Revista OLHAR

CARREGADORES

INVISÍVEIS No agreste paraibano, aviva-se a Cidade Luz, Guarabira. Rainha do brejo - sem ser brejo -, a localidade se constrói de maneira tradicional. E, assim como todos os outros fatores que determinam a composição de uma cidade, também é simples e tradicional a sua população. Ao receber os habitantes de outros vinte e seis municípios, é assim que se torna metrópole e, aos sábados, principalmente, recebe todo um mundo de gente para integrar o comércio da região e torná-lo mais dinâmico. É assim, ainda, que sobre carrinhos de compras, em frente ao Hiperbox I m p e c á v e l , r e p o u s a Va n d i l s o n .

Invisível, à espera de um cliente que o enxergue, o jovem carregador de compras é mais um dos que integra a multidão que se desloca à Guarabira em virtude do comércio. Morador de Contenda, na zona rural da metrópole, acorda, aos sábados às cinco e vinte da manhã; para, às seis horas, iniciar seu turno e carregar em sua carroça as compras dos éis clientes do mercadinho.

Vandilson, sua constante timidez expressa durante a entrevista.

PÁGINA

01

Tímido, Vandilson revela sua realidade que, em eternos momentos, se confunde com a de tantos outros garotos anônimos os quais se deslocam paralelamente ao Impecável, caçando clientes na grande feira que toma conta das ruas do centro de Guarabira. Em meio a idas e vindas, subindo o morro em que o supermercado ca, o adolescente conta que, aos doze anos, se viu passando por diculdades junto à família e sentiu-se, então, na obrigação de ajudar em casa. Sem saber como dar a assistência necessária, encontrara a saída nas compras alheias. Viu, no emprego do irmão, dois anos mais v e l h o , a r e s p o s t a . Ve n i l t o n é recepcionista no mercadinho; responsável pelo guarda-volumes do local e pela curadoria dos itens que com ele cam. Vandilson resolveu que seria, portanto, carregador de compras ali

O rapaz de sorriso acanhado tão contrastante com sua pele marrom lembra que convencer os responsáveis pelo supermercado a aceitá-lo foi, talvez, a parte mais difícil de todo o processo de entrada. Os empregadores se preocupavam com a pouca idade do menino, que assegurou jamais dar trabalho a eles e conseguiu, dessa forma, o tão necessário trabalho. Não obstante convencê-los, houve ainda sua mãe que temia pela segurança do lho.

Neste momento, estar com o irmão foi agente determinante, já que Venilton tinha quatorze anos. É importante ressaltar, aqui, que o rapaz fala com orgulho que nunca se viu em maus lençóis

durante todos os cinco anos em que se disponibilizou a levar compras.

Destaque entre os carregadores, Vandilson tem, além do respeito dos funcionários do Impecável, o carinho dos clientes, que sempre o procuram para carregar suas coisas, de modo rústico, com seu carrinho de mão.

Bonito, o carrinho do rapaz é diferente.

Todo branco com bolinhas coloridas. A carroça que outrora reetia a alegria e a pureza da criança que o carregava, hoje apresenta, com o desgaste natural de sua pintura, o adeus à infância que ele, aos poucos, se prepara para dar.

PÁGINA

02

Se Vandilson, no entanto, se despede das meninices que só a pouca idade garante, outros tantos ainda se encontram na mesma posição em que este se via há cinco anos. Gabriel, por exemplo, atualmente tem doze anos, tamanho de nove e expressão de homem adulto. Esta última, mecanismo de defesa em meio ao mar de gente em que se esgueira atrás de clientes.

Pequeno, Gabriel não fala muito, apenas responde com voz baixa e poucas palavras às perguntas que os fazem. Sem dar crédito a desconhecidos, se limita a carregar suas compras ou se esconder atrás de sua tão amarela carroça. Pobre Gabriel, ainda não entendeu que amarelo chama tanta atenção quanto o menino não gostaria de ter.

Sob os gemidos de uma única roda se esconde o jovem carregador. De pele tingida pelo sol, braços curtos e nos, Gabriel é ainda menor que seu carrinho de transporte e, nele, leva sacolas com pesos possivelmente superiores a seu próprio valor corporal.

Em oposição às condições em que a criança trabalha na feira, Vandilson garante que sempre trabalhou conforme suas capacidades físicas e de acordo com sua idade. Antes, de segunda a sábado, no período matutino, o garoto almoçava e se arrumava no próprio supermercado para ir à escola; enquanto hoje dirigese ao local apenas aos sábados.

PÁGINA

03

Em uma única oportunidade, um deles, sem simpatia, diz "quer ver como é?

Vamos junto!", em um simples pedido de companhia enquanto não arranja um novo cliente. Sem delongas ou grandes recursos, o garoto caminha paciente pela longa rua com sua carriola vazia, aparentemente indo para o ponto em que aguardará um carregamento. Na realidade, quase ao m do longo caminho, o intuito da caminhada se faz presente. "Pirralho, tá carregando? " e lá se vai o garoto; que, sem nada dizer, deixa claro que vai e vem pela rua quantas vezes necessário até encontrar alguém ou até que alguém o encontre.

Enquanto o funcionário do Impecável fala abertamente sobre as motivações que o uniram à sua carroça, outros se resguardam. “Porque preciso” é a resposta que vários dos carroceiros da feira dão quando questionados sobre o impulso que os levou até lá. Com dentes de alho atrás da orelha, aqueles que não são autônomos se distinguem ainda que discretamente.

Aos doze, treze, quatorze anos…

Vandilson, Gabriel e todos os anônimos que trabalham carregando compras se assemelham em muitas coisas. Todos gostam de música, de qualquer tipo.

Todos estão presos entre a infância e a vida adulta. E todos começaram a preencher seus carrinhos porque, em um momento ou outro, precisaram.

PÁGINA

04

“Eu vim pra cá, porque quis… Acho que assim é diferente. Talvez isso não tenha atrapalhado a minha infância”, conta o adolescente que brincava de bola, pipa, esconde-esconde, carrinho e tantas outras coisas. Além de resumir assim sua infância, Vandilson ainda conta que foi nesta época que teve a chance de se descobrir um grande fã de desenhos animados. “Eu acho que quando os pais obrigam a criança a começar a trabalhar é errado. É um crime isso! Eu sou contra colocar uma criança pra trabalhar.”

Alguns rapazes, mais velhos, com dezoito ou dezenove anos ainda carregam compras. “Enquanto nada m e l h o r a p a r e c e r, e u c o n t i n u o carregando”.

PÁGINA

05

Apesar das melhores condições e tratamento especial, é nesta mesma situação que se encontra Vandilson; que tem emprego garantido ali depois do m do Ensino Médio, mas gostaria mesmo é de arranjar alguma coisa diferente. Se preparando para o Exame Nacional do Ensino Médio, Vandilson quer ser designer e espera que o ensino integral garanta isso a ele. Para o moço, estudar é parte fundamental da mudança de realidade que ele quer proporcionar não apenas para si, mas também para todos que o cercam. “Acho que meu sonho é me formar pra dar orgulho para os meus pais.” Embora, logo depois, ao comentar que quer ter uma casa e também condições de mantê-la, se contradiga dizendo que “na verdade, meu grande sonho é ser pai.”

E é dessa maneira que Vandilson demonstra que, embora tenha começado muito cedo, quer ter um futuro diferente para que, quando seu sonho mais genuíno se torne realidade, o presente não retorne. O jovem não deseja identicar em meio ao mar de pés que circulam por Guarabira e tantas outras cidades da Paraíba nas feiras locais, os pequenos pés de seus lhos; já que, se olhar por cima, os carregadores se tornam invisíveis em meio ao montante de adultos que os cercam.

Revista Olhar Reportagem: Carolina Cassoli Fotograa: Natanael Viana Edição Gráca: Thiago Félix

PÁGINA

06