O Discurso sem Método #7

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o papel oculto do Estado em relação ao funk Gabriela Perini Bortoletto Houve recente aprovação na Câmara de Vereadores de São Paulo um projeto sobre a proibição de eventos com música funk em áreas públicas. Dois ex-policiais militares, Comandante Lopes e Coronel Camilo, propõem o projeto de lei (http://bit.ly/OY4tBG) e, segundo o texto do projeto, a prefeitura “organizará” esses eventos. Pretendem, como mágica, resolver a questão do barulho, também como do sexo, das drogas e do crime – aparentemente, o crime existe porque o funk existe. Hoje, 11 de dezembro, a lei precisa somente da sanção de Haddad e levanta polêmicas, principalmente pela reação da sociedade diante do estilo musical. Já faz parte do imaginário popular o conteúdo, para muitos, incômodo, carregado pelo funk. Na internet, há uma guerra entre não-funkeiros e funkeiros: os primeiros tentam desvalorizar a todo custo a produção musical dos segundos. Sem dúvidas, os funkeiros estão em profunda desvantagem quando o debate ganha amplas proporções. Existe uma sociedade insatisfeita com a imagem do funkeiro, pois não faltam exemplos de poluição sonora em transportes coletivos e até mesmo em zonas residenciais inteiras, promovidos por celulares ou bailes duradouros e resistentes ao nascer do sol. Há também a crítica feita às letras repetitivas que levam à conclusão depreciativa e precipitada sobre a inteligência de um funkeiro. Já numa perspectiva mais “sociológica”, pode-se questionar, principalmente, as apologias ao sexo, à violência e ao consumo. A apologia ao sexo torna a mulher em um objeto, sem o menor direito à privacidade, além de fragilizar a psicologia infantil, já desestabilizada pelo contexto de pobreza e medo. Quanto à violência, pode-se dizer que ela recebe a devida manutenção através da reafirmação do valor de se matar ou roubar e, assim, é criado o folclore de uma situação de guerra dentro da favela e fora dela, com as forças policiais. Sobre o consumismo, o funk ressalta a importância e os benefícios de se possuir carros, joias, roupas. Esse aspecto é especialmente importante: a canonização do consumo surge diante da necessidade de sucesso social, construído a partir da posse. Ou seja, há um ciclo. É importante consumir para obter sucesso porque o sucesso consiste em consumir – seja uma mulher ou

um carro. Assim, legitima-se ainda mais as práticas violentas, como o roubo, uma vez que um morador de favela não tem condições de arcar com custos tão exorbitantes. O funk é visto, então, como um catalisador de situações agressivas e degenerativas, não só dentro da favela, mas em toda a sociedade, que em nada contribui para a possibilidade de um novo contexto social. A partir dessa perspectiva, surgem os debates. Há, claro, quem não tenha dúvidas sobre a solução e proponha o total controle e proibição de qualquer coisa similar ao funk. Mas os preconceitos se confundem e, mesmo algo inocente, torna-se um crime. Ser favelado ou negro já é motivo de ser controlado e criminalizado. Em resposta, há defesa do funk como legítima manifestação artística, sob alegação de que existe uma polarização do debate por parte da elite excludente de tudo proveniente da população pobre. A partir dessa defesa, pode surgir uma reformulação do conceito de cultura e a ideia da importância do Estado acolher os produtos da favela. Surgem até comparações históricas com o samba, por exemplo, ao lembrar o quanto esse gênero foi marginalizado e, hoje, é um ícone cultural graças a nomes como Chico Buarque - branco. Enfim, uma situação conflitante é criada, com soluções opostas. Ora se proíbe, ora se acolhe mesmo com os problemas levantados a respeito da poluição sonora, sexualização e consumismo. Aqui, proponho que o debate não deva ser esse. Assim como o samba e o rap, o funk é mais uma manifestação; uma representação. Assim como qualquer arte, filosofia ou ação política, é o reflexo de algo cujo núcleo é menos evidente. O funk é um pedido de socorro, pois ele não está isolado da sociedade. Pelo contrário, a sociedade o produz. É possível, portanto, encontrar os sintomas a partir desses reflexos e, então, encontrar a cura. Para a questão da poluição sonora, farei uma analogia com as pixações (com “x”, mesmo). De acordo com o texto “Inscrição e circulação: novas visibilidades e configurações do espaço público em São Paulo”, publi-


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