Os 500 anos da reforma

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Os 500 Anos da Reforma Ecclesia reformata, semper reformanda Dom Dadeus Grings



Os 500 Anos da Reforma Ecclesia reformata, semper reformanda Dom Dadeus Grings



ÍNDICE 1. As grandes reformas da Igreja 2. A dialética da Reforma 3. O desafio da recepção 4. Do conflito à comunhão 5. O diálogo ecumênico 6. O diálogo católico-luterano 7. A fé e as obras 8. Novas perspectivas ecumênicas 9. O passado e o presente 10. A fonte comum 11. A Igreja de Cristo 12. A unidade na diversidade 13. O carisma fundacional de Lutero 14. O ponto de chegada



1. AS GRANDES REFORMAS DA IGREJA Em outubro de 2017 comemoramos os 500 anos da Reforma Protestante. O evento enseja uma reflexão mais ampla da necessidade de Reformas da Igreja, de acordo de uma “Igreja Reformada, sempre a ser reformada”. O motivo é que a vida, por natureza, se define como dinâmica, ao passo que as estruturas são estáticas. Daí a necessidade de continuamente adaptá-las aos novos tempos, ou seja, à evolução da História, quando aparecem defasagens, quer por deterioração, quer por novos dados que vão aparecendo com o tempo. Registramos cinco grandes Reformas na História do Cristianismo. A primeira aconteceu no século IV, com a virada constantiniana, com a liberdade do Cristianismo dentro do Império Romano. A segunda, no século IX, com o surgimento do regime de Cristandade, quando a Igreja assumiu o protagonismo da vida pública. A terceira, no século XI, chamada Reforma gregoriana, quando a Igreja procurou certa independência frente ao poder temporal. A quarta, no século XVI, conhecida como Reforma Protestante, quando se rompeu seu tecido interno na Europa. E a quinta, no século XX com o Concílio Vaticano II, com a abertura do grande diálogo ecumênico, interreligioso e intercultural. Todas estas reformas aconteceram em contextos bem definidos e têm muito a ensinar. A primeira grande Reforma vem sendo qualificada, por muitos, como “virada constantiniana”. Vencendo seu rival Maxêncio, na Ponte Mílvio de Roma, Constantino alterou significativamente o curso da História do Cristianismo. Primeiro lhe deu liberdade de difusão, levando-o a permear, em pouco tempo, todo o Império. Depois privilegiou seus membros nos cargos públicos, por reconhecê-los os mais dignos e honestos. E, por fim, tornou-o religião oficial do Império. A política como que se adonava da fé cristã. A segunda grande Reforma da Igreja aconteceu no ano 800. A “invasão dos bárbaros”, no século V, destruíra o Império Romano, que dera sustentáculo político ao Ocidente por mil anos. Nele nasceu, cresceu e se firmou o Cristianismo. Inicialmente perseguido, mas, por fim, oficializado. Com sua derrocada, faltava um respaldo político para a Igreja. Sentia-se a ausência de um pai, junto à mãe, representada pelo Romano Pontífice. No Natal do ano 800, o Papa coroou solenemente, na Basílica cons-

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tantiniana de S. Pedro, em Roma, diante das mais altas autoridades europeias, Rei cristão a Carlos Magno. Estava criado o Regime de Cristandade, que haveria de durar, como o Império Romano, outros mil anos, conhecido como Império cristão. A estátua equestre de Carlos Magno foi colocada, na nova Basílica de S. Pedro de Roma, na ala esquerda, ao passo que a de Constantino, na ala Direita. Ambos, no externo da Basílica, representam os dois protetores, símbolos externos da Igreja, bem como de suas duas primeiras grandes Reformas. A terceira grande Reforma situa-se no inicio do segundo Milênio do Cristianismo, conhecida como Reforma Gregoriana. Teve seu berço no Mosteiro beneditino de Cluny. Quando tudo parecia perdido, Deus suscitou um movimento renovador de baixo, para dissipar as trevas da Idade Média. A origem veio de uma aldeia obscura da França, do início do século X. Para não incorrer nos vícios da época, de grande corrupção, colocou sua propriedade no nome dos Apóstolos Pedro e Paulo. Assim garantia sua isenção frente ao príncipe e ao bispo, então com o título e cargo de príncipe. Pedro Damião, falecido em 1072, foi o protagonista do movimento. Depois a reforma centralizou-se em Roma, com a ação enérgica dos Papas, surgidos do movimento renovador de Cluny. Tiveram, como expressão máxima, S. Gregório VII, que a implantou na Igreja entre 1073 e 1085. Convém não confundir esta reforma gregoriana da Igreja de Gregório VII, amparada pelos Papas da época: Gregório VI, Leão IX, Vitor II, Estêvão IX, Nicolau II e Alexandre II, com outra reforma, que é do calendário, também chamado gregoriano, realizado pelo Papa Gregório XIII em 1582, ainda em vigor. Este não visa à organização da Igreja, mas ao novo cômputo do tempo. Faz novamente coincidir as estações do ano com o movimento dos astros. A Reforma gregoriana do Século XI, ao invés, promoveu novamente a distinção entre política e religião. Procurou devolver à Igreja sua autêntica dimensão de salvação. Corrigiu gravíssimos defeitos da época. Levou a Idade Média às culminâncias dos séculos XI, XII e XIII, com os grandes santos, sábios e estadistas que os caracterizaram. Orientava-se pela tríplice instância do Papa, no plano religioso, do Imperador, no plano político e da Universidade, no plano cultural. Lembremos os grandes santos deste período auge do Cristianismo: S. Bernardo, S.Anselmo, S. Alberto Magno, S. Tomás de Aquino, S. Boa-

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ventura, S. Francisco de Assis, S. Luis IX, Rei da França... A quarta grande Reforma, da qual estamos celebrando os 500 anos, situa-se no século XVI. Como pano de fundo se encontra novamente a relação entre política e religião. Esta Reforma, porém, logo se bifurcou. Começa-se a falar de uma Reforma Protestante e de uma Reforma Católica, muitas vezes designada como Contra-reforma. Ambas apresentam personagens de destaque, interessadas exclusivamente no bem da Igreja. Todos sentiam a necessidade urgente de uma Reforma em grande estilo. O problema básico não era a fé, mas os costumes. É preciso reconhecer que o século XVI apresenta uma vitalidade sem precedentes de fé, de vida e de descobertas. Trata-se de um período extremamente fecundo, de grandes novidades humanas e de extraordinárias graças divinas. Basta citar as descobertas e as lideranças que Deus suscitou. Obtiveram enorme estima por parte de seus seguidores, expressando seu sensus fidelium. Do lado protestante temos Lutero, Melanchton, Calvino, Zwinglio, Huss... Do lado católico aparecem Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Filipe Néri, Camilo de Lelis, João d Cruz, Tereza de Ávila, Carlos Borromeu, sem citar os grandes descobridores da época. A quinta grande Reforma do Cristianismo se encontra no século XX. Inicia com o Conselho Mundial das Igrejas. Aponta para a necessidade e vontade dos cristãos de colocarem em prática o mandato de Cristo: que todos sejam um. Culmina no Concílio Vaticano II que, além de elaborar 16 documentos de renovação da Igreja, significou uma nova visão e participação de todos. O período preparatório levou a Cristandade a refletir sobre os temas da Igreja. Apresentou suas propostas para a reforma necessária. Fala-se de um novo Pentecostes. É o Espírito Santo que anima e renova a sua Igreja. PARA REFLETIR 1. Por que a Igreja faz reformas na sua estrutura e na sua vida? 2. Quais foram as principais Reformas da Igreja? 3. Como comemorar a Reforma Protestante nos seus 500 anos?

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2. A DIALÉTICA DA REFORMA O todo é maior que a soma de suas partes (Papa Francisco). O século XIX, a partir de Hegel, introduziu um novo método de abordar a História da Humanidade, através da dialética. Inicia com uma tese, confronta-a com a antítese, para chegar à síntese. Dá por superada a visão dicotômica, que divide tudo por antinomias: bom ou mau, situação ou oposição, vida ou morte, liberdade ou escravidão... O fundo que garante a justeza desta superação é que não há nada perfeito neste mundo. O avanço não se faz de um extremo ao outro, mas por intermediários. Cristo garante que todos somos pecadores e necessitamos do perdão e da redenção que vem de Deus. Aristóteles eliminara a dicotomia entre ser e não ser, com sua famosa teoria do ato e da potência. Ninguém, a não ser Deus, é o que é. Todos os seres criados estão em devir. Não são o que são, mas devem crescer em todos os aspectos. Hegel criou uma terminologia apropriada para designar as três fases da dialética. A rigor trata do diálogo. Nenhum dos interlocutores presume estar com toda a verdade. Pondo seus pontos de vista e suas aquisições em comum, cada um progride no conhecimento. Completa, com as contribuições dos outros, o que lhe falta para a compreensão mais plena dos fatos ou da realidade. A tese não se refuta pela antítese, mas se entende pela síntese. Esta, por sua vez, não se entende sem referência tanto à tese como à sua absorção, através da antítese. O século XVI registra uma enorme revitalização da fé e da vida cristã. Sentiu-se fortemente a necessidade de se formar melhor, como já acontecera no século IX, e no século XI, que confluíram, respectivamente, na criação do Império cristão e na reforma gregoriana das estruturas eclesiásticas. O século XVI se dá conta de que as estruturas e os costumes da Igreja não mais correspondiam aos novos tempos. Lançou o apelo para uma Reforma que fosse permanente: ecclesia reformata semper reformanda. O mérito da proclamação desta necessidade cabe a Lutero, homem de profunda religiosidade e amplo saber teológico, além de exímio pregador e líder social e político. No paradigma da dialética podemos dizer que coube a ele lançar a tese da Reforma. Devido às contingências históricas,

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ficou conhecida como Reforma Protestante. Mais que protestar contra um edito político, seu objetivo era professar a fé, com autenticidade. O problema, porém, logo extravasou para o campo político. É que ainda estamos na Idade Média, que une estritamente fé e política, num regime de Cristandade. Não tardou em degenerar numa guerra fratricida, conhecida como Guerra de Religião. Após 30 anos de sangrentos confrontos, chegou-se à conclusão de que não haveria vencedores nem vencidos. Continuando neste ritmo de hostilidades, acabariam todos se matando. Decidiu-se, então, entregar esta questão aos príncipes, que a dirimiriam, para seus súditos: “cujus regio eius et religio”. A geografia, isto é, a política definiria a religião de cada um. O triste foi a convicção de que a fé cristã divide. Assim se lhe tirou toda a força de moldar a política. A tese da Reforma de Lutero conseguiu muitos adeptos. Levou nações inteiras à adesão. Conta com homens de extraordinária envergadura, como Melanchton. Mas também apareceram, em linhas discordantes, Calvino, Husss, Zwinglio.... Todos trabalhavam intensamente pela Reforma, no afã de purificar o Cristianismo dos desvios morais e dogmáticos. Não conseguiram a unanimidade. Acabaram dividindo a Cristandade e os cristãos entre católicos e protestantes, a se detestarem mutuamente. Surgiu assim a antítese católica, que muitos denominam de anti-reforma. Costuma destacar-se, nesta antítese, o Concílio de Trento. É, de fato, a perfeita antítese à Reforma Protestante. Foi convocado para refutá-la. Tomou ponto por ponto suas teses para firmar a posição católica como contraposta. No fim do Concílio havia um claro divisor de águas entre católicos e protestantes. E pior ainda. Cavaram-se trincheiras para uma longa batalha, mais ou menos como Verdun, entre a Alemanha e a França, na Primeira Guerra Mundial, para dividir definitivamente as posições.. Mas não é o Concílio a melhor referência da parte católica. O século XVI, como já vimos, teve também sua plêiade de santos, que Deus suscitou para a sua renovação. Trata-se não de verdades a definir e ensinar, mas de vida cristã a amparar e difundir. Lembremos S. Inácio de Loyola, com seu espírito inovativo, com o lema “tudo para a maior glória de Deus”; S. Francisco Xavier, missionário incansável no longínquo Oriente; S. Felipe Néri, mestre e renovador da juventude; S. Camilo de Lelis, com sua dedicação incansável aos doentes; S.João da Cruz, com sua espiritualidade exemplar; S. Teresa de Ávila, com a reforma do Carmelo; S. Carlos Borro-

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meu com a reforma da pastoral. A tese protestante, de Lutero e Calvino, confrontada pela antítese católica, não no plano da doutrina conciliar, mas da santidade dos grandes renovadores católicos, que marcaram este mesmo século, deve levar à síntese. Não se trata de determinar quem tem razão ou quem está errado, mas de acolher o que cada lado tem de cristão. É ali que finaliza e se concentra o diálogo ecumênico. Os 500 anos da Reforma – da tese e da antítese – levam a reconhecer o grande patrimônio cristão que herdamos e conservamos, de modos diversos, em nossas tradições. Temos o mesmo Cristo, recebemos o mesmo Espírito Santo. O mesmo batismo nos fez renascer pela água e o Espírito Santo. Professamos a mesma fé. Orientamo-nos pela mesma Bíblia e pelos mesmos Santos Padres, que marcaram os primórdios da Igreja e esclareceram e formularam nossa fé num contexto humano-ocidental. PARA REFLETIR 1. Por que é preciso pensar a Igreja como um todo? 2. Em que consiste a Reforma de Lutero? 3. Como a Igreja católica se posicionou diante da Reforma luterana?

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3. O DESAFIO DA RECEPÇÃO Jesus revelou-se por muitos simbolismos: água viva, vida eterna, videira, luz, caminho, verdade... Quando expressa que “seu corpo e seu sangue” são sinais de sua presença não se há de discutir sobre sua significação filosófica. A refeição comum deve ser para todos os cristãos uma experiência marcante da Última Ceia de Jesus, a ser lembrada e celebrada. Mesmo que este desejo não se possa satisfazer plenamente, desejaria para nossas comunidades cristãs que, se não puderem construir uma casa comum, pelo menos optem por um telhado comum sobre suas cabeças (S. Klemm). Há três questões básicas a colocar diante de Jesus Cristo: quem Ele é; que os homens dizem dele e o que Ele representa para seus fieis. Não teria sentido se Ele tivesse vindo ao mundo, vivido algum tempo em alguma parte da terra e voltado para o céu, sem ter sido reconhecido e acolhido por ninguém. O tema da recepção de Cristo é, pois, essencial para a sua missão. Pergunta-se acerca de sua recepção. O Cristianismo apresenta diversas versões de sua recepção. Uma, quase diríamos objetiva, é retratada pelo Evangelho de Marcos. Traz como título: Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Empenha-se em mostrar quem é Jesus. Mateus, no seu escrito, concentra-se no que Jesus significa para os judeus. Vê-o na perspectiva do Antigo Testamento. Lucas alarga a visão. Mostra o que Jesus representa para a humanidade inteira. João, depois de todos eles, o descreve para aqueles que nele crêem. Conclui, com modéstia, que não se esmerou em esgotar o assunto. Restringe-se a alguns sinais para que se creia nele e assim se obtenha a vida. Paulo, por sua vez, restringe ainda mais o visual. Confessa que transmite, por escrito, o que também ele recebeu, isto é, que Jesus morreu, foi sepultado, ressuscitou e, depois, apareceu a diversas pessoas, apresentadas como testemunhas da nova vida que apregoa. Reconhece que algumas destas pessoas já morreram, quando escreveu. Mas a maioria ainda estava viva. Estas versões calcam claramente a recepção que Jesus teve no mundo. Passados dois mil anos, podemos repetir, com S. Paulo, que muitos cristãos já morreram. Mas sua fé continua viva na posteridade. Chega até nós através das testemunhas. Podemos dizer, com os hebreus: nossos pais

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nos contaram. E nós acreditamos. Sentimos, ao longo dos tempos, a necessidade de revisões, não da pessoa e da obra de Cristo - o passado não se muda – mas de sua recepção por parte de seus fieis. Referimos as grandes Reformas, destacando cinco: a de Constantino, no século IV, ao oficializar o Cristianismo no Império Romano, unindo fé e política; a do Império cristão, com Carlos Magno, que culminou no regime de Cristandade; a gregoriana, que procurou distinguir novamente fé e política; a de Lutero, que ocasionou um novo movimento dialético na Igreja entre fé e obras; e a do Concílio Vaticano II, que culmina um grande esforço de diálogo ecumênico, para colher e sintetizar as belas contribuições que as diversas recepções de Cristo proporcionaram à humanidade. Diante desta dialética aparecem, em nova luz, as perspectivas das diversas versões da Bíblia a respeito de Cristo. Ninguém se poderia declarar mais autêntico seguidor de Jesus Cristo, só pelo fato de pautar sua recepção mais por um, em preferência a outros evangelistas. A diversidade das versões apresentadas por Marcos, Mateus, Lucas, João e Paulo não retratam Cristos diferentes, mas constituem visões diferenciadas, mas autênticas, do mesmo Cristo. De modo semelhante, é o mesmo Cristo que foi acolhido no tempo das perseguições romanas, no tempo da oficialização do Cristianismo, no tempo do Regime de Cristandade, no tempo da Reforma protestante e no tempo das novas denominações cristãs do século XX. É o mesmo Cristo dos católicos, dos Ortodoxos, dos heterodoxos, dos Protestantes, dos Crentes de nossos tempos. Estamos aproveitando o ensejo do jubileu dos 500 anos da Reforma Protestante para reaproximar todos os cristãos, cujos antepassados, ao longo dos tempos, se dividiram por questões que dizem respeito à recepção do mesmo Cristo. O que queremos enfatizar, com este Jubileu, que, apesar das muitas incompreensões do passado, o Cristo continua o mesmo e que nos abrimos para um diálogo mais profícuo, a fim de desvendar mais e mais as inesgotáveis riquezas e significados deste mesmo Cristo, muito querido por nós todos. E dizemos mais: único Salvador de todos os homens. Se no passado, nossos longínquos ancestrais de 500 anos atrás, que nem conhecemos pessoalmente, brigaram por causa de sua fé em Cristo, não precisamos, hoje, continuar sua briga. Pelo contrário: já há muito tempo sentimos saudades uns dos outros, que professamos a mesma fé e

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nos consideramos autênticos irmãos e irmãs, ainda que se fale de irmãos separados. A recepção de Jesus Cristo, nosso único e comum Salvador, nos impele a acolher-nos mutuamente. Afinal, todos somos batizados nele. Isto faz de nós uma unidade de fé, que deve levar à comum esperança e à caridade benfazeja. Não poderíamos sentir-nos bem com Jesus, se não acolhêssemos todos os que o amam e procuram. PARA REFLETIR 1. Como Jesus foi recebido ao longo dos tempos? 2. Como hoje se vive o Cristianismo? 3. Como os Evangelistas nos transmitiram Cristo?

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4. DO CONFLITO À COMUNHÃO Na origem da palavra “ecumenismo” está o termo grego “oikos”. Indica a casa comum das Igrejas cristãs, como lar protetor e aconchegante para todos. Mesmo que ainda não saibamos como esta construção deva ser efetivada para ser a casa dos cristãos, cremos que Deus, através de seu Espírito renovador, fornecerá o projeto. Talvez se trate de uma restauração d antiga casa paterna; talvez se construa um nova casa; talvez se trate de uma casa comum, onde cada comunidade cristã, de acordo com sua tradição, se reúna numa sala comum só para as refeições (S. Klemm). Não se pense que eu esteja delirando, ao falar da comemoração do Jubileu da Reforma Luterana de 1517. A Comissão luterano-católica para a Unidade lançou um projeto com o título “Do Conflito à Comunhão” em preparação de uma comemoração conjunta da Reforma em 2017. Assinam este projeto o Cardeal Koch, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e o Pastor Martin Junge, Secretário Geral da Federação Luterana Mundial. O documento conta com 96 páginas. Esta tarefa é declarada urgente “porque católicos e luteranos nunca deixaram de confessar juntos a fé na Igreja una, santa, católica e apostólica”(82). Neste documento, como em geral na convivência diária, aparece como “católicos e luteranos têm consciência de que eles e as comunidades em que vivem sua fé pertencem ao corpo único de Cristo”. Por isso reconhecem que “está crescendo a consciência de que as lutas do século XVI estão superadas. As razões para condenar mutuamente a fé do outro estão superadas. Luteranos e católicos identificam cinco imperativos para comemorarem juntos o ano de 2017”(90). Primeiro: partir da perspectiva da unidade e não na perspectiva da divisão. Existe certa unilateralidade ao se tratarem, nestes cinco séculos, alguns pontos que nos separam. Os problemas surgidos dos conflitos só podem ser resolvidos pelo esforço da comunhão. “Católicos e luteranos precisam da experiência, do encorajamento e da crítica um do outro”, garante o documento. Segundo: deixar transformar-se continuamente pelo encontro e pelo testemunho mútuo da fé. Os católicos e os luteranos já aprenderam

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muito, neste último tempo, com o diálogo. Perceberam que a comunhão entre eles pode ter diferentes formas. O jubileu dos 500 anos da Reforma os levará à gratidão por tudo o que já alcançaram e à perseverança de continuar no caminho da reconciliação, com amor uns pelos outros; com fé no Espírito Santo e com esperança de realizar o que Jesus pediu ao Pai na Última Ceia. Terceiro: compromisso pela unidade visível, na compreensão maior do Evangelho, da fé cristã e da Tradição da Igreja. Comprometam-se evitar uma retomada da tradição que poderia levar às antigas oposições confessionais. Quarto: Redescoberta da força do Evangelho de Jesus Cristo para o nosso tempo. O diálogo ecumênico não se restringe a uma busca da unidade da Igreja, mas se estende também em benefício do mundo inteiro, para que creia. A tarefa missionária se situa numa sociedade pluralista, também em termos religiosos. Quinto: Testemunho conjunto da graça de Deus, pela pregação e pelo serviço ao mundo. Mostrarão assim que o Evangelho da justiça de Deus é também o Evangelho de sua misericórdia. O Papa Francisco diz que o nome de Deus é Misericórdia. A memória dos inícios da Reforma de 1517 só será frutuosa se, tanto luteranos como católicos, estiverem dispostos a ouvir, juntos, o Evangelho de Jesus Cristo para responderem a seu apelo de formar uma comunidade com o Senhor. O documento conjunto para a comemoração da Reforma de 1517 apresenta o mea culpa de ambos os lados, reconhecendo os pecados contra a unidade. Da parte católica, lembra que já o Papa Adriano VI, em 1522, reconheceu abusos e ofensas, pecados e erros da parte dos católicos. O Papa Paulo VI, na abertura da segunda sessão do Concílio Vaticano II, pediu perdão a Deus e aos irmãos separados. O Papa S. João Paulo II reconheceu a culpa e pediu perdão como parte da observância do Ano Santo do Grande Jubileu de 2000, do Cristianismo. Da parte luterana, em 1970, na 5ª. Assembléia Mundial reconhece que o juízo dos reformadores sobre a Igreja católica e sua Teologia sofreu graves distorções polêmicas, que, em parte, foram perpetuadas. Acrescenta sentir muito pelas ofensas e mal-entendidos que estas acusações provocaram nos irmãos católicos. O documento da comemoração do Jubileu

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lembra também a confissão dos luteranos em relação a outras tradições cristãs. Na 11ª. Assembléia de Stutgart, em 2010. a Federação Mundial diz que lamenta e que dói profundamente o fato de os reformadores luteranos terem perseguido os Anabatistas. O Jubileu dos 500 anos da Reforma quer por uma pedra encima dos desentendidos. Lembra que Jesus Cristo reconciliou o mundo consigo. Por isso todos os seus seguidores se devem declarar dispostos a perdoar e a pedir perdão. Todos pecamos e todos necessitamos do perdão e da misericórdia. Só a graça poderá recuperar os estragos feitos por nossa fragilidade humana. Lembramos o passado para superar as divisões e abrir-nos para a graça da reconciliação. Só assim cumprimos a vontade de Cristo que pede que todos sejam um, para que o mundo creia ser Ele o enviado para salvar a todos. PARA REFLETIR 1. Como chegar do conflito à comunhão cristã? 2. Como restabelecer a unidade cristã? 3. Como católicos e luteranos celebram os 500 anos da Reforma?

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5. O DIÁLOGO ECUMÊNICO Por movimento ecumênico entendem-se as atividades e iniciativas, que são suscitadas e coordenadas, segundo as várias necessidades da Igreja e oportunidades dos tempos, no sentido de favorecer a unidade dos cristãos. Tais são: primeiro, todos os esforços para eliminar palavras, juízos e ações que, segundo a equidade e a verdade, não correspondem à condição dos irmãos separados e, por isso, tornam mais difíceis as relações com eles; depois, o diálogo estabelecido...” (Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 4). O Concílio Vaticano II, colhendo uma experiência muito rica do fim do século XIX até meados do século XX, elaborou um documento sobre o Ecumenismo, com o título UNITATIS REDINTEGRATIO. No passado, a Igreja já realizara dois Concílios de Unidade, para reparar as divisões dos cristãos, surgidas de heterodoxias do primeiro milênio e da divisão entre católicos e ortodoxos, do início do segundo Milênio. O primeiro destes Concílios realizou-se em Lyon, na França, reunificando a Cristandade católico-ortodoxa. Diante do fracasso de sua implementação, convocou-se, dois séculos depois, um segundo Concílio de Unidade, agora compreendendo todos os cristãos, no Concílio de Florença, na Itália. Ambos os Concílios proporcionaram uma alegria indescritível. A felicidade maior traduziu o fato de se ter, finalmente, conseguido por em prática a vontade de Cristo, de que todos os seus fieis fossem um. Alegria de Cristo, alegria dos cristãos! Fatores estranhos à vontade dos cristãos, principalmente no segundo caso, quando os turcos, após tomarem Constantinopla, impuseram a seus súditos, os cristãos derrotados, a separação de Roma. Para poderem praticar a fé em Jesus Cristo, no regime muçulmano, os cristãos do Oriente tiveram que romper com os seus irmãos do Ocidente. Isto perdurou até o século XX. No século XVI acrescentou-se nova ruptura, agora no Ocidente, entre Católicos e Protestantes. Também nesta divisão foi fatal a interferência política, entre os próprios cristãos, cuja profissão de fé era decretada pelos príncipes. O Concílio do século XX, convocado pelo Papa S. João XXIII, não

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foi propriamente um Concílio de Unidade. A experiência dos concílios anteriores, incluindo o de Trento, mostrou que a unidade dos cristãos não se alcança por decreto. Só pela graça é possível chegar à sonhada unidade. Não é obra dos homens, mas de Deus. O Concílio do século XX que, depois, recebeu o nome de Vaticano II, tinha a unidade dos cristãos como seu horizonte. Não foram convocados membros das outras confissões cristãs, como integrantes, mas foram convidados muitos líderes das diversas denominações religiosas, como observadores e colaboradores, para participarem ativamente dos trabalhos conciliares. Os grandes debates e votações se realizaram no plenário da Basílica Vaticana. Ali funcionaram também dois bares, onde se abordavam os grandes problemas da Igreja ao sabor do cafezinho. Era o lugar e a vez dos observadores de influenciarem profundamente as decisões dos plenários. Por isso se dizia, na época, que não se poderia escrever a História do Concílio Vaticano II sem mencionar e ter presente as conversas destes dois bares, que logo foram batizados simbolicamente como Bar Jonas e Bar Rabás. O documento conciliar estabelece os grandes princípios do Ecumenismo. No primeiro capítulo firma o princípio da unidade da Igreja. Trata de sua ruptura, encaminhando a necessidade de por-lhe reparo. O segundo capítulo apresenta a prática do ecumenismo, primeiro como trabalho de toda a Igreja e, depois, como resultado da renovação da própria Igreja. Põe, na base, a conversão do coração e a oração. Depois, a superação dos preconceitos, urgindo um melhor conhecimento dos irmãos separados. Insiste na necessidade de uma formação ecumênica, numa exposição clara e fiel da fé e, por fim, uma colaboração profícua com os irmãos separados. No terceiro capítulo se apresentam duas categorias para um diálogo diferenciado: as Igrejas orientais e as Igrejas e comunidades eclesiais do Ocidente. As primeiras se situam no plano da Ortodoxia. Têm um caráter e história própria dos Orientais. Apresentam uma Tradição e uma Liturgia muito ricas, com disciplina e teologia próprias. As segundas surgiram da Reforma Protestante, no Ocidente. Têm uma índole mais prática. Esmeraram-se nos estudos bíblicos, reduzindo drasticamente a vida sacramental, reduzida praticamente ao Batismo e à Ceia do Senhor. O Concilio Vaticano II abriu, de par em par, as portas do ecumenismo, tornando-o irreversível. Não se trata de uma atitude periférica. Atinge

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o nervo central da Evangelização. Envolve renovação das estruturas. Pode-se falar de uma grande Reforma. Um Pastor luterano chegou a confidenciar que foi este Concílio que Lutero, no seu tempo, almejava. Recuperou muitos valores que os Protestantes haviam destacado, como a leitura assídua da Bíblia, a centralidade de Cristo, a importância eclesial da fé... A Igreja deu-se conta da necessidade de diversificar o diálogo ecumênico para corresponder a cada confissão cristã. Propõe os princípios gerais. Mostra a necessidade de uma espiritualidade ecumênica. Desenvolve um diálogo bilateral, respeitando a identidade de cada Igreja e confissão cristã. Daí o diálogo diferenciado com os ortodoxos, com os Luteranos e Protestantes, com os Anglicanos e Metodistas e com as novas confissões religiosas que surgiram nos dois últimos séculos, contrapostas às Igrejas classificadas como históricas. Com o diálogo ninguém perde. Todos ganham, somando o que há em comum e respeitando as diferenças. PARA REFLETIR 1. Como o Concílio Vaticano II apresenta a exigência do Ecumenismo? 2. Como restabelecer a unidade cristã? 3. Por que o Ecumenismo apresenta um diálogo diferenciado com cada denominação cristã?

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6. O DIÁLOGO CATÓLICO-LUTERANO A misericórdia de Deus é como o céu. Debaixo de seu teto todos nos sentimos seguros (Lutero) O diálogo exige respeito à posição do interlocutor. Ninguém deseja impor nada ao outro. Firmado escrupulosamente este ponto, passa-se a desenvolver o que há de comum entre ambos. Aliás, este método é fundamental para a acolhida de cada um, em relação a si mesmo bem como em relação aos outros, e para a acolhida das entidades, naquilo que cada um tem de característico e que pretende colocar em comum com outras entidades. O diálogo pode restringir-se às idéias, como também avançar para verdadeiros pactos de mútua cooperação. Cada pessoa é levada a dialogar consigo mesma. Já fui criança. Vivi como jovem. Atuei como adulto. Fiquei idoso. É evidente que hoje não penso mais como criança, nem vivo como jovem, nem sequer atuo como adulto. Sou idoso. É a única idade que atualmente tenho. Mas não rejeito meus anos de infância, nem meus sonhos de jovem, nem minhas realizações de adulto. Acolho-me, feliz, em todas estas idades. Fui sempre eu que vivi nesta riqueza de expressões. Na verdade, a vida humana é tão rica que não possa ser vivida toda de vez. Vive-se em prestações. Cada idade tem sua riqueza e beleza, sua bondade e verdade. Assim como me acolho em todas as fases de minha vida, dialogo também com os outros, não só respeitando a fase de vida em que se encontram no momento, mas também acatando a diferença que se manifesta na alteridade. Além da idade envolve sexualidade e cultura. Cada pessoa representa uma riqueza a ser “explorada” e posta em comum. No plano do Cristianismo tenho, em primeiro lugar, minha querida Igreja católica. Dediquei-lhe minha vida. Tentei aprofundar-me no estudo de tudo o que lhe diz respeito, na certeza de que não se ama o que não se conhece. Aprofundei-me na sua História, que, afinal, também é minha. Identifico-me com ela. Integrei-me nos seus quadros responsáveis, como batizado, como presbítero e como bispo. O mesmo amor que dedico a Jesus Cristo, meu Salvador, Filho de Deus, professo também em relação à sua e minha Igreja. Aprendi que há muitas pessoas que amam Jesus Cristo, profunda-

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mente ligadas a Ele, mas que não se sentem parte da minha Igreja. Evidentemente pelo amor que tenho a Jesus Cristo não posso deixar de acolhê-las e amá-las A celebração dos 500 anos da Reforma luterana nos oferece o ensejo de uma comemoração conjunta. O documento preparatório, com o título “Do conflito à comunhão” reconhece que “a verdadeira unidade da Igrejas só pode existir como unidade na verdade do Evangelho de Jesus Cristo”(11). Reconhece que a luta por esta verdade, no século XVI, levou à perda da unidade do Cristianismo Ocidental. Por isso pertence às páginas obscuras da História da Igreja. Para 2017 propõe uma confissão aberta, reconhecendo mutuamente que, ferindo a unidade da Igreja, tornamo-nos culpados diante de Jesus Cristo. Conclui auspiciando que “esse ano comemorativo nos coloque diante de dois desafios: a purificação e cura das memórias e a restauração da unidade cristã, conforme a verdade do Evangelho de Jesus Cristo”(11). O texto da preparação da comemoração conjunta católico-luterana se coloca num contexto ecumênico e global. Inicia com os novos desafios que exigem uma “conversão entre Igreja e cultura”. Lembra o surgimento, há um século, dos movimentos pentecostais carismáticos, que tornaram obsoletas muitas das antigas controvérsias confessionais. No tempo da Reforma, na Europa, se registrava uma homogeneidade de fé cristã. Hoje, ao invés, os cristãos vivem mundialmente em ambientes multi-religiosos. Trata-se de um pluralismo que desafia o ecumenismo, tornado-o mais urgente. Na verdade, as controvérsias e oposições religiosas prejudicam a credibilidade cristã. O movimento ecumênico, de acordo com o documento da comemoração do Jubileu da Reforma, “alterou a orientação das perspectivas das Igrejas da Reforma: teólogos ecumênicos decidiram não continuar suas autoafirmações confessionais em prejuízo de seus parceiros de diálogo”. A orientação agora é pesquisar o que há de comum nas diferenças, superando o que divide as Igrejas. O primeiro horizonte que se abriu, no diálogo ecumênico, foi o estudo bíblico. Tanto católicos como luteranos se sentam juntos para ouvir e se aprofundar na Palavra de Deus. Como próximo passo vem a oração comum. Cristo é nosso ponto de referência. Nele e só por Ele temos salvação, vida e unidade. Em terceiro lugar, reconhecemo-nos irmãos, porque recebemos e reconhecemos mutuamente o mesmo Batismo, que nos tornou

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filhos de Deus e membros da Igreja de Cristo. Vem, como consequência, o empenho prático de nos colocarmos a serviço do Evangelho. Este jubileu visa também à superação de muitos preconceitos mútuos. Os luteranos têm um enorme apreço por Lutero, que os católicos, até há pouco, detestavam. O Papa, que para os católicos tem uma capital importância, os luteranos odiavam... O Jubileu abre um novo e profícuo diálogo, superando estes e muitos outros dissabores. PARA REFLETIR 1. Quais são as exigências do diálogo? 2. Como nos encontramos e entendemos em Jesus Cristo? 3. Que nos apresenta a comemoração conjunta católico-luterana?

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7. A FÉ E AS OBRAS A meta do movimento ecumênico não é cada um defender sua posição ,mas dar testemunho para que o mundo creia na Boa Nova da Misericórdia de Deus (S. Klemm). A relação entre Deus e o homem constitui um do estudos teológicos mais apaixonantes e, ao mesmo tempo, um dos empenhos humanos mais complexos. Em 1975 escrevi um livro sobre a Teologia da Graça, com o título A Força de Deus na fraqueza do homem. Inicio mostrando a necessidade que tem o ser humano de algo mais que seus limites terrestres. Segue o tema grandioso da filiação divina, que nos foi concedida por Jesus Cristo. No terceiro capítulo elaboro a questão da colaboração humana com a graça divina. Destaco, no quarto capítulo, a predileção divina, garantindo que somos muito amados. Mas temos todo este tesouro em vasos de argila. No século IV, com a oficialização do Cristianismo no Império Romano, conhecida como virada constantiniana, a fé cristã entrou em crise. Houve uma grande decadência moral, devido à busca do Cristianismo não por causa de Jesus Cristo, mas para usufruir de alguns privilégios políticos no Império. Neste contexto surge Pelágio, como um grande Reformador. Insiste na pureza da fé e dos costumes. Avança para o campo da teologia, garantindo que o homem tem condições e, de fato, só se salva por seu próprio esforço. Daí o aforismo “se queres podes”. Cristo apenas teria vindo para pregar uma doutrina sublime e dar um bom exemplo. Cada um O seguirá com o empenho de sua própria decisão. A liberdade é tudo. A graça se reduz à exortação e ao bom exemplo do Mestre. Agostinho opôs-se ferrenhamente a esta teoria e prática pelagianas. Ficou, por isso, conhecido como o Doutor da Graça. Nas pegadas de S. Paulo garante que, sem Cristo, nada somos. Lutero, no século XVI, pegou novamente o Cristianismo numa grande crise. Necessitava urgentemente de uma Reforma. Levado pelos ensinamentos de S. Paulo, na carta aos Romanos e se aprofundando nos escritos de S. Agostinho, em cuja ordem religiosa fizera seus votos, lançou o desafio da “sola fides” para embasar sua Reforma. O Racionalismo, logo mais lhe oporá a “sola ratio”. A relação entre fé e razão mereceu muitos estudos. Tem por base o

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sinergismo, como colaboração entre Deus e o homem. Inclui as obras nas exigências da fé. Por muito tempo a controvérsia entre Católicos e Protestantes girava em torno deste tema, enfocando a justificação. Hoje, após a declaração conjunta luterano-católica sobre este assunto, esta controvérsia está superada. S. Teresinha de Lisyeux viveu na época em que se inventou o elevador. Possibilitava, em consequência, a construção de edifícios bem altos, que hoje se chamam de torres. Teresinha, proclamada, apesar de sua tenra idade, doutora da Igreja, ficou encantada com a invenção. Começou a andar de alto a baixo do edifício. Como alma profundamente religiosa proclamou seu heureca. Tinha descoberto o segredo do Cristianismo. Reconhece que muita gente tenta, com sua própria força, isto é, a pé, chegar ao céu pela escada. Sentindo a fragilidade humana desanima. A raposa diria, ao não alcançar as uvas do caramanchão, que estavam verdes. Mas Teresinha contesta: quem diz que é preciso ou que seja possível ir a pé para o céu? Nós temos um Elevador. É Jesus Cristo. Basta entrar nele que seremos levados, sem nenhuma fadiga, às alturas da espiritualidade. É claro que Jesus não disse ser o elevador, porque, no seu tempo, este recurso não existia. Nem seria compreendido. Mas Ele se declarou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém chega ao Pai senão por Ele. Garrigou-Lagrange, um dos grandes teólogos do século XX, apresenta o deságio da fé e do amor. Segundo ele, a Igreja é intolerante nos princípios, porque crê. Mas é tolerante na prática, porque ama. Os inimigos da Igreja, ao invés, se manifestam tolerantes nos princípios porque não crêem, mas intolerantes na prática, porque não amam. O Concílio Vaticano II, na trilha da intuição luterana, reconhece que somos santos e pecadores. Como pecadores sentimos nossa fragilidade, com a necessidade da misericórdia de Deus, sem o qual ninguém é santo, ninguém é bom. Como santos, porém, reconhecemos a graça de Deus, pela qual somos imensamente gratos. Afinal tudo é graça. De um lado, reconhecemos que tudo é milagre, porque envolve a mão de Deus e, de outro lado, tudo é natural, porque recebido de Deus, com capacidade e leis próprias a identificarem cada ser. O século XX lançou, no plano filosófico, a perspectiva da intersubjetividade para facilitar o reconhecimento tanto da subjetividade como da objetividade. O homem começa a perceber que só consegue desenvolver

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sua subjetividade através da subjetividade dos outros, iguais a ele. Há uma riqueza interior que se comunica. Viver é conviver, o que equivale a acolher a própria subjetividade na e pela intersubjetividade. Só a vida é capaz de proporcionar esta comunicação. A objetividade não passa de um reflexo desta realidade. Mais que elaborar critérios que sejam provas da existência de Deus, nós nos damos conta de sua existência na medida em que nossa subjetividade se encontra não com uma coisa que se possa expressar por idéias abstratas, mas com um “Outro”. Além de chamá-lo “tu” ou “outro eu”, está na base de nossa vivência da fé e de nosso amor. Se não tivéssemos nada de nosso não O poderíamos amar, mas se Ele não nos atingisse tão profundamente em nossa subjetividade e em nossa convivência, não poderíamos crer nele. A fé se expressa pelo amor. Os princípios se revelam pela prática. PARA RFLETIR 1. Qual é a relação entre a fé e as obras? 2. Por que S. Agostinho é considerado o Doutor da Graça? 3. Como o Concílio Vaticano II nos considera santos e pecadores?

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8. NOVAS PERSPECTIVAS ECUMÊNICAS Todo reino dividido contra si mesmo é devastado e toda cidade ou casa, dividida contra si mesma, não subsistirá (Mt 12, 25). As diferenças existem para enriquecer e não para dividir. Meu apreço por S. Tomás de Aquino não afeta a estima que tenho pelos franciscanos, que preferem seguir S. Boaventura ou Duns Scotus. Assim não me leva a menosprezar os que se inspiram em Lutero. Acima das divergências filosóficas ou teológicas, marcadas por escolas e por nomes insignes, como Platão e Aristóteles, Avicena e Averrois, mas também por Agostinho e Tomás, por Galileu Galilei e Inácio de Loyola, está Jesus Cristo a merecer toda a glória e louvor. Se, em qualquer Autor, encontrar uma referência a Jesus Cristo, ele já por isso mesmo merece minha estima. Convergimos na mesma Pessoa. Até há pouco tempo o relacionamento ente Católicos e Luteranos se firmava na controvérsia teológica. Atacavam-se pontos discordantes, como se o Cristianismo se reduzisse a uma doutrina, ou constituísse uma escola de filosofia. Não por nada o Papa Francisco assegura que a realidade é mais rica que as idéias. A verdade, como tal, não necessita de defesa. Ela se impõe por si mesma. Basta proclamá-la. É Jesus Cristo. Como já lembrei em outra ocasião, os teólogos ecumênicos alteraram sua orientação. Em vez de insistir no que nos separa, avançam para o anúncio do que nos une. Corria a voz de que os católicos e protestantes se dividiam por causa de duas proposições. Reduziam-se ao “só”, contraposto ao “e”: Só a Bíblia, só Deus; só a fé; ao passo que os católicos reivindicavam a complementação com um “e”: e a Tradição, e o homem, e as obras. Trata-se de interpretações equivocadas, que se revelaram parciais. Já na primeira geração os luteranos reconheceram, com Melanchton, a necessidade de restabelecer algumas orientações que corressem paralelas à Bíblia, com as Confissões de Augsburgo, que necessariamente começaram a integrar a Tradição luterana, complementadas pelo Catecismo. O Concílio Vaticano II mudou o conceito de Tradição. Não incentiva a procura de verdades reveladas, não integradas na Sagrada Escritura, mas apresenta-a como um outro canal, que traz a Revelação divina não como idéia ou conceito, mas como vida que se transmite.

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Quando Lutero professa que só a fé, e não as obras, salva, está dentro da Tradição cristã, que o Concilio Vaticano II projeta para o século XX. Costuma-se ilustrar com o tema da pulga, que se refugiou na orelha de elefante, para escapar do incêndio de uma floresta. Ao chegar a levantar uma nuvem de poeira, adentrando o deserto, ela teria exclamado: “Elefante, veja que poeira nós estamos levantando!” Na verdade quem levantava a poeira era unicamente o elefante. Mas a pulga, neste momento, estava identificada com ele. A controvérsia católico-protestante se concentrou em quatro pontos específicos: o primeiro foram o votos monásticos. Lutero foi monge agostiniano, quando professou seus votos. Casou depois com uma irmã religiosa. Viu a corrupção nos mosteiros. Decidiu acabar com eles. A Igreja católica teve igualmente consciência desta corrupção. Deus suscitou, para resolver este problema angustiante, sem eliminar o sentido evangélico dos votos, S. Teresa de Ávila e S. João da Cruz. Reformaram os mosteiros e restituíram-lhes seu valor primitivo, de acordo com o Evangelho. Lutero percebeu, com muita perspicácia, a corrupção nos costumes e na organização da Igreja. S. Carlos Borromeu, naquela época, foi suscitado por Deus para proceder à sua reforma dentro da Igreja, sem rompê-la. A segunda grande controvérsia católico-luterana foi a justificação. Num estudo mais aprofundado entre ambos chegou-se, atualmente, à conclusão de se tratar de um equívoco de palavras. Numa declaração conjunta sobre a Doutrina da Justificação, ambos, “dirigindo primeiro nosso olhar crítico a nós mesmos e não sobre os outros “, declaram tomar “como norma orientativa a doutrina da justificação, que expressa a mensagem do Evangelho, e, por isso, visa orientar toda a doutrina e prática da Igreja incessantemente para Cristo”(10). Sobram dois temas candentes: a Eucaristia e o Ministério na Igreja, bem como os demais sacramentos, que a Igreja católica administra. O problema básico, como escrevi acima, não está nestas controvérsias. Nós somos um em Cristo. Temos, por assim dizer, tudo nele e por Ele. Portanto é preciso que nos sintamos unidos nele e por Ele. Podemos divergir em tudo o que é humano, mas não podemos fazer a menos deste ponto de convergência. Além da Pessoa de Jesus Cristo, além das Sagradas Escrituras, divinamente inspiradas e acolhidas, além do Batismo, temos em comum uma

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convivência de dois mil anos de fé, vivida e assumida. Somos cristãos. Seguimos o Evangelho de Jesus Cristo. Acolhemos nossos irmão na fé. Somos um em Cristo. PARA REFLETIR 1. Quais são as perspectivas ecumênicas de nossos tempos? 2. Como entendemos hoje a justificação cristã? 3. Quais são os principais problemas do diálogo luterano-católico?

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9. O PASSADO E O PRESENTE No que diz respeito à Eucaristia e Tradição, Luteranos e Católicos encontram-se num acordo tão amplo que suas ênfases diferentes não requerem por si que se mantenha a divisão das Igrejas. Neste ponto existe unidade em diversidade reconciliada (Do Conflito à Comunhão 80) Desde o início, a Igreja apresenta diversas versões sobre Jesus Cristo, reconhecendo como canônicos, ou seja, como norma para seu fieis, os Escritos de Marcos, Mateus, Lucas, João, Paulo... No século IV, com a oficialização do Cristianismo no Império Romano, tendo um só Imperador e uma só Igreja, tentou-se sintetizar estes Evangelhos numa única versão. Compilou-se um texto único, como síntese das narrativas. Não deu certo. Prefere-se a diversidade das narrações, como riqueza do anúncio de Cristo. Na verdade cada cristão redige, com sua vida, uma biografia de Jesus, reconhecendo que Ele é único em sua busca. No século XIII S. Francisco de Assis é considerado a pessoa que melhor imitou Jesus Cristo. Isto significa que melhor o retratou em sua vida. Elaborou assim uma biografia atualizada e viva. Surgiram, em conseqüência, não só muitos seguidores franciscanos, mas também se escreveram muitas biografias de S. Francisco. S. Boaventura, seu terceiro sucessor como ministro geral da ordem, baixou um decreto eliminando todas as versões, para privilegiar uma só, com o objetivo de não dividir o movimento franciscano, nem os fieis. Hoje se lastima esta atitude restritiva, como empobrecimento. Os vinte séculos do Cristianismo elaboraram cinco grandes Tradições históricas acerca de Jesus. A primeira, chamada ortodoxa, primou pela definição da doutrina. Estamos na época em que se formularam os dogmas fundamentais o Cristianismo. Nesta época surgiu também a segunda Tradição, conhecida como heterodoxa. Compreendia os Arianos, Nestorianos, Monofisitas e Iconoclastas, que discordavam das definições conciliares de Nicéia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia. A terceira, mais preocupada com a organização eclesial, ficou com o nome de Católica. A quarta, surgida da Reforma Protestante, esmerou-se na espiritualidade. A quinta, do Anglicanismo, enveredou pela política, girando em torno da monarquia inglesa. Mais recentemente surgiram, sem ainda gozarem do

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peso histórico das precedentes, novas confissões cristãs independentes e desagregadas. Cada Tradição confessional escreveu a sua História, vendo o Cristianismo sob seu próprio paradigma. Na década de 70 do século passado, escrevi uma História Dialética do Cristianismo. No primeiro volume tratei da dialética da universalidade, para partir da encarnação do Cristianismo nas diversas culturas, passando do Judaísmo ao Helenismo; enfrentando as perseguições do Império e a migração dos povos; fazendo frente à invasão muçulmana e expandindo-se pelas missões em todo o mundo. Na segunda parte abordei a dialética da unidade, com a análise sucinta das grandes divisões que o Cristianismo sofreu, do Gnosticismo, Montanismo, Arianismo, Macedonianismo, Nestorianismo, Monofisismo, Pelagianismo, Iconoclastia, Ortodoxia, Cisma do Ocidente, Movimentos fanáticos da Idade Média, Hussitas, Protestantismo, Anglicanismo, Anabatismo, Cristianismo esfacelado da comunhão anglicana dos Congregacionalistas, dos Quackers, dos Metodistas, dos Episcopalianos, do Pentecostalismo, do Movimento anabatista dos Batistas, Adventistas, Velhos católicos e da Igreja católica brasileira; das seitas independentes, Mormons. Testemunhas de Geová, Ciência cristã, Seicho-no-iê. Do Espiritismo kardecista, umbandista, redentorista e do exotérico. Além da História de cada confissão religiosa, - de modo mais amplo e abundante por parte da História da Igreja Católica, - o século XX apresenta uma História Ecumênica da Igreja. Surgiu na Alemanha, após o Concílio Vaticano II, em três volumes, traduzido em diversas línguas. Tem como editores Raymund Kottje e Bernard Moeller. A novidade da obra está no passo decisivo da consciência do passado, de um ponto de vista comum. Foi elaborado por historiadores católicos, protestantes e ortodoxos. Em 1980 saiu a edição italiana, pela Editora Queriniana, com o título Storia ecumenica della Chiesa. Dentro deste clima de acolhida, celebramos os 500 anos da Reforma Protestante. Como toda reforma e toda inovação, só pode ser entendida o contexto em que surgiu. Os 500 anos trouxeram sua repercussão até o presente. Cabe-nos aprofundar seu sentido cristão e sua acolhida em nossos dias. Lutero não só traduziu a Bíblia para o alemão, contribuindo, assim, significativamente para a criação deste idioma, mas também inculturou a

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teologia naquele ambiente. Lembremos que, nas línguas latinas, Igreja deriva da palavra grega Ecclesia. Significava Assembléia convocada. Nas línguas germânicas e eslavas, porém, surge do grego Kyrios (Kyriacon): Senhor. Passou para Kirche, em alemão. Lutero foi o primeiro a divergir desta tradição. Na sua tradução da Bíblia não a verteu para este termo. Substituíu-a por Comunidade (Gemeinde). No seu Catecismo maior a apresenta como Congregação ou Assembleia cristã. Ou melhor ainda, como Santa Cristandade. Daí a divergência entre católicos e luteranos. Não entendiam a mesma coisa quando falavam da Igreja. PARA REFLETIR 1 Como apresentamos Jesus Cristo hoje? 2. Em que consistem as cinco grandes Tradições da Igreja? 3.Qual é a importância da Bíblia para a vida cristã?

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10. A FONTE COMUM Agora, graças a Jesus Cristo, vós que antes estáveis longe, vos tornastes presentes, pelo sangue de Cristo. Porque é ele a nossa paz, ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de inimizade que os separava (Ef 2, 13s). O Concílio de Trento foi convocado para resolver a controvérsia protestante. Tomou artigo por artigo para lhe contrapor a doutrina católica e condenar as posições heréticas. Estabeleceu o divisor de águas. Quatro séculos e meio depois, serenados os ânimos e mudados os protagonistas, o Concílio Vaticano II decidiu não voltar ao século XVI, mas às origens da fé. Dedicou um documento especial à Revelação divina, que resultou na Constituição dogmática Dei Verbum. Sua elaboração seguiu uma via tormentosa. Na época do Concílio, dentro da Igreja católica, defrontavam-se duas correntes: uma mais aberta ao diálogo e outra mais firme na identidade católica. Sentiu-se a necessidade de olhar para dentro da Igreja, a fim de clarear sua natureza e composição. Falou-se da Igreja ab intra. Depois situou-se a Igreja no contexto do mundo atual, ad extra. Resultou, respectivamente, nas duas constituições: Lúmen gentium, dogmática, e Gaudium et spes, pastoral. Como base de ambas se elaborou a Dei verbum. O primeiro anteprojeto falava de duas fontes da Revelação. Foi rejeitado pelo plenário. A mesma comissão reelaborou o texto, levando em consideração algumas sugestões do plenário. Continuava. Porém, com a dicotomia da Bíblia e da Tradição como fontes. Foi novamente afastado dos debates como texto mártir. Não servia nem para ser emendado. Nomeou-se uma nova comissão para um novo texto, a partir das sugestões e dos anseios da Assembléia dos Bispos. Fala agora de uma só fonte, que é a Palavra de Deus. Chega a nós por dois canais: pela Sagrada Escritura e pela Tradição. Tira o tema do contexto intelectualista, da Verdade, para situá-lo no projeto de Deus, de vida e de pessoas. Deus Se revela aos homens, o que não se reduz ao conhecimento de idéias ou de palavras. O Papa Bento XVI retoma este tema num sínodo de Bispos, que resultou na sua exortação apostólica Verbum Domini, sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Acrescenta um terceiro canal a trazer a Revelação divina a nós: a criação. Deus disse e se fez. Isto nos leva a ler os

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pensamentos de Deus também na natureza, segundo uma feliz expressão do astrônomo luterano Kepler. O Papa põe o homem em diálogo com Deus. Chama a atenção da resposta humana ao Deus que fala de diversas maneiras. Além de traçar as grandes linhas da hermenêutica, mostra o lugar da Palavra e Deus na Igreja. A Liturgia é apresentada como seu luar privilegiado. Desce, depois, à importância da Palavra de Deus na vida da Igreja e, por fim, sua repercussão no mundo. Nesta nova formulação pós-conciliar percebe-se que a grande controvérsia católico-luterana está superada. Pode-se dizer que se tratava de uma discussão desfocada, como também fora o problema da justificação. Todos estamos de acordo que Cristo é o único Salvador, ou seja, que não existe salvação fora dele e que a Revelação divina está na base de nossa fé. Hoje, tanto católicos como luteranos e as demais Igrejas históricas, temos, além da Bíblica, também Tradições próprias, pelas quais acolhemos a Palavra de Deus. Obviamente nenhuma denominação cristã pretende ou deve fazer a menos do que lhe é tradicional. Neste jubileu dos 500 anos da Reforma Protestante voltamos todos juntos ao tronco que exigiu esta Reforma, encabeçada, de um lado, por Lutero, Calvino, Melanchton, e de outro lado, por Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Carlos Borromeu, Teresa de Ávila, João da Cruz e pelo Concílio de Trento. Chegamos à grande síntese no Concílio Vaticano II. A atitude cristã, neste momento, não é fixar-se no século XVI, mas descobrir o que lhe propiciou o vigor de uma antítese que levou o Cristianismo a uma nova visão. Encontramos a raiz naquilo que todos buscam: nas origens do Cristianismo: a Revelação divina que culmina em Jesus Cristo. Votamos à expressão de S. Paulo: muitos dos que nos transmitiram a Boa Nova da Salvação já morreram. Morreram os que escreveram os relatos de primeira mão: os hagiógrafos. Morreram também os Santos Padres, que elaboraram a doutrina da fé num contexto da cultura. Morreram os pregadores do Evangelho que, ao longo dos séculos, mantiveram viva esta Palavra de Deus. Morreram os pais de família, que proporcionaram o berço para a fé em suas famílias, no passado. Morreram os pastores, que orientaram os fieis nestes 20 séculos. Mas a fé em Jesus Cristo não morreu. A Revelação divina não se apagou nem foi esquecida. A Salvação cristã não desapareceu.

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Hoje somos nós, os herdeiros desta Tradição multifacetada. Testemunhamos hoje a Verdade do Cristianismo. Irmãos e Irmãs espalhados pelo mundo inteiro, fermento na massa, luz nas trevas, esperança nas crises, fé em meio à descrença. Celebrando juntos os 500 anos da Reforma, primeiramente estreitando os laços fraternos de nossa família de batizados e de fé em Jesus Cristo e, depois, alegrando-nos com o que cada uma das confissões cristãs trouxe para nossa mesa comum, de bom e verdadeiro para difundir no mundo. Esperamos que Deus, com sua graça, nos una definitivamente na sua Igreja. PARA REFLETIR 1. Qual é fonte da Revelação? 2. Como a Revelação cristã chega até nós? 3. Como os santos renovam a Igreja?

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11. A IGREJA DE CRISTO A luz dos povos é Cristo: por isso, este sagrado Concilio, reunido no Espírito Santo, deseja ardentemente iluminar com Sua luz, que resplandece no rosto da Igreja, todos os homens, anunciando o Evangelho a toda a criatura... Mas porque a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, o sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano, pretende, por de manifesto sua natureza e missão universal.(Vaticano II, Lumen gentium 1). O século XX pode ser cosiderado como o século da Igreja. O Concílio Vaticano II foi definido como um novo Pentecostes para a Igreja. Foi, por assim dizer, um concílio gratuito. Não veio para resolver problemas, ou condenar doutrinas, mas para proporcionar uma grande Reforma e arejar toda a Igreja. Por que o século XX se apresenta como o século da Igreja? É porque agora se começa a pensar a Igreja como um todo. O Papa Francisco, já no século XXI, garante que todo é maior que a soma das partes. Mas que tem o todo que não se encontre nas partes? No organismo vivo isto é fácil de averiguar: é a vida. É certo que ela está tanto no todo como em qualquer uma das partes, de tal modo que a técnica hoje permite refazer ou, pelo menos, visibilizar o todo examinando qualquer de suas partes. Ele representa uma organização, uma harmonia, algo de próprio e indizível, mas real. As ciências exatas, que embasaram o Racionalismo do século XIX, se restringem exclusivamente à quantidade, que se encontra no segundo grau de abstração. Então é óbvio: 2+2=4. Mas quando lhe acrescentamos uma identidade, com suas qualidades, a questão se complica: duas laranjas mais duas pedras não se somam. Não formam um todo diferente das partes. Existem um todo, formado de partes diferentes. Elas somam, particularmente no organismo vivo. Então se pergunta sobre seu resultado no todo. Que há, no todo, que não seja mera soma das partes, mas delas resulta, de modo, por assim dizer, misterioso? Em que o todo é maior que a soma das partes? No século XIX Hegel foi pioneiro em elaborar uma teoria do Estado. Mostra que a sociedade é mais que a soma de indivíduos. Sem entrar

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nesta complexa análise, sentimos que, na Igreja, há algo mais que um aglomerado de fieis. Até o Concilio Vaticano II se costumava qualificar a Igreja como Sociedade perfeita. Lutero discordava. Apelava para o conceito de comunidade. 300 anos antes de Cristo, Sócrates colheu, no frontispício do templo de Apolo, em Delfos, a base de sua filosofia: “conhece-te a ti mesmo”. No século XX, o Concilio Vaticano II pôs esta questão para a Igreja: que dizes de ti mesma: ou, mais amplamente: Igreja, quem és tu? João Batista, já na prisão, mandou perguntar a Jesus: Quem és tu? Mas logo o colocou na expectativa messiânica: és aquele que há de vir ou devemos esperar outro? Tinha-se então uma esperença messiânica. Tratava-se de concretizá-la numa pessoa. Jesus respondeu fazendo sinais. Concluiu: feliz de quem não se escandalizar de mim! O Concilio Vaticano II tem diante de si o que faz a Igreja. Mas, diante da perspectiva hegeliana, da sociedade, se deu conta de que ela não é simplesmente nem sociedade, nem comunidade, nem soma de fieis. Há nela algo mais que a soma das partes. Não tendo resposta mais adequada, o Concílio começou a dizer que a Igreja é um mistério. Envolve o mistério de Deus e o mistério do homem. É divina e humana. Começa então a examinar sua composição. Não tendo outras referências para ser entendido, Concilio apela para Paulo. Este Apóstolo elaborou o conceito de Igreja a partir do símbolo da composição do corpo humano. Estabelece, primeiro, os órgãos mais importantes: a cabeça e o coração, respectivamente, Cristo e o Espírito Santo. Mesmo tentando, depois, especificar a função dos diversos membros, bem coordenados pela cabeça e irrigados pelo coração, mostra que os seus membros são todos os batizados. Garante assim a natureza divina não só pela atuação, mas, por assim dizer, pela composição da cabeça e do coração; e humana pela integração dos membros, que somos nós. Há, pois, como no próprio Cristo, também na Igreja, um princípio divino e um princípio humano. A Igreja é plenamente divina e plenamente humana. Eis seu mistério. Só se atinge pela fé. Por isso, desde os tempos apostólicos, faz parte dos artigos da fé cristã. Assim como cremos em Deus Pai, no seu Filho Salvador e no Espírito Santo Santificador, cremos também na Igreja. Para distingui-la de outras similares, acrescentaram-se quatro notas individuantes: una, santa, católica e apostólica.

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Assim estava resolvido o problema da natureza da Igreja. Sobrava a questão concreta de sua visibilidade e de seus membros. Até o Concílio Vaticano II se situavam as confissões cristãs, mais ou menos, de modo estanque, uma ao lado das outras. Primeiro a Igreja católica, com a consciência de ser a autêntica e única Igreja de Cristo. A seu lado se encontrava a Igreja ortodoxa, com a qual não há controvérsias dogmáticas. Vêm depois os Protestantes que, como Lutero, não se queriam assumir como Igreja e com os quais havia muitas pendengas teológicas; depois os Anglicanos e, por fim, as diversas seitas. Para passar de uma Igreja para outra era exigida uma conversão, com a respectiva abjuração, e um novo batismo. O Concílio mudou profundamente esta concepção. Situa-se decididamente num âmbito ecumênico. Não há muitas Igrejas, que se contrapõem em repartições fechadas. Há, na verdade, uma só Igreja de Jesus Cristo. Para exprimir esta relação de todos os cristãos, bem como os demais homens e mulheres nesta única Igreja, o Concílio destaca o modo de participação de cada uma: plenamente, de algum modo, colocando todos em círculos concêntricos mais ou menos perto do centro. Reconhece que participam plenamente da Igreja de Cristo todos os que, além de Cristo, das verdades reveladas e dos sacramentos, mantêm a sucessão apostólica, unidos em torno de seus Pastores, como sucessores dos Apóstolos. Participam, de algum modo, da mesma Igreja de Cristo todos os que foram batizados e acolheram Jesus Cristo como Salvador. PARA REFLETIR 1. Por que o século XX é o século da Igreja? 2. Em que sentido o todo é maior que a soma de suas partes? 3. Em que sentido a Igreja é um mistério?

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12. A UNIDADE NA DIVERSIDADE A solicitude na restauração da unidade já manifesta, de certo modo, a união fraterna existente entre todos os cristãos, e conduz à unidade plena e perfeita, segundo a benevolência de Deus (Vaticano II, Unitatis redintegratio 5) S. Agostinho propõe a máxima: unidade nas coisas necessárias, liberdade nas secundárias, mas em tudo caridade. Por isso o Concílio Vaticano II, para incentivar e viabilizar o diálogo ecumênico e interreligioso, elaborou uma hierarquia de “verdades”. Isso equivale a dizer que a verdade não se reduz à adequação do intelecto à realidade. Envolve também seu significado para a pessoa. Além dos diversos níveis de conhecimento, que vão desde o comum ao científico, desde o geral ao especializado, temos várias apreciações, que variam conforme os interesses e conforme a utilidade. Mesmo que, objetivamente, a verdade deva ser considerada única, subjetivamente varia de acordo com as preferências, especializações e os paradigmas. Iniciemos distinguindo as verdades de fé das verdades das ciências; as verdades da vida quotidiana, das investigações científicas... Obviamente não se pode confundir conhecimento de Deus com visão do universo; nem comparar a fé cristã com a aceitação das notícias da imprensa... A ecologia, debruçando-se sobre a ciência da fé, atribui notas teológicas a cada verdade, para evitar confusões e enganos. Assim reconhece algumas verdades de fé definida. São, aliás, poucas. Acerca delas não há dúvidas para os católicos. Têm o aval definitivo da Igreja. Vêm depois as verdades de fé, que ainda não tiveram este aval, mas fazem parte de nosso patrimônio religioso. Estabelece-se, assim, a firmeza de nossa adesão: certeza. Abaixo vem a opinião. Segue-se, num grau mais tênue, a suspeita. Antes de chegar ao erro, porém, se passa pela dúvida e se elaboram hipóteses, que na têm nenhum grau de certeza. Na discordância frente às verdades de fé temos, como negação, a apostasia, quando alguém nega todo o seu conjunto, depois e o ter professado oficialmente. Vem depois a heresia. Não se trata propriamente de um erro, mas de uma seleção de verdades. Caracteriza-se pelo “só”. A discriminação destas verdades era tarefa da teologia tradicional.

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O Concilio Vaticano II foi mais longe. Mostra claramente que as opções não se fazem somente entre o verdadeiro e o falso, entre o bem e o mal, entre a unidade e a divisão, mas também entre uma hierarquia da valores, tanto no que diz respeito à verdade como à bondade, tanto pela unidade como pela diversidade. Há quem enfatize, em Deus, mais a unidade que a trindade e vice-versa, assim como outros procuram, no universo, mais a unidade monolítica e outros mais a harmonia da diversidade... Antes da abertura ecumênica, os católicos apontavam as posições protestantes nos seus pensadores mais radicais. Diríamos de esquerda. De inovadores. Ao passo que os protestantes viam as posições católicas nos seus integrantes mais conservadores. Neste clima não era possível dialogar. Com o novo espírito, que começou a soprar em todo o Cristianismo, percebeu-se que o conservadorismo não era privilégio dos católicos, nem a inovação se restringia à ala protestante. Mais profundamente os católicos perceberam que nem todos os protestantes eram maus e os protestantes se deram conta que nem todos os católicos estavam condenados ao inferno ou eram ignorantes na Sagrada Escritura. Isto significa que os protestantes se deram conta de que também eles eram pecadores. O mesmo aconteceu com os católicos. Todos se reconhecem carentes de muitas coisas, tanto de doutrina como de moral. Precisam da Redenção de Cristo. Por isso começaram a se solidarizar nesta caminhada de purificação. A abertura do Concilio Vaticano II, ao hierarquizar as verdades, mostra que não é preciso, para restabelecer a unidade cristã, ter unanimidade de verdades, nem de práticas religiosas. Pelo contrário: a própria Igreja católica admite diversos ritos litúrgicos,como autênticas expressões da fé, mesmo seguindo o princípio da “lex orandi est lex credendi”. Nem por isso abre mão de apontar para os elementos essenciais, necessários para firmar a unidade eclesial. Distingue entre a posição de cada fiel e a posição oficial da Igreja. É óbvio que existe certa defasagem. Muitos católicos, em diversos pontos, vivem como se não cressem, ou como se fossem protestantes. O mesmo acontece pessoalmente com os protestantes. Mas nem por isso deixam de pertencer à sua Igreja. Serve de modelo o escrito do Imperador romano Adriano. Em tempos de proibição da fé cristã no Império, foi interrogado a respeito de alguns cidadãos que se professavam cristãos. Não seguiam as normas do culto pagão. O Imperador respondeu sabiamente: não se deve fazer discri-

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minação entre os cidadãos. Nem todos os pagãos prestam culto aos deuses oficiais. Portanto, o fato de cidadãos não prestarem este culto, não merece punição. Se, porém, alguém nega publicamente este dever cívico, se acusado não anonimamente, deverá ser condenado. Mas adverte, para eliminar de antemão perseguições ideológicas, que se alguém for acusado injustamente ou caluniosamente, o acusador deverá ser submetido à condenação que estava pleiteando contra o outro cidadão. Portanto, conforme Agostinho, no que não for necessário para a fé cristã, liberdade. Isto se traduz em unidade cristã na diversidade das Tradições. PARA REFLETIR 1. Como encontrar a verdade na diversidade? 2. Por que é preciso diferenciar as verdades da fé? 3. Em que consiste a abertura do Concílio Vaticano II?

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13. O CARISMA FUNDACIONAL DE LUTERO As preparações para 2017 deverão identificar os vários elementos da tradição, agora presentes na cultura, para interpretá-los e conduzir à conversação entre igreja e cultura na luz destes diferentes aspectos (Comemoração conjunta, Do conflito à comunhão n.13) Celebrando os 500 anos da Reforma Protestante não podemos esquecer nem Lutero, nem os Luteranos. Lutero foi o protagonista. Viveu, há 500 anos, num ambiente e num contexto, tanto eclesiástico como político, bem diferente do nosso. Os Luteranos, ao invés, seguem, ao longo destes cinco séculos, suas orientações básicas, inculturados em cada época. Muitas coisas mudaram na convivência humana e cristã. Os Luteranos de hoje certamente não são os mesmos do século passado e, muito menos, de 500 anos atrás. Há, pois, uma unidade numa grande diversidade: uma tradição numa grande evolução. Para entender este movimento histórico é preciso precaver-se de uma dupla tentação: o arcaísmo, que pretende avaliar os acontecimentos de hoje com os critérios de 500 anos atrás; e o anacronismo, que busca voltar 500 anos atrás, com os critérios de hoje. Por isso nos perguntamos, hoje, o que houve em Lutero, quinhentos anos atrás, que ainda hoje empolga os Luteranos, seus seguidores? Ouvi de um grupo seleto de pastores luteranos o desejo de que a Igreja católica procedesse, neste jubileu, à canonização de Lutero. É sintomático e faz refletir! Para entender esta posição, a Igreja católica apresenta seu paradigma de vida consagrada. No inicio do Concilio Vaticano II surgiu a proposta de reduzir drasticamente a multiplicidade destas fundações – dizia-se que seu número estava entre as coisas que nem o Espírito Santo conhecia – para quatro grandes ramos, bem delimitados. Proporcionar-se-ia uma nova chance para cada ordem, congregação ou instituto fazer sua reopção e enquadramento. O debate do Concílio, porém, levou à posição diametralmente oposta. Preconiza que cada ramo de vida consagrada -monacal, religiosa e secular – volte ao crisma de sua fundação. Enfatiza que cada ramo da vida consagrada constitui um dom de Deus à sua Igreja, através do carisma de seu Fundador. Como conseqüência desta orientação, todos os institutos religios e

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seculares começaram a aprofundar seu carisma próprio. Em primeiro lugar esmeraram-se no conhecimento do verdadeiro carisma do Fundador, de acordo com o pedido do documento conciliar Perfectae caritatis. Ali se insistia no aprofundamento do espírito genuíno da vida monástica, e na índole própria do fundador. A inspiração carismática dos fundadores, como dom inestimável, dado por Deus à sua Igreja, se desenvolve a partir de quatro vertentes: carisma fundante, carisma original, carisma do instituto e carisma do fundador. A partir do Concílio Vaticano II o Fundador começou a ocupar um lugar de protagonista. Foi colocado na base do movimento renovador da Vida religiosa. Mostrou-se que Deus olha para ele, o escolhe, lhe confia o bem da fundação e o constitui profeta para a Igreja no mundo. A partir dali os Fundadores são considerados elementos essenciais na fundação de uma comunidade de consagrados. Não é, pois, de admirar a grande devoção que cada ordem e congregação atribui a seu Fundador. A primeira coisa é o empenho em elevá-lo às honras dos altares, com a canonização. Terá assim, oficialmente, o modelo de sua vida religiosa e o intercessor em prol de seus seguidores junto a Deus. Para confirmar esta atitude lembremos S. Bento, com seu lema ora et labora, para os consagrados beneditinos; S. Francisco de Assis para os franciscanos; S. Domingos para a ordem dos pregadores, popularmente conhecidos como dominicanos; S. Inácio de Loyola para os jesuítas, S. Vicente de Paulo para os lazaristas; S. Marcelino Champagnat para os maristas; S. João de la Salle para os lassalistas; S. João Bosco para os salesianos; Madre Teresa de Calcutá para suas irmãs de caridade, só para citar alguns exemplos elucidativos. Neste contexto entendemos Lutero e os Luteranos. Nós, hoje, admiramos os Luteranos por seu testemunho de vida e por sua amizade. A partir deles descobrimos o carisma de seu fundador Lutero. Reconhecemos que assim como os beneditinos têm apreço por S. Bento e se referem continuamente a ele, os Luteranos tem em Lutero seu Fundador e inspirador. É ele, como protagonista da Reforma, que os leva a Jesus Cristo e lhes inspira a espiritualidade. Por seu crisma renovou a atitude cristã, reconhecendo Jesus Cristo como único Salvador. Não há dúvida de que Lutero era autenticamente cristão, como o foram S. Bento, S. Francisco... Sendo do grupo sanguíneo AB, Lutero teve profunda consciência

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de ser santo e pecador. A psicologia diria hoje que era bipolar. De um lado estava totalmente voltado para Deus. Seu lema era: só Deus. Mais ou menos como S. Teresa de Ávila, que garantia que só Deus lhe basta. Mas, de outro lado, Lutero sentia agudamente o peso do pecado. Aliás, só se reconhece pecador quem se aproxima profundamente de Deus. Olhando, pois, hoje para nossos irmãos Luteranos, conseguimos elaborar uma idéia mais objetiva de Lutero. Foi um grande homem e um devotíssimo cristão. PARA REFLETIR 1. Que significa Lutero para o Cristianismo? 2. Qual foi o carisma de Lutero? 3. Por que acolhemos, com carinho, os Luteranos?

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14. O PONTO DE CHEGADA Católicos e Luteranos têm consciência de que eles e as comunidades em que vivem sua fé pertencem ao corpo único de Cristo. Está crescendo a consciência de que as lutas do século XVI estão superadas. As razões para condenar mutuamente a fé do outro estão ultrapassadas. Assim Luteranos e Católicos identificam seus imperativos para comemorarem juntos no ano 2017.(Comemoração conjunta, Do conflito à comunhão, n,238) No documento preparatório para a comemoração conjunta da Reforma em 2017, se reconhece que ”o que aconteceu no passado não pode ser mudado, mas o que e como é lembrado, com o passar do tempo, de fato muda. Lembrar torna o passado presente. Enquanto o passado em si é inalterável, a presença do passado no presente é alterável. Na perspectiva de 2017, não se trata de contar uma história diferente, mas de contar a história diferentemente”(n 16). Indo mais a fundo na História, o documento católico-luterano de hoje mostra, sob nova luz, a doutrina luterana e católica do século XVI. Diz que nem o ensinamento das Igrejas luteranas foi atingido pelas condenações do Concílio de Trento, nem a doutrina católica pelos escritos luteranos (n.139). Examinando diversos pontos controversos, hoje “no que diz respeito à Escritura e à Tradição, luteranos e católicos encontram-se num acordo tão amplo que suas ênfases diferentes não requerem por si que se mantenha a divisão das Igrejas. Neste ponto existe unidade em diversidade reconciliada”(n210). Por isso o documento conclui: “em 2017, quando os cristãos luteranos celebram o aniversário do início da Reforma, não estão celebrando a divisão da Igreja ocidental. Ninguém, que seja teologicamente responsável, pode celebrar a divisão dos cristãos em si “(n.224). Em toda caminhada temos um ponto de partida e um ponto de chegada. Por muito tempo se concebia a evangelização tendo como ponto de chegada a fé em Deus. O ateísmo contemporâneo veio derrubar esta visão. Em contraposição põe o desafio da construção do mundo. Enquanto os cristãos anunciavam a fuga do mundo, eles pregavam a transformação do mundo. O desafio materialista levou os cristãos do século XX a repensar sua meta e seus métodos. Os ateus se propunham construir um

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mundo sem Deus. Queriam assumir toda a responsabilidade a sós, diante dos destinos da humanidade. Desafiados por esta proposta, os cristãos se propõem construir e preservar a criação, com Deus e a partir de Deus. O desafio está lançado. Quem dos dois terá mais fôlego e maior sucesso? A fé cristã não é ponto de chegada, para propiciar um descanso remunerado pela graça, mas um ponto de partida para a construção não apenas pessoal, que garanta vida eterna feliz, mas cósmica e social, correspondente ao projeto Criador e Redentor de Deus. Se o desafio dos ateus nos punha inicialmente em trincheiras opostas quanto à fé e quanto à visão histórica, o Papa Francisco nos convence que não se trata de uma luta fratricida. Não se querem eliminar os inimigos da outra trincheira, mas, com sua encíclica sobre a ecologia, garante que estamos todos na mesma trincheira, no intuito de salvar nossa casa comum. Nossa fé em Cristo nos leva ao empenho pela conservação da natureza e nos ajuda e responsabiliza pela orientação do desenvolvimento dos povos, que Paulo VI propunha numa época em que o progresso ascensional parecia dogma do materialismo. Paulo VI chama o desenvolvimento dos povos de novo nome da paz. O problema da Reforma de 1517 nos leva a uma guinada na perspectiva. Não celebramos uma divisão, mas uma busca de unidade e de solução. Não consideramos a Reforma como ponto de chegada, que deva perpetuar-se, mas como ponto de partida para uma maior plenitude em Cristo. Os protagonistas daquela época fizeram sua parte. Tentaram devolver a espiritualidade à profissão da fé cristã. Não conseguiram evitar as rupturas. Como, no dizer de s. Paulo, tudo colabora para o bem daqueles que amam a Deus, cabe-nos ver o que Deus nos quer dizer e ensinar com estes acontecimentos. Somos convidados novamente a ouvir a voz de Deus na voz do tempo, como os Israelitas a ouviam no deserto, a caminho da Terra Prometida e como a sentiram, mais adiante, no exílio da Babilônia. S. Agostinho, ao receber a noticia do saque de Roma, estremeceu. Quando, porém, todos sentiam o fim e se lhes esvaia a esperança, ele foi o único a ainda falar dela: se a humanidade conseguiu montar um império tão vigoroso, que durou mil anos, se esmerou no direito e na política, no esmero da língua e na convivência cultural, quanto mais agora, com a graça de Cristo, será capaz de criar uma nova civilização, bem superior, sob a égide cristã!

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Após 500 anos de Tradições separadas, católicos e luteranos se aproximam para colocar em comum suas conquistas e sua fé. Daí surgirá uma nova síntese, não para eliminar, mas para sublimar este patrimônio amealhado com tanta fé e amor, durante 500 anos. Todos sairemos enriquecidos com este jubileu, com os frutos do diálogo católico-luterano. É o jubileu da fé que culmina no amor PARA REFLETIR 1. Onde queremos chegar com o diálogo ecumênico? 2. O que temos em comum com todos os cristãos? 3. Que significa para nós o Jubileu dos 500 anos da Reforma luterana?

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FIM





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