Reflexão Acerca da Coreografia: Eu e Você - Nalu Pires de Faria, Patricia Proscêncio

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REFLEXUS KHOROS GRAPHEIN Reflexão Acerca da Coreografia: Eu e Você

Nalu Pires de Faria 1, Patricia Alzira Proscêncio 2

RESUMO Esse artigo trata-se de um relato de experiência e pretende descrever e fazer uma análise do processo de criação da Coreografia Eu e Você, desenvolvida para a Festa do Dia das Mães e apresentada no dia 18 de maio de 2019 no Projeto Social do CASDM (Centro de Assistência Social Divina Misericórdia) em Curitiba. O texto tem em vista registrar e refletir sobre esses momentos de criação conjunta, dialogando com temas sobre improvisação, criatividade e teatro-dança, tendo como aporte teórico mestres como Rudolf Laban, Pina Bausch, Viola Spolin e Fayga Ostrower. Inicialmente apresento um breve histórico sobre o CASDM, seguido de algumas considerações sobre dança-teatro e o relato do processo criativo, finalizando com o registro da apresentação, alguns depoimentos dos participantes do processo. Palavras Chave: Dança-Teatro. Relato de Experiência. Processo Criativo.

INTRODUÇÃO Esse artigo trata-se de um relato de experiência e pretende descrever e analisar o processo de criação conjunta da Coreografia Eu e Você, desenvolvida para a Festa do Dia das Mães, realizada no dia 18 de maio de 2019 no Projeto Social do CASDM (Centro de Assistência Social Divina Misericórdia) em Curitiba, onde atuo como Professora de Ballet Clássico desde agosto de 2018 na Oficina de Dança. Este é um registro desses momentos, das sensações envolvidas e reflexões acerca deste processo criativo. Ao final anexei alguns depoimentos, fotos tiradas por mim, bem como uma entrevista com as alunas da turma visando tomar ciência da percepção real das alunas na criação da coreografia, tendo em vista auxiliar o leitor fazendo com que este participe mais

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Licenciatura em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas – UFRGS, Atriz, formada em Ballet Clássico no Ballet Vera Bublitz (Porto Alegre/RS) 2 Patrícia Alzira Proscêncio – Doutorando em Educação pela UNESP/Marília – Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina - pproscencio@gmail.com


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profundamente deste processo através da visualização de alguns momentos das aulas, ensaios e apresentação. REFLETIR é uma palavra derivada que “tanto pode manifestar o fenômeno físico em que a direção de um tipo de energia (luminosa, sonora, p.ex.) é desviada, como o processo mental

em

que

voltamos

ou

dobramos

nossos

pensamentos

para

um

assunto.”www.origemdapalavra.com.br, 2019. COREOGRAFIA é um termo de origem grega que funde as palavras KHOROS (dança), mais GRAPHEIN (registrar, escrever). www.origemdapalavra.com.br, 2019. Utilizo esses conceitos etimológicos devido ao fato da palavra Reflexão, no seu sentido mais puro, dizer muito dos sentimentos e sensações envolvidos nesses momentos de criação artística coletiva. Se refletir significa dobrar nossos pensamentos, foi exatamente isso que ocorreu durante este período criativo: Dobrar, mas não romper. A imagem do bambu que se flete ao vento sem quebrar é a que mais vem de acordo com o vivenciado durante este processo. As referências para este relato foram extraídas de autores que tive contato na Faculdade de Artes Cênicas da UFRGS; nos 15 anos trabalhados na Escolinha de Arte da UFRGS e nas minhas pesquisas individuais. Trago para a reflexão autores como Fayga Ostrower (1920-2001) que versa sobre criatividade e Processos Criativos; Roger Garaudy (1913-2012) especialista em Dança Criativa; Viola Spolin (1906-1994) que trata com maestria de questões como Improvisação Teatral; Pina Bausch (1940-2009) que foi o “start” para as alunas entenderem a idéia do Teatro-Dança através de um vídeo apresentado por mim com a sua Obra, cujo objetivo inicial era sanar as inquietações coreográficas do grupo e que provocou novas dúvidas e novas ideias, sendo de grande riqueza e material criativo. Rudolf Laban (1879-1958) precursor da dança-teatro, e criador da teoria e prática da análise dos movimentos é a espinha dorsal deste texto. Também utilizo teses e reflexões estudadas na Pós-Graduação em Dança Educacional, que é a força motriz deste artigo. A escolha de Laban como principal aporte teórico passa por dois momentos precisos: A primeira parte do princípio deste processo coreográfico buscar unir à dança com o teatro e como falar de processo criativo em dança sem fazer alusão às ideias do criador da Dança Educativa? O segundo momento passa pela forma que se deu a criação coletiva: sendo revista,


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refeita, refletida e principalmente significada, na busca de manter a essência durante as intempéries da caminhada. Laban corrobora essa visão ao trazer o dançarino como um integrado ser que “pensava-sentia-fazia.” (FERNANDES, 2017, p.33) seu método e sistema de notação, fundamenta-se em pensar o movimento, de forma que a dança fosse sentida, experenciada e captada pelo dançarino. Para o autor a dança “tem um conteúdo significativo, compreensível.” (BARTENIEFF, LEWIS, BodyMovement, apud FERNANDES, 2017, p.18). Ele foi mais que um mestre, sua generosidade nos deixou mais que notações: a certeza de que a educação sem a dança é uma obra falha, enriqueceu o estudo da poesia do movimento, que une dança e trabalho, considerando que a dança tem um papel fundamental nas relações humanas, pois é ela que organiza e rege o comportamento social e a harmonia do grupo. “É a arte do movimento que, de um lado, representa os aspectos mais exteriores da vida e de outro, um espelhamento dos processos ocultos do ser interior.” (LABAN, 1978, p.28).

BREVE HISTÓRICO SOBRE O CASDM O Centro de Assistência Social Divina Misericórdia foi fundado na década de 1980, na Cidade Industrial de Curitiba. No início da ocupação desta comunidade, entre as décadas de 70 e 80, os moradores da região enfrentavam muitas dificuldades, desde habitação, transporte, saúde, entre outros, e sentia-se a necessidade de uma ajuda mais concreta, visto ser uma zona pouco lembrada pelo poder público. Uma das religiosas que atendia a comunidade na época, Ir. Maria de Moraes Silva, membro do Instituto das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus e acadêmica do curso de Serviço Social, realizou um trabalho de pesquisa sobre as necessidades da comunidade aos poucos foi se concretizando a ideia de se criar um Centro Social capaz de absorver estas reivindicações e necessidades, a fim de ao menos “remediar” a situação pela qual passavam os primeiros habitantes desta região. Fundou-se então, o Centro de Assistência Social Divina Misericórdia (CASDM), no dia 19 de março de 1983, com o intuito de dar auxílio às pessoas residentes no bairro, seja no atendimento emergencial como na conquista de direitos.


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Em 2005, as Irmãs Apóstolas junto com a Diretoria e outros voluntários da entidade, “arregaçaram as mangas” e começaram a arrecadar fundos para a realização de uma nova construção. O que parecia um sonho quase inatingível tornou-se realidade, graças a recursos arrecadados em eventos e às inúmeras doações de empresas e pessoas que, conhecedoras do trabalho, ofereceram contribuições para a obra que, com certeza é e será sempre, um orgulho para toda a comunidade do bairro Sabará. Diante da grande demanda existente na comunidade do bairro CIC, por locais destinados ao atendimento de crianças e adolescentes no período do contra-turno escolar, à prática de esportes e outras atividades de lazer para a comunidade, em 2009,um projeto foi apresentado a um empresário de Curitiba – Sr. Jorge Favretto – que resolveu ajudar e doou um terreno de 20.000 m2 na região conhecida na época como Alto da Bela Vista – CIC para o CASDM. Após muito trabalho por meio de projetos, que foram apoiados pela esfera estatal, apoio financeiro da comunidade e uma importante parceria feita com a Associação Brasileira de Educação e Cultura (ABEC), foi construída uma nova unidade para o atendimento de aproximadamente 400 crianças e adolescentes: o CISDIMI – CENTRO DE INTEGRAÇÃO SOCIAL DIVINA MISERICÓRDIA. A obra está localizada no bairro São Miguel, numa belíssima área de preservação ambiental. De 1999 até o momento o CASDM se expandiu consideravelmente, sendo constituído atualmente por 06 unidades: Sede do Centro de Assistência Social Divina Misericórdia (CASDM) anexa ao CJMC; Centro Juvenil Madre Clélia Merloni (CJMC); Centro de Educação Infantil Divina Misericórdia – Sabará e Boqueirão (CEIDM Sab. e CEIDM Boq.); Centro de Integração Social Divina Misericórdia (CISDIMI) e Centro de Convivência para Pessoas Idosas Divina Misericórdia (CECOPI). Nessas unidades são atendidas mais de 900 pessoas por dia, diretamente, e um número muito maior indiretamente. As atividades realizadas nas unidades são: Projeto Sabará mais Vida: Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos para 260 crianças e adolescentes; Projeto Sementes do Amanhã: Atendimento em contra turno com oficinas diversas para crianças e adolescentes; Projeto Sementes do Amanhã: Atendimento em contra turno com oficinas diversas para crianças e adolescentes; Oficinas de Dança, Grafite, Judô e Capoeira e Futebol; Projeto Família Presente (formação para as famílias); bazares; festas beneficentes.


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CONSIDERAÇÕES SOBRE DANÇA-TEATRO: LABAN A dança-teatro alemã teve seu início na Alemanha do Pós-Guerra nos anos 60. Influenciada e influenciando logo a seguir o Teatro Dramático dos anos 50 que mantinha um gênero mais declamatório a Tanztheater surgiu como uma reviravolta, aproveitando de uma nova estética “utilizou os princípios cinemáticos e a consciência da realidade e da vida do diaa-dia apresentados no teatro dramático contemporâneo. ”(FERNANDES, 2017, p.20). O termo Dança-Teatro, criação do húngaro Rudolf Laban, apresenta a dança como uma arte independente, aliando harmoniosamente dinâmicas de movimento a sua trajetória espacial. O autor versou seus estudos em três grandes grupos: estudo das dinâmicas (“eukinetics”), o estudo do espaço (“coreutics”) e a escrita da dança (“Kinetographie”, “labonotation”). Com o método de notação dos movimentos, o Labanotation, era possível categorizar todos os tipos de movimento quanto à sua constituição, utilização, fisiologia e sua psíquica. Tinha por objetivo “desenvolver um método provando que o movimento corporal determina todas as formas de arte, pois encerra a energia básica para qualquer modo de expressão.” (PORTINARI, 1989, p.142). Tanz-Ton-Wort-Form (Dança-Som-Palavra-Forma) foram à base das improvisações usadas por LABAN (1978) para criar seu Sistema de Movimento, “nas quais os estudantes usavam a voz, criavam pequenos poemas, ou dançavam em silêncio. As peças de dança então criadas incorporavam movimento cotidiano, bem como movimento abstrato ou ‘puro’, numa forma narrativa, cômica, ou mais abstrata.” (FERNANDES, 2017, p.26). De acordo com Laban os movimentos eram a manifestação externa de um sentimento interno, sendo assim o teatro e a dança possuem suma importância pelo fato de que nos fazem tomar profundamente consciência da vida, o fato de despertarem em nós o sentimento de sermos responsáveis pelo nosso destino e livres em nossas ações...um único movimento, ou uma sequência de movimentos, deve revelar, ao mesmo tempo, o caráter de quem o realiza, o fim pretendido, os obstáculos exteriores e os conflitos interiores que nascem deste esforço.(LABAN, APUD GARAUDY, 1980, p.113).

“O movimento, portanto, revela evidentemente muitas coisas diferentes. É o resultado, ou da busca de um objeto dotado de valor, ou de uma condição mental. Suas formas e ritmos mostram a atitude da pessoa que se move numa determinada situação. Pode tanto caracterizar


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um estado de espírito e uma reação, como atributos mais constantes da personalidade.“ (LABAN, 1978, p. 20) Segundo Garaudy (1980), as leis da harmonia no espaço, de Laban, podem se aplicar às proporções arquitetônicas, a plástica na escultura, à perspectiva do pintor, à estrutura musical, pois essas leis abarcam: proporção, perspectiva, plástica e ritmo. Segundo Xavier e Marques (2013) Laban defende que a educação deve se comprometer com três objetivos: a consciência dos princípios que regem o movimento; manter viva a espontaneidade do movimento e por último que a dança deve estimular o desenvolvimento da expressão artística no que diz respeito à arte do movimento. “A variabilidade do caráter humano deriva da multiplicidade de atitudes possíveis frente aos fatores de movimento e aí é que certas tendências poderão tornar-se habituais, no indivíduo. É da maior importância para o ator-dançarino que ele identifique o fato de que tais atitudes interiores habituais são as indicações básicas daquilo que chamamos de caráter e temperamento.” (LABAN, 1978, p. 51)

O PROCESSO CRIATIVO A oficina de Dança atende quase 100 crianças, com idades que variam de 6 a 15 anos, divididas em nove (9) turmas, com uma média de 15 alunos por turma. As aulas acontecem duas vezes por semana com duração de 1h/aula. Este relato de experiência baseou-se em uma proposta, feita por mim, à todas as turmas da Oficina de Dança: criar uma coreografia, tendo como tema a Mãe. A Turma C,a menor turma da oficina com4 alunas de idade entre 13 e 15 anos, após a ideia lançada ficou de pensar e trazer algo na aula seguinte (este processo começou no início de abril). Na aula subseqüente Joana apareceu com um pequeno texto, escrito por ela: “Quando minha mãe soube que eu iria criar você sozinha, Ela me deu um tapa no rosto; Me chamou de louca e saiu da sala. Esse foi o começo da minha história. Desde esse dia eu soube que iria ser difícil viver,


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mas sentir seu coração na minha barriga me fazia esquecer disso. Quando você nasceu, seu choro foi como uma luz na minha escuridão. Quando você falou “mãe” pela primeira vez, foi como melodias dançando no meu ouvido. Quando você começou a andar, era como uma dança desajeitada, que a cada dia você a melhorava. ” (Joana Alferes) Após o texto ser lido por Joana, as alunas apreciam a ideia e logo o questionamento geral passa a ser como dançá-lo? As ideias foram variadas. Abaixo transcrevo o diálogo do grupo: ALUNA 1 - Vamos fazer um teatro falado! ALUNA 2- Mas aí não é dança... JOANA - Verdade...quem sabe uma expressão com o nosso próprio corpo? NATHALIA - Isso também não é dança! PROFESSORA NALU- Será que não? NATHALIA- Verdade que é dança, pois é movimento. JOANA – Então vamos dançar o movimento que o texto diz. Paulina Ossona traça um perfil do criador, muito interessante ao dizer que as pessoas que criam são aquelas que “adentram na busca de uma linguagem própria; a forma exata e única de matiz pessoal, para esse sentir universal que se manifesta de modos inumeráveis e mutantes em cada indivíduo.” (OSSONA, 1988, p.111). Devemos levar em conta que a criação apresenta questões individuais, portanto “não se pode perder de vista que cada pessoa constitui um ser individual, ser in-divisível em sua personalidade e na combinação única de suas potencialidades.” (OSTROWER, 2014, p.147). A esta altura eu interrompo o diálogo incitando-as a iniciarem o processo. Elas se olham e não sabem como agir, então eu começo a ler o texto da Joana e peço que imaginem o


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que essa futura mãe estaria sentindo, o grupo então senta e eu digo para imaginarem com o corpo, agindo! Baseado no que Laban nos traz, todas as ações são dança, de acordo com o autor “Ação- é uma sequência de movimentos que requer do bailarino uma atitude interna que resulta num esforço definido, o qual, por sua vez, dá uma qualidade ao movimento. ”(LABAN, apud MOMMENSON, 2006, p.67). Através de seus estudos das ações humanas o autor buscou chegar ao sentimento através do gesto. Para ele a importância de uma nova maneira e uma nova alma na educação do movimento fazia-se necessária devido aos esforços técnicos existentes na vida do homem moderno e da quantidade de conhecimento intelectual necessário para a vida moderna. Para tudo isso o fluxo do movimento seria o denominador comum para o homem e o equilibraria. Após o meu convite à ação, o grupo tenta reagir a proposta feita por mim, mas não evolui. Começam a falar que a personagem do texto é uma mãe solteira, que quando engravidou “o carinha pulou fora”, porém Joana corrige dizendo que não, que o pai deste filho morreu. Feita esta colocação o grupo recua dizendo não querer usar esse texto pelo fato do Dia das Mães ser um momento feliz e não triste! Joana então explica que o texto surgiu justamente para mostrar o outro lado de ser mãe, não só o feliz... Interfiro convidando o grupo a dialogar para que cada uma possa expor suas ideias e ansiedades e busquem uma solução. Após uma discussão profícua, esclarecimentos feitos, elas então decidem usar o texto e eu as deixo com o desafio de trazerem material para a coreografia. Este processo criativo por ser grupal, torna-se ainda mais desafiante, passa por uma combinação de ideias pessoais e fruição criativa conjunta, sempre na busca por significados. Para Ostrower criar é ter a possibilidade de dar forma a alguma coisa nova, são relações feitas pela nossa mente e que começam a fazer sentido: “O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. ” (OSTROWER, 2014, p.9). No trajeto até meu próximo trabalho sou invadida por um misto de sensações e questionamentos: como lidar com esses corpos que não dominam a linguagem teatral, apenas o básico do Ballet Clássico? Seria um grande desafio!Naquele momento repensei toda a jornada percorrida até o momento, como professora, como pesquisadora e como aluna nas


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trocas de experiências da pós-graduação em Dança Educacional. Ficou claro que eu não deveria ficar apegada ao porto seguro que a formação da dança clássica me proporcionava, mas sim usar minha trajetória com o ballet e o teatro, tendo em vista o princípio básico do artista: a coragem de criar e ousar experimentar. Rollo May (1975) corrobora com essa inquietação ao citar Kierkegaard, Nietzsche, Camus e Sartre: “a coragem não é a ausência do desespero, mas a capacidade de seguir em frente, apesar do desespero.” (MAY, 1975, p.10). Este “desespero” é o primeiro passo para desestruturar conceitos prontos e posteriormente reestruturá-los, é ele que mantém acesa em nós a chama da mudança, da investigação, que nos leva a olhar cada momento como uma nova oportunidade de mudança, fazendo-nos mergulhar no próprio interior, motivados por novas maneiras de criar! Para fazermos da nossa dança criativa precisa coragem no processo e segundo May, exige comprometimento físico, espiritual, moral e social. Com a chegada da próxima aula todas trouxeram idéias para a dança, inclusive a decisão tomada por elas de que por serem em quatro, farão duas filhas e duas mães. Começam a coreografar utilizando passos de dança, noto que isso não está sendo motivador, elas estão presas em passos de ballet tentando dançar o óbvio do texto; neste momento percebo que preciso instigá-las. Peço então para se separarem e coloco uma música instrumental com guitarras, fugindo da ideia do ballet e peço que se imaginem como essa mãe sozinha, mas através de movimentos corporais. De fora vou dando estímulos (como será que esse filho na barriga dessa mãe se sente? Como será a vida para eles? O que esperam do futuro?) Coisas interessantes surgem e uma das alunas vai para o chão simulando um feto, todas olham e interrompem o exercício dizendo acharam interessante esta imagem, então peço que sintam--se como fetos, através de ação. A música que está tocando nesta hora é um solo de guitarra de Steve Vai “Hand on Heart”, desconhecido até então para elas, após terminarem o exercício, essa passa a ser a música escolhida. Sobre a questão da Criatividade em Dança Laban abre caminho para que a dança passe a “ser um processo expressivo em construção, mediante a manipulação do movimento. Teoria esta centrada no sujeito e na qual o autor refere que a composição do movimento é comparável a linguagem.” (LABAN apud MARQUES e XAVIER, 2013, p.53).


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Segundo LABAN (1978) compor significa explorar possibilidades de movimento de forma intuitiva, que mais tarde se tornará uma coreografia. O processo desenvolvido por nós estava no caminho correto, a possibilidade de fomentar idéias e exercícios criativos se tornará matéria-prima para a composição. No decorrer do processo de criação duas alunas saem do Projeto e por este motivo não podem mais participar das aulas.

O INSIGHT PINA BAUSCH O processo que segue torna-se bastante desafiador, o grupo que já era pequeno diminui para duas pessoas, elas querem dançar e também interpretar o texto, mas não sabem como expressar os sentimentos através do movimento, então eu digo para elas que é como um teatro -dança, e que ambos são artes afins. Desde os primórdios, na Grécia antiga, teatro e dança caminhavam juntos, fundindose. O ditirambo prova isso: nas festas dionisíacas os pisadores de uva dançavam e cantavam o ditirambo como uma forma de chegar aos deuses. “Os pisadores não falavam, dançavam e cantavam isoladamente. Eles dançavam, cantavam e falavam ao mesmo tempo, manifestandose de forma uníssona em uma verdadeira celebração da vida.” (SANCHEZ, 2010, p.25). Elas questionam como é Dança-Teatro, eu as apresento à Pina Bausch mostrando um vídeo de 5:46 (-Quem foi Pina Bausch. E o encontro da dança com o teatro – YouTube) com um breve histórico sobre ela e sua obra , ao final comentam que nunca tinham visto algo assim. Pina Bausch sempre instigante com sua repetição diferenciada daquela encontrada no ballet clássico e em outros tipos de dança onde repetir é sinônimo de aperfeiçoar, treinar e compor frases de movimentos. Para ela “a repetição torna-se um instrumento criativo através do qual os dançarinos reconstroem, desestabilizam e transformam suas próprias histórias enquanto corpos estéticos e sociais.” (FERNANDES, 2017, p.58). Fernandes ao estudar Pina Bausch, aproxima o leitor de seu processo criativo, através de uma exploração da estética e da teoria da repetição. Segundo a autora, dança e teatro também são colocadas no palco como linguagem, porém livres de uma totalidade de corpomente ou forma-conteúdo, buscava-se pela fragmentação e repetição uma lacuna entre dança e teatro onde: “os movimentos não completem palavras em busca de uma comunicação mais


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completa... repetição quebra a imagem popular de dançarinos como ‘seres espontâneos’, revelando suas insatisfações e desejos numa cadeia de movimentos e palavras repetitivas. ”A ideia de Bausch é usar gestos cotidianos e repeti-los de forma a tornarem-se abstratos e desvinculados do emocional, a dança pode ser definida para ela como ‘consciência corporal’ seu trabalho “implica numa constante incompletude, busca e transformação dentro de um pensar -sentir-fazer repleto de indagações, ao invés de integrado. ”(FERNANDES, 2017, p.34-35). O insight grupal aconteceu, mesmo sem a pretensão de seguir o processo criativo de Pina Bausch, que requereria tempo, dedicação e maior conhecimento, o grupo foi instigado e houve uma grande efervescência de idéias e percepções. Segundo Fayga Ostrower, os processos de intuir e de perceber, são afins, dinâmicos e criativos, intuir é internalizar um fenômeno, “nesse momento aprendemos-ordenamosreestruturamos-interpretamos a um tempo só. ” É uma possibilidade que temos de ação que gera movimento “em termos afetivos, intelectuais, emocionais, conscientes, inconscientes. ” (OSTROWER, 2014, p.68). No decorrer do processo roupas cotidianas foram escolhidas para o figurino, decidiram utilizar objetos em cena (como no teatro) e então Joana indaga se os objetos não tolheriam os movimentos, sobre esse questionamento a Nathalia responde, meio titubeante que se eles forem importantes poderíamos fazer uso deles. Intervenho, pegando uma cadeira, e propondo um jogo que possui duas regras: a primeira é divertir-se e a segunda é utilizar aquela cadeira como elas quiserem, menos como cadeira. Esta proposta de exercício teatral denominada “Transformação Imaginária do Objeto” criada por Viola Spolin (1906-1994), utiliza o conceito de “fiscalização” para explicar ao ator, através da ação, que o fazer teatral é físico, é através dessa energia que ele passará emoção para a platéia. Para a autora a criatividade não é apenas construir ou fazer algo, não é apenas variação de forma. Criatividade é uma atividade, um modo de encarar algo, de inquirir, talvez um modo de vida, ela pode ser encontrada em trilhas jamais percorridas. Criatividade é curiosidade, alegria e comunhão. É processo-transformação-processo (SPOLIN, 1992, p.256).

Ao utilizar a cadeira, elas exploram a capacidade imaginativa através de um objeto concreto, transformando-a em tudo que a criatividade e a proposta da cena propiciou: palco, moto, carrinho de bebê, cadeira de balanço, computador e apoios variados.


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Após esse exercício o grupo decidiu utilizar a cadeira na apresentação, e mixaram o texto sobre a música, com a minha voz. A coreografia mostrava a relação entre essa mãe e a filha, começando pela vida intra-uterina, depois vinha o nascimento, os primeiros passos, a relação de cumplicidade entre as duas, os passeios, a primeira queda, a fase da adolescência com seus passeios de moto, a formatura, a vida adulta cheia de trabalho e mais trabalho e a falta de tempo para a mãe, as lembranças da infância, terminando com a filha acarinhando a mãe, agora “criança” devido à velhice. Todas as passagens de tempo se davam pela troca de uma peça do figurino e pelo signo criado por elas e repetido a cada mudança de tempo: um giro, feito pelas duas dançarinas ao mesmo tempo, em sentidos diferentes. A fase final foi de aprimoramento da expressão facial, que na avaliação do grupo foi a parte mais complexa. Fizemos um pequeno laboratório de máscara teatral, para trabalhar expressões faciais e corporais. A dedicação das alunas foi intensa, nunca faltavam às aulas e estavam sempre motivadas. Spolin (1992) faz referência á essa postura mencionando que ‘disciplina é envolvimento. ’

A APRESENTAÇÃO A coreografia, com duração de 5.26 foi a última a ser apresentada no Ginásio de Esportes da Entidade. Elas estavam prontas para ousar, é o momento do êxtase, da experiência e da expressão criativa!O cenário, comum a todas as apresentações dos grupos, composto por um painel com corações foi idealizado e confeccionado pelas professoras do Projeto para homenagear as mães. Para esta coreografia foi utilizado uma cadeira e uma arara onde os figurinos estavam dependurados, a entidade não conta com aparato de luz. Ao final da apresentação os aplausos lotaram o ginásio, acompanhados pelo choro de alguns e por faces reflexivas, alegres, emocionadas de outros. As alunas ficaram muito satisfeitas com o decorrer do processo e com o resultado final, eu feliz por ter tido a oportunidade de compartilhar momentos intensos de criação coletiva.


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Maurice Béjart (1927-2007) magistralmente fala dessa sensação dicotômica da arte, que busca sensações, mas também reflexão, esse fenômeno foi observado tanto da parte de quem vivenciou essa experiência como dançarino, tanto por parte do espectador. “É preciso que cada um de nós, ao sair de um espetáculo de dança que o tenha entusiasmado, se debruce sobre esse problema e o encare ao nível da existência e não apenas na do espetáculo, transpondo desse modo a satisfação interior para o plano da participação duradoura.” (BÉJART apud GARAUDY, 1980, p.10).

CONCLUSÃO Essa experiência possibilitou a cada dançarina tornar-se mais resiliente, mais consciente, não apenas de suas possibilidades físicas, espaciais e rítmicas como também do “estado de espírito e da atitude interna produzidas pela ação corporal.” (LABAN, 1978, p.53). Com a rotina do dia- a- dia, deixamos de enxergar longe, de respirar, de sentir, de escutar, de pressentir, passa a ser vital então a busca por novos horizontes. Através desses momentos na Oficina de Dança, nos permitimos um contato mais sensível com o nosso eu, com o outro e com novas possibilidades criativas, na busca por uma via própria de expressão. À medida que desenvolvemos a consciência de nós mesmos, do ambiente que nos circunda e das experiências pessoais de cada membro do grupo, vamos descobrindo que o corpo pode e deve se transformar em um canal sensível, possibilitando uma inter- relação entre o mundo interior e exterior. Então, por que dançar? Porque a dança essencialmente criativa proporciona, a todos que se entregam de corpo e alma, momentos de encantamento e de encontro com a verdade.

REFERÊNCIAS CASDM - Centro de Assistência Social Divina Misericórdia, 2019. Disponível em: www.casdm.org.br Acesso em 22 mai.2019. FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação. 3 ed. São Paulo: Annablume, 2017.


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GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1980. LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978. MARQUES, A.S.; XAVIER, M. Criatividade em Dança: concepções, métodos e processos de Composição Coreográfica no ensino da Dança. Revista Portuguesa de Educação Artística, Madeira, v. 3, p. 47-59, 2013. MAY, ROLLO. A coragem de criar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. MOMMENSON, M. e PETRELLA, P. Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento. São Paulo: Summus, 2006. Nexo Jornal- Quem foi Pina Bausch. E o encontro da dança com o teatro, 2019. Disponível em: www.youtube.com Acesso em 11 abr. 2019. Origem da Palavra, 2019. Disponível em: www.origemdapalavra.com.br Acesso em 22 mai.2019. OSSONA, Paulina. A educação pela dança. São Paulo: Summus, 1988. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2014. PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. SÁNCHEZ, L.M.M. A Dramaturgia da memória no teatro-dança. São Paulo: Perspectiva, 2010. SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro: 5.ed. São Paulo:Perspectiva, 1992.

APÊNDICE Depoimentos 1. Como surgiu a idéia desse texto? JOANA: Desde pequena sempre vi que o dia das mães era sempre feliz e colorido, mas nunca mostravam as partes feias e isso foi a principal inspiração para criar o texto. Não podemos


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mentir que nossa vida é fácil, diariamente lutamos para continuar com nossas cabeças erguidas e é isso que nos torna vivos. 2. Como te sentiste durante o Processo Coreográfico? JOANA: Senti como se estivéssemos fazendo algo importante, que poderia tocar o coração das outras pessoas. NATHALIA: Senti como a minha mãe é importante na minha vida, que ela foi a pessoa que esteve comigo e está comigo na minha caminhada e que as vezes não dou a atenção e até mesmo não dou valor. Achei difícil (sobre o processo de criação) porque eu não tenho prática com expressões na dança, mas depois de muito treino eu consegui. 3. O que achastes do resultado final? JOANA: Durante a apresentação, senti como se eu representasse todas as mães que sempre se esforçaram para criar suas filhas e filhos. Achei incrível e satisfatório ao ouvir as palmas do público, fiquei feliz por depois de semanas treinando o resultado havia sido ótimo. NATHALIA: Como se fosse uma vitória, eu consegui fazer algo que para mim parecia impossível. 4. O que achaste da coreografia Eu e Você? GLACIANE (MÃE DA NATHALIA): Eu como mãe vendo minha filha Nathalia apresentando em poucos minutos aquela maravilhosa peça teatral, fui tomada por uma emoção indescritível, ao mesmo tempo fiquei surpresa com todo o talento e desenvolvimento de minha filha, na minha cabeça e acredito que de muitas pessoas que estavam presentes passou um filme, me fez ver como a nossa vida passa depressa, esquecemos de amar mais as pessoas que nos amam sem querer nada em troca. Foi simplesmente lindo!... Só tenho agradecer a Deus pelo lindo presente que são as minhas filhas na minha vida.


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Agradeço também você prof. ªNalu por todo amor e dedicação a essas crianças. Deus abençoe!... Imagens Momentos de Aula


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Ensaios


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Apresentação


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