias, mas é um espaço importante. Um espaço que o movimento Hip Hop valoriza e o movimento negro também.

Gildean Panikinho Com relação a essa questão de financiamento lá em São Paulo, tivemos, por exemplo, uma possibilidade

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de parceria para desenvolver o festival no ano passado com a Coordenadoria de Assuntos da População Negra. Mas por questões, principalmente questões burocráticas, não conseguimos. Tínhamos um projeto super legal de produção cultural e uma proposta de campanha publicitária de altíssimo nível, mas chegou o dia do festival e continuamos sem a verba. A relação de parceria com o poder público foi inviável. O sucesso da campanha “Eu africanizo” se deu por conta da identificação. Ela está sendo uma afronta e eu estou enfrentando. Precisamos fazer com que ela se fortaleça. Houve sim propostas indecentes, como sempre há inúmeras propostas decentes. Cabe a nós vender o que há de melhor ou não para quem não vai valorizar da mesma forma como a gente valoriza.

Enderson Araújo Sobre a questão da Globo querer atingir a classe C, a Globo é uma questão comercial e eu tenho essa noção, mas como vamos pautar nossas questões lá dentro, se não estamos lá? Temos que criar nossas mídias alternativas, mas ao mesmo tempo precisamos ocupar os espaços convencionais. E sobre a questão de financiamento, a proposta que vai gerar renda para nós, não queremos que a mídia entre com olhar dela dentro da nossa comunidade, queremos mostrar o nosso olhar.

Walter Marinho Eu sou Walter Marinho, sou de Angola. A senhora Vanda foi bem verdadeira na sua explanação em relação à Angola e às empresas brasileiras que atuam em Angola. Primeiramente gostaria de agradecer e parabenizar a comissão organizadora deste festival, em seguida a mesa, o DJ Branco, Enderson, a senhora Vanda, que já me referi, e o Panikinho. Gostaria de deixar um apelo que das próximas atividades pudessem convidar mais entidades africanas, não no contexto para concluir, mas para engrandecer o vosso evento. Parece que eu sou o único africano no evento, não sei se estou enganado. Existem em Brasília embaixadas da Angola, a Associação de Estudantes Africanos e alguns colegas da Universidade de Brasília. Para nós seria de muito agrado ser convidados para esse tipo de atividade por questões que também nos afligem. Eu sou negro, africano e tenho passado por algumas coisas que vocês também passam e seria bom que fizéssemos uma roda de brasileiros negros e africanos negros no intuito do resolver algumas questões que ainda estão pendentes. Isto a partir de 500 anos atrás que a gente começou a dividir cultura, hábitos e costumes.

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Orientação Sexual e Identidade de Gênero Mesa 9 Luana Ferreira – Mediadora Historiadora, militante autônoma Boa tarde. Saudações a todas e a todos. É uma satisfação incrível ser convidada pelo Latinidades para mediar essa mesa na qual eu me incluo como público-alvo do debate. Eu sou Luana Ferreira, uma das fundadoras da Associação Lésbica Feminista de Brasília Coturno de Vênus. Sou mulher, negra, lésbica, feminista, sapatão, tenho muita facilidade para fazer um reuso desses nomes que são usados inicialmente para nos ofender. Eu gostaria de fazer uma participação antes de passar a palavra para as nossas queridas. Existe um documento chamado Princípios de Yogyakarta, que são os princípios da aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à orientação sexual e à identidade de gênero. Eu selecionei para compartir com vocês alguns trechinhos desse texto, para fazer uma introdução geral ao tema. “Estes princípios e recomendações refletem a aplicação da legislação de direitos humanos internacionais à vida e à experiência das pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero diversas, e nenhum deles deve ser interpretado como restringindo, ou de qualquer forma limitando, os direitos e liberdades dessas pessoas, conforme reconhecidos em leis e padrões internacionais, regionais e nacionais. (...) Toda pessoa cujos direitos humanos sejam violados, inclusive direitos referidos nestes Princípios, tem o direito de responsabilizar por suas ações, de maneira proporcional à seriedade da violação, aquelas pessoas que, direta ou indiretamente, praticaram aquela violação, sejam ou não funcionários/

as públicos/as. Não deve haver impunidade para pessoas que violam os direitos humanos relacionadas à orientação sexual ou identidade de gênero”. A ideia de recuperar esse texto serve para estimular uma reflexão do tema em nível internacional, por conta dos compromissos que nosso Estado Brasil assumiu de assegurar os direitos humanos a nós, pessoas de orientação sexual diversas. Ninguém nasce preconceituoso ou preconceituosa, as pessoas aprendem a ser assim e podem, de igual maneira, serem ensinadas a comportar-se de maneira diferente, educadas no princípio do respeito humano. O respeito à dignidade humana, o exercício de direitos coletivos e individuais, a pluralidade, a cidadania devem guiar nossas ações, tanto as do governo quanto as da sociedade na construção de um país mais justo. E aí uma última parte daquele texto: “Entretanto, violações de direitos humanos que atingem pessoas por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero, real ou percebida, constituem um padrão global e consolidado, que causa sérias preocupações. O rol dessas violações inclui execuções extrajudiciais, tortura e maus-tratos, agressões sexuais e estupro, invasão de privacidade, detenção arbitrária, negação de oportunidades de emprego e educação e sérias discriminações em relação ao gozo de outros direitos humanos. Estas violações são com frequência agravadas por outras formas de violência, ódio, discriminação e exclusão, como aquelas baseadas na raça, idade, religião, deficiência ou status econômico, social ou de outro tipo. Muitos Estados e sociedades impõem normas de gênero e orientação sexual às pessoas por meio de costumes, legislação e violência e exercem controle sobre o modo como elas

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vivenciam seus relacionamentos pessoais e como se identificam. O policiamento da sexualidade continua a ser poderosa força subjacente à persistente violência de gênero, bem como à desigualdade entre os gêneros”. Uma das ideias principais de quando eu, aos meus 15 anos, decidi compor com algumas outras amigas lesbianas a luta dos direitos humanos por uma livre orientação sexual e uma identidade de gênero respeitada, um espaço de gênero minimamente igualitário, foi compor e participar diretamente com as informações que durante a minha vida vou tendo acesso, de modo a contribuir para uma sociedade melhor. Eu acredito que devemos usar os espaços que temos não só para questionar e reclamar de como andam mal as coisas. Devemos usar esses espaços para que eles possam nos impulsionar a ações que transformem essas realidades, às quais a gente não se adequa, às quais a gente não se sente incluída ou incluído. Esse espaço é um espaço maravilhoso. Eu agradeço a oportunidade nas pessoas de Jaqueline Fernandes, Chaia Dechen, as meninas da Griô Produções, as parcerias todas, pela realização dessa quinta edição do Afro-Latinidades. A ideia de compor uma mesa que trate da orientação sexual e da identidade de gênero é muito bacana, mas eu tenho percebido que, para além dessa mesa, a gente tem tido essas presenças e debates interpostos em todas as mesas. É uma preocupação das nossas companheiras que não são necessariamente de orientação sexual divergente da heterossexual.

Tiely Queen Atriz, cineasta, cantora/rapper escritora virtual Boa tarde. Antes de mais nada, eu quero agradecer pelo convite ao pessoal da Griô, a Jaqueline, e agradecer a presença de todas e todos aqui. Meu nome de registro

é Atiely Santos, mas sou mais conhecida como Tiely Queen. Vou falar um pouco da minha trajetória porque ela vai se adequando às questões em debate. Eu sou filha de mineira com pernambucano, uma família bem regrada, bem impositiva, principalmente por parte do pai, que sempre exigiu de seus filhos que estudassem. Se não estudasse, não tinha colocação na família. Eu perdi meu pai aos dez anos de idade. Portanto, não tive muito essa regra na minha adolescência. Foram mais meus irmãos viveram esse contexto. Mas a criança lembra muito bem como os irmãos sofreram por conta dessa regra e dessa imposição por parte do meu pai. Filha de funcionário público, a minha mãe é pensionista, é evangélica da Assembleia de Deus, dá aula na Escola Dominical e tem uma filha lésbica, que assumiu a lesbianidade. Fico pensando também no caso, por exemplo, da minha mãe, como é assumir uma filha lésbica para a sociedade em que ela vive? Aí é onde entra a questão da lesbofobia, da homofobia, do racismo. Aí vai juntando tudo no mesmo balaio de gato. Para temperar a história, a filha decidiu ser artista. Aí ficou uma coisa bem bacana para a família. Muitas vezes eu me coloco no lugar da minha mãe e penso como que ela observa essa situação, essa colocação familiar, como foram as suas palavras na leitura. Luana lembrou que não nascemos preconceituosos. A gente não nasce racista. A gente não nasce com todos esses adjetivos pesados. Temos isso no decorrer da nossa experiência familiar e um pouco mais para frente, com a experiência extrafamiliar. Eu aprendi o que é ser racista, o que é discriminar, o que é ser homofóbica, principalmente na família e depois na escola. Eu me assumi aos 27 anos, ou seja, 10 anos atrás. Até os 27 anos, eu tinha uma dúvida de quem eu era, de qual era a minha orientação. Eu não tinha uma identidade, ou melhor, a única identidade que eu tinha era fazer teatro e jogar bola. Era o que eu gostava de fazer. Era isso que eu queria para mim. Essa ocupação acabou me fortalecendo mais para aceitar as diferenças à

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minha volta, porque em teatro, obrigatoriamente, você vai ter contato com a diferença, com o diferente, com o que para você é diferente, mas, como é uma coisa natural, você vai se acostumando com aquilo, com aquela naturalidade. O fato de eu perceber as mulheres andando masculinizadas e não estranhar, o fato de eu perceber os homens andando com trejeitos e andando de formas mais femininas, com vestido e não estranhar, tudo isso eu aprendi no teatro. No teatro tudo é liberado, tudo é livre, tudo é ousado. É mais fácil para você encarar a vida a partir do momento em que você faz teatro. Comecei a fazer teatro com 14 anos. Então, isso é mais fácil. A vida artística causa em você essa sensação de liberdade, de ousadia. Isso facilitou muito mais a minha percepção do mundo, mesmo sabendo que a minha mãe sabia que eu fazia teatro e não aceitava: “Filha, você faz teatro, mas quando você vai começar a trabalhar?” ou “Filha, eu preciso de uma pessoa para trabalhar, não preciso de pessoa fazendo teatro!” Tem essa coisa do preconceito com relação à nossa profissão. Eu jogava bola no final de semana. Até aí a família não reclamava. Mas durante a semana inteira eu fazia teatro e estudava. Aí a família reclamava porque não estava indo nada para casa, não estava indo uma conta de luz paga, não estava indo uma conta de água paga. Essa cobrança começava a pegar no seu pé, mas eu trabalhava no teatro, tinha contato com essa diversidade. Só que eu fui me assumir depois que eu saí do teatro. Depois que eu tive contato com tudo isso, com toda essa diversidade, que eu me assumi como lésbica, porque não foi no teatro que eu encontrei a minha cara metade, nem no futebol. Foi no Hip Hop que eu encontrei minha cara metade. Desde quatorze anos de idade que eu também faço letra de música, canto e sou envolvida com o movimento Hip Hop, o que foi mais um peso, mais uma cobrança na minha vida depois, quando eu me assumi lésbica dentro do movimento Hip Hop.

Eu senti um peso enorme da lesbofobia. Só que eu nem falo como lesbofobia dentro do Hip Hop porque a galera não entende. Homofobia já foi difícil de entender. É um povo preconceituoso mesmo, que não aceita. Então, a gente teve que falar numa linguagem mais direta para se fazer entender, porque demora até aquela pessoa entender que é lesbofóbica porque não aceita uma mulher que beija outra mulher, que namora outra mulher. Foi difícil dentro do movimento Hip Hop, assim como em alguns outros espaços, que são até mais escurecidos ou esclarecidos. Outro fator interessante é essa coisa da identidade. Eu sempre andei como menino. Essa questão de andar de calça, tênis, camiseta, isso toda mulher faz. Eu sempre me vesti como se fosse uma jogadora de futebol. Eu sempre me senti bem assim. Meu guarda-roupa era só roupa de futebol: shorts, camisa de futebol, calça larga. Aí eu já aproveitava o Hip Hop e já ia cantar de calça larga também Aproveitava o figurino para as duas coisas. Então, os meninos sempre me viam como

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menino, sempre falavam assim: “E aí Tiely, firmeza? É aí mano, firmeza?” Eles me tratavam como pseudo-homem dentro dos grupos de Rap, mas eu não era assumida, eu não me via como uma pessoa assumida dentro do Hip Hop. Foi no primeiro encontro da cultura Hip Hop, uma semana que teve lá em São Paulo, que eu olhei uma mulher diferente, foi a primeira vez e foi num encontro de Hip Hop que fui seduzida por uma poesia da Clarice Lispector que ela me entregou. O que faltava para eu abrir a mente e me aceitar completamente era a poesia, a singeleza e a forma de chegar, porque, geralmente, homem quando chega na mulher para paquerar, é mais ou menos assim: “E aí gata, firmeza, vamo?” É, o negócio está feio. Os homens não sabem chegar para conversar, para paquerar, são poucos que sabem. Tem homem romântico que sabe chegar direito numa mulher para conversar. Na verdade, eu não falo só homem e mulher, ou só de relacionamentos heterossexuais. Independentemente do relacionamento, é muito difícil você chegar para paquerar alguém. Às vezes, a timidez te faz falar umas coisas que não têm nada a ver e você acaba queimando seu filme, mas tudo bem. Essa forma de ser aceita dentro de um grupo foi uma luta para mim, apesar da facilidade por conta do teatro, que me ajudou muito. Não foi muito fácil assumir a minha lesbianidade. Eu tive que lutar contra vários preconceitos, dentro de todos os espaços que eu percorri e por onde passo. Futebol é mais tranquilo, porque boa parte das meninas que jogam é lésbica. Apesar de que, no time em que eu jogava, a maioria era heterossexual, e foi um baque para o time me aceitar: “Como é que a gente vai se trocar na sua frente, agora?” Foi uma coisa de louco, foi um inferno na minha vida, tanto que eu parei de jogar bola. Eu vou de vez em quando. Não vou ao mesmo time, porque foi complicado. As meninas não quiseram me aceitar dentro do time. Antes eu via a maioria da mulherada pelada, depois, na outra semana, eu já não podia mais ver, só porque eu me assumi. Eu já tive esse apelido de predadora. Quando eu senti o preconceito e fui buscar direitos, buscar fortalecimento em alguns espaços políticos. Foi uma maneira que

eu encontrei para poder não só lutar por mim, mas por outras pessoas também que sentiam as mesmas angústias. A questão da lesbofobia é uma coisa muito séria em São Paulo. A homofobia, assim como todos os tipos de discriminação de violência, acaba se camuflando em outros dados estatísticos. Muitos jovens negros e meninas jovens também negras são violentados e violentadas. Às vezes, não é porque é negro, às vezes porque é negro e sapatão. Às vezes, há outras coisas envolvidas. Às vezes o racismo está lá, mas às vezes as pessoas se protegem diante da lei e falam, porque tem uma lei que pune e a outra não pune; então eu vou por essa lei que pune e vou quebrar o pau. Essas pessoas acabam fazendo isso para se proteger. A lei vira uma via de mão dupla. Por conta da forma as pessoas reagem a determinados casos de violência, as pessoas acabam aproveitando dessas brechas que existem na lei e acabam praticando e promovendo outro tipo de violência. Existe uma lei, mas não há nada que de fato garanta que você possa se sentir protegida e sair de mão dada na Rua Augusta. Infelizmente não há. Tem muita gente que vai, mete o carão, pega na mão e vai, mas sabendo que pode levar uma “lampadada” na cabeça. Minha namorada e eu sempre tomamos cuidado quando a gente anda nas ruas de São Paulo, independentemente do local, seja no centro da cidade, no centro velho, no centro novo ou na periferia, que é onde a gente mora. As pessoas da periferia nos conhecem, porque a gente nasceu naquele espaço, mas essas pessoas que nos conhecem se sentem ameaçadas, se sentem chocadas quando veem que a gente está de mão dada com uma pessoa do mesmo sexo. E isso parece que é uma provocação. As pessoas se sentem intimidadas e acabam praticando uma violência verbal, por exemplo, não só física. Meus vizinhos não me olham mais do jeito que olhavam antes. Não me dão mais bom dia, boa tarde. Não existe mais isso. Quando eu passo na minha rua antiga, no máximo, é boa tarde ou bom dia. É uma levantada de cabeça e você não sabe o quê é,

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o que significa. É muito complicada essa situação, e as pessoas às vezes se aproveitam da lei ou das leis que estão em vigor para se protegerem, porque sabem que não vai acontecer nada lá na frente, porque têm certeza: “Ah, não vou ser preso mesmo, vou quebrar o pau!”. Isso é na nossa vida privada. Agora na vida pública, por exemplo, dentro do Hip Hop, eu fui questionada: “Já basta ser preta periférica. Agora, preta, periférica, lésbica e do Hip Hop?”. Eu comecei a ser questionada pelos olhares de alguns manos do Rap: “Porra, agora não vou mais apresentar minha mina para a Tiely”. Faz parte de um movimento que não tem aquela linha de segurança, que passa o pé no chão e marca: “Daqui para lá você não passa, viu mina! Para conversar não. Fala ‘oi’ de longe”. Em alguns momentos eu senti isso dentro do Rap. Em outros momentos, quando eu fui apresentada para alguns manos conhecidos do público, falam: “Ah, você que é a Tiely?” Aí, a gente dá uma risada e fala: “E aí, firmeza? Como assim?”. Já me senti muito mal com isso. “Que diabo falaram de mim para você cara, que você está com o pé lá atrás para se proteger da minha pessoa? Eu não tenho nada, eu não sou violenta. Olha bem para mim”. Problemas na família, todas temos, todos têm. A gente às vezes até perde a cabeça. Eu já perdi a cabeça naquela coisa de tentar resolver um problema em família. E não estou falando só de mãe, pai, irmão. Eu estou falando também da esposa. Quando a gente sai de casa, a gente busca formar uma família, com mulher, gato, cachorro. Às vezes vem o sobrinho visitar quando a irmã deixa, porque às vezes a irmã não deixa. Ainda tem essa. Tem irmã ou irmão que não deixa os sobrinhos irem visitar as tias porque acham que a casa delas é um antro de perversão, é uma bagunça. Esse preconceito, inicialmente, a gente aprende na família. Por isso que as pessoas acabam tratando os outros na escola diferente, porque trazem isso na família. Aí a escola potencializa isso, joga mais pimenta, joga mais tempero na coisa. Quando você tem seus doze ou quatorze anos, você ainda não sabe exatamente quem você é. “Ah, eu tenho

medo de piscar para aquele menino, porque eu acho que ele vai me bater” ou “Eu tenho medo de piscar para aquela menina, de pedir um beijo, pedir para sair”. Aí o medo toma conta. Esse sentimento de medo acaba também impulsionando a violência, que é o que nos faz desfavorecidos e desfavorecidas até intelectualmente. A gente acaba perdendo muito com isso. É isso. Estou pronta para as perguntas depois. Obrigada, gente.

Verônica Lourenço Membro da Coordenação Colegiada Nacional de Sapatá Boa tarde. Primeiro eu quero começar saudando as nossas ancestrais, e me dou o direito de saudar a partir da ancestralidade feminina, porque a terra é feminina e o útero que tudo gera é feminino. Sem o feminino nada é gerado. Então, eu saúdo a água, o vento, a natureza e eu saúdo a todas as nossas tataravós, bisavós, avós, mães. Então, eu trago a energia de todas elas e de cada uma delas que se reproduz na energia dos erês, que são a continuidade. Os erês que se fazem presentes não apenas nos termos da idade biológica, na idade nossa de criança, mas em todas aquelas pessoas que se colocam na condição de erê, na condição de aprendiz, de quem sempre acredita e compartilha. Então, eu quero agradecer à Luana pela introdução que ela deu, quero agradecer a todas vocês que trabalham diretamente para que o Latinidades aconteça. Isso é um espaço de encontro, de reencontro, de afirmação e de fortalecimento nosso. É o nosso mocambo. É o nosso quilombo. Eu estou muito emocionada mesmo. Eu estava pensando esses dias todos desde que a Sabrina me convidou. Eu cheguei a passar um e-mail para ela perguntando: O que exatamente você quer que eu fale? O que vocês pensaram? O que é isso? Comecei a fazer slide, mas desisti. A gente vai bater um papo. Eu quero conversar. Então, não adianta me chamar de palestrante, eu sou conversadeira. Eu vim para conversar. Eu não gosto dessa coisa de palestrante. Eu acho que a verdade e a ideia estão soltas. A gente é

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construído como as sábias constroem uma grande colcha de retalho. Sou conversadeira mesmo, por isso que eu fiz história, para poder contar de várias perspectivas. E aí a partir da fala da Tiely, eu trouxe uma filinha aqui também só para lembrar as bases em que o nosso país foi constituído, as bases culturais que nos foram impostas. Nós tivemos bases excelentes, vindas dos donos e das donas desse país, dessa terra, que são os povos originários, erroneamente até hoje chamados de índios, de indígenas; da nossa ancestralidade africana e também tivemos a contribuição europeia, que veio de forma opressora, de forma exploradora. Parto disso para pensar um pouco em orientação sexual e identidade de gênero. Como que isso é construído e como é que isso é imposto para a gente? O nosso corpo sempre foi lugar de poder, mas para nós mulheres negras o nosso corpo foi um lugar de “desempoderamento”, de “despoder”, porque quando entramos nesse país, já entramos com esse direito e esse poder roubados, escravizados, invadidos, violentados. Por conta disso, a gente tem que desenvolver estratégias e técnicas para nos reconstruir a cada instante, nos reconstruir e nos fortalecer a cada instante para refazer ou para buscar o significado da identidade de gênero. Ela é esse conceito trazido nas formas de discutir especialmente as opressões vividas pelas mulheres, mas que foi cunhado no meio acadêmico de mulheres de classe média. Ocorre que esse conceito, de outra forma, já vinha sendo discutido por nós mulheres negras. Como diz a Alice Walker, nós que somos, nós que conhecemos a nossa história, que nos assumimos como negras; a gente lembra. Ou seja, esse conceito já vem sendo construído por outros caminhos, assim como a questão da orientação sexual. Porque eu tenho que ser moldada pela vontade imposta e não pela vontade que o meu corpo responde, pela vontade da liberdade, que tem, por exemplo, uma criança de olhar para um amigo ou uma amiguinha e abraçar sem se preocupar? “Nossa, será que a tia Luana vai achar que eu estou abraçando a minha coleguinha

Tiely porque eu estou querendo comê-la?” Não é assim. Sendo menina ou menino, a criança chega, abraça, dá um beijo, senta, às vezes chega com tanta euforia que derruba um ao outro. É a partir disso que a gente precisa pensar a reconstrução dos conceitos ou da nossa vivência em sociedade, tanto nessa perspectiva de gênero quanto da perspectiva da sexualidade. O que importa? É o sexo que se traz biológico? É a genitália? O que isso importa? O meu corpo é só meu corpo físico? É só isso que me faz um ser? É ter nascido com uma buceta ou com um pênis? O que importa? E aí eu trago um exemplo de erê, que a Tiely me fez lembrar, quando ela falou dessa coisa da família, do que a gente vivencia na família e depois quando vai para a escola, para a sociedade. Eu tenho um sobrinho muito querido. A partir do quinto mês de gestação da minha irmã, eles foram morar comigo e com a minha companheira na época, com quem eu vivi oito anos, a Mirtes. Para o Vinícius sempre foi muito natural me ver com a tia Mirtes. A minha irmã mais nova me chamou de mãe quando eu tinha sete anos, e meu sobrinho, o filho dela, primeiramente me chamou de vó. Infelizmente, hoje ele não me chama mais de vó, me chama de Verônica. Mas voltando ao caso... Um dia ele que sempre me viu com a Mirtes, perguntou: “Ah, não vai esperar a tia Mirtes para jantar? E tia Mirtes, cadê?”. A gente tinha se separado. Depois, quando ele tinha três anos, eu apresentei outra namorada a ele, e ele disse: “Verônica, eu quero falar contigo”. Eu falei: “O que é, Vinicius?”. Ele disse: “Você gosta de namorar mulher, não é?”. E eu disse: “Também”. Aí ele: “Mas não é errado? Menina não tem que namorar com menino e menino com menina?”. Aí eu falei: “Por que é errado?”. Ele: “Ah, porque falaram na minha escola que Jesus briga”. Eu: “Mas foi Jesus quem falou para você que ele briga se menina namorar menina?”. Ele: “Não”. Aí eu disse: “Então, como é que essa pessoa sabe o que Jesus falou para você, não é?”. Aí ele falou: “Mas olha, eu namoro a Bruna, eu quero namorar menina”. Eu falei: “Beleza, você vai namorar com quem você quiser, se você quer namorar uma menina, você vai

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namorar menina, se você quiser um dia namorar um menino, você vai namorar um menino”. Outro exemplo. Ele aprendeu a falar muito cedo e andar muito cedo. Ele falou e andou com oito meses de vida. Ele é um ser muito especial. E aí eu lembro que eu botava algumas músicas para tocar e eu dizia assim: “Vinícius, quem é o negro mais lindo do mundo?” Ele batia no peito e dizia: “É Bibícius!”. Aí eu dizia: “E Bibícius é o quê?”. Ele: “Negro lindo!”. Bibícius vai para o colégio com 2 para 3 anos de idade. Antes disso ele já havia começado a ler símbolos. Ele via o mapa do Brasil e dizia: “Vovó, Brasil, Brasil”. Quando ele dizia “Bom dia” era para eu ligar a TV para ele assistir o Bom dia, Brasil. Eu não sei, mas acho que fiz alguma coisa com essa criança... Mas, ele, então, entrou na escola. Primeiro, ele só foi aprender a ler como a escola ensina a partir dos 6 anos. Ele já não morava mais comigo. Pouco tempo depois, ele chegou em casa e estavam pintando as paredes. Minha amiga estava ajudando a pintar a casa da minha irmã, e ele no meio daquilo tudo se sujou de tinta branca. Terminado o trabalho, a Sueli falou: “Agora vamos tomar banho, não é, negão?! Vamos tomar um banho para tirar essa tinta branca que está em você!”. Ele falou: “Não, Sueli, me deixa assim”. Ela: “Por quê?”. Ele: “Porque eu quero ficar branco”. Gente, que dor isso me deu quando eu soube. O que a escola fez com ele, não é? Quando ela me disse isso, eu fui visitá-lo e comecei a retrabalhar em Vinícius essa coisa do cabelo, do saber quem ele é, por que ele é negro e por que ser negro não é feio. Quem foi que disse isso para ele? Assim como quem foi que disse que Jesus briga quando uma menina namora outra menina? A nossa sociedade é construída a partir dessas bases. E o que fazer para quebrar essas bases? Não há leis que deem conta, que nos protejam. A Lei Caó, por exemplo, que criminaliza o racismo

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já tem mais de 25 anos; no entanto, a gente continua sendo vitimada impunemente pelo racismo, continua sendo massacrada. Então a lei é boa para botar um freio, mas não é o suficiente. A Sabrina havia me apresentado duas perguntas: De que forma o racismo se alia às fobias LGBT para restringir a liberdade e o direito, além de violentar ainda mais nossos corpos negros? Como podemos enfrentar essas violências? O Brasil é constituído numa base muito racista. Qualquer outro estigma que venha se somar à questão do racismo, age como agravante dessa situação. Quando a Tiely recapitula “preta, de periferia, pobre e lésbica”, os agravantes que vão se somando. Eu digo o seguinte: Eu posso entrar numa sala e até me disfarçar, ficar caladinha, arrumar um amigo que fique do meu lado e dizer até que ele é meu namorado, mas as pessoas vão olhar para mim e vão ver uma negra, não adianta. No Brasil, se você é uma pessoa legal, ou se você não pisou no calo de ninguém, você é morena. Nem tente dizer que você é negra, que vão te retrucar: “Não diga isso! Eu não aceito você dizer que é negra. Você não é negra, é morena. Só porque o seu cabelo é assim...”. Eu digo: “Pixaim, não é?” Então, é um país em que existe o racismo e as pessoas não se assumem como racistas. É um pais em que as pessoas olham para mim e, para me elogiar, dizem que eu tenho a alma branca. O enfrentamento dessas violências se dá no dia a dia, nessa esperança de que a minha prática, a sua prática, a nossa prática venha um dia de fato a mudar essa cultura. Assim como se aprende a odiar, se aprenda também a respeitar. Ninguém é obrigado a me amar, mas a me respeitar sim.

Ludymilla Santiago Ativista do Movimento Trans do Distrito Federal Obrigada. Boa tarde a todas. A título de provocação, que todos se sintam contemplados, porque eu sempre tive que me sentir contemplada em muitos lugares diante do “todos”. Então, boa tarde a todas.

Acredito ser legal fazer um breve histórico de quem é a Ludymilla, de como esse ser hoje se apresenta perante essa sociedade nojenta, até mesmo por sofrer algumas violências que essa sociedade me obriga sofrer. Eu tenho 29 anos. Assim como a Verônica disse que é conversadeira, eu digo também que não sou palestrante, eu sou fuxiqueira. Eu vim aqui justamente colocar algumas questões para vocês e não colocá-las como verdade absoluta, porque eu acho que a gente está de passagem. Jamais a gente vai se colocar numa posição de ensinamento. Pelo contrário, eu acho que na maioria das vezes a gente vai estar na posição de aprendiz. Então não dá para ficar nessa de superioridade. Mas voltando. Sou formada em Comunicação Social pela Universidade Católica de Brasília, sou ativista do movimento trans no Distrito Federal, faço parte da associação ANAV-Trans, sou negra, mulher e trans. Não vou dizer que sou pobre, mas sou da periferia. Eu queria ser lésbica para me encaixar logo em todos os preconceitos e viver todos de uma vez, porque o que me falta é ser lésbica. Mas algumas amigas dizem que eu sou um projeto para 2014. Quem sabe isso aconteça? Preta, lésbica, negra, trans, enfim, dá vontade às vezes de viver tudo isso para justamente entender: Como alguém passa por todos esses conceitos e preconceitos e, mesmo assim, consegue sobreviver? Acredito que a questão dessa sobrevivência é central. O desafio de você lutar e mostrar que você vive nessa sociedade. É muito difícil a gente dar conta desses preconceitos, homofobia, lesbofobia, transfobia, porque eu acredito também que em alguns momentos isso tudo aconteça por uma questão de falta de entendimento do se trata. Eu busco fazer um entre a questão da orientação sexual, da identidade de gênero e da identidade racial. Para mim, o movimento negro é uma questão muito nova. Nunca tive isso muito enraizado, até porque eu não fui criada por uma família negra. Na verdade, todos eram negros, mas não diziam que eram. Era comum

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ouvir uma frase que hoje eu vejo que é ridícula e super pesada: “Precisamos limpar o sangue da família”. Tudo bem que eu sei que grande parte da culpa não vem da família, vem desse social em fomos criados e criadas, mas eu acho que, basicamente, isso aconteceu pela falta do entendimento do que é ser negra nessa sociedade.

elas podem levar isso à frente também. Talvez justamente por de ter vivido uma adolescência muito introspectiva, hoje eu seja super amostrada. Acho que isso é para compensar o tempo perdido. Como o título sugere, a questão de identidade de gênero e de orientação sexual tem de ser tratada conjuntamente. Não podemos nos fiar nesse binarismo macho e fêmea. A gente precisa se desvincular dessas questões, porque o fato de eu ir para a cama com outra mulher não se faz automaticamente lésbica. Ser lésbica pressupõe toda uma construção da identidade. Trata-se de uma questão da afetividade, não apenas sexual. Além disso, tem a questão da afirmação da atividade. Você pode se colocar como mulher, viver suas afetividades emocionais, sexuais e não se identificar como lésbica. Quem sou eu para dizer que você é? Essas questões precisam ser entendidas.

Hoje em dias, essas questões já são completamente diferentes dentro da minha família, entre os amigos. Quando eu escuto alguma coisa desse tipo, tem algum ser dentro de mim que diz: “Eu não estou entendendo, você pode me explicar esse pensamento?”. Porque aí você começa pegar ganchos para poder contrapor essas ideias. Eu acho que o fato de entrar no movimento me fez uma pessoa extremamente fuxiqueira e cricri com as coisas. Se eu não consigo fazer com que a minha fala se multiplique em determinados pontos, em determinados momentos, então vamos fazer os fuxiquinhos aqui e ali com algumas pessoas, porque

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As pessoas ainda trabalham muito em cima do julgamento. “Você é o que eu acho que você é!” ou “Eu acho que você tem que ser!”. Por que não perguntar? Por que não ouvir o que essa pessoa pode te dizer? O que essa pessoa vem trazendo para você? Porque daí você também pode começar a construir. Não é vergonha a gente não entender sobre determinados assuntos. Não é vergonha a gente escutar coisas e falar que não entendeu. Não é vergonha você passar anos e anos achando que entende de um tema e num belo dia acordar e descobrir que você não entendia nada sobre aquilo. Além disso, as pessoas têm direito de mudar ao longo da vida. Mudar não significa que a pessoa é um ser sem personalidade. Eu me lembro que eu passei muito por isso na minha adolescência. Eu era o que se chama de instável. Num dia eu gostava de marrom; no outro, era de verde; e depois era amarelo; e em seguida eu queria misturar tudo para ver o que dava. As pessoas me diziam: “Você não tem personalidade. Como você come carne hoje e amanhã não come mais e diz não gosta?”. Deixei de gostar. Não estou mais satisfeita. Eu não quero mais passar três dias digerindo carne. São coisas minhas. São coisas do meu corpo que aprendi. E para ele continuar se amostrando, ele não precisa da sua aprovação. Eu vou continuar existindo do mesmo jeito. O fato é que a gente tem que aprender a conviver. Eu me policio bastante a respeito por acreditar o discurso tem que ser usado para tudo, não só por questão de orientações sexuais e identidade de gênero. Como a Verônica colocou muito bem, é a questão do respeito. Eu posso não gostar daquilo que meu amigo ou minha mãe façam, mas eu tenho que partir do princípio do respeito para com esse ser, porque uma vez respeitando, acredito que possam me respeitar também. Isso não é necessariamente uma via de mão dupla, mas a gente parte desse princípio. A gente precisa acreditar no outro.

Por fim, um ponto que eu não posso deixar de reforçar é as práticas sexuais não determinam orientação sexual e nem identidade de gênero. Obrigada.

Luana Ferreira Mediadora Antes de continuar as nossas contribuições, gostaria de fazer uma pequena provocação em torno daquilo que Ludymilla disse a respeito da questão da aprovação e do respeito. Eu não preciso concordar com você e nem achar que o que você faz é bom para mim, mas necessariamente tolerância e respeito são condições mínimas para convivermos em harmonia. Estamos numa situação em que as desavenças intelectuais ultrapassam o limite da discussão. Quando você começa a ser violentada pela sua presença não condizente com a normalidade, o conceito de normalidade se propõe. Vamos rever conceitos e atitudes.

Ana Cristina Conceição Santos, Negra Cris Pesquisadora associada do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade Boa tarde a todas. Eu peço a licença a todas, usando todas no mesmo sentido empregado por Ludymilla, pois nós somos maioria aqui.

LGBT. Aqui eu tenho companheiros e companheiras como Tábata, Milton, Daniel e na militância de outros espaços, até profissionais. Eu sou Ana Cristina Conceição Santos, Negra Cris. Isso faz parte da minha identidade. Por que nós temos que ter nome e sobrenome? Esse Negra Cris tem uma construção toda especial em torno das minhas identidades. A minha fala, além de militante, vai ser de onde eu atuo profissionalmente. Eu sou professora da Universidade Federal de Alagoas, do Campus Sertão. Moro no sertão alagoano, terra dos coronéis. Quando a gente vai pensar em sertão, na questão do machismo, do sexismo, da homofobia e do racismo, o bicho pega de verdade. Atualmente também estou fazendo doutorado na área de Educação, pesquisando gênero, raça e sexualidade. A partir dessas leituras e releituras é que eu construí um pouco a minha fala. Essa mesa é transgressora, porque são poucos os espaços que a discussão étnico-racial é abordada com recorte de orientação sexual e identidade de gênero. Não é possível trazer essas questões à tona sem provocar, incomodar, transgredir, desobedecer, infringir o modelo normativo imposto. E esse modelo tem características demarcadas por homem, branco, burguês, heterossexual, urbano, entre outras.

As minhas reflexões, como eu já disse, dialogarão a partir das leituras e releituras de feministas negras, algumas delas se assumem como lésbicas negras. Os pensamentos dessas mulheres nos remetem às nossas subjetividades e ao cotidiano. Assim como Verônica citou Alice Walker, eu falo a partir da minha irmã, da minha tia, da minha mãe. São essas falas que também vão construindo os discursos de empoderamento e outras falas coletivas. E o que essas falas vão revelar? As opressões sofridas por nós mulheres negras que ousam amar outras mulheres. Mas, como Ludymilla colocou, não é só no campo do amar outras mulheres, mas também dentro do campo político, afetivo, emocional. Então, me assumir como lésbica negra não perpassa só por minha prática sexual e a pessoa com quem eu me relaciono. Eu já estou com uma companheira há sei anos, mas, se eu não tivesse uma companheira, eu não deixo de ser lésbica.

Quero iniciar agradecendo ao convite feito pela organização do evento, na pessoa de Jaqueline. Hoje conheci Uila, tenho dialogado com Sabrina por telefone. Gostaria de agradecer a paciência de vocês, essa paciência que a gente sempre tem que estar cultivando como mulheres negras, porque o sistema é bruto, como diz um programa local lá na cidade onde eu vivi a maior parte do tempo, Salvador, e afirmar o quanto se constitui transgressora essa mesa proposta. Minha fala será a partir do lugar de mulher negra e lésbica, militante atuante da Rede de Negras e Negros

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Sueli Carneiro, que é uma das homenageadas desse evento, em seu artigo “Enegrecendo o feminismo: A situação da mulher negra na América Latina”, a partir de uma perspectiva de gênero, nos faz vários questionamentos. Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estão falando? Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que mulheres estão falando? Quando falamos que a mulher é um subproduto do homem, posto que foi feita da costela de Adão, de que mulheres estão falando? Sueli nos revela que a mulher que aparece como frágil, musa e subproduto do homem, com certeza, não é a mulher negra, pois essas trabalharam durante séculos como escravas e, generalizando, hoje estão como empregadas domésticas ou são mulatas tipo exportação. A mulher negra também não é rainha de nada, pois são antimusas da nossa sociedade, porque nós não correspondemos ao modelo estético referendado pela mídia; a nossa cultura não tem Adão; fazemos parte de uma cultura violada, folclorizada e marginalizada. Então, o feminismo negro nos mostrou que se assumir mulher como uma identidade maior não contemplava e ainda não contempla a questão racial. É o que Verônica trouxe quando colocou essa discussão de gênero. Essa discussão de gênero universalista não vai contemplar as nossas questões, e é isso que essas mulheres negras vêm evidenciando, essas feministas negras, a exemplo de Sueli Carneiro. É importante visibilizar a questão racial entrecortada por gênero, sexualidade e classe, e, dessa forma, revelar formas de opressões e exclusões que caminham lado a lado. Mas se o feminismo negro já mostrou as interconexões entre gênero e raça, classe e sexualidade, sendo essa sexualidade pautada pela lógica da heterossexualidade, ainda são poucas as discussões envolvendo raça e homossexualidade, mais especificamente raça e lesbianidade. Falo, pois, a partir desse meu lugar de lésbica, reafirmando o que nos diz Sueli Carneiro sobre a visão que se tem da mulher

negra em nossa sociedade, pensando no ser feminino das mulheres brancas, que também está assentado sobre o ideal que vai excluindo nós mulheres negras, nós travestis e também as transexuais. Mais adiante eu também vou pontuar como é que se dá essa zona de conforto da identidade LGBT, como movimento de práticas racistas que acaba por excluir sujeitos. A minha fala vai girar em torno de pensar o movimento social negro e o movimento LGBT e a necessidade de mudanças. Nesses movimentos, existem negros e homossexuais, lésbicas, e também está posta a questão da identidade de gênero, dos transexuais, travestis, que têm mais dificuldades de se aproximar de ambos os movimentos. No caso do movimento de homossexuais, quando são constituídos no nosso país, começam tendo um perfil elitista e branco. Ochy Curiel, que é uma feminista negra caribenha e assumidamente lésbica, vai dizer que ser lésbica é uma ação e uma posição política. Portanto, utilizar as nossas identidades fragmentadas, mulher, negra, lésbica de modo que não possam ser interseccionalizadas não se constitui numa ação política efetiva. Quando eu vou trabalhar, eu não desvinculo a minha identidade ética e não me torno assexuada. No meu trabalho, eu não sou uma mulher assexuada, eu continuo sendo a Ana Cristina, mulher, negra, lésbica. A minha negritude e a minha sexualidade estão sempre comigo nesse corpo me constituindo como ser humano. No espaço profissional, a professora Ana Cristina é mulher, negra, lésbica e isso vai se estabelecer como uma ação política de fato. Não estou dizendo que tenho que estampar na testa, mas, se fizesse, qual seria o problema dizer que sou lésbica? As minhas atitudes no meu lugar de trabalho vão refletir que “sujeita” eu sou, e o que eu desejo também para essa sociedade. Então, no meu espaço, eu também sou uma militante, não vou desvincular as minhas identidades a partir do espaço que eu ocupo, só porque a compreensão das identidades é limitada e procura delimitar as possibilidades do sujeito, bem como excluir outros sujeitos e subjetividades.

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Se, por um lado, a questão de classe possa estar sendo pouco mencionada diante das outras dimensões da identidade, por serem múltiplas e quase infinitas; por outro, a visibilidade assentada na autoafirmação de mulher, negra, lésbica e na pluralidade de identidades coloca em xeque a própria identidade dominante. Falar da construção dessa hegemonia de identidade branca, heterossexual, masculina em nossa sociedade nos faz lembrar de outra lésbica feminista, negra dos Estados Unidos, Audre Lorde, que diz que, dentro do campo da militância, que dentro da comunidade lésbica, eu sou negra e dentro da comunidade negra eu sou lésbica. Qualquer ataque contra pessoas negras é uma questão lésbica e gay, é uma questão negra. Não há hierarquia de opressão. Então, dialogando com Audre Lorde, acredito ser injusta essa questão de hierarquizar opressões, ou, então, a gente ter uma opressão como o racismo como guarda-chuva e as outras estarem alocadas embaixo, a exemplo da homofobia e do machismo, como boa parte do movimento negro faz. Eu me considero militante negra e militante LGBT. Então, é uma crítica que eu venho fazendo dentro da minha militância e a partir dos campos em que eu venho atuando. A mesma coisa acontece no movimento LGBT, que vem com a identidade de orientação sexual e identidade de gênero como a identidade guardachuva e as outras são alocadas de forma a hierarquizar essas opressões. Do mesmo jeito que o racismo mata, a homofobia mata, o machismo mata. Eles não tiram férias. E quando eu falo em correr risco de morte não se trata apenas de o corpo deixar de existir, mas sim de a minha existência não ser considerada como uma existência humana. Estou falando da minha dignidade humana, da afirmação dos meus direitos de ser não considerada como cidadã de segunda categoria. Tudo isso vai sendo negado por conta dessas identidades que a gente assume no dia a dia e também como identidade política. Essa fala é também para chegar às ações da Rede de Negras e Negros LGBT. É pensando nessas identidades

intercruzadas que a Rede se posiciona. Muitos dos membros da Rede vêm do movimento negro, que não contemplava essa identidade de orientação sexual e identidade de gênero; e outros vêm do movimento LGBT, que inviabilizava seu pertencimento etnicorracial. É nessa frente de batalha, que eu costumo dizer que é um verdadeiro fogo cruzado, que buscamos promover nossas ações. Vou pontuar algumas ações. A rede foi fundada em 2005, a partir de uma proposta de Milton aqui em Brasília, no XII Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Transgêneros (EBGLT). Dentro do movimento LGBT, reafirmar nossa identidade racial é um verdadeiro embate, o mesmo ocorrendo no movimento negro, pois mesmo os movimentos sociais invalidando o que foi posto como identidade universal pela identidade hegemônica e única estável, não sustentaram essa crítica às suas próprias ressignificações, ficando aprisionados a uma ideia de identidade excludente. É como se ser lésbica e ser negra não fossem identidades que se encontram. Citando Nilton Luz, um militante da rede afro, em um texto que trata das pluridentidades, ele diz que, desse modo, os negros continuam representados pelas mulheres e os homens negros heterossexuais, enquanto a comunidade LGBT, mesmo partindo de uma perspectiva pluridentitária, permanece vulnerável à reprodução do poder dos homens brancos. Nós participamos da construção do Encontro Nacional de Juventude Negra (ENJUNE) para pontuar algumas ações da Rede de Negras e Negros LGBT. Teve o GT de orientação sexual e identidade de gênero, e os resultados foram para o documento final da juventude negra. A gente vem fazendo um diálogo com a SEPPIR. Por duas vezes a gente já pleiteou participar do Conselho da SEPPIR, com uma representação LGBT, mas a gente até hoje não conseguiu. Então, existe um diálogo, mas não nos dão acesso a esse espaço de poder também. Fizemos parte da primeira e segunda Conferências Nacionais LGBT, até mesmo da comissão organizadora, tendo a preocupação com esses recortes étnico-raciais.

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Participamos da organização do Afro 21, que aconteceu em Salvador. Estávamos lá como movimento LGBT e movimento negro. Verônica também estava no Afro 21, colocando a questão LGBT o tempo todo, inclusive levamos os Princípios de Yogyakarta para serem colocados no documento final. Porém, na carta enviada aos representantes de Estado, foi retirada a questão LGBT. Estamos também no Conselho Nacional LGBT. Para pontuar um pouco as ações da Rede de Negras e Negros LGBT, estamos em alguns espaços, mas não estamos da maneira que queremos. Trazer essa discussão racial e de identidade de gênero e orientação sexual não é algo bem aceito pelo movimento negro, que ainda se mostra um movimento que tem atitudes homofóbicas, lesbofóbicas, transfóbicas e por aí vai. Por sua vez, o movimento LGBT que ainda se mostra um movimento racista, de atitudes racistas. Algumas exceções são algumas mulheres lésbicas, organizadas dentro do movimento LGBT, que têm uma maior abertura para a discussão racial dentro dos seus princípios, a exemplo das duas grandes redes: a Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL) e a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL). Essas são algumas das minhas inquietações e de alguns membros da Rede Afro LGBT. Quis dividir como se dão as construções dessas identidades e pensar em como fazer com que elas realmente se intercruzem e façam com que haja uma promoção da dignidade humana, a partir dessas identidades de ser lésbica, ser negra, da periferia, da questão de classes também. Obrigada.

Luana Ferreira De fato, precisamos pensar a transformação dos nossos movimentos sociais ligados aos direitos humanos, para que esses direitos humanos sejam cada vez mais próximos, mais reais do nosso dia a dia. Cada uma de nós é parte da transformação. Em nosso dia a dia, repetimos frases, contamos piadinhas, aceitamos provocações e falas desrespeitosas, para não entrar em questão de debate. Eu aceito e eu me posiciono passiva ou ativamente diante de manifestações injustas,

inadequadas, racistas, preconceituosas como um todo. Isso é que faz a diferença para contribuição geral à nossa sociedade, que é composta de cada indivíduo, de cada pessoa. A ação diária, cotidiana, com os nossos pensamentos, com as nossas afirmações, com as nossas palavras, é o principal agente transformador dessa sociedade que não nos permite a livre expressão, pelo menos a livre expressão respeitosa. Então, eu penso cada vez mais que precisamos, a partir de nossas colocações no mundo, da presença, do dia a dia, transformar essa sociedade. A gente tem uma posição de conforto de dizer que a sociedade é muito preconceituosa, que a sociedade é injusta. Só que, quando eu Luana Ferreira, sapatão, lésbica, negra, me coloco apenas como uma observadora dessa injustiça, desses maus tratos e de toda essa inadequação da convivência social, eu não protagonizo isso. A gente deve protagonizar. Esse movimento aqui, em que nós somos pares e ouvimos as nossas pares, os nossos pares, é ótimo, é maravilhoso, mas se ele não vai para a rua e se esses pensamentos e contribuições não passam a fazer parte de nosso cotidiano, dos nossos gestos, da nossa individualidade, vamos continuar sendo uma sociedade injusta, uma sociedade inadequada.

Tábata Alves Representante do Grupo de Ativistas Travestis e Transexuais de São Paulo – GATA Obrigada. Boa tarde a todas. Eu faço minhas as palavras das meninas. Eu sou de São Paulo, tenho 35 anos, faço parte do movimento LGBT, do movimento negro, junto com a Rede Afro, junto com o Milton, o Daniel, a Negra Cris. Faço parte de um trabalho desenvolvido em Santo Amaro, uma cidade da região metropolitana de São Paulo, que é Zona Sul, extremamente pobre. É onde tem a maior concentração de negros, onde tem a maior concentração de nordestinos. Nasci e me criei lá. Ter nascido na periferia, além de ser negra e travesti (porque eu me identifico como travesti, e não como

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transexual), e sair todos os dias, é complicado, porque lá a gente fala bastante que “se mata um leão por dia”. A gente tem que sair, dar a cara para bater e a gente tem visto bastante. Além do recorte racial, a gente também trabalha bastante com uma população que vem sendo violentada, que vem sendo massacrada, não só pela sociedade, como pela família. A gente tem caso de gays expulsos de casa pela família, que apanham de familiares, que são humilhados no ambiente familiar. Nós temos casos também de lésbicas que, dentro da própria família, são violentadas pelos seus parentes para transformá-la em heterossexuais. Há também os casos das meninas travestis que, a partir do momento em que se identificam como travesti ou como uma transexual, são expulsas de casa. Elas não têm onde morar, não têm onde ficar e o que sobrou para elas? A esquina, a rua, mais nada. O nosso recorte lá é mais ou menos esse. A proposta é trabalhar com a população mais vulnerável por meio do acolhimento. Eu sou formada em nutrição, me formei há pouco tempo e trabalho no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) de Santo Amaro. Lá a gente desenvolve um super trabalho de acolhimento, por exemplo, daquele menino que já se identifica gay, ou daquela menina que se identifica lésbica, desde escola, desde o lar, do seu âmbito familiar. Acredito que é mais ou menos isso o nosso trabalho lá: mostrar para a sociedade que nós estamos aí, que nós existimos, que nós estamos dando a nossa cara a tapa. A gente trabalha com muitas meninas travestis negras que estão na rua, à mercê de cafetinas ou cafetões. A gente acolhe bastante, a gente tem o cuidado de inserir aquela menina travesti de volta à sociedade, de volta aos estudos, com a ajuda de vários parceiros. Gosto muito do que faço. Logicamente, não posso negar também que eu fiz parte também desses números, fiz parte das estatísticas, como a sociedade gosta de chamar, mais uma. E os problemas ainda estão aí para ser enfrentados. Hoje mesmo o voo atrasou, e tinha até um menino gay junto comigo no avião, que perguntou

para onde eu estava indo. Expliquei para ele, que olhou para a minha cara e disse: “Mas tinha que ser travesti, não é? Olha, já seguraram a travesti aqui só para ela não falar nada, não é?”. Aí eu falei: “É, para você ver. É assim que acontecem as coisas...”. Ainda bem que a gente brinca bastante. Acredito que é mais ou menos isso o nosso trabalho.

Intervenções do Público Ana Paula Boa tarde, eu sou Ana Paula e a minha pergunta é para a Verônica. Eu trabalho na área de educação infantil. Fiquei pensando quando ela disse sobre a situação do Vinícius, que quis ficar branco. Eu também me preocupei com a questão de trabalhar com a sexualidade desde criança, porque a gente sempre ouve falar disso quando chega à adolescência. E, de fato, quando se é bem pequenininho, na idade de 2 ou 3 anos, isso não é falado, não é trabalhado com nós educadores. Eu queria saber como foi o seu posicionamento na escola? Você foi à escola para conversar? Esse é um questionamento que precisa ser verbalizado. Nós educadores temos que ter a preocupação de não causar estragos, de contribuir para que o jovem não chegue à adolescência sem ter tido a oportunidade de resolver uma questão que poderia ter tido um melhor encaminhamento quando ele ou ela era criança, na idade da educação infantil.

Ariele Boa tarde, minha pergunta vai para a Ana Cristina. Eu gostei muito do debate que você trouxe em relação à divisão cartesiana da identidade e às opressões disso decorrente. Essas coisas não vividas separadamente, elas são interligadas. O debate de classe tem relação com o debate de gênero, que tem relação com o debate de orientação sexual, e que tem relação com o debate de raça. E como se apropriar da compreensão, não de uma maneira fragmentada, mas totalizante? O

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meu trabalho de conclusão de curso foi a respeito de classe no marxismo e raça da questão racial brasileira. Como eu, mulher branca, me aproprio desses conceitos também, entendendo o meu lugar diferenciado em relação ao de uma mulher negra, a partir do momento de uma organização coletiva, a partir da percepção de uma organização coletiva de transformação. Acredito ser interessante esse debate de como vamos trazer um entendimento, porque só se modifica aquilo que se compreende sobre essas desigualdades que são postas na sociedade. Como que a gente a partir da compreensão dessas desigualdades, vamos transformálas como sujeitos e sujeitas de transformação social?

Milton Santos Boa tarde, eu sou Milton Santos, sou da Rede de Negras e de Negros LGBT. Primeiro eu quero dar parabéns para vocês. Como a Negra Cris falou, temos muita dificuldade de estabelecer um debate qualificado dentro dos espaços onde se reúne a grande massa negra, quando se trata do tema da discussão sobre orientação sexual e identidade de gênero. Mas o que mais me chamou atenção foi a fala da companheira da Paraíba. Qual foi a intervenção que você fez no caso do racismo? Acredito que, para além de ter identificado, tem que existir uma intervenção, porque, do contrário, vai se perpetuar entre outras crianças negras. Um exemplo foi o caso que aconteceu numa dessas cidades do nosso país aí afora, em que a menina era noiva na festa junina e foi discriminada, gerando um problema sério, em que até os profissionais pediram demissão, porque não eram coniventes com a forma como a instituição queria conduzir. A avó do menininho que era o noivo da quadrilha, branco, se manifestou contrária, dizendo que não queria que o neto dela dançasse com a pretinha de cabelo ruim. Outra reflexão é: eu tive a oportunidade de participar da 9ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente. Estou falando isso porque eu sou conselheiro tutelar, e me chama muito atenção que, na

Conferência dos Direitos da Criança e do Adolescente, havia muito gay. Eu não sei se foi minha dificuldade minha em identificar as lésbicas, mas havia muitos gays e muitos negros e negras, em geral. Acontece que eu senti falta de uma discussão referente a esses dois temas. Hoje a gente fala muito em transversalidade, mas isso às vezes tem alimentado a nossa invisibilidade. A gente precisa pensar em uma forma de sermos visíveis novamente, porque fomos muito visíveis em alguns espaços, mas e agora? Não que eu seja contra essa questão da transversalidade, mas eu não gosto da forma como é conduzida. Eu acho que a gente poderia estabelecer uma conversa sobre esses temas.

fazer duas perguntas à mesa. Primeiro para a Tiely, eu queria saber como é que ela trabalha a questão do gênero na música, porque existem alguns grupos que cantam Hip Hop, mas usam os mesmos termos machistas que os caras usam, dizendo que estão se apropriando da forma, etc. E segundo, eu estou me formando em Licenciatura em Artes Visuais e estou tendo grande dificuldade com meu orientador, porque eu coloquei a questão da raça e toda vez ele risca raça da minha monografia, dizendo que raça não existe. Então, eu quero trazer para a mesa esse debate para conversar também um pouquinho sobre isso, pois preciso de mais informações, mais dados, mais coisa escrita, mais base para eu encarar esse professor. Obrigada.

Daniel Costa

Leila

Boa tarde a todas. Eu sou Daniel Costa, da Rede Afro LGBT aqui do DF. Parabenizo a produção do evento por garantir essa mesa. Uma discussão sobre identidade sexual, orientação sexual e identidade de gênero como essa é maravilhosa. Acho que pode ser a primeira mesa de vários outras nas edições futuras do festival. Parabenizo também a Negra Cris, uma pessoa maravilhosa com seu charme, sua doçura, e parabenizo ainda a Ludymilla, por ela ser a mulher trans do DF. Recentemente a Secretaria de Direito Humanos (SDH) lançou os dados do relatório de violência homofóbica no Brasil. Constatou-se que a juventude negra é a que mais sofre essa violência. Tendo em vista a questão da escolaridade, o relatório aponta também que a comunidade negra se torna a mais homofóbica, pelo seu caráter monopolístico. Então, eu queria entender como que o racismo perpassa a discussão, entender como que o racismo pode ser o primeiro fator dessa ação?

Meu nome é Leila. Quando a gente iniciou essa questão LGBT das negras e negros, não vinha à tona em nenhuma mesa, nem na mesa proporcionada por nós negras e negros, nem na mesa LGBT. Então, primeiramente, eu gostaria muito de parabenizar essa iniciativa do Latinidades de colocar esse tema. Segundo, vou pegar um gancho no que a Ludymilla falou sobre esse permanente questionamento da identidade de gênero, que muitas vezes para nós, como indivíduos, não importa, mas como seres que trabalhamos no coletivo e que trabalhamos política, sim. Necessitamos estar nessas caixinhas e escolhermos de qual caixinha nós fazemos parte, mesmo a gente sabendo que pode não fazer parte de nenhuma dessas? É uma pergunta para todas. De que forma que nós refletimos isso na identidade que não existe para o coletivo, que não nos identifica? Enfim, de que forma que a gente transforma isso na nossa militância diária e que isso entre tanto na questão da negritude, do movimento negro, quanto também na questão LGBT.

Melissa

Tiely Queen

Boa tarde a todas. Meu nome é Melissa Navarro, sou uma das integrantes da Coturno de Vênus e quero

Respondendo à Melissa, esse assunto já deu o que falar, primeiramente e principalmente com relação

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às mulheres, independentemente de etnia. O que acontece? Muitas das mulheres que compõem, elas criam uma postura pseudofeminista quando estão compondo. O que significa isso? Elas acabam assumindo um papel feminista nas suas composições e colocam as ideias do movimento feminista dentro das suas composições. De que forma? O corpo é meu, eu faço dele o que eu quiser; o cabelo é meu, eu uso ele do jeito que eu quiser; a buceta é minha, eu dou para quem eu quiser; e por aí vai; mas nas suas composições musicais, isso acaba aparecendo em algumas frases e em alguns momentos tem uma conotação que acaba, para quem está escutando, tendo um entendimento de posicionamento machista; ou acabam imitando mesmo aquele processo de construção de composição musical em que os meninos fazem mesmo, para ter visibilidade e para serem aceitas. Então, são dois tipos de produção musical que existem. Uma é aquela produção musical com engajamento político, de movimento político, do movimento de mulheres dentro do movimento Hip Hop; e a outra diz respeito a algumas composições que acompanham todo esse know how de letras machistas, homofóbicas, que acabam sendo reproduzidas por mulheres também. Mas esse questionamento é para ter espaço dentro do movimento. Não é questão de ser respeitada. São coisas super diferentes e complicadas. As minhas composições não têm isso. Quando a gente canta alguma coisa relacionada ao corpo da mulher, às formas da mulher, diz que a mulher é gostosa, é linda, que a preta linda, a gente tem que ver como foi o processo de construção política dessas meninas que produzem. Não estou falando só no Hip Hop não, mas no Rap, no funk também. Existem grupos de funk de mulheres também que cantam a mesma coisa que os homens cantam, mas isso é para demarcar território e para mostrar que, se os homens podem, as mulheres podem também. É mais por isso mesmo. É uma questão de se posicionar dentro de um movimento em busca de respeito ou de visibilidade.

Verônica Lourenço Então, eu vou tentar comentar um pouco de tudo o que foi dito, trazendo a questão da educação que a Ana Paula e o Milton apresentaram. Sem ação não há transformação. Foi isso que o Milton bem trouxe. A Ana Paula perguntando o que fazer, como mãe, como tia, enfim, como pessoa que está do lado da criança. Como foi o meu caso como tia do Vinícius? Eu não fiquei inerte. Eu conversei com a mãe, a gente conversou com a escola dele e depois a gente viu que era uma prática das crianças dentro da escola. Levamos o questionamento para a escola. Às vezes, a gente fala da sociedade como se ela fosse uma coisa à parte, mas a sociedade é escola, é a família, tudo é sociedade. Então, as crianças vão para a escola com o que elas aprendem dentro de casa. Vinícius foi com a bagagem dele e tinha várias outras. Ele estuda até hoje em escola particular. Ele não estava em escola pública. Então, a maioria ali tinha esse outro pensamento que foi colocado para ele. Hoje ele está em outra escola que tem um processo construtivista, que tem um processo diferenciado, mas é muito difícil, porque a maioria que paga a escola está na regra do capitalismo. Como educadora, podemos procurar respeitosamente a mãe e conversar. Eu já passei por isso trabalhando com adolescente, não era nem com criança, e com o próprio Vinícius a respeito da camisinha. Uma vez, Vinícius levou camisinha para a escola para mostrar para os amiguinhos dele: “Sabe aquela propaganda que a gente viu de camisinha? É isso aqui. Eu perguntei para a minha tia, não é a camisinha que a gente veste. Quando a gente ficar grande, que for namorar, vai usar isso aqui”. Lógico, houve estranhamento no ambiente escolar. É assumir uma responsabilidade muito grande, porque, como professora, você está indo na contramão dessa sociedade, ao lidar com o fato de que você manda o seu filho para a escola e lá tem um coleguinha que mostra uma camisinha, e a professora procura tratar de forma natural. Mas há que se procurar fazer pelo menos uma parte. E que bom que uma parte de nós educadoras e

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educadores tem procurado estabelecer outra construção, outra metodologia de educação, a educação que não vai pelo estranhamento, mas procurar entender, superar da forma mais natural e construtivista possível. A resposta não está dada, mas é bem na linha do que o Milton falou, que sem ação não há uma transformação, não há modificação. Cada uma de nós tem um papel, como a Luana tinha trazido antes. A companheira Ariele traz muito a questão da fala da Negra Cris. Não é bem uma sobreposição ou hierarquização. Algumas pessoas até colocam para a gente olhar para a história do nosso país. O Daniel faz uma pergunta que é muito sábia, quando diz assim, por que quando vai estudar, por exemplo, o assassinato dos meninos gays, está lá em primeiro lugar o negro? Não é à toa, é um comentário bem racista e é do cotidiano. Negro parado é suspeito, correndo é bandido. Não adianta. O nosso país foi forjado nisso. Ainda existe uma corrente que trabalha na manutenção do racismo, que diz que, independentemente de qualquer coisa, você é negra, este lugar não é seu, a academia não é nossa, o avião não é o meu lugar. Vivi um caso de eu estar no aeroporto, a TAM errar a sigla, em vez de botar PB, botou PI. Eu estar lá na Paraíba para viajar e como é que viajaria do PI e não da PB? O meu localizador estava lá, viram que não foi um erro meu, foi um erro da companhia. O avião atrasou uns vinte minutos. Quando eu fui entrar, a moça olhou para mim e falou: “O embarque está encerrado”. Eu disse: “Eu sei”. Ela: “Não, senhora, nós só estamos esperando uma passageira”. Eu disse: “Pois é, mas a passageira...”. Ela não me deixava nem concluir as frases. Eu não podia ser aquela passageira, e não foi porque eu era lésbica, porque ela não sabia que eu era lésbica, mas ela viu uma negra na frente dela, e logo deduziu que aquele não era o meu lugar. É disso que a gente fala. Não estamos dizendo que uma coisa deve ser discutida, e a outra não. É o que a Jurema e outras companheiras de movimento chamam a atenção para a questão da interseccionalidade, que a Negra Cris também traz. A gente precisa ver isso de

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forma cruzada, porque quando a gente cruza os dados, como Daniel bem trouxe, a população negra está mais vulnerável. Quando a gente olha para o Milton, mesmo sabendo que é gay, a primeira coisa que a gente enxerga é que ele é negro. Olha para mim, é a negra. Olha para a Leila, é a negra. Olha para a Janaína, é a negra que aparece. Depois vêm as outras coisas. O Brasil foi cunhado em bases racistas, e a gente precisa é desconstruir e reconstruir novos paradigmas. Como é que eu faço no meu lugar, de mulher branca? Porque quer queira, quer não, as mulheres brancas, muitas que são até mesmo bem companheiras da luta antirracista, estão numa zona de conforto, no sentido de que têm certas garantias e regalias, mesmo que não concordem com isso. No aeroporto, naquele episódio, quando a outra moça me alcançou e me perguntou: “Senhora, por que a senhora não embarcou?”. Eu falei: “Porque ela não me deixou dizer que o avião está esperando por mim”. A moça olhou para ela e falou assim: “A passageira é ela”. Vocês acham que parou por aí? Não, ela ainda falou assim: “Você se responsabilize”. E olha que eu estava de roupa indiana, que não é barata, de salto alto, maquiada, estava bem vestida. Leila traz a questão como ser reconhecida numa identidade que eu tenho, mas que na sociedade não está posta? Quem me fatia é a sociedade. Por exemplo, eu sempre digo que eu tenho livre orientação sexual com prevalência lésbica. Eu quero beijar, trepar, amar, foder com quem eu quiser, independentemente do sexo que a pessoa tenha, mas a sociedade impõe que isso não é bem assim. Como a Ludy traz, dizem que eu não tenho personalidade por mudar, mas não seriam eles que não têm personalidade para aceitar que eu quero mudar e me dou o direito de vivenciar? Então, quando eu marco meu ser político, eu forjo a espada para guerra como lésbica e negra, porque é isso que corta lá dentro e lá fora, mas quero vivenciar a minha sexualidade, a minha afetividade com quem eu quiser. Fui casada por oito anos com uma mulher. Já tive várias namoradas e vários namorados, e hoje

eu estou com namorado. Há pessoas que não aceitam porque eu “era” lésbica. Não deixei de ser. Há pessoas que já disseram que o Johnson, que é o companheiro com quem eu estou hoje, é uma trans. Dizem que ele é filho de fazendeiros aqui de Goiás, e que ele teve que sair do Goiás para a Paraíba, porque os pais não aceitavam, e que ele era modelo, porque ele é bem altão. Tinha que ter uma história de modelo. Dizem ainda que ele foi para a Itália e fez todo um tratamento hormonal e que já viram a cicatriz da mastectomia que ele fez. Isso ilustra como a sociedade é impositiva. Para finalizar mesmo, digo que eu não precisava dizer com quem ou de que forma eu trepo para ser ou não aceita, mas como diz a música: “todo mundo quer saber com quem você se deita, nada pode prosperar”.

Ludymilla Santiago Vamos à questão da identidade. Lembro que participei de uma conferência que aconteceu aqui mesmo, e tinha toda essa questão da transversalidade dos temas. Isso tem que entrar, porque se não for transversal não vai dar certo... Eu ficava pensando: Se as questões muitas vezes não forem isoladas para a discussão, não se consegue dar a visibilidade necessária, e mais uma vez elas ficam invisíveis. Fica difícil enxergar essa discussão sobre os temas chamados transversais e, sinceramente, eu não sei como mudar isso. A princípio, para mim, essa é a única forma de encaixar todas as questões LGBT, racial, de vulnerabilidade, de gênero, de identidade... Talvez infelizmente o modelo usado atualmente tenha que ser a chamada perspectiva transversal, porque se não nem assim a gente consegue suscitar essa discussão relacionada a esses temas. Muito se fala que em determinados momentos, é preciso por as coisas em caixinhas, porque, do contrário, não consegue ter um determinado respeito ou credibilidade ao que se vai discutir. Eu concordo que em alguns momentos é legal você afirmar e bater o pé de que você faz parte de uma

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caixinha, mas eu também compartilho a outra ideia e adoro as peças das caixinhas alheias. Não vou me prender nunca à minha caixinha, porque no momento que eu achar que eu tenho que participar da outra caixinha, eu vou. E se por conta disso eu vou perder credibilidade, vou deixar de ser aceita, me desculpa, mas então você vai ter que conviver com a minha não credibilidade, com a minha não aceitação. Acredito que as coisas não necessariamente precisam ser levadas a ferro e fogo. Como a Ariele colocou, a gente precisa ter entendimento para que exista mudança. Acredito nisso. A gente tem que ter a questão da tolerância e do respeito para que haja mudança. Eu não preciso te compreender, mas, se eu te respeitar, já estou fazendo a mudança. Não mudei o que eu pensava, mas eu respeitei o seu espaço como ser pensante, como pessoa modificadora dessa sociedade. É preciso entender tudo para que haja totalmente essa mudança? Acredito ser importante estar segura no momento da fala, para debater sobre alguns assuntos, mas se não conseguir, paciência. Às vezes aquele não era o momento para você. Acho que é isso. Obrigada.

Ana Cristina Conceição Santos / Negra Cris Pensando a partir de Ariele e olhando para a Ludymilla, eu digo: Eu também quero a resposta. A gente fala tanto em solidariedade entre movimentos sociais, só que na prática como é que se dá essa solidariedade, como é que se dá o diálogo? Acredito que a discussão tem que perpassar por aí, pelo respeito. Por mais que uma mulher branca se coloque no lugar de uma mulher negra, por mais que uma mulher heterossexual se coloque no lugar de uma mulher lésbica ou bissexual, o entendimento não vai ser o mesmo, o sentimento não vai ser o mesmo. Mas a abertura que é importante para se buscar compreender o outro. Acredito que falta um pouco disso dentro dos movimentos sociais. A gente tem muito do discurso da solidariedade, mas

não faz esse discurso se concretizar de fato. Trazendo essa discussão em torno das identidades, de não se hierarquizar as identidades e sim pensar pelo viés da intersecção, lembro-me de uma feminista negra inglesa que fez uma pesquisa sobre a organização de mulheres negras. Outros sonhos são possíveis é o nome do livro de Julia Sundiver [?]. Ao fazer a pesquisa sobre como se dá a organização de mulheres negras em Londres e em umas três cidades da Inglaterra, o que ela detecta? Que as mulheres negras organizadas não traziam a questão da sexualidade, ou quando traziam, era em torno da heteronormativida, da heterossexualidade, falando da opressão sofrida diante da sociedade, diante de seus companheiros. Quando as lésbicas negras apresentavam seus questionamentos, as outras não queriam abordar a questão, colocavam o debate no campo do privado. Essa é uma questão para discutirmos. Em 1980, aconteceu na Inglaterra o Primeiro Encontro de Lésbicas Negras, justamente para falar dessa invisibilidade que elas passavam tanto no movimento social negro, como um todo, quanto no movimento de mulheres negras. Aqui no Brasil o Primeiro Encontro de Lésbicas Negras aconteceu em 2006 na cidade de São Paulo. Temos de pensar nisso. Como trabalhamos de forma interseccional? É reconhecendo o contexto das opressões, entendendo que essas opressões matam, que o racismo mata, a homofobia mata, o machismo mata. Vemos os casos de violência o tempo todo na televisão. A Melissa trouxe a questão da orientação acadêmica, do fato de seu orientador não aceitar a discussão sobre raça, sob o argumento de raça é um conceito biológico, que a raça é humana. Só que existe racismo no nosso país, e ele é construído de forma ideológica, é uma construção social. Então, é nessa perspectiva que eu acho que você tem que apresentar para ele. Se existe racismo, existe raça ainda que como categoria social. A partir desse viés, você vai justificar o seu trabalho. A academia não apresenta autores negros para dialogar, e existem muitos trabalhos bons de teóricos negros,

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teóricas negras que estão pensando, estão dentro da academia, mas são invisibilizados. Para contribuir com essa sua pesquisa, eu trouxe o nome de alguns autores: Stuart Hall, Kabengele Munanga, que vai estar aqui. Do trabalho que eu fiz no mestrado, meu aporte foi o Kabengele, porque ele vem dizendo isso nas escritas dele, que raça não é uma construção biológica, que a raça é humana, mas que, diante do fenômeno do racismo, é preciso entender esse registro da raça. Temos a Nilma Lino Gomes, professora da UFMG; a Gislene dos Santos, que tem um livro ótimo chamado A Invenção do Ser Negro, no qual ela recupera toda a história da construção da categoria “negro”. Ela é uma professora da USP, mas a academia não trabalha com esses autores. Em nossa ação política, no nosso fazer política, como sujeitos a partir dos espaços que ocupamos, nós temos que dar visibilidade também a essas pessoas. Nesse ano, a gente teve aprovado um projeto de gênero e sexualidade em comunidade quilombola, que eu estou coordenando no Alto Sertão Alagoano. A preocupação é justamente essa. A gente vai trabalhar com 30 crianças e 30 adolescentes e jovens, por meio de oficinas. Isso vai me amparar para estabelecer um diálogo com os pais e as mães da escola. Vamos trabalhar no âmbito da escola, porque quando for trabalhar gênero e sexualidade, eu vou ter que trazer também a questão da orientação sexual, a questão homoafetiva. Eu vou ter que trazer essas questões à tona. Eu não vou trabalhar com gênero só tratando da violência contra a mulher. Vou ter que trazer uma outra discussão interseccionalizada

com raça. O Plano Nacional de Políticas para Mulheres, que prevê, para a educação, o Plano Nacional de Educação e Direitos Humanos, tem propostas aprovadas nas conferências municipais, estaduais e na conferência nacional, que tratam das especificidades da população feminina e LGBT. O mesmo se dá com a Conferência de Igualdade Racial, da SEPPIR. Então isso tudo é o que vai dar suporte e afirmar esses conhecimentos, para não ficar parecendo que a gente está inventando a roda, que a gente quer tumultuar, que a gente quer tornar as crianças homossexuais. Como pensar na escola, com o diretor, com os professores, para que a gente de alguma forma vá minimizando essas formas de opressões, vá minimizando essas desigualdades? Mais uma vez agradeço por estar aqui.

Tábata Alves Também pegando um ganchinho no que dito pela Negra Cris, pelo Milton e pela Ludymilla, eu noto que a população tem uma mania de estabelecer muito segmento. Eu sou lésbica, eu sou travesti, eu sou transexual... Para mim é segmento. A partir do momento que você pega todos e une, você ganha uma força maior. Temos um trabalho muito bacana com professores da rede de ensino municipal e estadual. Agora que a gente começou a entrar nas escolas particulares. É difícil porque, primeiro, precisa chamar os pais, precisa se criar todo aquele contexto, explicar que vamos falar sobre identidade de gênero e orientação sexual, que é preciso trabalhar com o jeito como a criança se comporta.

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A gente sabe que tem menino gay que é afeminado, mas tem o que também não é; tem a menina que não quer jogar vôlei, mas sim futebol junto com os meninos, independentemente de ela vir a ser lésbica ou não. O Milton mesmo falou da visibilidade e da invisibilidade. Para nós os negros, a primeira coisa que eles olham é que somos negros, não importa se você é lésbica ou gay. Por outro lado, eles também olham para nós e dizem: “Lá vem a travesti!”, que é o sinônimo de barraqueira. Isso também é complicado para nós, as travestis. Eu acho muito complicado esse negócio de visibilidade ou invisibilidade, porque, bem ou mal, os gays e as lésbicas passam ainda invisíveis. Só a cor mesmo que não adianta. Em São Paulo, a gente tem recebido várias denúncias de meninas que não são lésbicas, mas são negras e, pelo fato de terem amizade com lésbicas, são discriminadas também, naquele contexto todo. Acredito ser muito complicado resolver isso sem uma capacitação, uma sensibilização dentro do âmbito da escola ou em qualquer outro espaço disponível.

Luana Ferreira Mediadora

tenho tentado todo dia, eu não sou uma completa vitoriosa nisso, mas sou uma conquistadora diária nas tentativas de ser uma pessoa menos agressiva nas minhas expressividades, de tentar invadir menos os espaços alheios, dada a minha expressividade. Porque às vezes pensamos que somos agredidas pelas nossas condições, pelos nossos comportamentos, pelas nossas preferências, pelos nossos rótulos dentro da sociedade, mas o espaço que eu ocupo é um espaço que em muitos momentos agride minhas companheiras, os meus companheiros. A preocupação de pensar como agente transformadora, diária, tem que existir. Se ela não existe, esse espaço aqui, por exemplo, fica inválido, muito esquisito. Para além de proporcionar questionamento e de instigar novas necessidades mentais, novas posturas, novos conceitos, existe uma proposta aqui, que é a proposta da continuidade. Agradeço ao AfroLatinidades e convido a participar da 8ª Ação Lésbica, no dia 26 de agosto, a partir das 14 horas, entre 502 e 503 sul, conhecida como Parada Lésbica, como a caminhada lésbica. A proposição é de ocupar as ruas inicialmente como mulheres lésbicas, mas ao final coletivamente como sociedade pelo espaço de mulheres lésbicas, pelo espaço da livre orientação sexual. Eu agradeço a oportunidade. Um beijo a todas.

Diante de todas as contribuições riquíssimas nesse momento em que a gente absorveu e se alimenta de todas essas palavras e dos pensamentos que elas geraram na gente, vamos digerir isso com mais responsabilidade e atitude. Temos tido os espaços de reflexão cada vez mais ampliados, mas acredito que tem aí um descompasso nas nossas discussões, nos nossos questionamentos, e nas nossas ações. Então vamos tentar avançar. Eu

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Educação Mesa 10 Vera Verônika Mediadora Mestra em Educação, rapper, ativista Sejam bem vindas, todas as pessoas presentes. Boa tarde às professoras Denise Botelho e Maria Auxiliador Lopes e ao professor Kabengele Munanga. Vamos pedir permissão aos nossos ancestrais, pedir que Orunmilá nos dê sabedoria para que nossas palavras se multipliquem e que elas possam chegar à juventude negra, que é o nosso desejo. Sou professora, pedagoga e rapper. Gosto muito de frisar que sou rapper, porque foi o Rap que me levou à academia e que me motiva estar sempre pesquisando. Nós temos a honra e o prazer de receber essas personalidades negras para falarem sobre educação.

Maria Auxiliadora Lopes Coordenadora-Geral de Educação Etnicorraciais da SECADI-MEC

das

Relações

Meu Nome é Maria Auxiliadora Lopes. Eu sou professora e hoje eu sou Coordenadora-Geral de Educação das Relações Étnico-raciais da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e Inclusão (SECADI). Para vocês se situarem do que a gente está falando, dentro da SECADI, há uma Diretoria de Políticas de Educação do Campo, Indígena e para a Educação das Relações Raciais. Denise, que esteve conosco, sabe qual era a nossa luta para mudar o nome dessa coordenação que se chamava Coordenação de Diversidade. Quando a gente começava a falar,

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questionavam: “Mas dentro de diversidade, tem que contemplar também os baixinhos, os altos, os muito altos, baixinhos, de óculos, os gordos e os magros”. A partir do momento em que a gente pôs Coordenação de Educação das Relações Raciais, isso mudou um pouco. Os dados dizem: 49.932 pessoas foram vítimas de homicídio. Desse total, 26.854 são jovens entre 15 e 29 anos e 74% desses jovens são negros. Ou seja, os homicídios se concentram sobre a população jovem, negra e com baixa escolaridade. O que é que tem a ver a educação e a violência contra a juventude negra? Será que tem alguma coisa a ver? Será que essas coisas estão relacionadas? Violência e educação? Quais são os elementos estruturantes da escola que podem contribuir para essa violência contra juventude negra? Como é o currículo das nossas escolas? O currículo da nossa escola contempla igualdade de condições para mulheres, homens, negros, brancos, asiáticos e indígenas? É isso que nossas escolas contemplam no projeto político pedagógico, no currículo das escolas? E a formação dos docentes? Nós estamos cumprindo o Parecer n. 3 e a Resolução n.1 do Conselho Nacional de Educação, em relação à formação dos professores e em relação ao material didático? Há pouco eu saí de uma reunião em que se discutiam essas questões e eu dei como exemplo de um livro didático que havia sido avaliado pela comissão. Nesse livro didático, está registrada uma briga na rua entre duas mulheres. Uma delas era escandalosa, falava palavrão, mas o texto não diz se a mulher é negra ou branca. Porém, a ilustração a registra como uma mulher. Então, fica a pergunta: Como que é essa

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avaliação? Como é que uma criança se vê em um livro? O que essa criança está esperando? O que esse jovem está esperando? Se o livro diz que ele não tem família, que ele surgiu no Brasil com a escravidão. Ele nada sabe da origem dele africana, não sabe nada sobre África, eu estou passando o perfil. Como fica a autoestima dessas pessoas? O universo semântico das nossas escolas, como é? Os cartazes nas paredes? As nossas ilustrações tratam homens, mulheres, brancos, negros, indígenas? Como é a distribuição de estímulo, de carinho, é igual para todas as crianças? E a negação da diversidade racial na composição da equipe escolar e até mesmo na equipe do sistema educacional brasileiro? Quantos negros têm no Ministério da Educação com poder de decisão? Quantos negros tem cada Secretaria de Educação com poder de decisão? Como é que a criança se vê representada nessa composição da equipe escolar ou da equipe do sistema educacional brasileiro? Quais são as consequências disso? Diante da não percepção do diálogo com possibilidade positiva de composição de ideias, comprometimento do senso crítico e ético, como é que a gente pode debater alguma coisa quando se tem a ideia de uma superioridade racial? Como que é o diálogo numa escola onde se tem a ideia de superioridade racial? Esse conceito de hierarquia racial acompanha a criança: “Eu sou mais feia, eu tenho o cabelo ruim”. Há quem interfira nessa dinâmica para dizer: “comparando com o quê vocês estão dizendo que o cabelo é ruim? O que é cabelo ruim? Em relação a quê?”. Porque isso a criança escuta todo dia. Esse conceito de hierarquia racial é muito sério. Quais são as consequências para a sociedade? O resultado é perpetuação da ideologia racista, formação de indivíduo racista, permanência das desigualdades raciais, potenciais subaproveitados, e a cultura da violência, que vai colaborar com aquilo

que eu disse inicialmente sobre as mortes de jovens negros. Nós temos exemplos seríssimos de violência na escola. No ano passado, nós tivemos uma adolescente de 17 anos assassinada numa sala de aula em Belém do Pará por causa de briga sobre cabelo. Essas duas alunas vinham juntas há quatro anos, mas como é que o professor nunca tomou uma providência em relação a isso, deixando chegar ao ponto de uma aluna matar a outra? O que nós lá na Coordenação das Relações Etnicorraciais estamos fazendo? Antes de falar mais sobre isso, eu gostaria de chamar a atenção para um ponto. Quem é educador, quem é pai de aluno deveria estar cobrando. O MEC tem hoje Diretrizes Curriculares Nacionais para todos os níveis e modalidades de ensino, e todas elas tratam de educação das relações raciais. Temos diretrizes para a Educação Infantil; o Ensino Fundamental - Séries iniciais; Ensino Fundamental - Séries finais; e Ensino Médio. Diga-se de passagem, eu achei que não estamos bem representados no Ensino Médio, porque, ao invés de tratar de educação, a diretrizes falam em combate. Para tratar de educação, nós não podemos mudar essa palavra de educação para combate, mas nas diretrizes do Ensino Médio, o termo mais usado é combate. Nós temos formação continuada de professores, elaboração e distribuição de materiais didáticos e paradidáticos que atendem o Parecer n. 3 e a Resolução n. 1 do Conselho Nacional de Educação, que vão nos dizer como que é que nós vamos cumprir a Lei n. 10.639/2003. Tivemos a publicação da coleção História Geral da África. Todos os volumes já estão nas bibliotecas públicas, nas bibliotecas das universidades e nós estamos distribuindo também o CD para todas as pessoas que solicitarem.

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Outra coisa é o edital. Nós temos esse ano dois editais. Um é para o Programa Nacional de Bibliotecas Escolares, do Programa Nacional do Livro Didático, que é temático. Nesse programa temático, os livros vão ser adquiridos pelo Programa Nacional do Livro Didático, desde que contemplem a Educação das Relações Raciais. Há uma lista de detalhes que devem ser considerados: indígenas, direitos humanos, quilombolas, sustentabilidade socioambiental, campo, educação de jovens e adultos, educação especial de juventude, etc. Esses livros têm que contemplar isso, do contrário, não serão adquiridos. O segundo é o edital do Programa Nacional do Livro Didático 2013 (PNDE), que é tudo o que nós queríamos.

da Silva, tem a biografia dele. Tem o material que vai me dizer como é que eu vou trabalhar isso em língua portuguesa, em matemática. Há todas as orientações. Mãe Menininha do Gantois. São várias personalidades que estão contempladas naquele livro e a gente está mandando para a escola. Outra peça importante é o livro Orientações e Ações para as para Educação das Relações Raciais, que é muito interessante. Tem outro que é Superando o Racismo na Escola, que também tem várias orientações, tanto para os pais trabalharem com os filhos quanto para as escolas e os professores. Então, eu estou às ordens de vocês. Muito obrigada.

Outro ponto importante, e uma das coisas que me deixa realmente zangada, a professora Denise Botelho sabe disso, trabalhamos juntas por muito tempo, é quando eu vejo os órgãos de comunicação dizer os “descendentes de escravos”. Por toda a vida, eu briguei por isso, dizendo que não sou descendente de escravos, eu sou descendente de africanos que foram escravizados. Outra coisa é o fato de a escola só falar sobre os negros no 13 de maio, para tratar de escravidão, e no 20 de novembro, por conta de Zumbi. Nós temos materiais que talvez muita gente aqui conheça, estamos tentando fazer com que a escola os incorpore ao cotidiano. Uma dessas ferramentas de valorização da população negra é o Yoté, um jogo africano. Foram produzidos kits e as escolas estão recebendo. A gente não sabe muito bem se estão utilizando. Tem uma parte do jogo que são só sobre personalidades negras brasileiras. Primeira personagem, Valdemar Ferreira

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Vera Verônika Muito obrigada, Maria Auxiliadora. Vocês conseguem acessar todas essas informações e as publicações no site do Ministério da Educação (www.mec.gov.br) e no site da Cor da Cultura (www.acordacultura.org.br).

Denise Botelho Professora do Departamento de Educação da UFRPE e Pesquisadora da linha Educação e Políticas Públicas: Gênero, Raça, Etnia e Juventude (GERAJU) Sou Denise Botelho. Como eu sou uma pessoa de religião de matriz africana, eu começo hoje pedindo a permissão para que o senhor da comunicação permita que o que eu fale possa de alguma maneira tocar o coração de vocês, não a mente, mas o coração, porque, da perspectiva racional, nós já sabemos que precisamos mudar, mas a mudança precisa de muita luta. Quiçá o senhor do ferro esteja à nossa frente, vencendo todas as nossas batalhas. E como nem só da natureza masculina é feito o universo, que a senhora dos ventos possa soprar o seus bons ventos entre todos nós. E para finalizar esse grande xiré, que o senhor do alá branco nos cubra e nos traga bastante tranquilidade, paz e, principalmente, saúde para possamos viver em um mundo diferente, no mundo que nós vamos construir. Eu bem que gostaria de começar falando dos avanços na área de educação e relações raciais, mas, infelizmente, não tivemos avanços efetivos. Nós conquistamos, principalmente, um aporte legal que nos permite ir adiante, mas isso ainda não é avanço. Para que haja avanço, nós precisamos saber o nosso papel como sociedade civil, e é um pouco sobre isso que eu vou querer falar. Nós não vamos mais nos debruçar sobre o passado de escravidão, porque todos nós sabemos sobre as dores

desse período. Há várias gerações que só nos é falado desse capítulo da história. Só se sabia que era negro por esse viés. Na escola, só se falava nesse assunto lá pela sétima série do atual Ensino Fundamental, quando na História do Brasil aparece a história de negros e negras, como se a gente não existisse antes da colonização. Além disso, no que diz respeito ao nosso processo da abolição, o negro e a negra não são protagonistas, quem aparece protagonizando a história é a princesa Isabel. Não por acaso, muitas das nossas famílias colocam o nome das menininhas de Isabel, em homenagem à princesa redentora. Eu quero dizer que o nosso passado é um passado de luta. Nós conquistamos essa abolição e até os dias de hoje estamos no processo de resistência. Eu quero falar de uma forma geral nos movimentos sociais e também na situação das mulheres negras que são grandes protagonistas de transformações na sociedade brasileira. Falo de mulheres negras que não achavam o seu lugar de acolhimento nem no movimento negro, nem nos movimentos feministas. Elas, em sua luta, começaram a pensar educação, porque essa é uma demanda importante para as mães. Em termos de organizações, eu gostaria de destacar, primeiramente, a fundação da Frente Negra Brasileira, na década de 1930. Nós tivemos uma movimentação muito profícua dos diversos movimentos negros ao longo do século passado. Falo movimentos negros porque são várias facetas dentro de um grupo maior. Tivemos também o Movimento Negro Unificado, a partir de 1978. A gente foi aprendendo com os afro-americanos, com os africanos da África do Sul, que combateram a lógica da Apartheid, a lógica da segregação. Aqui no Brasil, 1995 foi uma data importante para nós. Sabem por que aconteceu a Marcha Zumbi dos Palmares em 1995? Alguém sabe? Vocês não aprenderam isso na escola, não? Só aprendeu quem é militante. O que

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aconteceu? 300 anos do assassinato de Zumbi dos Palmares. Acho que importante dizer do assassinato. Então, essa Esplanada dos Ministérios “enegreceu”, porque o povo negro veio para a rua e a partir daí nós pontuamos, passamos a demandar mais efetivamente do Estado. Se a gente está falando de políticas públicas, é importante a gente entender o papel do Estado nisso. Após a marcha, ainda lá no governo do FHC, instituiu-se um GT para valorização da população negra. De 1995 para cá, muitas coisas aconteceram. No âmbito internacional, aconteceram a Conferência Intergovernamental Regional das Américas, no Chile, em 2001; e a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul. O encontro de Durban é muito importante para nós porque o Brasil assinou o documento da conferência e se comprometeu internacionalmente a fazer todos os seus esforços para superar a discriminação e o racismo no território nacional. É isso mesmo? Será que já está mudando? Vamos ver. Não podemos nos esquecer da questão saúde. Entre 2000 e 2003, aconteceram várias conferências que resultaram na criação de grupo sobre a saúde da população negra, o qual, num diálogo com o Ministério da Saúde, desenvolveu a Política Nacional de Saúde da População Negra. Afora vários motivos, em virtude da relação entre saúde e educação, essa frente de luta se mostra muito importante porque um dos maiores danos que o racismo causado são os danos psíquicos. Por quê? O processo de racismo a que homens e mulheres negras são submetidos gera um grande desgaste, e o resultado desse dano psíquico

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precisa ser olhado tanto pela educação quanto pelas políticas públicas na área de saúde. O ano de 2003 trouxe duas questões extremamente importantes para nós. A primeira foi a criação da SEPPIR. No seu primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio da Silva fez institui a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, com status de ministério, tendo como ministra a professora Matilde Ribeiro. É engraçado como a gente sempre diz da importância da SEPPIR, mas, frequentemente, perdemos de vista que quem faz o controle social, quem verifica se o Estado está agindo, somos nós. Do que vale esse status de ministério se o orçamento não se equipara à menor verba de qualquer outro ministério? Não nos iludamos. É importante para nós? Isso aqui é uma conquista, mas ainda não representa avanço. Avanço real vai ser quando a gente não precisar mais de uma SEPPIR, porque isso significará que todos os ministérios estão fazendo direitinho sua lição de casa, seja na Educação, na Saúde, no Meio Ambiente, etc. Se você agregar raça e gênero, pensar nessa interseccionalidade, aí é que a coisa fica mais difícil. Da perspectiva educacional, 2003 também foi importante para nós porque conquistamos uma alteração estratégia na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), por meio da Lei n. 10.639. Se nós não dermos conta de respeitar a legislação máxima educacional desse país, vai ser muito difícil. Lembrando que no ano que vem se completará uma década dessa alteração da LDB. São dez anos, e a gente ainda escuta depoimentos do quanto as nossas crianças negras estão sofrendo dentro dos espaços educacionais... Mas a resolução legal é cristalina quando no artigo 26-A diz: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. §1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,

resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras” (Lei n. 10.639). Bonito. Está ótimo. Só que vai às para ver... Quem tem filho aqui na escola? Vocês estão vendo tudo isso aí no cotidiano do filho, do primo, do sobrinho, do tio, do namorado, da namorada? Isso ocorre na escola que vocês frequentam? Mas gente, já se passaram dez anos! Ou seja, só ter a lei não foi suficiente. E vejam que além da lei, há as diretrizes para auxiliar quem não sabe nada de educação em relações etnicorraciais. Lá vocês encontram um bom começo. Isso é só para a gente derrubar o discurso dos racistas disfarçados de educadores e educadoras. Depois da lei, depois das diretrizes, em 2009, lançou-se o Plano de Implementação. Olha que coisa linda: Lei, Diretrizes e Plano. O plano é para dizer novamente que é preciso aplicar a lei, a mesma lei que já estava esmiuçada nas diretrizes. Agora é para chegar à porta dos gestores e dizer assim: “E aí, meu amigo e minha amiga, tem jeito?”. O que falta, na verdade, é posicionamento político. A legislação não vai mudar as mentalidades dos nossos docentes, dos nossos gestores, das nossas gestoras. Isso é um problema de falta vontade política e a gente precisa entender o porquê disso. O Brasil ainda é permeado por uma lógica racista. Este país ainda divide pessoas pela textura do seu cabelo, pela dimensão dos seus lábios, pela quantidade de melanina que cada um traz na pele. E ainda acreditamos que esse problema é um problema dos negros e das negras, que este não é um problema do conjunto da população brasileira. Apesar de o grosso da riqueza produzida neste ter vindo da força de trabalho de homens e mulheres negras escravizados e livres, o país nutre a

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crença de que a desigualdade racial é um problema de preto e de preta, afinal de contas, estamos num festival de mulheres afro-latino-americanas. O que para nós é complicado é que essa lógica racista está impregnada, ela está nos meandros institucionais. Quando começou o Censo racial, o que muitos diretores e diretoras fizeram? “Eu não vou perguntar isso para os meus alunos porque eles vão se ofender.” Quer dizer que afirmar o meu pertencimento etnicorracial é ofensa? Na lógica de um país racista, é. Se nós tivéssemos alcançado a realidade de um país multicultural, na produção do conhecimento, na cultura, no acesso, não teríamos esse problema. Cada um teria a sua identidade fortalecida. Nesse país é algo vergonhoso. Uma coisa que precisa ser abertamente discutida é a linguagem empregada nesse contexto todo. Muitas vezes a gente esquece que muito das relações humanas acontece por meio da linguagem verbal e não verbal. Amados, olhem só um exemplo da força da linguagem verbal. Se eu chego todo dia e digo assim: Zeilton, você é um cara bom, você fez a sua lição muito bem. No outro dia, volta a reconhecer o trabalho. Conforme eu vou fazendo constantemente isso, chega uma hora em que o cara vai acreditar que ele é bom. Lembrando que ele é homem e já experimenta um processo de empoderamento diferenciado do vivido pelas mulheres negras. E meninas? Por que você, em vez de apoiála, de fortalecê-la, de reconhecer o seu potencial, você se silencia? O silêncio também é uma forma de violência. Essa violência se manifesta no não dizer, no não enunciar, no não trazê-la para ser a rainha da festa junina. As meninas negras, seja na região CentroOeste, no Nordeste, no Sudeste ou no Sul, dificilmente protagonizam as cenas no ambiente educacional. Essa coisa do afeto é extremamente importante. Quando a gente está trabalhando na formação de professores, eu digo que nós nem sempre vamos amar todos os nossos alunos, mas devemos respeitar a todos.

Respeitar também passa pelo cuidado na distribuição do afeto. Se eu não sou capaz de distribuir afeto igualitariamente na minha sala, eu preciso me trabalhar, porque isso traz marcas muitas vezes são irreversíveis na vida de uma pessoa. Como diz o Antônio Sérgio Guimarães: “O meio ambiente que exclui e nega o direito natural de pertencimento, coloca [a negra,] o negro, brasileiro, brasileira em condições de vulnerabilidade. A presença constante de um estado extensivo pode provocar comportamentos inadequados, doenças psíquicas e psicossociais, além de doenças físicas”. Eu precisei acrescentar a figura feminina na citação, porque essa questão de gênero é muito preciosa para nós e às vezes as pessoas não dão atenção a isso. Acham que é muito detalhismo, muito preciosismo, mas é que a semântica também cria as suas marcas. Quando a gente fala que a coisa está preta, não é que está linda, não está maravilhosa, como é o povo negro. Quando a gente fala que a coisa está preta, é porque o negócio está ruim. É isso que as nossas crianças estão ouvindo e internalizando. Quando nós omitimos a presença das mulheres nesses espaços, nós estamos, até mesmo, dando vazão para as violências combatidas pela Lei Maria da Penha, no sentido de que estamos reforçando o lugar de submissão das mulheres na sociedade brasileira. Voltando, o que é importante chamar a atenção a partir daquela citação? As consequências da ausência de conteúdos positivos na escola, a ausência de modelos positivos. É comum escutar após um episódio de violência em que a criança negra foi alvo de chacota: “Professora, não foi nada. A gente estava brincando”. E qual era a brincadeira? “Professora, a gente chamou de macaco, mas tudo bem”. Tudo bem para quem? Não está tudo bem. E o que é pior, a professora e o professor não dão conta da intervenção. Não ligam para isso, ainda que a criança já esteja reclamando. Sabe o que significa reclamar? É uma defesa psíquica para você sair de um estágio de opressão. A criança já

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está dizendo que está sendo oprimida. No final, resta apenas dizer “Não é nada não, deixa para lá”. É por isso que ainda nós somos barrados nas entradas. As portas dos bancos estão aí para nos mostrar que nós ainda não somos bem vindos. Quando nós sofremos qualquer tipo de opressão, nós não conseguimos reagir. A grande maioria ainda fica presa ao seu processo de repressão. As mulheres negras arcam com o ônus da discriminação de cor e de gênero. Quero ressaltar isso aqui porque a intersecção da discriminação por gênero e raça expõe meninas, jovens e mulheres negras ao maior conteúdo racista discriminatório. Entre as questões que nós temos pensar em políticas públicas, está a criação de lugares diferenciados para as nossas mulheres. O que são, na verdade, políticas públicas? Na minha fala, eu defendo que seja um conjunto de decisões, de ações que um governo vai implementar para solucionar problemas. Os problemas nós já mostramos pelo registro de nossas ausências no espaço educacional, por exemplo. As políticas públicas geralmente têm uma agenda que é estimulada pelos movimentos sociais, que são, depois, também monitoradas por esses mesmos movimentos. Chegamos, pois, num ponto central que é o controle social. Controle social? Mas não já passou a ditadura? Já, gente, já passou. Controle social é uma expressão dentro dos ciclos das políticas públicas que significa que usuários e usuárias, aqueles que serão beneficiados das políticas públicas, deverão acompanhar a implementação dessas para monitorar se essa política está sendo efetivada, se ela está realmente alcançando os objetivos. Por isso que é importante a gente se empoderar. Por isso que é importante a gente conhecer quais são as leis, quais são as possibilidades, quais são os caminhos para que a gente possa então intervir com propriedade. Controle social parte do pressuposto da participação. Na questão da escola, a participação se dá até mesmo no conselho escolar, porque quando chega ao final do

ano, a maioria dos alunos que vão para o Conselho são os meninos e meninas negras. Não há tempo para desenvolver essa questão, mas não difícil refletir que esse lugar destinado aos alunos negros na escola mantém estreita ligação com os números da violência que Maria Auxiliadora apresentou no início da fala dela. Esse destino está sendo cultivado desde muito cedo na escola. Por isso que nós precisamos participar dos nossos Conselhos Escolares, porque muitas das vezes é lá que vai ser definindo o planejamento para o próximo ano, que será decidido se o projeto de político pedagógico vai contemplar a questão racial ou não, entre várias outras questões. Nós precisamos assumir nosso lugar nesses espaços.

povo brasileiro. Isso só será verdade se nós fizermos valer a democracia nesse país, e isso cabe a homens, mulheres, crianças, jovens, indígenas, negros, ciganos, gays, heterossexuais, cabe à gente humana, cabe à gente em que pulsa um coração. Para que esse Brasil esteja, de fato, em nossas mãos, nós vamos precisar tirar do lugar muitos grupos historicamente discriminados e alça-los a um lugar de poder. Aí nós realmente viveremos num Estado democrático. Nós ainda estamos numa tentativa.

Da mesma fora, precisamos nos fazer presentes no orçamento participativo. Nós não participamos dessa vida política, nos lugares em que se decide o que fazer com o orçamento. Nós não decidimos sobre os recursos que serão destinados às escolas dos nossos filhos. É preciso pensar nisto. Há os Conselhos Gestores de Política Pública, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Poder Legislativo, a Ouvidoria, as ONGs. Se você não tiver acesso direto a essas instâncias institucionais, vá buscar lá no seu bairro, na sua cidade, estabeleça uma associação nem que seja com meia dúzia de pessoas que têm um princípio comum. Preto, adora associação. Esse é um legado africano. A gente adora o coletivo. Essa lógica individualista e competitiva não pertence à nossa cultura. Esta lógica foi nos trazidas por uma outra matriz. A nossa matriz diz que a gente come junto, que a gente dança junto, que a gente louva a Deus junto. Se nós formos apenas um gravetinho, é difícil, mas se a gente apanha um monte de gravetinho, fica mais fácil. Ninguém nasce sabendo de tudo. Vocês já viram alguém nascer andando ou falando? Só o Kiriku que saiu da barriga da mãe dele andando.

Muitos de vocês podem ter achado que eu comecei a minha fala e não fiz referência ao professor Kabengele Munanga. Eu queria dizer que eu deixei para agora porque, primeiro, foi muito difícil falar na frente do professor. Professor Munanga, no ano de 1996, foi meu professor na Universidade de São Paulo, numa disciplina de sextafeira. Nós estivemos recentemente em Florianópolis, no COPENE, congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores/as e Pesquisadoras Negros/as (ABPN), que está pensando produção de conhecimento. O professor Kabengele foi homenageado pela ABPN neste ano. Eu confesso publicamente, professor, que eu sou muito grata por ter tido sua aluna. Até a minha chegada ao Mestrado, quando eu já tinha mais de trinta anos, eu nunca tinha tido um professor negro. Eu tive uma professora negra, mas que tinha sofrido todo o processo de embranquecimento e não se via assim. Depois dos 30 anos de idade foi quando eu tive efetivamente a oportunidade de me encontrar com um intelectual negro, e eu sou eternamente grata ao senhor. Muito obrigada.

Assim como a gente nasce, sai arrastando, engatinha e anda, a ação política se dá nesse sentido. Ela é construída. O Brasil está em boas mãos, nas mãos do

Eu acho que depois de tudo que a Maria Auxiliadora e a Denise disseram, eu vou deixar de lado aquele paper acadêmico, que a gente prepara com as teorias, para ficar mesmo nessa conversa, no calor humano. Como todo mundo

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Kabengele Munanga Antropólogo e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

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já disse, eu sou natural da República Democrática Congo. Meu irmão chegou primeiro ao Brasil em 1974 para fazer doutorado em Sociologia na Universidade de São Paulo. Foi o primeiro a estudar a contribuição africana na música popular brasileira, o primeiro a estudar samba na Academia. Depois eu cheguei, um ano depois, em 1975. Fomos os primeiros negros a fazer pós-graduação na Universidade de São Paulo. Antes disso, nenhum negro brasileiro tinha passado pela Universidade de São Paulo para fazer pós-graduação. Estamos falando da maior universidade pública do país, uma das maiores universidades da América Latina. Isso é um exemplo do quanto é duro ser negro no Brasil, até intelectualmente. Quando África do Sul terminou com o regime de Apartheid, havia mais negros com diplomas universitários na África do Sul do que no Brasil de hoje. A questão de educação no Brasil é uma questão muito séria porque a juventude é uma categoria social diferente em todas as sociedades humanas que têm problemas específicos, demandas específicas, até questões indenitárias específicas, mas os países que nós consideramos como os mais desenvolvidos são aqueles que investiram na educação de boa qualidade para seus jovens. E no Brasil o que se constata, o que todo mundo diz é que o problema do Brasil é problema de educação. Se todos os brasileiros têm problema com a educação, imagina para os jovens negros? A nossa situação é uma das piores em termos de educação. É nesse sentido que a educação é o cordão umbilical, que tudo se liga à educação. Você vai numa fábrica e pergunta para: Por que você não tem um engenheiro negro e uma engenheira negra? Ele diz: “Mostra, que eu vou contratar”. A educação é o ponto de partida de tudo. Saúde, política, trabalho, tudo está vinculado à educação. Mas de que educação nós estamos falando? Não se trata apenas de uma formação técnica, profissional, que facilita a mobilidade desses jovens no mercado de trabalho, de vários setores da sociedade, mas de

uma educação que tenha a ver com a formação da cidadania, uma educação que contemple a sua cultura, a sua história, a sua humanidade. São dois pontos. A gente não vê a nossa cara nessa educação que existe. Além do mais, nós não somos bem representados nessa educação desde o princípio. Para resolver o primeiro problema, vem a Lei n. 10.639/2003, que também não caiu do céu. Isso é resultado de uma luta do movimento negro de todos os tempos. Depois, estamos lutando porque as pesquisas mostram que, até no ensino básico, no ensino médio, a taxa de evasão do aluno negro é maior, comparativamente, com outros segmentos da sociedade. Não se trata de uma questão econômica, porque estamos falando das escolas periféricas do Brasil, onde brancos pobres e negros pobres estudam. Então essa taxa de evasão nada tem a ver com a pobreza. Precisa, então, ser explicado de onde vem isso? Será que é o fato de o negro encontrar preconceito na escola que o afasta? Será que é o fato de ele não ver a cara dele nessa escola? Como explicar isso, porque uma questão de pobreza não é. Vocês se lembram de que, alguns anos atrás, tinha um livro paradidático que era utilizado nas escolas do Distrito Federal, livro intitulado Banzo, Tronco e Senzala, que falava da escravidão. Um belo dia, a filha de uma família negra levou a lista do material didático para casa. Olharam, foram comprar os livros, mas quando abriram, disseram: “Não é possível! Nossa filha não pode estudar por um livro com esse conteúdo”. A história até era razoável, mas, quando chegou na hora de ilustrar os chamados escravos − que não são escravos, e sim foram escravizados, pois os seres humanos nascem livres −, o que esses chamados de escravos tinham de humano era apenas do pescoço para baixo, o resto era gorila. A cabeça era de gorila. Essa família lutou e conseguiu retirar esses livros da escola, até das livrarias, mas por quanto tempo, esses livros ficaram na escola até essa família descobrir? Essa família, inclusive, disse que a filha não queria mais ir para a escola.

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Muitas vezes a família negra não entende por que os filhos não querem ir para a escola, porque as crianças nem sempre falam as coisas que elas escutam na escola. Isso tem a ver com os preconceitos que são fervilhando nos livros didáticos, até no relacionamento entre alunos. Isso está ligado a essa taxa de abandono e evasão. Muitas vezes educadores praticam a política do avestruz, fingindo que não estão vendo nada. Mesmo vendo numa sala de aula, no recreio, um aluno negro ou uma aluna negra ser discriminada, eles fingem, em vez de escolherem aquele momento privilegiado para trabalhar a questão do preconceito com todos os alunos brancos e negros. Eles fingem. Mas coitado do negro, ele até anda com a cabeça baixa, mas ele não sabe por que ele anda dessa maneira. Nós tivemos filhos que nasceram fora do Brasil. Eu trouxe meus filhos pequenos para cá. Meu irmão, não. Os filhos dele ficaram nos Estados Unidos. Na primeira semana em que comecei a trabalhar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como professor de pós-graduação, os meninos chegaram do Congo. Eu botei na escola duas semanas depois. Primeiro dia, segundo dia, meu filho chega em casa e pergunta: “Papai, o que é macaco?”. Eu falei: “Meu filho, macaco é como em francês, macaque”. Ele foi xingado de macaco no recreio, mas ele não me disse. No segundo dia, o menino o chamou de macaco de novo, meu filho deu um soco na cara dele. O menino saiu para a sala de aula, a professora queria proteger, soco na cara da professora. Volto para escola e eles estavam de castigo porque eles estão bateram nos outros. Eles vieram de outra cultura, outra educação, reagiram na hora. Mas quantas das nossas filhas que nasceram aqui não reagem? Esse tipo de comportamento acaba prejudicando o processo de aprendizado desses alunos. Com o tempo, todo mundo já conhecia, ninguém brincava mais com eles. Até a cor da bola dos meus filhos era conhecida. Ninguém tocava. Um ano depois eu queria mudar de escola. “Mas papai, vai começar tudo de novo? Já fizemos a paz nessa escola. Ir para outra escola para começar tudo de novo?”

Falei: Meus filhos, a escola não é de bom nível, vamos para a escola particular, o colégio Montessori. Eu vou conversar com a diretora. Vai dar tudo certo. Conversei com a diretora, expliquei os problemas que eles tiveram na outra escola, e tudo bem. No dia seguinte, eles iam de Kombi para a escola. “Olha, o motorista está botando a gente no bagageiro.” Eu falei: Eu não vou acompanhar. Vocês entram, ocupam os melhores lugares nas janelas. Se ele pedir para vocês entrarem no bagageiro, vocês se recusam. Quantos dos nossos filhos passam por esse tipo de tratamento, sem saber nem como reagir. Às vezes, nem falam com os pais. Às vezes, quando falam com os pais, ai não ligam não, dizem: “Minha filha, somos todos filhos de Deus”. Mas outros filhos de Deus estão discriminando outros. Até parecem que Deus vai resolver tudo. Isso é um dos problemas da educação, mas quando esses poucos jovens negros terminam o Ensino Médio, mesmo com toda essa taxa de evasão, no momento de entrar numa universidade pública, também não conseguem entrar em uma universidade pública. Passam pelo vestibular que nós conhecemos, com os filhos de classe média alta, os filhos de pais ricos, para concorrer no mesmo vestibular. Você coloca, na linha de partida, pessoas desiguais e diz: “Olha, vocês agora são iguais. Isso aqui é o ponto de partida. Corra e vamos ver quem vai tirar uma melhor nota de corte para entrar na faculdade de medicina”. Quem sai de uma boa escola tira nota 9, 8, e entra. Esse menino que veio de longe pode tirar a nota 5 e não vai entrar porque é uma nota pífia. Mas olha a caminhada dessa pessoa, a sua luta. De onde ela vem, essa nota 5 pode até ser superior à nota 7 ou 8, mas ele não entra. Aí que se coloca a questão das cotas, da reserva de vagas. Eles vão ser submetidos ao mesmo conteúdo, mas as notas de corte vão ser diferentes, porque você não pega alguém que tenha um Mercedes e outro com um Fusquinha para dizer: “Olha, pode vir, vão correr,

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vamos ver o carro mais veloz”. É óbvio que o Mercedes é o carro mais veloz. Ele teve todo um investimento tecnológico para isso. Esse é o ponto de partida da questão de cotas: a maneira de você incluir o outro no Ensino Superior de boa qualidade. Mas logo que começa o debate nacional, vem a reação: “Não é possível. Isso aqui é uma injustiça. Nossa questão é simplesmente uma questão de classe. Nós vamos racializar o Brasil. Nós vamos ter conflitos raciais que o Brasil não conheceu, coisa que os Estados Unidos conheceram, que a África do Sul conheceu. Aqui é um país de harmonia, um paraíso racial”. Ou seja, volta-se à mesma coisa do mito de democracia racial, a isso que a gente escutou por anos e anos. Alguns ainda vão até dizer: “Eles querem suprimir os mestiços por causa das cotas. No momento em que o Estado brasileiro introduz as cotas, reconhece a existência das raças no Brasil, e nós teremos conflitos. Eles vão rotular”. Adjetivar essas cotas de cotas raciais para dizer que as cotas vão introduzir a raça? Ora, se você olhar a demanda do movimento negro, a marcha do movimento negro de 1995 aqui em Brasília, o manifesto, nada disso fala de cotas raciais, fala-se em cotas para negro, fala-se em cotas para população negra. É diferente de cotas raciais. Quando você implementa uma política pública, você tem que designar a quem é destinada essa política pública, à mulher, às crianças, aos jovens ou aos negros. Mas quando nós botamos negro, eles botam raça e depois nos acusam de querer introduzir a raça. A problemática toda é essa, e nós caímos nessa armadilha, começamos a utilizar o conceito de cotas raciais que não é o nosso conceito. Se você pegar o Relatório de Durban, só se fala de cota para a população negra, cota para a comunidade negra. Não há a palavra raça. Se você olhar as políticas de saúde da população negra do Ministério da Saúde, fala-se de doença prevalente/específica da população negra, pois eles tiram doença prevalente/específica da população negra e botam doenças raciais e dizem: “Isso aí é abuso.

Eles querem racializar a saúde no Brasil”. Quando nós falamos de terra para a comunidade quilombola, terra dos pretos, eles tiram e botam terra raciais e nos acusam: “Eles querem racializar a distribuição de terras no Brasil. Os caipiras brancos também têm problemas. Eles querem racializar tudo”. Você vê que toda a questão do debate nacional foi deixada de lado, até mesmo o conteúdo das políticas afirmativas, simplesmente para se falar da questão da racialização. Eu fui vítima desse jogo. Eu fui alvo do Demétrio Magnoli, que me acusou de ícone da racialização oficial do Brasil, de fazer parte do projeto de suprimir os mestiços no Brasil. Todo mundo acompanhou essa matéria. No Estado de S. Paulo, me recusaram espaço para poder responder. A minha resposta circulou online. Alguns de você devem ter lido isso. Finalmente, disseram que é difícil definir quem é negro no Brasil, quem pode ser beneficiado pelas cotas. Em um país onde tem discriminação contra negro, quem discrimina sabe distinguir o que é negro. O zelador de qualquer prédio sabe quem é negro. Ele manda pelo elevador de serviço. A polícia sabe quem é negro. Mas o intelectual brasileiro e o jornalista brasileiro não sabem quem é negro. Eu me lembro de eles dizendo: “Mas isso vai trazer conflitos raciais por causa da racialização”. Já temos quase dez anos de experiência de cotas. Alguém já ouviu falar de movimento ku klux klan brasileiro? Outra falsa acusação é dizer que o negro vai ser envergonhado, diminuído, como se não fosse inteligente para entrar pela grande porta. Os judeus, vítimas do holocausto, estão sendo indenizados até agora. Eles se sentem humilhados? Por que os negros vão se sentir humilhados porque estão sendo beneficiados por cotas, que são uma política compensatória? Essas políticas são necessárias para diminuir as desigualdades. A própria estatística produzida pelo IPEA mostra isso. Sobre brasileiro que estava na

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universidade, 97% eram brancos, 2% eram negros, 1% eram orientais. Os orientais são bem representados, mas somos mais da metade da população brasileira, e representamos apenas 2% da população universitária. Como você diminui esse abismo simplesmente com as políticas ditas universalistas que já existem e que não tem surtido efeito? Então, precisamos de políticas específicas, que são as políticas focadas, as cotas. A experiência de dez anos mostra isso. Aqui na UnB vocês têm cotas. Se você comparar os últimos seis anos com o histórico da universidade verão qual tem sido a participação dos negros. Faça a mesma comparação em todas as universidades que têm experiência de cotas. Nesses últimos anos, entraram mais negros do que em toda a experiência de cem anos. Imagine se a cota se tornar obrigatória nas Universidades Federais? Talvez daqui a 30, 40 anos, não teremos mais necessidade de cotas. O fato é que se esgotaram todas as cartas. A última carta foi a questão da constitucionalidade, porque todos os argumentos foram derrubados, mas essa cartada também não deu certo. No dia 26 de abril, o Supremo Tribunal reconheceu a constitucionalidade das cotas numa votação unânime, de 10 a 0. A gente não esperava nem 10 a zero, mas isso não quer dizer que ganhamos a guerra. Ganhamos apenas uma batalha, porque nós não sabemos o que eles estão inventando agora contra esse processo. Aliás, eu ouvi falar que o projeto já foi votado na comissão de Constituição e Justiça do Senado, mas parou porque a Academia Brasileira de Ciências e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) entraram com uma nota contra, por isso que está parado. E é aí que estamos hoje com a questão das cotas. Avançamos porque algumas universidades que seriam desmoralizados vão continuar o processo. Algumas que ainda não conseguiram entrar poderão entrar, mas é apenas uma batalha ganha, porque isso aqui é uma luta que vem das gerações anteriores, que as presentes gerações vão deixar também para as gerações futuras.

Meu irmão é professor nos Estados Unidos. Ele foi ainda jovem para os Estados Unidos, terminou o colégio, a faculdade e a pós-graduação lá. A questão racial ainda está presente nos Estados Unidos. Mesmo na África do Sul, pela lei, não tem mais o Apartheid, mas o racismo, de fato, ainda está presente, talvez seja mais difícil de derrubar. Às pessoas que ainda têm dúvida sobre cotas, que acham que cota é uma racialização do Brasil, que nós vamos ser um país birracial, só negro e branco, eu as convidaria a fazer uma fotografia em mais de cem universidades brasileiras que têm cotas. A fotografia vai mostrar preto, mestiço, caboclo, moreno, os mestiços não vão ser suprimidos pelas cotas. Eu paro por aqui. Outras coisas virão no debate.

Intervenções do Público Murilo Mangabeira Boa tarde. Meu nome é Murilo Mangabeira, sou integrante do Nosso Coletivo Negro, professor de sociologia do GDF no Ensino Médio. Minha pergunta vai para a professora Denise Botelho e também um pouco para o professor Kabengele Munanga. Na verdade é meio um diagnóstico. Sou professor do Ensino Médio, mas no colégio onde eu trabalho, tem um aluno que se matou na sétima série, mas nós não temos notícia alguma de por que esse garoto se matou. E quando digo que não temos notícia é para dar uma ideia da distância que a gente tem em relação ao público com o qual a gente trabalha. Como o professor falou, e a Denise também, muitas vezes a criança não fala o que sofreu. Para você localizar a causa possível daquele suicídio agora é mais difícil. Para ter uma ideia desse impacto, que é realmente mortal, é preciso lembrar em alguns momentos. A pergunta para a professora Denise é: Quais são as notícias com relação à formação de professores nos cursos de licenciaturas, já que, apesar de você ter que fazer a formação continuada para correr atrás das deficiências do currículo das graduações, a gente ainda não supre a necessidade real de formação

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no campus universitário? Para o professor Munanga, eu gostaria de mais comentários a respeito do PLC 180, já que, além da nota da SBPC, é claro que tem a resistência partidária também, na medida em que, mesmo que esteja pronto para ir para o Senado, precisase do colégio de líderes para ser colocado em pauta e votar, o que está sendo adiado há um certo tempo. Quais são os efeitos?

Josefina Serra Boa tarde. Primeiramente, mais uma vez eu gostaria de parabenizar o Festival da Mulher Afro-LatinoAmericana e Caribenha. Sou secretária de Promoção da Igualdade Racial do Distrito Federal. Na minha época de movimento negro, era a coisa mais difícil ver negro falando sobre negro. A gente só via os brancos, porque a gente não entendia muito bem sobre as nossas

questões. Hoje acho que a gente não tem muitas perguntas para fazer para as pessoas que estão palestrando porque a gente fica emocionada. Eu pelo menos fico muito emocionada quando os negros estão falando sobre os negros. É uma coisa que a gente não sabe explicar. Professora Denise, eu gostaria de destacar principalmente o que a senhora falou sobre essa questão do carinho, do cuidado da autoestima por parte do professor. Eu lembro muito bem que, quando eu cheguei do Nordeste, quando eu cheguei à sala de aula, e eu sentei bem na frente. Logo no início você percebe o carinho da professora para com as outras pessoas. Você quer o tempo todo que ela te perceba, mas sempre que você vai falar, você é reprimida. A sua tendência é ir sentando cada vez mais atrás até chegar o ponto de evadir e não voltar mais para a escola. Se você muito resistente, o seu local de sentar é lá no fundo da sala. Em função disso, quando a professora ia falar sobre a questão da África, a questão dos macacos, a questão dos negros ficava muito evidente. Eu sou da Secretaria para Promoção da Igualdade Racial e uma das propostas hoje em função da Lei 10.639/03 é levar a África nas escolas. Nós já fomos falar com mais de quinze embaixadores. A minha preocupação é justamente no sentido de mostrar que o continente africano não é só um país, ele é um continente com vários países e esses países têm suas especificidades internas. Eu quero mostrar algo diferente do que comumente mostra. Infelizmente, tudo o que ouvi falar a respeito de África na escola tinha a ver miséria, briga de tribo, de etnia. Quando se refere ao macaco, é naquele termo bem pejorativo, discriminador. Quando isso é falado na sala de aula, olham todos para nós negros, nos comparando aos macacos, naquele termo

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bem pejorativo e grotesco, também descaracterizando o próprio macaco e descaracterizando a gente. Em função disso, eu percebi a questão do racismo dentro da escola e sofri muito por causa disso. Eu queria perguntar para os senhores/ as sobre qual a diferença entre bullying e racismo. Do Bullying que existe hoje e do racismo que sempre existiu.

Jeidma Boa tarde. Sou professora da Secretaria de Educação do GDF. Com relação à implementação da Lei n. 10.639/03, na educação básica, a meu ver, na minha experiência como professora, ela só vai ser efetivamente implementada quando o governo colocar essa disciplina História, Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena dentro da grade curricular, assim como português, matemática, e com a mesma importância. Isso porque, infeliz ou felizmente, quem trabalha isso em sala de aula somos nós militantes, e somos poucos porque eu sempre vejo os mesmos rostos e as mesmas pessoas nas palestras e nos festivais. Eu acho que realmente só vai ser efetivo quando tiver essa ação do governo para colocar como disciplina e não como parte diversificada. Muito obrigada.

Jacira da Silva Boa tarde. Sou Jacira da Silva, coordenadora do Movimento Negro Unificado e do Fórum de Mulheres Negras, e também faço parte da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial. Axé para os palestrantes. São parceiros, são compromissados. É um exemplo de que nós não estamos em número maior não pela nossa incapacidade, como é colocado. E vocês senhores, que são nossa referência, são a nossa certeza de que nós podemos, de que nós somos capazes. A minha intervenção é no sentido de dizer que essa Lei n. 10.639/03 é uma conquista. Não deixa de ser, mesmo que há dez anos essa sociedade racista venha insistindo em não nos enxergar na íntegra, nós, descendentes de africanos e africanas. Muitos professores e professoras têm travado essa luta em defesa da Lei n. 10.639 sozinhos. Não é companheira professora? A senhora tem colocado esse compromisso, no sentido do ensino oficial que não lhe

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dá cobertura moral, étnica e financeira. Quando vamos fazer palestras nas escolas, a agressão é muito forte. Começa desde a omissão da direção da escola que é a primeira a estar ausente. O diretor da escola ou a diretora da escola não participação. A atividade fica à mercê do professor e da professora, ou até mesmo do monitor ou do aluno, que muitas vezes é o grande articulador, que busca essa educação plural, étnica, não racista, não sexista. A realização desse quinto festival na Biblioteca Nacional do Distrito Federal tem uma importância muito grande. Isso significa uma forma de defesa da Lei n. 10.639/03, significa avançar, significa romper essas barreiras, essas barreiras que são cotidianas, que hoje podemos enxergar e falar delas, e exigir a transformação de fato. Para eu não me alongar, gostaria apenas de trazer a questão da religiosidade, porque uma das agressões é dizer que a Lei n. 10.639/03, o ensino da História da África e do Brasil nos currículos escolares, vai trazer os tambores, a “macumba” para o ensino brasileiro. Gostaria de saber dos senhores, se isso de fato acontece, se a questão religiosa é um impeditivo para a implementação da Lei n. 10.639/03? Obrigada.

Neide Rafael Também sou professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Nesse momento quero pedir a todos e a todas que busquem dentro de si o som desse tambor que é constante, que bate todos os dias, todas as horas, em todos os lugares de uma forma atemporal. Eu quero dizer a todos aqui, da emoção de uma mulher negra, de 65 anos, com três filhos, quatro netos e filha de uma lavadeira ao estar na presença do professor Munanga, na presença da professora Denise, que representa todas as mulheres negras educadoras que tudo nos ensinaram e nos ensinaram no cotidiano. Talvez o senhor não saiba, mas nós temos as provas, e queremos até cobrar do próprio MEC, da Fundação Cultural Palmares, para que esse material chegue às suas mãos. Trata-se de um material produzido mentalmente há dez anos por uma professora da rede pública, dando aula numa escola da

Samambaia e no colégio Mackenzie do Lago Sul, que carregava os mais pesados livros nos ônibus, porque a minha formação é História da Arte. Essa mulher negra vivia esses dois momentos, dando aula na periferia, e dando aula no colégio dos meninos mais ricos desse país. Mas, graças ao senhor, existe um material chamado Africanidades n. 1. Eu não sei se algum dos senhores ou senhoras já teve o prazer de ver esse material. Estou muito feliz por me sentir realimentada e dizer ao senhor da minha honra para com os meus netos por essa construção, como muitos aqui falaram. Ser professor nesse país é ser corajoso, é ter coragem de enfrentar uma sala de professores, sendo uma professora de religião de matriz africana, que na sexta-feira vai toda de branco, que exige ser respeitada, que diz a todos: Realmente, eu bato tambor. Mas meu verdadeiro tambor está dentro de mim, é o meu coração. A escola tem que ser respeitada nas suas diversidades. Não é fácil ser uma professora negra nesse país. Estou diante de uma professora negra que eu admiro muitíssimo, que é a professora Denise Botelho, que está lá em Recife, que também é um estado muito racista, muito racista. A minha fala é para dizer que nós negros temos que ter uma preocupação do repasse. Olha que lindo o banner que eu estou vendo aqui do Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, mas eu estou vendo dois seres humanos incríveis representantes do continente africano na nossa ancestralidade, o professor Munanga e a professora Denise Botelho. O professor Munanga disse à professora Denise Botelho: “Você é a minha substituta”. Gente, é preciso ter a dimensão do significado desse momento. É dizer que nós temos responsabilidade um para com o outro.

Denise Botelho Estou eu aqui de novo diante do mestre, como já disse aqui, meu eterno professor Munanga, das tardes da Universidade de São Paulo, uma das cidades mais racistas deste país. Eu sou muito agradecida a ele, da mesma forma que sou muito agradecida por aquele

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pessoal jovem com quem eu também aprendo. Eu tive o privilégio de ter o Munanga, mas eu tenho outros parceiros, tenho o Murilo, do EnegreSer, tenho a Ana Flávia, que é minha irmã querida. Poder para o povo negro sempre, que a luta é essa. Tenho muitas pessoas que eu não vou nomear agora, mas que no olhar a gente se encontra e fala “Estamos juntos e misturados”, como dizem as minas e os manos. Nós temos muitas questões, eu vou pontuar algumas. Murilo, sobre o jovem que infelizmente atentou contra a própria vida, isso é uma ocorrência lamentável, mesmo quando o jovem não tira a vida. As consequências da violência se manifestam quando um jovem evade e quando ele não consegue se integrar nessa sociedade e vai para as drogas, quando ele vai para a criminalidade. A violência contra o jovem desencadeia um processo autodestrutivo. Infelizmente, a nossa juventude negra está se colocando na frente dos 38 dos nossos policias, que muitas das vezes também são negros, mas que foram formatados dentro daquela lógica do racismo institucional e estão matando os seus próprios irmãos. A gente precisa olhar para essas coisas. Eu creio no caminho da educação. Dentro disso, o processo de formação dos professores é extremamente importante, mas tem sido colocado em terceiro plano, quiçá em plano nenhum, ou o plano debaixo do tapete para falar a verdade. Eu estive na gestão da coordenação onde Maria Auxiliadora está hoje, de 2004 a 2006. Lá, nós tínhamos uma preocupação em priorizar as políticas de formação de professores. Tudo bem, avançamos, temos diretrizes, temos material, mas nós não temos quem desenvolva esses conteúdos nas nossas escolas. Até hoje a gente não conseguiu sensibilizar nossos gestores e gestoras para essa importância. Lá em 2004, o MEC fez um trabalho de educação à

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distância para essa temática. A ideia era trabalhar com 25 mil professores. Vou aproveitar e responder à Jacira. Nesse processo de formação de professores, o módulo que teve maior evasão, maior desistência, foi o módulo da religiosidade. Eu tinha escrito o texto norteador. Era um texto introdutório, não era um texto que fazia proselitismo, mas apenas apresentava a perspectiva das religiões de matrizes africanas. Porém, foi o módulo de maior resistência dos nossos educadores e educadoras, porque o mundo ocidental percebe a religião de um lugar diferente quando comparado com as nossas referências afro-brasileiras e africanas. A religiosidade está na constituição dessas pessoas, mesmo que não seja a religião tradicional. A religião tradicional hoje, inclusive no continente africano, tem diminuído e muito em virtude das perseguições diversas de outros grupos religiosos mais fortes. Independentemente, a religiosidade está na vida do povo afro-brasileiro. A gente não consegue interpretar e compreender o mundo por essa lógica. Geralmente, quando a gente vai trabalhar com formação de professores, ao se falar em história afro-brasileira e africana, as pessoas logo remetem a macumba de uma forma pejorativa, a candomblé e umbanda. As pessoas não conseguem nem perceber a possibilidade de entender formas diferenciadas de produção do conhecimento cotidiano. Eu tenho acompanhado as ações do Ministério da Educação porque me atingem diretamente. Eu confesso que, da perspectiva da formação de professores e professoras nessa área, eu não tenho boas notícias. Quiçá elas venham, mas mesmo na apresentação da professora Auxiliadora essas ações são bem diminutas. Mas a gente tem que insistir, porque isso é um ponto central. Inclusive, antes de nós introduzirmos nas escolas a disciplina História e Cultura Afro-brasileira e Africana, nós precisamos trabalhar relações etnicorraciais, porque, se for um racista da História da África ensinando, nós não vamos ganhar. Nós precisamos entender que esse país é baseado em uma lógica racista. Se a gente não desmistificar isso dentro do espaço educacional, não tem História da África que dê conta. Nós temos um preâmbulo a ser cumprido.

Precisamos trabalhar relações raciais na formação dos nossos professores, nas licenciaturas. Eu vou até me justificar por algumas cobranças por eu ter ido embora de Brasília. A Universidade de Brasília se arvora por ter sido a primeira instituição federal a ter políticas de ações afirmativas. Primeiro, eu não posso chamar de políticas afirmativas a mera inserção de cotas na realidade da universidade. Políticas afirmativas são um universo muito mais complexo do que isso. Quando eu saí, a disciplina Educações e Relações Raciais tinha sido aprovada há quatro anos. Era uma disciplina do Departamento de Educação a ser oferecida para todos os cursos. Havia eu, a professora Eliane Cavalheiro e professora Vivian, que poderiam oferecer a disciplina, mas em nenhum momento nenhuma de nós sequer havia sido liberada de suas disciplinas para assumir o curso. Com todo respeito que eu tenho, é no mínimo intrigante o fato de a disciplina de meio ambiente ter sido alçada à categoria de disciplina obrigatória, e a disciplina de educações de relações étnico-raciais nunca ter sido nem mesmo oferecida, na universidade que se arvora como uma referência nas políticas de ações afirmativas. Eu fui embora para o Nordeste porque, na minha atual universidade, eu posso, todo ano, oferecer uma disciplina que se chama Educação Afro-Brasileira, podendo até mesmo promover idas ao Centro Cultural de Palmares. Nós precisamos valorizar essas práticas educacionais para além do discurso. Nós precisamos trazer possibilidades reais para os nossos alunos. O processo abstrato pode ter a lei, um plano, mas se ele não se materializa, ele não continua. Quanto à questão da Josefina, eu quero dizer que bullying só passou a ser chamado de bullying quando ele atingiu a classe dominante, porque os negros brasileiros e os negros africanos que para cá vieram sempre passaram por bullying. Quando eu era adolescente e jogava handebol, toda vez que eu pegava na bola, o time adversário gritava “King Kong”. Eu tive que sair da quadra, porque eu não aguentei a pressão psicológica do “King Kong”. Aquilo era um bullying coletivo. Então, bullying, racismos, para nós negros, sempre existiram. Bullying ficou mais rebuscado, inclusive a gente usa

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um vernáculo estrangeiro porque está atingindo outros grupos, mas nós negros sabemos bem qual o significado do bullying. E Neide, eu queria dizer para você que os tambores batem, e principalmente esse tambor do nosso oráculo maior, que é isso que nos une nessa sala. Muito provavelmente a maioria de nós não precisaria estar nessa sala, porque nós temos consciência do que significa a realidade etnicorracial desse país, sabemos qual é o lugar do preto, sabemos qual é o lugar da negra, sabemos qual é o lugar do indígena. Enfim, o lugar da diferença nesse país tem um lugar determinado. Mais do que nós, nós precisamos tocar os nossos tambores lá fora, porque é onde está o problema. Aqui dentro está à solução. Nós estamos aqui pela solução. Oxalá, tenhamos outros eventos como esse. Penso, apenas, que a gente precisa ter um espaço maior para a educação. Não vai resolver o problema, mas quanto mais nós pudermos multiplicar, quanto mais aliados e aliadas nós tivemos, melhor. Quem sabe se no próximo evento tenha uma mesa de educação e cada um de nós traga um racista. Aí eu vou acreditar que nós estamos avançando, porque nos escutar é fácil. Todos nós aqui compartilhamos e comungamos da necessidade de uma educação antirracista.

Kabengele Munanga A questão da formação do professor no espírito da Lei n. 10.639/03 é fundamental, porque todos que estiveram uma aqui tiveram uma educação. Não há como você falar em multiculturalismo na educação da história do negro, da cultura negra, sem uma formação para isso. Por isso, a primeira coisa é a formação dos professores, reciclar os professores, depois produzir materiais didáticos, livros didáticos, com conteúdo diferente, divorciado do conteúdo da historiografia oficial presente nos livros que nós conhecemos, que são repletos de preconceitos. Às vezes, os preconceitos acompanham a ilustração, às vezes o texto é até bom. Quem já leu o livro Casa Grande & Senzala em quadrinhos, uma adaptação do livro de Gilberto Freyre? É um livro paradidático horrível. Ele conta, por exemplo, que as

crianças da casa grande brincavam junto com as crianças de senzala, eram amigos, não tinha preconceito. Na ilustração você vê a criança branca montada na criança negra, que é o cavalo, quanto o menino branco o cavaleiro. Algumas ilustram uma criança branca fazendo xixi na criança negra. Isso se chama igualdade? Mas está cheio de coisa assim nos livros. A gente precisa mudar isso. É o ponto de partida. Precisamos ter reações sim. Vou tocar na questão da agressão religiosa que a senhora se referiu. Se a gente acompanhar a história da humanidade é uma história, em parte, de guerras de religiões. Você pega a Idade Média, as inquisições, as guerras santas, as cruzadas, o conflito na Irlanda do Norte entre católicos e protestantes. A Nigéria está se matando a cada ano entre os mulçumanos e não mulçumanos. E por que tudo isso, se o Deus é o mesmo, só os caminhos para chegar até ele é que são diferentes? Por que os caminhos brigam tanto? Porque as religiões são enxertadas de políticas de ideologias. No nosso caso aqui, desde que os evangélicos existiram, eles estão em busca de clientela, têm que tirar a clientela negra. Aliás, muitos negros estão mais nessa religião do que no candomblé. É uma questão de clientela mesmo, por isso tem que agredir o outro. A partir do momento em que se fala dessas religiões, essas religiões passam a ser valorizadas. Por consequência, corre-se o risco de perder a clientela. Aí que está o problema. No entanto, o que se pede para ensinar não é a liturgia. Se você quer ensinar a história da resistência do negro no Brasil, essa resistência passa pela religião. A religião foi o núcleo da resistência. Não há como fazer a história da resistência negra, sem falar da resistência religiosa. Mas isso incomoda, é uma questão política. Lembro-me que o Hédio Silva ganhou na lei, mas o que aconteceu depois? Ele foi candidato a deputado pelo estado de São Paulo e a Universal de Deus fez uma matéria com tiragem de cinco milhões de exemplares para mostrar que ele estava contra a existência das religiões no Brasil. Todos os negros não votaram nele. A maioria que estava nessa religião. Você vê a política que passa pelas religiões. No entanto, a nossa religião é uma religião que tem caráter familiar. É uma religião que fala de diversidade. Qual é

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha a religião que defende a diversidade, onde as mulheres têm um status de sacerdotes como os homens? A ialorixás têm o mesmo status dos s babalorixás. Nas religiões de matriz africana, todo mundo circula. Os homossexuais são bem vindos, encontram família, encontram pai e mãe, coisas que eles não encontrariam em outras religiões. Para você ver que há uma questão política que passa por aí e hoje eles têm mais força política porque conta com muitos deputados. Qual o candidato à eleição que não conversa com eles? E nós não conseguimos porque nossas religiões tinham controle mais familiar do que as proselitistas. É esse o nosso problema. Mas, quanto ao ensino, a questão fundamental não é a liturgia. Eles não entenderam, as pessoas têm que encontrar um caminho para ensinar os valores presentes nas nossas religiões, porque a resistência é muito grande. É uma questão de criatividade, de imaginação. É como você diz: “Vamos ver como todas as religiões do mundo se posicionam diante da morte”. Você cruza o budismo, o islã, nossas religiões, o judaísmo. Como todas as religiões se posicionam diante da ecologia, das relações entre a sociedade e a natureza? E lá você cruza todas as religiões e não terá mais conflitos. Tem que ter essa criatividade. Se não tiver criatividade, nós teremos problemas, porque a religião é um assunto privado. Eles vão dizer: “Se ensinar a religião negra nas escolas, vamos ensinar todas as religiões”. E lá vai a gente ser derrotado. Mas a proposta não era essa, a proposta era ensinar a história do negro, só que essa história passa pela resistência religiosa. Quanto à do bullying. Há uma grande diferença entre o bullying e o racismo, sem desmentir o que a Denise disse. No bullying, os indivíduos, as pessoas são discriminadas em função das características pessoais: ou é gordo ou fala mal, ou é feio. Já no racismo, a pessoa é

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remetida ao grupo etnicorracial ao qual pertence, independentemente da estética e da beleza. Quando se junta esse tipo de discriminação às questões de ordem individual, então essa pessoa fica duplamente discriminada. Há uma diferença entre o bullying e o racismo, mas as pessoas se aproveitam para retrucar, por exemplo: “Por que os negros se queixam tanto? Tem o bullying. Somos todos vítimas disso”. Não é, somos diferentes. Nós somos duplamente vítimas, de bullying e de racismo. Essa é a diferença fundamental, não há como confundir o bullying com o racismo. Nós temos dificuldade hoje para ensinar África na escola, mas uma dificuldade que vai ser superada pela formação das pessoas. Várias universidades já têm curso de História da África. É um processo que vai demorar um pouquinho, apesar da resistência, mas vai ser superado. E a questão da diversidade na escola é uma questão que para mim começou mal. Quando se fala de África, a primeira coisa que se mostra são os animais da África, como se a África fosse o único continente a ter animais para exibir na televisão. Os hemisférios sul e norte têm animais também. Quando veio a Copa do Mundo na África, a primeira coisa que mostraram foram os animais. Parecia que não tinha gente lá, só animais. Mas o que está por trás disso? É para aproximar os africanos dos animais, para negar a humanidade dos africanos, mas as pessoas não percebem isso. Claro que a África tem animais que valem a pena ser mostrados, mas dava para mostrar toda a diversidade. A diversidade que está na natureza, na fauna e na flora também se encontra entre os seres humanos. As crianças não sabem por que alguns nascem com pele escura, outros com pele clara. As pessoas, as crianças nunca encontraram um livro no Brasil, de qualquer nível, que fale dos preconceitos. As crianças não sabem o que é preconceito. É por aí que nós devemos começar com as crianças. São coisas que a gente deve trabalhar no curso sobre o racismo, nos cursos de pós-graduação. Denise foi minha aluna. A primeira vez que ela teve um curso sobre o racismo foi na pós-graduação. Não existe isso nas grades

curriculares de várias universidades. Mas por que se tem medo de encontrar uma linguagem fácil, acessível para ensinar o combate ao preconceito para crianças, partindo logo da educação básica, fundamental, média? Tem linguagens, onde está o problema? Alguém falou do silêncio. O silêncio que é uma das armas do racismo brasileiro. Não se diz nada, e você mata a consciência dentro das próprias vítimas, dentro de toda a população branca e negra. Não sei se respondi a tudo. A última questão sobre o fato de a lei das cotas que estar parada no Congresso. Isso é uma questão de articulações políticas, porque no COPENE ficou para as pessoas verem a carta do presidente da SBPC, da Academia Brasileira de Ciências, para poder formular uma resposta. Por que a nossa posição é sempre de defesa? Eles atacam, a gente se defende, mas você não pode se defender sem ter o conhecimento do conteúdo de quem ataca. Creio que Associação dos Pesquisadoras/es negras/os vai tentar responder, porque aí é uma questão política. Até lá, a SBPC não entrou com uma coisa contra. Eles achavam que iriam ganhar no Supremo Tribunal, mas perderam. Agora eles entram com a questão da legitimidade. Legitimidade do ponto de vista de quem, deles ou do nosso? Agora não se fala mais de legalidade porque perderam, agora é legitimidade, e entraram com essa ação contra. Precisa nos articular e nos defender. É por isso que eu disse ganhamos apenas uma batalha, mas a guerra continua.

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Racismo Ambiental na América Latina Mesa 11 Ionara Talita Silva − Mediadora Jornalista, educadora popular, assessora de Comunicação da Coordenadoria de Juventude da Secretaria de Governo do Distrito Federal

Carmela Zigone Antropóloga (UnB) Uma primeira questão que me foi solicitada pela organização foi falar um pouco do conceito de racismo ambiental. Esse conceito é muito interessante porque ele rende uma análise tanto para o meio rural quanto para o meio urbano. A gente sabe que tem particularidades nas comunidades negras rurais e urbanas e que dentro das comunidades rurais também há diversidade regional, étnica. Internamente também nos grupos urbanos, há várias realidades quanto às comunidades negras e jovens. O conceito de racismo ambiental permite para falar de ambas as realidades, porque a gente está falando de racismo e de meio ambiente. Isso se apresenta tanto na realidade rural quanto na urbana. E o conceito dá conta também de especificidades etnicorraciais, de países diferentes, dessas desigualdades fundadas no processo de colonização. Você pode aplicar o conceito de racismo ambiental, por exemplo, para o caso dos ciganos na França, que têm sido sistematicamente discriminados. Isso só para dar um exemplo de como é um conceito que rende uma série de análises quando a gente pensa no ponto de vista de um capitalismo que exclui as pessoas a partir de uma marcação de raça e de uma marcação de gênero também. Eu trago gênero também porque, uma vez articulado com raça, compõe o quadro da desigualdade relativa ao meio ambiente, como demonstrado até

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mesmo em um relatório recente da ONU que fala de gênero e mudanças climáticas, classe, raça, gênero. Além disso, já existem pesquisas muito concretas da questão ambiental e do gênero. Eu inicio lendo um trecho da declaração da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, porque o conceito de racismo ambiental vem acompanhado do seu outro positivo, que é a justiça ambiental e que estendo para justiça racial: “Trabalhadores e população em geral estão expostos aos riscos decorrentes das substâncias perigosas, da falta de saneamento básico, de moradias em encostas perigosas e em beiras de cursos d’água sujeitos a enchentes, da proximidade de depósitos de lixo tóxico, ou vivendo sobre gasodutos ou sob linhas de transmissão de eletricidade. Os grupos sociais de menor renda, em geral, são os que têm menor acesso ao ar puro, à água potável, ao saneamento básico e à segurança fundiária. As dinâmicas econômicas geram um processo de exclusão territorial e social, que nas cidades leva à periferização de grande massa de trabalhadores e no campo, por falta de expectativa em obter melhores condições de vida, leva ao êxodo para os grandes centros urbanos”. Sabemos, no entanto, que a pobreza tem cor. Tânia Pacheco, uma grande estudiosa da questão do racismo ambiental no Brasil, denuncia uma coincidência em relação à desigualdade na distribuição dos recursos naturais e as desigualdades raciais. Ou seja, as populações brancas do planeta usufruem uma parcela

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maior de recursos naturais e ambientais, de modo geral, enquanto tem o menor ônus com relação aos resíduos. Essa coincidência está na origem do termo racismo ambiental. Quando é que surge esse conceito de racismo ambiental? Ele teria surgido nos Estados Unidos, na Carolina do Norte, no final da década de 1970, quando uma população negra se mobilizou contra uma questão de depósito de resíduos, mais especificamente, do bifenilpoliclorado. Isso culminou num estudo para entender por que aquele resíduo estava sendo jogado naquele espaço onde habitava essa população negra. No ano seguinte, um primeiro estudo sobre a questão faria uma descoberta que viria ter consequências radicais. Eu cito a Tânia Pacheco: “Três-quartos dos aterros de resíduos tóxicos da região sudeste dos Estados Unidos registravam uma curiosa coincidência, na medida em que estavam todos localizados em bairros habitados por negros. O passo seguinte levou a Comission for Racial Justice a realizar um estudo – Toxic waste and race – que comprovaria, fora de qualquer dúvida, que, mais que a pobreza e o valor das terras ou dos imóveis, a raça dos moradores era a grande determinante de onde se depositava o lixo tóxico no país”. Segundo a Tânia, o racismo ambiental ainda não se configura apenas mediante ações que tenham uma intenção racista, mas igualmente por meio de ações que tenham algum impacto racial, não obstante a intenção de quem as tenha gerado. Ou seja, a gente chega a um conceito de racismo ambiental que devemos entender como toda e qualquer ação que implique impactos ambientais e sociais em território etnicamente diferenciados, ocupados por negros, indígenas, quilombolas, etc., seja de maneira intencional ou não. E o racismo ambiental se materializa de forma bastante perversa. Do ponto de vista transnacional, a gente tem a transferência do lixo para os países mais pobres

e para os países mais negros. Na África, por exemplo, tem-se comprado legalmente lixo de países mais ricos e há também a transferência ilegal desse lixo, como aconteceu aqui no Brasil, que encontraram na Costa do Rio Grande Sul alguns contêineres vindos da GrãBretanha, que foram mandados de volta porque o Brasil tem uma regulação nesse sentido. Não é todo país que tem essa regulamentação, e o mais chocante é que isso acontece, às vezes, de forma legalizada, que países mais pobres tenham que comprar o lixo de países mais ricos por falta de outras alternativas econômicas. Do ponto de vista local, eu vou falar um pouco dessa pesquisa que eu fiz no Pará, num quilombo localizado na Amazônia brasileira. A escolha de uma comunidade negra na Amazônia foi uma decisão proposital. Na antropologia, tradicionalmente, as pessoas acham que a Amazônia é um espaço indígena somente. Não é verdade. Na minha pesquisa, eu registrei os fluxos de vendas de escravos, de escravos indo para Amazônia desde 1600. Não falar disso é uma forma de invisibilizar a presença do negro. Eu queria entender como que eles, a partir do seu território demarcado e titulado, poderiam agir em relação ao empreendedor que ali estava numa situação de conflito com eles, que no caso era a Companhia Vale do Rio Doce. É uma comunidade muito tradicional, muito antiga na região. Pelo que consegui concluir pela minha pesquisa, há no mínimo 200 anos vivem lá, tendo enfrentado outros conflitos no passado, antes com a monocultora de dendê, que fazia pressão no seu território, e agora com a Vale do Rio Doce. A Vale chega lá antes do título e o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/ RIMA) não fala que essas pessoas existiam. Elas foram totalmente invisibilizadas. O EIA/RIMA falava dos indígenas, por terem uma legislação que os protegia. Quanto aos quilombolas, falavam deles como posseiros, invasores, agricultores sem-terra.

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No meio da instalação do empreendimento, que foi um processo errado do ponto de vista das leis ambientais brasileiras, eles obtiveram o reconhecimento do seu território. Então, mudou-se a forma de debate. Acontece que, por conta de obras mal feitas e várias deficiências no processo de licenciamento − em janeiro de 2007 eram dois minerodutos em funcionamento, um em construção, e uma linha de transmissão em processo de instalação −, os quilombolas assistiram no decorrer das obras ao assoreamento de igarapés, ao desaparecimento de peixes de maior porte, e à morte de castanheiras que são protegidas pela legislação ambiental municipal e estadual do Pará. Em resumo, 20% do território ficaram comprometidos; e a partir do reconhecimento como quilombolas, o Ministério Público entra e solicita a Vale do Rio Doce que refaça todo o processo. Isso virou um caso emblemático. Os quilombolas ficaram conhecidos nos Estados Unidos por uma mídia conservadora como terroristas por terem se revoltado contra o processo que os estava atingindo. Eu acho que a justiça ambiental não aconteceu a tempo de impedir todos os impactos ambientais. E fica a pergunta para o nosso debate, porque de fato essa é uma faceta do racismo ambiental sobre a qual a discussão ainda não aprofundou: Como dar conta da continuidade dos territórios de forma sustentável e autônoma? Em outras palavras, como dar conta da justiça ambiental nos territórios quilombolas? O Decreto n. 4.887, que regulamenta o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, define em seu artigo 2º que são terras ocupadas por remanescentes de quilombos as utilizadas para serem garantidas à reprodução física, social, econômica e cultural. A reprodução toca no ponto da juventude, porque a supressão territorial impede uma reprodução de uma juventude naquele território. O que eu tenho visto recentemente em outros territórios quilombolas, como os de Sergipe, é que são as porções de terras mais

ambientalmente conservadas onde os quilombolas estão que vêm sofrendo uma diminuição muito radical. O que fazer com essa juventude quilombola que ali está? Entre outras temáticas, eu quis destacar essa questão da reprodução social no território. A juventude negra urbana que vive em áreas de vulnerabilidade social, como em favelas e periferias, tem problemas relacionados à questão socioambiental muito diferenciados do cotidiano de um jovem quilombola. Ali o racismo ambiental entra em todo esse debate sobre falta de infraestrutura nos bairros de periferia, falta de acesso à saúde, a saneamento básico, depósito de lixo, porque a gente vai empurrando o lixo dos centros urbanos cada vez mais para as periferias, e a juventude tem que conviver com isso ali. A dimensão do território, no entanto, muito utilizada para analisar quilombos, ela também pode ser utilizada para pensar os espaços urbanos. Primeiramente, porque é próprio do ser humano territorializar-se, ou seja, estabelecer vínculos com o espaço geográfico e ambiental no qual reside e circula, e atribuir uma dimensão simbólica a ele. Assim, por exemplo, os territórios negros urbanos, locais de residências, a área, como dizem os manos, os terreiros, as festas, os bailes funk e até mesmo os quilombos urbanos, como o dos Silva em Porto Alegre, o do Luiz em Belo Horizonte, a Pedra do Sal no Rio de Janeiro, são lugares onde as pessoas estão territorializadas. Elas têm vínculos emotivos de reprodução econômica social ali. Outra forma de territorializaçao da juventude negra também muito conhecida que é de ocupação dos espaços possíveis vem do Hip Hop, com o grafite, por exemplo. As pessoas tentam se territorializar de uma forma mais ampla no espaço da cidade. Eu citaria ainda uma particularidade de racismo ambiental que são as remoções das populações negras urbanas em decorrência da preparação de grandes

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eventos esportivos, como a Copa do Mundo, que têm mobilizado movimentos por moradia, especialmente no Rio de Janeiro. Além disso, há a questão da especulação imobiliária. Se você chega à costa do Nordeste brasileiro, você não encontra mais negros habitando lugares próximos à praia. Eles estão sempre sendo empurrados para longe. Não existe uma legislação específica sobre racismo ambiental, a gente tem uma legislação ambiental e uma legislação sobre racismo, mas nos dois quesitos, digamos, avança e retrocede o tempo inteiro. Portanto, não há uma formulação legal dessa relação entre racismo e meio ambiente.

Aida Feitosa Representante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial-DF Eu comentei com algumas pessoas que eu viria falar sobre racismo ambiental e elas me perguntaram: “O que isso?”. É importante a gente qualificar os diferentes tipos de racismo. A Sueli Carneiro falou do racismo epistêmico, de como a própria academia constrói conceitos que reproduzem o racismo. Durante a luta pelas cotas, a gente falou muito do racismo institucional, como as próprias instituições estão imbricadas de racismo, que ou impede de as pessoas de entrar nas instituições, ou impede o seu crescimento nas próprias instituições. E agora ainda mais com a Rio+20, que acabou de acabar, a temática do racismo ambiental e do seu positivo que é a justiça ambiental foi muito falada, mas o tema justiça ambiental, que era o tema da Cúpula dos Povos por Justiça Ambiental e Social, foi mais falado do que o termo racismo ambiental. É importante marcar o racismo ambiental, porque a população negra tem sofrido constantemente o ônus do desenvolvimento econômico, porque o desenvolvimento econômico causa ônus ambientais

gravíssimos, e esses ônus não se distribuem de forma igualitária na sociedade. Eles recaem majoritariamente sobre as populações negras, no Brasil, na América Latina, que é o tema da mesa, nos Estados Unidos, na África, na Ásia e na Europa, em todo o mundo. Sustentabilidade também é um conceito que surgiu nos anos 1980, é datado 1986, pela ministra do Meio Ambiente holandesa. Eu vou trazer dois pontos que ela conceitualiza. O desenvolvimento sustentável seria garantir que as atuais gerações tenham seus anseios atendidos sem negar que as futuras gerações também o façam. Entender que o mundo não pode acabar, porque existem futuras gerações que também vão precisar de recursos naturais para o seu bem-estar. Desse conceito derivou o tripé da sustentabilidade, que foi muito falado na Rio+20, ou seja, para algo ser sustentável, tem que ser socialmente justo, ambientalmente correto e economicamente viável. A sustentabilidade se dá nesse tripé. A crítica da Cúpula dos Povos foi no sentido da economia verde, que era um dos temas propostos pela Organização das Nações Unidas, de ficar exatamente só no lado do econômico e no lado ambiental, e não dar o devido valor à questão social. É aí que a gente vai pegar o racismo ambiental e falar que está tudo imbricado. No racismo ambiental, tem a questão econômica, a questão social e a questão ambiental. Eu tive o prazer de conhecer um professor da Universidade do Sul do Texas (Texas Southern University), chamado Robert Bullard. Ele é um dos grandes teóricos do racismo ambiental e ele traz a questão de que não existe sustentabilidade sem equidade. Equidade que é um tema muito caro para a gente do movimento negro. A gente defende a equidade nas relações sociais, com relação ao meio ambiente, quanto à realidade do meio urbano e do meio rural, ou seja, nós defendemos que a equidade é constitutiva da sustentabilidade.

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Trazer a sustentabilidade para a gente é algo que vai nos permitir entrar mais nas empresas. O tema sustentabilidade é um tema que já está em todas as empresas, justiça ambiental está em todas as empresas. Todas as empresas querem ser sustentáveis. E a gente tem que mostrar para eles que para ser sustentável tem que ter equidade de gênero, equidade racial. Isso que é fundamental. Sustentabilidade sem justiça social não é sustentabilidade. Você tem um tripé da sustentabilidade. É importantíssimo cuidar da água, mas só isso não resolve. Isso não torna uma empresa sustentável. Todo mundo se diz sustentável, mas para ser sustentável tem que ter equidade de gênero e equidade de raça. O conceito do racismo ambiental surgiu em um ambiente de poluição tóxica, de resíduos da indústria química. Eu até trouxe o caso de Santo Amaro da Purificação, onde há a maior concentração de chumbo por habitante do planeta, causada pela mineradora que lá está, a SUMBAER. Ela está depositando o chumbo há 40 anos, e o prefeito fez acordos, fez asfalto com o chumbo, é uma coisa terrível. Existe um mapa da Tânia Pacheco sobre o racismo ambiental no Brasil. Ela traz diversos casos de racismo ambiental que existem, sendo que a maioria dos casos está na zona rural: 68% na área rural e 22% na área urbana. E como a gente está nesse espaço social, eu quero trazer o conceito “lugar de preto”, da Lélia Gonzalez, que também foi mencionado na mesa anterior, é um lugar do desprivilegiado, um lugar onde não há saneamento básico, onde existe mais

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mortalidade. Esse lugar onde se encontram os malefícios de uma distribuição desigual da sociedade. Os ônus do desenvolvimento pautado nos danos ambientais vão atingir majoritariamente a população negra, que ocupa majoritariamente esses espaços de baixa qualidade. É isso que eu quero trazer. O que acontece? Lá na fala do Robert Bullard, eu conheci a Rosalina, de um quilombo do interior do Piauí, e ela falou na mesa: “Eu sabia que eu sofri disso, mas eu não sabia que tinha esse nome de racismo ambiental”. O que nos atinge mais fortemente, a partir deste lugar de preto que a gente se encontra, é o que a gente chama de racismo ambiental. Um exemplo disso é o que está ocorrendo no Quilombo do Rio dos Macacos, que está na eminência de ser retirado pela Marinha. Lá são 62 famílias que ocupam uma área de 300 hectares por 200 anos. É uma coisa séria essa ação de retirada dessa população sendo promovida pelo próprio Estado. É uma coisa complicada. Quem está na luta é o Estado. Eu estava lendo uma matéria no Diário da Bahia dizendo que os servidores do INCRA estão em greve, mas cortaram a greve para poder fazer um relatório técnico de identificação que tem que ser apresentado para o juiz que vai autorizar ou não a entrada da Marinha nessa localização do Rio dos Macacos. Para finalizar, eu proponho a perspectiva de enverdecer o movimento negro e enegrecer o movimento ambientalista. Até usando a máxima fashion The green is the news black, o verde é o novo preto, porque muita gente do movimento social, do movimento ambientalista não entende a questão racial e muita gente também do movimento negro talvez não entenda a importância da questão ambiental. Eu já vi pessoas falando está tendo debate sobre unidades de conservação em terra de quilombo. Estão querendo colocar unidades de conservação em terras de quilombo. Não é bem assim. Vão existir rusgas, mas essa relação é possível. Ela pode acontecer. É uma coisa que a gente pode fazer. E usar essa questão ambiental também como um

imperativo ético para a juventude. Por exemplo, criar uma nova forma de consumir. O jovem precisa se importar sobre como aquele tênis foi produzido, se foi à base de trabalho escravo, se consumiu milhares de litros de água, se degradou não sei quantas áreas. Ele precisa ter a possibilidade de dialogar com a questão do consumo consciente, que todo esse entendimento da sustentabilidade traz, de entender toda a cadeia produtiva de um produto. Ele pode ser um sopro de esperança de sentido para a juventude negra.

Taneska Santos de Santana Pesquisadora da UFBA Eu gostaria de iniciar esse nosso diálogo com uma referência ao pensamento dessa mulher chamada Wangari Maathai, que foi a primeira mulher negra a receber o prêmio Nobel da Paz e justamente por uma questão ambiental. Eu me lembro do que ela falou sobre os movimentos sociais pretos estarem afastados da discussão verde, mas na verdade o movimento ambiental, por muito tempo, neutralizou a nossa existência, o lugar do negro dentro da sociedade. A comunidade tem como aliada a sua postura cidadã, a união das ciências, a atitude política, o compromisso social em defesa do meio ambiente e da vida. Há uma necessidade de a gente estar na pesquisa, dentro das universidades, e pautar políticas públicas na militância, nos movimentos sociais e também nos partidos políticos. De maneira, geral, a relação sempre vai recair na eficiência da matéria e de energia. Isso não foi diferente no encontro Rio+20. O que interessa para eles é o que fazer com a economia, como inventar uma versão verde do capitalismo. Esse modelo de sociedade não nos contempla. Esse modelo não é suficiente para nós, povos e comunidades tradicionais, pretos e pretas, urbanos e do campo.

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A gente tem, a princípio, duas perspectivas tradicionais das correntes teóricas e práticas no âmbito da questão ambiental. A primeira diz respeito à sociedade de risco, fruto da sociedade industrial; e a segunda é a perspectiva dos movimentos radicais, tudo verde. Num debate socioambiental, temos novas perspectivas, entre elas o reconhecimento das desigualdades socioambientais a partir das redes sociais. A partir do momento em que a questão social está influenciando, está sendo reconhecida, há uma aproximação da luta de nós pretos e pretas. E isso foi colocado em uma nova modalidade que consegue unir todas as lutas. Lutas que a gente sente na pele, que talvez sejam mais urgentes. A gente não pensa no futuro, porque o meio ambiente é o futuro e lá veremos as consequências das injustiças ambientais. Daí vem esse termo racismo ambiental, que contempla as nossas questões, e aproxima o movimento negro. Nós, negros e negras, indígenas, povos e comunidades tradicionais, mulheres, camponesas, entre outros, não estamos incluídos na economia verde, no debate da sociedade de risco ou em qualquer pensamento economicista. Seja aqui na América Latina, Caribe, América Central, África, Europa e Ásia, nós não brancos sentimos de uma forma intensa e desigual a crise ambiental que se assola no mundo. Isso é racismo ambiental. Tem várias outras formas de a gente designar racismo ambiental. Eu pretendo trazer para o debate, as possibilidades de justiça ambiental, destacando o enfrentamento do racismo ambiental, sendo esse um fator que inviabiliza o nosso desenvolvimento. Racismo ambiental está relacionado a todas as consequências vistas no meio ambiente que atingem grupos étnicos vulnerabilizados. Isso a gente já conseguiu perceber e já está reconhecido pelos movimentos. Quando a gente forma uma rede de justiça ambiental, agregamos o movimento de lutas das mulheres, movimento de atingidos por barragens, movimento dos atingidos por desastres ambientais, e o movimento dos sem-terra. Unidos, a nossa luta se torna mais firme, e é por isso que a gente deve está se apropriando da questão de justiça ambiental. A sociologia dos desastres precisa ser desenvolvida. Precisamos promover o diálogo entre as abordagens ambientais e superar as limitações das produções científicas e tecnológicas. A ciência dá conta dos problemas ambientais? Todas essas questões poderiam ser abordas e a gente tem visto que esse arcabouço científico e tecnológico não quer dizer muita coisa para nós, porque as pessoas que sofrem com fome, sede, pelo desastre, não são reconhecidas como sujeitos de

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252 direito. Ou seja, a tecnologia não conseguiu diminuir as desigualdades raciais e de classes. A maioria dos teóricos não incorpora a diversidade social, a distribuição do poder e dos recursos naturais. Como o recurso natural está ficando cada vez mais escasso, vai ficar mais difícil a sobrevivência na terra, e vai sobrar para a gente, negros, comunidades de povos tradicionais e povos indígenas. Aqueles espaços que tínhamos em decorrência do abandono do Estado, onde desenvolvíamos as nossas formas de produção, e que nos garantiu sobreviver no tempo e no espaço, até isso já é alvo de usurpação. Os territórios naturais mais equilibrados estão sendo roubados e o Estado está financiando isso. Precisamos de um mapeamento da justiça ambiental. Cada grupo social nas suas localidades precisa mapear e denunciar as desigualdades. Por mais simples que seja, esse instrumento de luta é uma forma de a gente ter reconhecidos os nossos espaços. A crise ambiental já está instalada e a gente só pode se organizar para poder diminuir e também sobreviver, porque o momento em que os desastres nos atingem é quando os racistas veem materializada a tentativa de exterminar a comunidade negra. Assim, o empoderamento é frequentemente colocado como uma estratégia de emancipação nas comunidades negras. Isso continua sendo válido. Na luta por justiça ambiental, isso também se faz presente. O coletivo que está fragilizado tem nas ações comunitárias uma alternativa viável para aumentar o seu poder local. Aí a gente vê que a competência cultural continua sendo um das nossas maiores ferramentas. Assim, devemos todas apoiar as iniciativas comunitárias, por mais simples que elas se apresentem. Desde a relacionada a fatores religiosos, comunitários. É essa força que temos. É na iniciativa cultural, no cooperativismo, no sociativismo que continuamos sobrevivendo. Não vai ser diferente agora.

Tenho observado que algumas organizações que trabalham com justiça ambiental incorporam o trabalho de emponderamento, promoção do ativismo ambiental, fazendo oposição aos perigos ambientais. A denúncia é uma ferramenta também importante para nós. O papel de nós mulheres pretas na luta por justiça ambiental nasce pela importância estruturante de todas nós, nos movimentos socioambientais, por mais que a gente não utilize esse termo. O nosso corpo é um meio ambiente. O primeiro meio ambiente que o ser humano conhece é a barriga de uma mulher. E um exemplo nessa crença foi Wangari Maathai, responsável pela ideia de plantar uma árvore como forma de sustentabilidade. Isso daí foi um trabalho de empoderamento de mulheres também. O racismo ambiental foi reconhecido no Brasil por meio das dinâmicas de intercâmbio social. Então, vamos continuar nas redes, uma interagindo com a outra. É necessário que cada organização negra, por mais simples, tenha apoio solidário das outras. Essa forma de rede tem capacidade de permitir um processo de educação ambiental crítica. A educação é o maior caminho que a gente tem.

Denildo Rodrigues de Morais (Bico) Representante da CONAQ A CONAQ é a Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas. Hoje nós estamos em 25 estados e temos um desafio muito grande, até porque o nosso país foi um dos últimos a acabar com a escravidão e ainda há comunidades passando por várias dificuldades. Muitas dificuldades de acesso até aos bens comuns, dificuldades até mesmo de poder ter acesso ao seu território. Isso é muito complicado, uma vez que um dos principais violadores do direito das comunidades quilombolas é o próprio Estado brasileiro. Isso fica visível em algumas ações.

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A discussão proposta pela mesa vem ao encontro da nossa realidade, porque as fronteiras agrícolas já estão se acabando mundo afora e o avanço sobre as fronteiras dos territórios quilombolas, dos povos indígenas, em especial das comunidades tradicionais, tem se tornado a bola da vez para o capital. Esse avanço fica muito visível uma vez que o Estado brasileiro, por intermédio do parlamento, flexibiliza vários códigos, até mesmo o Código Florestal, para que esse avanço da “economia verde”, que está em curso, possa se aprofundar e se adentrar cada vez mais sobre nosso território. Estamos falando de territórios historicamente ocupados, por meio dos quais o nosso povo resistiu a todo processo de opressão antes e depois da escravidão. Ocorre que as comunidades quilombolas, os povos indígenas e outras comunidades tradicionais estão localizadas em lugares estratégicos, onde há mata, água e muita riqueza natural. Mas é preciso lembrar que, se esses territórios continuam tendo toda essa riqueza natural, é porque o modo de viver, o tratamento que se dá ao local onde se vive é diferenciado. Não dá para falar sobre o desenvolvimento sustentável nesse Brasil sem passar pelo processo de ocupação das comunidades tradicionais e o jeito como as comunidades tradicionais tratam o seu território. Empresas como a Odebrecht e Camargo Correia, que têm o slogan da sustentabilidade, são empresas que poluem muito e expulsam cada vez mais o nosso povo da terra, forçando o nosso povo a ir para as grandes cidades, aumentando a massa das favelas, aumentando o número de sem-teto. São essas empresas que trazem o slogan de desenvolvimento sustentável, mas que, no fundo, não praticam nada disso. Com efeito, há uma grande dificuldade por parte, ou melhor, não sei se há dificuldade ou se há grande interesse por parte do governo para que os territórios de comunidades tradicionais não sejam demarcados. Há outros interesses até porque, uma vez que essa terra seja reconhecida e titulada, uma vez que haja a demarcação das terras dos povos indígenas, das comunidades tradicionais, essa terra não volta mais para o mercado. A essência desse povo é diferente da essência das organizações capitalistas, porque a luta é coletiva, a conquista da terra é coletiva, e o título da terra é de propriedade coletiva. É totalmente contra essa lógica do mercado, que é de você ter sua propriedade individual. Sob essa lógica individualista, um dia, mais cedo ou mais tarde, com toda essa pressão da exploração do capital, você acaba cedendo o seu território. As comunidades quilombolas e as comunidades tradicionais pensam em uma lógica totalmente diferente.

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Hoje no Brasil, se mapearmos os lugares onde estão os grandes empreendimentos, veremos que são lugares onde se concentram em sua maioria comunidades tradicionais, quilombola e povos indígenas, porque são os poucos lugares onde ainda restou água, onde tem a mata em pé. Os sojeiros devastaram tudo com os tratores, levando hectares e hectares de terra sem deixar uma árvore de pé. Quando você se debruça na questão das comunidades quilombolas, os desafios são muitos grandes. Por exemplo, Rio dos Macacos na Bahia. Quem está fazendo a ação no Quilombo do Rio dos Macacos é o próprio Estado brasileiro por intermédio das suas Forças Amadas. O Estado brasileiro construiu uma base militar em cima de um quilombo que já estava ali há mais de cem anos e vem alegando que o território da Marinha foi invadido pelas comunidades quilombolas? Que Forças Armadas nós temos que até os quilombolas está invadindo o território da Marinha? Se acontecer uma guerra, então, estamos lascados. Se a Marinha não conseguiu nem defender o território dela dos pretos que foram excluídos há bastante tempo, imagina se aparece um? Ninguém se salva. É ridículo, mas esses são os argumentos que se tem para não reconhecer o direito legítimo dessa população. Quando você fala sobre desenvolvimento sustentável nesse Brasil, é bom a gente mapear esses casos de racismo ambiental. Esse racismo ambiental está acontecendo na sua maioria em cima de territórios tradicionais, historicamente ocupados. É onde está o grande avanço do agronegócio, que conta com o governo e as suas flexibilizações para que essas coisas aconteçam. É bom a gente deixar bem claro que essa flexibilização do governo, do legislativo, já vem acontecendo há um bom tempo. Se o INCRA não está dando conta de regularizar os territórios quilombolas, imagina se os legisladores vão regularizar territórios quilombolas. A gente sabe por quem eles foram bancados nas campanhas, são

as mesmas empresas que estão querendo ocupar o nosso território. O que pensar quando você pega uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que quer tirar o direito que as comunidades quilombolas tiveram de demarcação do seu território, garantido pelo artigo 68 da Constituição de 1988 e que foi regulamentado e, 2003, após todos esses anos, pelo Decreto n. 4.887? Tem algumas dificuldades operacionais? Tem. Mas para nós essa foi a maior conquista que tivemos, até porque vários processos estão andando. Contudo, nós temos um horizonte formado por mais de cinco mil comunidades quilombolas nesse Brasil, mas apenas duzentas e poucas comunidades quilombolas foram tituladas. Isso mostra que, na verdade, não existe um interesse por parte do Estado brasileiro em reconhecer o direito à terra para preto. É visível que o preto ainda não pode ter acesso à terra nesse Brasil. Temos vários exemplos espalhados pelo Brasil de como o próprio governo, por intermédio das suas autarquias, dá licença para a exploração de minérios sobre território quilombola, enquanto os quilombolas que estão lá no seu território não podem fazer uma roça para poder plantar, para sobreviver, e fazer aquilo que está na Constituição, que é viver de acordo com a sua cultura. Onde estão as unidades de conservação, tanto estaduais quanto federais? Elas estão dentro dos territórios historicamente ocupados, porque foi onde se preservou mata nesse país, foi onde, a duras penas, o nosso povo conseguiu resistir. Até quando a gente não sabe, porque o processo e as forças atuantes para deslegitimar o nosso direito à propriedade são muito fortes. O caso do Rio dos Macacos é um exemplo disso. Ontem eu estava em uma reunião na Secretaria Geral, participando junto com os companheiros que vieram de Marambaia, no Rio de Janeiro, onde a própria Marinha −

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essa que está querendo roubar o território do Quilombo do Rio dos Macacos – atua para expulsá-los; com os companheiros de Alcântara, que sofrem com a ação da Aeronáutica. Foi o próprio governo, por intermédio da Dilma, que hoje é presidenta... Foi ela que, estando na Casa Civil quando o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) da Marambaia saiu, mandou despublicar no mesmo dia. Quando se trata da questão do PAC, a maioria das grandes obras está em cima de áreas indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais. Para se ter uma ideia, no começo do ano, houve uma discussão sobre a Convenção 169 da OIT, que diz sobre a regulamentação dos processos para a construção de mega projetos em comunidades tradicionais, indígenas e tribais e que torna obrigatório o consentimento prévio dessas comunidades para que esses projetos possam acontecer em seus territórios. O governo iniciou essa conversa, mas agora baixou uma Portaria da AGU, dizendo que é para acabar com todo esse mecanismo de consulta, porque o Brasil tem que crescer a qualquer custo. Ou seja, tem que patrolar todo mundo, passar o trator e o rolo compressor em cima de todo mundo. E a gente sabe em cima de quem esse rolo compressor vai passar. Por fim, nós da CONAQ tem a certeza de que ou a gente vai para a luta ou a gente não vai conseguir os nossos territórios. Para isso, a gente tem que se unificar tanto no campo quanto na cidade, até porque a opressão que se vê nas cidades também não é fácil. 70% do povo que está na miséria é negro. Desses 70%, uma grande parcela é quilombola. A gente não pode cair na lógica desse discurso de que nós estamos vivendo apenas uma luta de classe. Pega essa luta de classe e veja quantos negros têm. Nas organizações sociais do campo, 70% são negros que já vêm de um longo processo de exclusão social. Porque o primeiro mendigo que teve na rua foi negro, o primeiro sem-terra foi negro.

O Estado brasileiro tem uma dívida social conosco. Nós não podemos ficar só repetindo que o Estado tem essa dívida. Isso nós já sabemos. Cabe aos pretos das cidades, aos pretos dos campos, à população excluída de toda a sociedade ir para cima desse Estado brasileiro e cobrar efetivamente a reparação. Porque a gente não está vendo uma boa sinalização que venha ao encontro dos nossos anseios, que venha ao encontro da nossa necessidade. Se a gente quer construir um país melhor amanhã, tudo depende das ações que a gente tiver hoje. Se a gente tiver algumas ações pontuais e melhores, vamos fazer com que esse país de amanhã seja melhor. Caso contrário, não. Então, cada um de nós, independentemente dos espaços que estejamos ocupando, tem essa responsabilidade de fazer essa sociedade se transformar para que essas pessoas possam ter qualidade de vida e vida digna.

Intervenções do Público Paula Balduino de Melo Gostaria de compartilhar um pouco do que eu conheci quando estive na Colômbia e no Equador. Tem muita coisa parecida e acho que essa perspectiva do racismo ambiental permite a nós pensarmos uma coisa que acredito ser uma grande contribuição do povo negro para a humanidade, que é essa experiência de relação com o meio ambiente. Quer dizer, como você vivencia essa relação com o que está ao redor, com a natureza, com as pessoas. Quando o Bico fala que a luta é coletiva, que a conquista da terra é coletiva, que o título é coletivo, esse encadeamento de ideias é muito legal, porque é exatamente isso. Às vezes, quando as pessoas veem que o título é coletivo, que ele é dado em nome da associação que representa aquela comunidade, elas não entendem o porquê de ser coletivo. O fato de ser coletivo não significa que seja ponto pacífico. Dissensos existem

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V_Latinidades_Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha em qualquer grupo social, não seria diferente com os quilombolas. É coletivo porque a apropriação do espaço é coletiva, quer dizer, a vivência dessa relação com o meio ambiente, com os familiares, é coletiva. Aí a legislação, por exemplo, da Colômbia e do Equador, são muito interessantes por ser exatamente assim. Eles não sabiam que no Brasil era assim. Quando eles escreveram isso lá na Colômbia em 1993, a gente ainda não estava fazendo essa discussão aqui nesse nível e o pessoal da Colômbia não conhecia essa discussão em outros lugares. Mas tem exatamente as mesmas cláusulas. O título é coletivo, a terra não pode ser vendida, não pode ser trocada, não pode ser penhorada. E a mesma coisa agora, também no Equador, cuja legislação veio um pouco depois da nossa, em 2008. A constituição deles fala também a mesma coisa. Acho muito interessante a gente vê que essa dinâmica de relação com o território na América Latina é comum, e não só aos quilombolas, mas aos colegas dos terreiros, das religiões de matrizes africanas. A base é essa relação com a natureza, que é uma questão fundamental na vivência do candomblé, das outras religiões africanas.

Murilo Mangabeira Basicamente as três pessoas contribuíram para a gente entender o que é racismo ambiental, apesar de algumas diferenças entre as falas. Dá certa inquietação porque, em outras temáticas discutidas nesse encontro e ao longo da militância negra, tem-se a ideia de que não há outro tema colado com o racismo que nos obrigue a prestar atenção em temáticas globais, como o racismo ambiental ou pelo menos da forma como vocês explicam. Quando vocês explicam, parece que a nossa atenção deve ser focada não só no racismo, mas também nos efeitos do capitalismo em todo o globo, na luta de vários povos, para que se possa resolver essa questão. Eu queria que vocês fizessem um comentário em relação a isso, que é como se a gente tivesse que expandir o nosso olhar mais ainda. Gostaria de fazer um comentário em cima disso que a Paula falou sobre a nossa competência cultural para combater o racismo ambiental. Existe uma resistência contra a religiosidade de matriz africana e afro-brasileira no Brasil. E vale lembrar que não é só umbanda e candomblé, existem outras manifestações religiosas que a gente não tem conhecimento. Essa resistência, também chamada de intolerância religiosa, está sendo feita por meio também da legislação. Existem

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alguns projetos pelo Brasil afora, por exemplo, que proíbem a matança de animais em cultos religiosos com a justificativa de proteger os animais e evitar a degradação do meio ambiente. E é uma coisa para a gente ficar atento demais porque é quando a coisa se camufla e o ataque vem direto para a gente, só que com outra maquiagem. Falando de candomblé, não existe candomblé sem folha, então você preserva a mata. Para você matar um animal que seja, é com permissão. Não é você engordar trinta frangos, botar uma bomba e sair matando a torto e a direito. Na verdade, eu só queria fazer esse comentário em cima das religiões de matriz africana porque tem uma resistência engendrada, bem raciocinada, com estratégia bem feita que está sendo feita não só pelas igrejas neopentecostais, mas está em projeto de lei diretamente contra a gente, e com essa justificativa de proteger o meio ambiente.

Gabriela De fato, todas essas informações geraram em mim uma angústia. Nós precisamos trazer uma construção prática disso para a sociedade, porque senão, até então, fica restrito ao nosso grupo, às pessoas que vêm aqui e têm acesso, alguém que estuda.

Íris (EAP) A questão do ambiental sempre me preocupou um pouco. Como é que fica a questão ambiental diante da política, diante dessa proteção que a gente tem que ter sobre as políticas de governo que a gente elege? Porque cada vez mais a gente vê a expansão desordenada de cidades, a destruição de matas e as pessoas morando em condições sub-humanas. Eu gostaria de saber em que pé está o trabalho ambiental, com está esse processo de exclusão ao qual nós, negros e negras, que somos a maioria, estamos expostos?

Robervone do Nascimento Eu trabalho com essas questões no INCRA. Vendo tudo isso que foi discutido aqui, a princípio o que eu vejo é que, infelizmente, a conjuntura posta é de um desenvolvimento econômico desenfreado, totalmente capitalista, sem respeitar um novo formato de desenvolvimento. Segundo as nossas estimativas, se a gente titular todos os territórios cadastrados, isso não vai chegar a 1%. Por conta de esse 1% que estamos vendo toda essa briga em relação a Rio dos Macacos, Marambaia. Isso serve para gente ver como que a sociedade não está permitindo um novo tipo de desenvolvimento, nem que seja um desenvolvimento vivendo com outro capitalista. Não é que a gente esteja promovendo desenvolvimento totalmente coletivo, social e justo, que é o ideal, mas a sociedade não permite nem o diferente. Eu vejo que a nossa mudança vai ser feita quando a gente puder ocupar os espaços. Hoje eu estou lá ocupando o espaço, faço doutorado na UnB em produção sustentável na agronomia, e a gente hoje em dia está debatendo a questão de repassar as políticas do INCRA de desenvolvimento para os quilombolas, respeitando as lógicas dos quilombolas. Inclusive, a colega falou que estava em Sergipe, pois o nosso projeto piloto é no território quilombola de Mucambo. A gente está tendo todo o cuidado para poder respeitar as especificidades desse grupo. Eles são agricultores familiares também. Acontece hoje em dia, algumas comunidades tradicionais reassentadas têm uma linha de crédito que chega a quase 40 mil reais para investimento na sua área, e para os quilombolas a gente não tem nada. Há um tempo atrás saiu uma linha de R$ 2.400 reais pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). A gente quer isso dentro do INCRA. O que a gente quer hoje em dia, dentro do INCRA, é a igualdade de políticas de crédito. A gente tem que realmente ocupar os espaços, pois quando a gente ocupa é que a gente consegue ter voz para colocar as mudanças em prática.

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Participante não identificada Todas as falas de vocês são muito importantes. Vamos nos colocar em uma perspectiva histórica. Acho que é um momento histórico porque é um debate que precisa ser feito e que não era feito. E a partir de agora vai ser feito. Por exemplo, tomando essa questão da matança dos animais, é o seguinte, só vou fazer um pequeníssimo histórico do movimento ambientalista. A primeira Conferência da ONU foi em Estocolmo, em 1972, foi uma conferência puramente ambiental. Era a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Esse início do movimento ambientalista foi tido como conservacionista. Eles pregavam o crescimento zero, tinha que parar do jeito que estava, porque nada mais da natureza podia ser retirado. A nossa relação com a natureza tinha que ser zerada e tinha que se conservar. Essa era a perspectiva do conservacionismo. E nessa época, a posição internacional do Brasil era

totalmente contrária. Era assim, traga a sua poluição para cá. Eles chamavam os poluidores para cá. E teve essa mudança a partir de 1986, com o conceito do desenvolvimento sustentável. A partir daí que foi possível fazer a Rio 92, justamente nessa perspectiva de desenvolvimento sustentável, de se criar tanto a perspectiva dos recursos naturais quanto as perspectivas do desenvolvimento econômico das populações, de combate à pobreza. No histórico do movimento ambientalista, você vai do conservacionismo para o socialambientalismo. Hoje em dia muitas pessoas falam que são socioambientais, tem até o Instituto Socioambiental. O lema deles é que não tem como ser ambiental e ser social separadamente. Então o que acontece? Tem algumas pessoas do movimento ambientalista que ainda estão conservacionistas e são essas pessoas que falam contra a matança de animais, de modo geral, de todas, de qualquer uma, que normalmente são tidas como radicais, nesse sentido. Mas existem outras vertentes, como a do socioambientalismo, que vão entender toda a dinâmica. E justamente essas pessoas vão olhar mais para essa questão mais macro, a criação de gado, a criação de frango de granja, os suínos. Tudo isso impacta muito mais nas relações dos recursos naturais do que alguma criatura que foi sacrificada num ritual religioso de matrizes africanas, indígenas ou de outras culturas. Se alguém falou isso em nome do meio ambiente, não se pode achar que todo mundo pensa assim. Na verdade, são algumas pessoas. Do mesmo que existem diferenças entre os quilombolas, o movimento negro, existe diferença no movimento

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ambientalista. Existem essas pessoas que têm isso, mas não significa que, ao se falar em meio ambiente, você vai sempre por esse caminho. Muito pelo contrário, hoje em dia está se tendo muito esse entendimento que foi falado aqui pelo nosso colega. Até porque, nos quilombos, nas terras indígenas, nos terreiros, é onde há mata, é onde está a própria cultura de preservação, a própria cultura de inter-relação com a natureza, com os animais. A nossa colega aqui pergunta sobre a questão da política..., Enfim, é a luta, é esse processo, é esse debate que a gente está tendo. Se bem que aqui a gente não tem eleições municipais, mas, nas próximas eleições, a gente vai debater esse tema. O tema do ambientalismo cresceu muito nas últimas eleições presidenciais, e a tendência é crescer cada vez mais. É uma coisa que atinge a juventude, e a juventude pode ajudar a gente a crescer nesse aspecto.

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um país em que se faz necessário uma redistribuição de terra, onde que você tem o Blairo Maggi, no Mato Grosso, com 250 mil hectares de soja, se for para dividir 20 hectares por família, dá mais de 120 mil famílias. Ali, você anda 250 mil hectares e que você não consegue enxergar uma alma viva. Você só vê soja. Nós não podemos nos contentar com ganhos pessoais. Alguns conseguiram vencer, mas se você for observar o contexto da sociedade, nós ainda somos escravos. Essa sociedade nos ignora do ponto de vista de levar em consideração as nossas demandas. Ela nos ignora e temos que ter claro isso. Essa transformação só vai acontecer com esse debate da questão do racismo ambiental, desse debate maior. Disse depende a gente pensar como sociedade, pensar o todo, redesenhar um novo Brasil, que leve em consideração os nossos anseios. Isso vai depender das ações da gente, porque não dá mais para achar que está tudo beleza, que está tudo às mil maravilhas, que a gente vive nesses contos de fadas, com uma democracia racial.

Existem algumas coisas que são muito complicadas para nós. Uma delas é essa questão da postura política do governo em relação às flexibilizações ambientais para que o agronegócio e vários outros empreendimentos avancem sobre as áreas ambientais. Está claro que Belo Monte e outros empreendimentos estão sendo empurrados goela abaixo. Outro exemplo é a transposição do Rio São Francisco, que veio com a justificativa do anseio por distribuir água para a população carente do Nordeste, no entanto, essa distribuição da água não está chegando a quem deveria chegar. E a quem deveria chegar essa água? Deveria chegar principalmente aos povos ribeirinhos, que estão na beira do rio, aos quilombolas e às comunidades tradicionais, mas não chega. Por detrás de algumas ideias do “nós vamos trabalhar o desenvolvimento depois”, há uma dinâmica cujo resultado é sempre lascar nós que somos pretos e pobres e as comunidades tradicionais. Isso que é a ideia que está por detrás. Em

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Homenageadas 2012 Jacira Silva, Makota Valdina e Sueli Carneiro

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Programação Cultural GOG e convidad@s

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Paula Lima

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Gaby Amarantos

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Ilê Ayê

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