O luar da montanha suavemente ilumina o ladrão de flores

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o luar da montanha suavemente ilumina

o ladrĂŁo de flores

rui matos



o luar da montanha suavemente ilumina

o ladrĂŁo de flores rui matos


Ficha técnica

Exposição o luar da montanha suavemente ilumina o ladrão de flores | rui matos Propriedade e Edição Município da Figueira da Foz Organização Câmara Municipal da Figueira da Foz Divisão de Cultura Coordenação Margarida Perrolas Anabela Bento textos rui matos Fátima Lambert

Apoio Técnico José Santos Silva / euclides domingues antónio trovão / doma - departamento de obras municipais e ambiente Design gráfico Eduardo Oliveira Impressão Fig - Indústrias Gráficas, Sa. Divulgação pedro pinto Tiragem 100 ex. julho 2018 Depósito legal 445800/18 ISBN 978-989-8903-26-6


“O luar da montanha suavemente ilumina o ladrão de flores” O Haikai, poesia breve bela e simples, é muito mais do que uma forma de poesia… é uma forma de ver o mundo. Inspirando-se na poética japonesa, o escultor Rui Matos transpôs a mesma estética minimalista para a sua escultura, apelando não só à perceção sensorial objetiva, imediata e particular mas também à perceção nascida no momento da experiência. Na senda da modernidade, o Município da Figueira da Foz tem a honra de acolher esta mostra de escultura contemporânea, permitindo aos entusiastas da arte, em particular da arte contemporânea, admirar algumas obras de destaque deste conceituado artista plástico. Nascido em Lisboa em 1959, Rui Matos reside e trabalha em Portugal. Frequentou o Curso de Escultura da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e, em 1993, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. A sua primeira exposição individual, “Órgãos e Artefactos” ocorreu no ano de 1987, com esculturas de ardósia, sendo que, no ano imediatamente subsequente, esteve patente na Figueira da Foz, no Museu Municipal Santos Rocha, tendo sido adquirida uma das peças que, desde então, integra o acervo do museu. Num percurso de reconhecimento crescente, diversifica a matéria-prima utilizada, do gesso à pedra, encontrando em 2008, aquela que se converte na matéria-prima de eleição da sua mais atual produção: o ferro. Na presente exposição, os elementos escultóricos tridimensionais em ferro, por vezes combinados com o desenho, remetem o visitante para um processo dinâmico de construção continuada, que estimula a imaginação. Apostando na diversidade e coadunando-se com a política cultural municipal, a mostra “O luar da montanha / suavemente ilumina / o ladrão de flores”, revela-se um momento marcante para o Centro de Artes e Espectáculos, pois permite dar a conhecer a excelência e a contemporaneidade deste autor de referência no mundo das artes pela originalidade das suas esculturas.

O Presidente da Câmara Municipal

Dr. João Ataíde



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Vazio-matéria – Escultura desenhada em metal por Rui Matos “E já nos vidros da eternidade Cai meu calor, meu sopro respirado. Nela se grava um desenho pra sempre, Irreconhecível de tão recente.”1 “Pela atenção, dispõe da espera que abre ao inesperado, levando-o ao limite extremo que não se deixa esperar.”2

1 | Criam-se as condições para que tudo o que está perante o visitante, aquilo que pode ser visto, seja expandido e atinja mesmo uma imaterialidade, disponibilizada pela estratégia e desafio entre “vazio e plenitude” [François Cheng dixit] que Rui Matos tão bem soube concretizar, não apenas nas obras em si, mas devido à decisão expográfica nesta mostra. Num primeiro relance, o espaçamento funciona como intervalos de respiração entre as peças, estas correspondendo a unidades-visuais, tanto quanto a unidades-palavras e a unidades-coreográficas. É uma exposição concebida para olhar, ouvir e performatizar – agradecendo um desempenho cúmplice [estético] do espetador como pessoa que se deixa adicionar, introjetando alguns dos estímulos artísticos, em termos empáticos, tomando-os para si. Evidencia-se uma poética das peças que convocam imagens ausentes, convidando-nos a pronunciar lembranças artísticas, memórias estilísticas que são queridas ao Artista. Intuímos a exemplaridade de frases que o Escultor, em antecipação, soube associar a cada uma das peças expostas. As ideias desencadeiam-se, irrompem movidas pela diversidade da receção singular. As ideias desdobramse quase incessantes, inumeráveis. Ramificam-se e

desviam-se, requerendo a nossa meticulosa atenção. Somos como que responsabilizados a apreendê-las, mediante esta descida à presença da escultura como desenho e pintura. Cada uma das obras e instalações se converte, então, num tópico partícipe e congruente, unidade imprescindível neste conjunto organizador de pensamentos. A singularidade dos elementos inscreve-se num jogo poiético, numa coreografia cuja estrutura segue ad libitum a fluidez, a leveza que o artista encontra na filosofia dos Haikai, dos aforismos e das breves concentrações dedutivas – quotidiana e duradoira meditação em contenção criadora ativa. “sem termo e princípio centro e cifra de silêncio o zero em seu circulo”3

Nesta exposição, a singularidade autoral, sem perder a sua idiossincrasia, contribui para a noção e vivência de totalidades parcelares [onde cada um reverbere], quase plasmando uma sublime fluência do corpo no espaço. Os elementos iconográficos traduzem-se numa categorização pictogramática [livre], assim como numa aceção ideogramática.

1 Ossip Mandelstam, Guarda minha fala para sempre, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p. 107 2 Maurice Blanchot, L’attente, l’oubli, Paris, Gallimard, 1962, p.37 3 Pedro Xisto, lumes – uma antologia de haikais, São Paulo, Berlendis & Vertecchia, 2008, p. 70

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Aproximam-se nas frases da composição escultórica, distanciam-se e redirecionam-se, perscrutando as possibilidades abertas para uma interpretação que é, por certo, polissémica. Esses sinais visuais de solidez díspar remetem para um uso plástico onde as escalas visuais se concatenam aos ritmos musicais de diminuendos e crescendos, de oscilações súbitas ou prolongadas. A composição escultória partilha de um pensamento musical transposto, onde as harmonias e as dissonâncias se exigem mutuamente. Aquilo que é menor carece avolumar-se, desprendendo-se da sua “moldura”/”grupo escultórico” reaparecendo, sob variações e fugas, em outras peças, assim conversando de forma subtil e enigmática. Transfigurase a contemplação num jogo de identificação, detetando similitudes e apercebendo-se dos contextos diferenciadores na aparente mesmidade – que efetivamente não o é…

A aproximação física ao desenho, à escultura, à pintura, à fotografia ou à projeção de vídeo – para nos limitarmos às artes viso-plásticas – com objetivo de capacitar a apropriação do objeto em si, implica a demora necessária para observar, para se direcionar [dirigir-se] até uma intimidade que não pertence somente a de quem seja o criador das obras. A presença inteira do recetor permite-se divagar, exercendo o direito de um olhar polimorfo, acrónico, conjugado entre a dimensão [pulsátil] objetual da peça artística e a sua própria fisicalidade subjetivada [imaterializada e estética] in loco. O desenho escultorizado insinua, por assim dizer, identidades sobreposicionais perante a proposta gráfica em que se adivinha uma abundante combinatória de componentes “emancipadas”. Ou seja, a escultura permanece, ainda que circule com a fluência visual que é desenho; regimenta a instituição de linhas plausíveis para a mobilidade, a deslocação do corpo do espetador. Guia-o, libertando-o na escolha de sua cativação e sequencializando, concatenando a harmonia do ato de ver. Neste sentido “ver” uma escultura que se delineia, traça um certo desprendimento no espaço vazio, circunscrevendo um “desenhar” transitório, alcançado pelo movimento do corpo próprio [do espetador], ato irrepetível da perceção visual:

2 | O conjunto de esculturas não invalida a atenção despendida isoladamente. Num olhar distanciado a lisibilidade incide nas linhas que se desenrolam na arquitetura entrecortada do espaço. São linhas quebradas, contínuas, sugerindo uma proximidade cautelosa, que atribua a merecida ponderação quanto ao significado esvaziado, pois que clamando a plenitude a que poucos acedem. É um convite à meditação, cauteloso e diligente. A escultura é, a este momento primeiro desenho algo distanciado que atravessa a perspetiva, recuperando mais os ensinamentos gráficos da gravura ou desenho orientais, do que as balizas da perspetiva renascentista – ainda que esta persista, num ou outro momento do percurso a empreender.

«Je dessinais avant même de marcher.Sur tout et sur n’importe quoi. Je dessine encore, chaque jour, avec le même plaisir, sur tout et sur n’importe quoi. Mais aujourd’hui, je marche: je marche dans mes dessins.»4

4 Jan Fabre, Umbraculum, Paris, Actes du Sud, 2001, p.83

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e plenitude, parafraseando François Cheng. Impõese, manifestamente, a exigência ontológica [e a experiência estética] de vazio.

A deslocação do corpo do visitante constrói um outro “desenho” [trajeto] que convive com aquele que esteja determinado, fixado pela disposição das peças tridimensionais densas e filiformes, assim como a delimitação das intervenções de grafite que assumem a função de pintura, fundo e sustentação para as unidades “viso-gráfico”. O avanço do corpo do espetador associa-se à coreografia dos detalhes esculpidos, desenhados, como que pintado numa gestualidade conivente com certa geometrização. A mobilidade corporificada para ver as obras permite insinuar-se demoras e instantes, entre a postura de verticalidade paralela às paredes em direção ao esvaziamento propiciado pelos contornos [oblíquos e paralelos] e pela espessura ínfima das morfologias da matéria e da cor.

“Quereis saber onde se encontra a estrada das nuvens? A estrada das nuvens é o vazio”6

Em maior proximidade, ou considerada a distância e o afastamento, geram-se ritmos de perceção, recebendo dados que subsidiam uma análise desta produção tridimensional que não cessa de mostrar reflexões sobrepostas. Todavia, percebese que persistem convicções muito provavelmente transversais aos diferentes espetadores, ainda que tomando diferentes configurações ou explorando sensações, eivadas por uma meticulosidade de pensamento e de fazer assumida pelo escultor, como que insaciado num caminho onde se adicionam obras de séries anteriores às que se efetivam em O luar da

“É fácil desenhar os olhos que divagam…”5

montanha / suavemente ilumina / o ladrão de flores.

O cinemático na escultura não precisa de subterfúgios, antes a agilidade de percorrer os lugares onde as peças foram sedentarizadas; reconhecerlhes a qualidade de permanência dialogada com a mobilidade de quem as recebe enquanto imagens diretas, tangíveis, substâncias de leveza aparente ou profunda. Assim como as unidades esculpidas se perdem e determinam, em uma ou outra composição, também as reflexões de quem se confronta com as linhas e suas volumetrias, oscilam, enredam, para depois de desvelarem. Os labirintos tornam-se límpidos, os encaminhamentos ainda que espiralados, conciliam dualidades e enigmas – vazio

“São de facto as mãos de Giacometti, e não os olhos, que fabricam os objectos, as figuras. Ele não os sonha, sente-os.”7

3 | Em e para Alberto Giacometti, o desenho é autónomo. O desenho é simultaneamente cúmplice da escultura. A escultura é autónoma. A escultura é simultaneamente cúmplice do desenho.Desenhar é algo entranhado no humano, enraizado e presente desde os primórdios. Como assinalou Emma Dexter8,

5 Sophia de Mello Breyner, “Olhos”, O Búzio de Cós e Outros Poemas (1997), Lisboa, Caminho, 2004, p.26 6 O vagabundo do Dharma – 25 poemas de Han-Shan, Caligrafias de Li Kwok-Wing, tradução do chinês de Jacques Pimpaneau, versões poéticas de Ana Hatherly, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2003, p.54 7 Jean Genet, O estúdio de Alberto Giacometti, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988, p.56 8 Emma Dexter, “Introduction”, Vitamine D – New perspectives on drawing, London, Phaidon, 2005, p.16

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transformar (leia-se exceder), pelo agenciamento combinado de sua conceção mental e consequente atuação, para além aquilo que tenha visto [perceção visual], perfectibilizando-lhe uma nova existência – infere-se.A criação artística, no caso de Rui Matos, manifesta-se na ausência de sinais excessivos que excedessem, que gritassem a sua eclosão. Recorre, antes, a pronúncias expressivas, através de gestos fechados que estabilizam os pesos do excesso, que contrariam o acúmulo de insignificâncias ou o esgotamento de recursos que se revelam atávicos.

desenhar é sinónimo de humano, em modo inequívoco e intrínseco, afirmado com toda propriedade, por comparação a outras expressões e meios. Não importa tanto o que é o desenho (o que nele se reconhece, o que representa) mas como é. É relevante o “como” do desenhado, mais do “que é” desenhado. Donde, o desenho – não apenas como ideia – ser substância identitária plausível, ainda que plasmado através de técnicas e identificações que não o asseguram em sua condição literal. Ou seja, existe um desenho que se esvanece no espaço quando o movimento dos bailarinos ou performers se desenrolam; existe um desenho invisível, um rasto que a efemeridade dos sons pronunciados fazem alastrar; existe um desenho que reside na espessura da pincelada, na sobreposição de tintas; existe um desenho que estancou em morfologias, estruturas rígidas ou dúcteis na certeza da escultura. Em todas estas deriva[çõe]s se constata uma lógica implícita, uma coerência de plano que lhe subjazem. Assim é capaz de ser cativada, pois determinada a sua essência numa leitura atualizada. Envolve, por certo, escolhas e deliberações lúcidas por parte dos artistas.9 As esculturas de Rui Matos são aceções de desenho que decorrem quer do artista-autor, quer do recetorunidade-do-público que o apreende e categoriza [qualifica] como tal – por analogia e intuição ad simultaneum. Carece a disponibilidade de entender além da circunscrição dos estereótipos organizadores e categoriais, não apenas perante o mundo a ver, mas a invisibilidade mental e do pensamento ativador de criações estéticas. Miguel Ângelo afirmou algures nos seus Sonetos10 que o Artista por excelência será aquele capaz de

“E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.”11

Mímica do mundo, uma expressão avançada pelo escultor, não equivale a estabilizar portanto uma visão atávica do mundo, antes desafia seja in-corporado (intangível ou irreconhecível) na obra pensada e executada. Trata-se da genuína e originária aceção, significado de mimesis, termo inicialmente respeitante às artes expressivas – teatro, dança, música – e não às artes representativas (ou construtivas). No pensamento estético do período arcaico na Grécia edifica-se o termo que designava a assunção de gestos, sons e movimentos transpostos a partir daquilo que fosse visto na natureza, nos animais, nas pessoas. Ao ator, ao dançarino cabia exercerem a qualidade (e criação expressiva) mimética, a não ser confundida com a capacidade de copiar ou decalcar em termos de fingir, reproduzir a representação pictórica por real, por exemplo.

9 Cf. Margaret Davidson, Contemporary Drawing – key concepts an techniques, N.Y., Watson-Guptill, 2011. 10

Cf. Rime, nºs 66 e 151 – pdf disponível in http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_4/t83.pdf ou https://

publicdomainreview.org/collections/the-sonnets-of-michelangelo-1904-edition/ (acedidos em 15 agosto 2018) 11 Sophia de Mello-Breyner, excerto de texto lido na Sorbonne, em Paris, em Dezembro de 1988, por ocasião do Encontro intitulado Les Belles Étrangères in “Arte Poética V”, Ilhas (1989), Lisboa, Caminho, 2005, p.76

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Uma abordagem escultórica frequente na atualidade revalida o valor condensado das peças em mármore, na plena concordância a pressupostos estéticos que promovem a rememorialização das formas arquitetónicas, destituídas do seu sentido global, e celebradas na sua fragmentariedade. Este propósito corresponde a alternativas possíveis de consecução: pode ser conseguido através da incidência em tópicos relativos à extensão das formas no espaço — quer na vertical, quer na horizontal — de modo a criar condições de leitura que evocam uma preocupação decorativa e requintada. Tais diretrizes verificam-se, pensadas e trabalhadas nos materiais que vigoram atualmente na sua produção, reiterando a conivência estética que transpõe e se revigora a duração.

O universo escultórico de Rui Matos compõe-se de uma objetualidade singularizada, plasmada na arquitetura: repõe a poética do silêncio, privilegiando o primado de sua existencialidade austera e plena. “El vacío no aparece como un espacio neutral que sirva tan sólo para amortiguar el choque sin modificar la naturaleza de la oposición.”12

O vazio agudiza a presentificação das formas, destaca-as, deixando-as descontaminadas e quase levitando apesar de serem estáticas. Tal como se categoriza uma melancolia ativa que contraria a acídia (melancolia passiva), também o vazio e o silêncio são motores inesgotáveis de obra a vir (parafraseando Maurice Blanchot).Sabe-se que vazio e silêncio são indissociáveis, mas não análogos ou equivalentes. Servem causas específicas nas composições de Rui Matos. Confundem-se, ainda que os sinais em que se condensam e agregam remetam para narrativas viso-espaciais que carece serem decifradas. Os vazios servem para intensificar a presença dos elementos pictogramáticos [leia-se, neste caso representativos]; assumem-se como uma pontuação esvaziada que aguça a chegada de novos tópicos tridimensionais, sendo levíssimas forças lineares ou volumetrias mais fechadas, espessas e/ou figuradas.

“A minha poética do real manda-me que o diga. Mas o que vêem os meus olhos? O melhor que eu vejonão se vê olhando. Pensei nisso e depois escrevo como eu gostava de poder acreditar nessa vaidade que a todos deita por terra.” 14

Rui Matos, ao longo destas duas décadas, prosseguiu nessa incumbência de instituir uma obra executada em gesso (para posterior passagem a bronze) e em diferentes tipos de pedra e metais. Assinale-se a salvaguarda de um formulário gráfico inspirado na lavoura e nos utensílios de campo, onde se detetam formas orgânicas e naturais, assim como se presentificam mecanismos fantasmáticos e quase científicos. O escultor revela uma particular e incisiva afinidade para o tratamento confrontando as noções de densidade, impositividade, espessura e/ ou intangibilidade: é um explorador de dimensões e volumetria da matéria. Entre a rigidez e a ductilidade,

4 | Entre 1996 e 2018 medeiam 22 anos, convertidas essas datas em 2 momentos distintos que comungam na oportunidade de eu pensar a obra de Rui Matos. “Assim termina a lenda Daquele escultor: Nem pedra nem planta Nem jardim nem flor Foram seu modelo.” 13

12 François Cheng, Vacío y plenitud, Madrid, Siruella, 2016, p.88 13 Sophia de Mello-Breyner, “Final”, O Cristo Cigano (1961), Lisboa, Caminho, 2003, p.31 14 Ana Hatherly, “Tisana 337”, 463 Tisanas, Lx, Quimera, 2006, p.127

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5 | O Circo Barnum de Alexandre Calder [1923], Le Palais à 4 heures du matin de Albert Giacometti [1933] e algumas esculturas de David Smith da série Agricola IX [1952] assinalam-me a pregnância de desenhar com a escultura em metal. Nestes autores, embora diferentemente, as composições tridimensionais encontram-se impregnadas de uma componente semântica que domina as formas.Verifica-se o primado da narrativa aberta, representativa, estimulada através de uma identificação e reconhecimento quase imediato dos elementos/sinais que integram tais composições. Por outro lado, a causa filiforme tratada por Rui Matos encontra-se subsidiada, por testemunho do próprio, por referências autorais aparentemente distanciadas: os Construtivistas Russos, Fausto Mellotti e Alice Cattaneo enquanto, cada um a sua medida e estratégia, argutos libertadores da escultura. Os objetos pedagógicos que serviam como modelos para a geometria descritiva (disponíveis nas Coleções de Museus Universitários e Politécnicos) insinuam o parentesco filiforme entre as peças de Naum Gabo e Anton Pevsner, recolhidas na sedentarização que o tempo lhes atribuiu. A expansibilidade e o estatismo, respetivamente dos mobile e dos stabile de Calder (assim batizados por Marcel Duchamp, como se sabe) convergem, em fusão singular, na obra de Rui Matos. Ao que se agrega a lúcida capacidade em ludibriar, equalizando as escalas e ao subverter as definições constritivas da perspetiva renascentista, como atrás aferi. Além das questões metodológicas, técnicas e poéticas, melhor, para as conciliar, Rui Matos mergulha numa consonância entre pensamentos filosóficos [de invocação mística] onde a tradição oriental e ocidental

entre o peso e a leveza, determina a disposição final de cada elemento nas composições — propugnando uma intenção depuradora que se revela produto de imenso estudo e de rigor processual. Rui Matos trabalhou com Clara Menéres no Monumento a Luís de Camões para Paris em 1985-86. Em finais da década de 80, o escultor desenvolvia formas em gesso para colocação estática que subiam e se enrolavam em detalhes lineares barroquistas, combinando a flexibilidade de trabalho propiciada pelo material com a fixação e austeridade da explicitação das referências biomórficas e decorativistas — Mediterrâneo. Esta exposição realizada no Porto (1989) no espaço da Árvore orientava-se já para as resoluções de certa monumentalidade, a serem desenvolvidas posteriormente pelo autor. Nessa mostra, apesar do peso dos materiais usados, começava a indagar sobre a ponderabilidade da leveza na escultura. Algumas das suas peças em pedra – anos 1990 - levantavamse em colunas ornamentadas com elementos de suprema intensidade e pormenor. Continuavam impregnadas de um simbolismo e consubstanciavam conceptualismos que resolvem e interpretam, atualmente, outras determinações agregadas. Onde existia ardósia e elementos que se destacavam na planificação da placa, vêem-se – agora - superfícies de grafite pintada diretamente na parede, de onde se salientam formas tridimensionais de pequeno formato. Gera-se assim um jogo de perceção visual, onde cabe isolar as formas do fundo e sua condição matéria. O jogo estético-percetivo impera. “O prazer é abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que se estava encarniçadamente prendendo.” 15

15 Clarice Lispector, “Dar-se enfim”, A descoberta do mundo, Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p.420

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se complementam. Rudolf Otto, nas primeiras linhas de Mystique d’Orient et mystique d’Occident, diz-nos:

“O pequeno é como o grande. O que está em cima é análogo ao que está em baixo. O interior é como o exterior das coisas. Tudo está em tudo.” 17

“A mística, com efeito, surge do mais profundo do espírito humano. É portanto nela que melhor se deve manifestar o carácter específico e irredutível de um génio dotado espiritualmente.” 16

Eis a sabedoria iluminada do mundo, adquirida mediante exercícios de meditação dos filósofos e artistas chineses, tal como François Cheng ou Jacques Brosse souberam elucidar. Não será tanto uma busca identitária, antes o esvaziamento de si mesmo que permitirá vivenciar a plenitude através da assunção de vazio:

A criação artística, para alguns artistas carece um pensamento cuja fundamentação se divide entre a experienciaçãopessoal,asensibilidadeconceptualizada e o aprofundamento de sistematizações de teor ontológico e antropológico cultural (e simbólico). Eis como as derivas que glosam o pensamento místico oriental, assim como a literatura plasmada nos Haikai (como atrás se mencionou) impregnam as decisões plásticas de Rui Matos. A harmonia das dissonâncias culturais e místicas anulam as suas incompatibilidades mútuas, como mencionou Rudolf Otto, na medida em que alguns filósofos e pensadores ocidentais decifraram, perceberam que a mística é a mesma em todo tempo e lugar. Intemporal e sem história, ela é em todo lado igual a si mesma. A incidência naquilo que é o enigma superficial das incongruências pode sanar-se na prática artística, neste caso na prática de uma escultura que é bidimensional e tridimensional em paralelo. Unificada na sensibilidade estética que a molda, governa e disponibiliza para a intencionalidade – quer a artística, mas sobretudo a estética.O peso torna-se leve, o deslizante determina-se e permanece, o pequeno é grande e vice-versa. Pense-se em Hermes Trismegisto, citado por Almada Negreiros, em epígrafe na Invenção do Dia Claro:

“Abre-se a porta da unidade da causa e do efeito, / já não há duas ou três vias, / mas apenas uma, mesmo diante de vós./ A forma é a partir de então não-forma.” 18

A abertura ao mundo, que se reconhece nas suas obras, implica uma assunção convicta de que o despojamento congrega a dádiva e a posse, ultrapassando os inconciliáveis. Essa sua capacidade em pesar o espaço e guardá-lo estabilizado, salvaguardando-lhe a leveza da alma conciliada, gera composições únicas. São episódios, quase roçando uma visão life-writing, definidos pela gestualidade controlada; pela palavra sustentadora da visibilidade que a matéria legitima; pelo rigor exercido, de modo inexcedível, sobre o metal dominado – numa aceção algo prometaica. “O corpo tem necessidade do lugar, pois não se pode conceber um corpo sem o lugar que ocupa; ele muda na sua natureza; as suas mudanças só são possíveis no tempo e por um movimento da natureza; as partes do corpo não podem ser unidas sem harmonia.” 19

Fátima Lambert

16 Rudolf Otto, Mystique d’Orient et mystique d’Occident, Paris, Ed. Payot, 1996, p.13 (tradução minha) 17 Hermes Trismegisto citado por Almada Negreiros in Invenção do Dia Claro, Lisboa, Olisipo Ed, 1921 [facs], p.14. 18 Zazen-Wasan citado por Jacques Brosse, Os Mestres Zen, Lisboa, Pergaminho, 1999, p. 166 19 Hermes Trismegisto, « Fragments des livres d’Hermès à Ammon », Le Grand Texte Initiatique de la Tradition Occidentale, Paris, Sand, 1996 (tradução minha)

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O luar da montanha suavemente ilumina o ladrão de flores. Um poema Haikai acompanha esta exposição, assim como cada escultura é acompanhada por uma pequena frase. Não são títulos. É o confrontar da palavra com a imagem, no caso da escultura das múltiplas imagens de um corpo. Com origem no século XVII, os poemas Haikai fazem parte da tradição Japonesa de poemas curtos, simples e precisos. Expressão de pensamentos e imagens poéticas, de paradoxos, da totalidade e do fragmento. Na origem de cada escultura está uma ideia simples, um sentimento profundo, um gesto de mímica do mundo. No fim é um pouco como diz a Agustina Bessa Luís: despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas.

Rui Matos



Simulador

Ferro pintado e grafite 2017 34 x 27 x 10 cm



O mesmo olhar

Ferro pintado e grafite 2017 32 x 46 x 9 cm



As mĂŁos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos

Ferro 2017 1.70 x 2.00 x 0.90 m



Perdido na viagem de regresso

Ferro 2017 1.95 x 3.10 x 0.59 m



Um mundo organizado

Ferro 2017 1.70 X 2.20 x 1.20 m



De um lado e de outro

Ferro 2017 1.58 x 2.80 x 1.00 m



Segurar o tempo

Ferro 2017 1.97 x 0.42 x 1.13 m



O mArulhar das águas tornou-se próximo e nítido

Ferro pintado 2018 2.00 x 0.65 x 0.65 m



As figuras dos sonhos estĂŁo mais perto de mim

Ferro pintado 2018 10 elementos suspensos com alturas entre 1.27 a 1.65 m



As figuras dos sonhos estĂŁo mais perto de mim

Ferro pintado 2018 10 elementos suspensos com alturas entre 1.27 a 1.65 m



estรกtica



útil



figura



Leve arauto Menos que uma vaga memรณria

Ferro 2018 1.97 x 1.12 x 0.50 m



Na ocasiĂŁo propĂ­cia

Ferro pintado 2018 1.17 x 1.60 x 0.65 m



Sempre na margem daquilo a que pertenรงo Ferro e grafite 2018 110 x 75 x 12 cm


Sempre na margem daquilo a que pertenรงo Ferro e grafite 2018 50 x 140 x 12 cm


Sempre na margem daquilo a que pertenรงo Ferro e grafite 2018 100 x 130 x 12 cm


Sempre na margem daquilo a que pertenรงo Ferro e grafite 2018 110 x 65 x 12 cm




RUI MATOS Nasceu em Lisboa em 1959. Vive e trabalha em Portugal, próximo de Sintra. Nos anos 80 frequentou o Curso de Escultura da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian em 1993.


EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS 2018 | Histórias de outras idades. Convento do Espírito Santo em Loulé. Perdido na viagem de regresso. Câmara Municipal de Torres Vedras 2015 | Transmutações, Sá da Costa, Lisboa O tempo, os luares, a memória, a fortuna dos dias. MU.SA Sintra 2014 | (por dentro) Fundação Portuguesa das Comunicações Por Dentro, Por Fora com Vítor Ribeiro. Galeria Municipal de Matosinhos Pensar Outra Escala. FCT-UNL Campus da Caparica. O Visionário com Rui Cunha Viana na Galeria Monumental, Lisboa 2012 | Escultura, Teatro das Figuras, Faro. Escultura, Claustros do Museu de Alberto Sampaio 2011 | Escultura, Centro Cultural São Lourenço, Almancil. 2010 | Transformo-me naquilo que toco, Giefarte, Lisboa 2009| A Pele das Coisas, Teatro Camões, Lisboa 2007 | Histórias Incompletas, Galeria Cubic, Lisboa Esculturas recentes, Centro Cultural São Lourenço, Almancil Coração de Pedra, Centro Cultural de Macedo de Cavaleiros, Macedo de Cavaleiros Sequência, Galeria Arthobler.com, Porto

2005 | Objectos de Memória – Esculturas em bronze, Giefarte, Lisboa Transformações - Relatos Incertos, Galeria Cubic, Lisboa 2001 | Novas Esculturas em Ardósia, Giefarte, Lisboa 2000 | Escultura, Galeria Enes, Lisboa 1997 | Escultura com Pintura de João Ribeiro, Galeria Enes, Lisboa 1995 | Escultura, Giefarte, Lisboa 1992 | Escultura - Arco, Galeria Municipal de Arte, Faro 1991 | Enormidade, Sequência e Naufrágio, Galeria Carvalho e Araújo, Braga Escultura com Pintura de Isabel Augusta, Centro Cultural de São Lourenço, Almancil 1989 | Mediterrâneo com Isabel Augusta, Cooperativa Árvore, Porto Primeira Ilha, Galeria de Colares, Colares 1987 | Orgãos e Artefactos, Galeria de São Bento, Lisboa Orgãos e Artefactos, Palácio da Cidadela, Cascais Uma Estranha Natureza, Lagar de Azeite do Marquês de Pombal - Câmara Municipal de Oeiras, Oeiras


OUTRAS INTERVENÇÕES e OBRA PÚBLICA

2009 | Realização do Monumento à Revolta dos Marinheiros de 1936, Almada Participação no 1º Simpósio de Escultura de Gaia 2008 | Participação no Simpósio de Escultura do Seixal “O Corpo da palavra” exposição colectiva na Faculdade de Ciência e Tecnologia Universidade Nova de Lisboa -Campos da Caparica 2007 | Grupo de esculturas Hotel Crown Plaza Macau Grupo de esculturas para conjunto de edifícios da Obrisol, Alverca Participação no 2º Simpósio de Escultura de Penafiel Escultura em habitação unifamiliar na Parede – Intervenção sob projecto Do arq. Cândido Chuva Gomes 2006 | Relevo de parede, Colégio de São Sebastião, Câmara Municipal de Portalegre Workshop de escultura, F.C.T.- U.N.L., Campos da Caparica 2005 | Realização do Portão da Barbacã do Castelo de Portalegre – intervenção sob projecto de recuperação do Arqº Cândido Chuva Gomes 2004 | Participação no 3º Simpósio de Escultura em Pedra de Alfândega da Fé


2003 | Monumento à Água na Escola Secundária de São Pedro do Sul Escultura alusiva ao poeta João Ruiz Castelo-Branco, no Parque dos Poetas em Oeiras Intervenção de quatro escultores no Caminho da Fonte Velha, em Belver, sob projecto de recuperação da autoria dos Arqºs Vítor Mestre e Sofia Aleixo 2002 | Realização de Escultura Mural no interior do Hotel Vila Rica em Lisboa Escultura exterior para a Escola Básica 2-3 da Terrugem, Sintra Participação no 1º Simpósio de Escultura em Pedra de Alfândega da Fé Participação no 9º Simpósio Internacional de Esultura em Pedra das Caldas da Rainha Escultura pública na Estrada do Guincho, junto à Boca do Inferno, C. M. Cascais 2001 | Fonte Pública na Igreja do Mártir Santo, Vila Franca de Xira, sob projecto do Arqº Cândido Chuva Gomes Escultura no Campo de Golf de Vila Sol, Albufeira 2000 | Escultura em Área de Serviço da SHELL na CREL – Norte

1999 | Escultura pública no Concelho de Cascais, Carcavelos e Madorna I Simpósio de Escultura da E.P.S.T., Figueira da Foz 1997 | “O Jardim das Esculturas”, I Simpósio de Escultura em Barro de Aveiro,Aveiro 1996 | IV Simpósio Internacional de Escultura de Durbach, Alemanha Grupo de esculturas para edifício de escritórios na Avenida Duque de Ávila, Lisboa 1994 I Simpósio de Escultura em Pedra, Pêro Pinheiro Espelho de Água, Lisboa 1993 | Simpósio de Escultura em Pedra, Chaves 1986 | Monumento a Luís de Camões com Clara Menéres, Paris

COLEÇÕES Caixa Geral de Depósitos, Lisboa Museu Dr. Santos Rocha, Figueira da Foz Fundação PLMJ, Lisboa



Idealizada e executada em 1987, esta obra integra uma série de esculturas em ardósia, Orgãos e artefactos, realizadas pelo autor na década de oitenta. Em 1988 foi apresentada pela primeira vez na exposição Prémio Jovem Escultura Unicer, na Casa de Serralves, no Porto, que no final do mesmo ano se realizou no Museu Municipal Santos Rocha, na Figueira da Foz. No ano seguinte, 1989, Camara Municipal da Figueira da Foz adquiriu ao escultor a peça que, atualmente, integra a exposição permanente de Arte Contemporânea do referido museu.

Sem Título

Ardósia e Calcário 1987 140 x 110 x 20 cm Col. MMSR Nº Inventário: 00-H-068




É uma exposição concebida para olhar, ouvir e performatizar – agradecendo um desempenho cúmplice [estético] do espetador como pessoa que se deixa adicionar, introjetando alguns dos estímulos artísticos, em termos empáticos, tomando-os para si. Fátima Lambert


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