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de 10 a 16 de março de 2011
editorial
O exemplo da unidade popular em Honduras MUITOS ACREDITAVAM que o patrocínio a golpes militares já não integrava a agenda dos Estados Unidos neste século 21. Por mais que denúncias demonstrassem o envolvimento da CIA (serviço de inteligência dos EUA) na fracassada tentativa de golpe da Venezuela, vários analistas insistiam na tese de que golpes eram coisa do século passado. Honduras, um país centro-americano pouco conhecido, ganhou notoriedade pelo golpe civil-militar de junho de 2009 e desmontou tais crenças de que golpes seriam coisas do século passado. Hoje já não pairam dúvidas sobre o envolvimento e articulação dos EUA nesta ação. A atuação de diversos especialistas da CIA no processo conspiratório, a utilização da base militar de Palmerola (próximo da capital Tegucigalpa), fornecimento de recursos tecnológicos e outras formas de apoio típicas do aparato do Pentágono foram decisivos para derrubar o governo de Manuel Zelaya. Nos dias posteriores ao golpe, já se tornava público que as reuniões conspiratórias se deram na Base Militar dos EUA de Soto Cano.
Durante os anos em que patrocinou a contrarrevolução na Nicarágua, os Estados Unidos converteram Honduras numa gigantesca base militar. Montou-se um enorme centro de treinamento de grupos de mercenários para lutar contra os processos revolucionários da Guatemala, Nicarágua e El Salvador. Por todo esse cenário, a persistente e heroica resistência do povo hondurenho é um exemplo para todos os lutadores populares. Desde o golpe, as atividades de resistência não cessaram um único dia. O povo não se aquietou, marchou por mais de 150 dias e segue em luta. Construiu uma organização unitária, a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), que acaba de realizar sua primeira grande Assembleia Nacional. Realizada nos dias 27 e 28 de fevereiro, reuniu militantes de todo o país, além de hondurenhos da resistência que vivem no exterior e diversos convidados internacionais. A Assembleia Nacional da FNRP foi um momento decisivo da construção da Frente unitária e ampla da resistência hondurenha. Demonstrou que essa luta segue crescen-
Assembleia Nacional da Frente Nacional de Resistência Popular proporcionou um salto de qualidade para a construção de um Projeto Popular em Honduras
do, estabeleceu os pontos de unidade entre as forças políticas e sociais, possibilitou o debate e eleição democrática de milhares de delegados de base, que por sua vez participaram de dezenas de plenárias municipais. Um momento de intensa mística onde resgatou-se a memória de
centenas de mártires que tombaram na luta contra o golpe. A população acompanhava, desde suas regiões, por diversas rádios comunitárias que cobriam o evento e toda a discussão para estabelecer um plano unitário de lutas. A Frente Nacional de Resistência Popular se consolida, aprofunda sua unidade e constrói pedagogicamente um plano nacional de lutas. Um exemplo para todos lutadores do povo. Seu desafio é muito complexo. O aparato político-militar dos EUA segue acompanhando e intervindo cotidianamente na direção política de Honduras. O governo atual foi “eleito” em um processo totalmente controlado pelos golpistas, sem garantias democráticas. Seu anunciado objetivo era rapidamente legitimar o golpe perante o mundo. O Pentágono define quais as condições para reconhecer o governo atual, assim como as permanentes ingerências nos assuntos locais. Estimula planos de segurança nacional nos moldes do Plano Colômbia (Plano Patriota) justificados pelas mesmas razões do narcotráfico, igualmente na intermediação e facilitação pa-
ra a instalação de duas bases militares em Honduras. As negociações para instalação dessas bases já estão bem adiantadas. Ao mesmo tempo, consolida a permanência da Base Militar Palmerola com mais de três mil marines. Isso ainda sem considerar os empréstimos intermediados e que são condicionados a financiar negociações com empresas dos EUA, num velho método de exploração dos povos de todo o mundo. A Assembleia ratifica Manuel Zelaya como coordenador, delibera que a luta pelo poder é o objetivo central e que a FNRP deve fortalecer e implementar lutas populares e manifestações de resistência pelo país. Além disso, indicou uma paralisação geral para este mês. Também deliberou um processo pedagógico para consultar o povo sobre os pontos e conteúdos do que seria a refundação de Honduras. Em resumo, a Assembleia Nacional da Frente Nacional de Resistência Popular proporcionou um salto de qualidade para a construção de um Projeto Popular em Honduras. Que seu exemplo sirva de estímulo para as forças populares em nosso país.
opinião Wladimir Pomar
crônica
Apesar de tudo, elas se movem
Serpentinas e rebeliões
CONTA-SE QUE Galileu, obrigado pela Inquisição católica a abjurar sua crença de que a Terra se movia, teria dito à meia voz que, apesar de tudo, ela se movia. O mesmo parece estar ocorrendo agora em relação às grandes massas populares de países da África do Norte, desdizendo as afirmações de uma certa Inquisição intelectual para a qual a época das grandes mobilizações e revoltas sociais era coisa do passado. O capitalismo teria criado uma rede de mecanismos democráticos, de tal ordem, que seria possível evitar que, em algum momento, os pobres, os trabalhadores e mesmo setores médios se lançassem à luta. É verdade que aquela Inquisição fazia exceção a países que consideravam regidos por ditaduras, que a imprensa ocidental citava nominalmente como se restringindo à Coreia do Norte, Cuba, China, Iraque, Irã, Venezuela, Líbia, Chade e Zimbabwe, pouco importando que alguns deles mantenham democracias de tipo liberal. Por outro lado, essa mesma imprensa nada dizia sobre regimes ditatoriais na Tunísia, Egito, Iêmen, Barehin, Marrocos e outros países árabes aliados diretos dos Estados Unidos. O Iraque só se tornou uma ditadura abominável após haver demonstrado certa independência e tentando anexar o Kuwait. Sob o manto protetor dos acordos militares e geopolíticos com a grande democracia americana, esses países pareciam fadados a sucessões dinásticas de longa duração. No entanto, as bases dessas sociedades se moviam imperceptivelmente, forçadas pelo aumento da miséria, pelos baixos salários, pelas baixas condições de vida e pela ausência de liberdades culturais, sindicais e políticas. Na superfície, tudo parecia calmo, embora de vez em quando irrompesse algum fator de desestabilização, logo sufocado pelas eficientes redes de inteligência e repressão policial e militar. Nessas condições, para aqueles que se deixavam convencer pela aparência superficial, as revoltas de massa na Tunísia, Egito, Líbia e outros países da África do Norte causaram grande surpresa. É natural, assim, que surjam, em consequência, interpretações disparatadas sobre esses acontecimentos. A mais esdrúxula do momento é aquela que acusa a CIA e o governo norte-americano, através do uso das redes cibernéticas, de haver promovido tais insurreições. O governo dos Estados Unidos teria se dado conta de que aliados como Mubarak e outros, há muitos anos no poder, já não eram servidores eficientes. Promovendo mobilizações sociais do lumpemproletariado e desordeiros, que levassem a uma transição negociada em que tudo continuaria como antes, se livrariam dos servidores desgastados e, de quebra,
Luiz Ricardo Leitão
Reprodução
Na maior parte dos países árabes convulsionados, o quadro ainda está confuso para que se afirme, com certeza, se estamos diante de revoluções ou de reformas com tintura revolucionária ou conservadora incentivariam revoltas na Líbia e no Irã. Portanto, numa manobra clássica de Sun Tsu e Mao Zedong, fingiram atacar o secundário para golpear o principal. É evidente que a CIA e os poderosos meios de comunicação ocidentais promoveram uma propaganda massiva contra o socialismo real daqueles países. Porém, qualquer propaganda só tem efeito quando corresponde às aspirações imediatas das grandes massas do povo. Estas massas só se mobilizam e vão para as ruas quando não querem mais viver como até então. E só se atiram contra os fuzis e metralhadoras quando acham que, além disso, não têm mais nada a perder. Portanto, tanto a propaganda contra o socialismo real, produzida principalmente pelo rádio e televisão dos países ocidentais, como a propaganda contra os regimes ditatoriais da África do Norte, promovida em grande escala através da Internet, só tiveram efeito porque as populações desses países já não suportavam mais viver da forma que vinham vivendo. No caso dos países
africanos, populações formados por trabalhadores assalariados, setores médios empobrecidos e milhões de desempregados transformados em lumpens, era inevitável que as revoltas também contassem com a participação destes últimos. Assim, queiramos ou não, essa também era a situação das grandes massas do povo líbio, mesmo que seu país não estivesse no rol dos aliados servis dos Estados Unidos, e que estes possam estar se aproveitando das dificuldades de Kadafi para desviar a atenção do mundo dos eventos nos demais países de ditaduras apoiadas pelos americanos. Desqualificar a revolta das massas populares porque o regime é inimigo aparente de nosso inimigo não é um critério muito saudável, pelo menos para quem se diz de esquerda. Algo parecido ocorre com as divergências sobre estarmos ou não diante de movimentos revolucionários e revoluções, que resultem em mudanças políticas, sociais e econômicas profundas. É verdade que a imprensa ocidental, numa tentativa de esconder sua omissão passada diante dos regimes ditatoriais aliados incondicionais dos Estados Unidos, estão divulgando febrilmente as revoltas populares como revoluções de fato. Revoltas populares são indícios de situações revolucionárias. Mas nem todas as situações revolucionárias se transformam em revoluções, seja porque as massas populares não possuem partidos políticos organizados e com capacidade de dirigirem o processo, seja porque o lado oposto se reorganiza, faz concessões e consegue evitar que as transformações sejam profundas. Na maior parte dos países árabes convulsionados, o quadro ainda está confuso para que se afirme, com certeza, se estamos diante de revoluções ou de reformas com tintura revolucionária ou conservadora. De qualquer modo, as massas se movem. Wladimir Pomar é escritor e analista político.
O CARNAVAL é uma festa pagã do Velho Mundo que remonta à Idade Média. Desde sua origem, ela representa no imaginário popular uma autêntica inversão de valores, aquele lapso de tempo em que os servos da sociedade feudal se tornavam senhores, livrando-se, ainda que momentaneamente, das pesadas atribulações que a opressiva estrutura social lhes impunha. Ao longo dos séculos, o evento assumiria outras conotações no continente europeu, como se pode ver nos famosos desfiles de máscaras de Veneza, mas continuaria a ser uma espécie de catarse em outras partes do planeta, em especial aqui no Novo Mundo, onde o regime colonial subjugou povos nativos, africanos e asiáticos, privando-os dos direitos elementares de inclusão na vida pública. Cá em Bruzundanga, o processo foi ainda mais cruel. Sob o manto do último país escravocrata das Américas, o entrudo se tornaria uma expressão fidedigna de nossa absurda iniquidade social. Afinal de contas, padecendo séculos de pelourinho e chibata, não era de se estranhar que os filhos da senzala saíssem às ruas para descarregar petardos de bosta e urina nos “foliões”, até mesmo sobre sinhô e sinhá – para pasmo das elites e “civilizados” intelectuais. Há certos traços afins com Cuba, onde a escravidão vigorou até 1886 e os povos iorubas serviram como poucos à monocultura do açúcar; mas a Revolução de 1959 conferiu novos signos à festa – e o crítico Período Especial, de fato, diluiu a sua exuberância. Não ouso dizer que onde não há revolução a solução é o carnaval, porque, em realidade, os dois elementos não se contrapõem – e têm decerto mais pontos de contato do que há de supor nossa tosca filosofia. É bem verdade que, enquanto estamos cá a deleitar-nos com confetes e serpentinas, os povos árabes seguem no norte da África e no Oriente Médio a promover rebeliões que inquietam as potências do Ocidente, sequiosas do petróleo que se espalha sob aquele solo e temerosas de que o sentimento anti-imperialista seja mais um combustível motriz das revoltas populares.
Quem dera os Orkuts e Facebooks fossem tão revolucionários quanto Tio Sam deseja fazer crer Para disfarçar seu mal-estar e confundir a tal “opinião pública”, Washington lançou o mantra da “luta por democracia”, saudando as revoluções que promovem o fim das tiranias e exaltando o papel da internet no processo. Essa lenga-lenga, é óbvio, visa a embotar o caráter anticapitalista da revolução árabe e, sobretudo no caso do Egito, subestimar o peso de novos grupos sociais no país, não apenas a Irmandade Muçulmana (em que as mulheres merecem destaque à parte), mas também os sindicatos (que desde 2008 organizam expressivas greves gerais e hoje lutam por um reajuste de R$ 124,00 para R$ 375,00), os microempresários (com forte presença feminina nas áreas de informática, confecção e tinturaria) e até a elite acadêmica de classe média (advogados, juízes, diplomatas). Quem dera os Orkuts e Facebooks fossem tão revolucionários quanto Tio Sam deseja fazer crer. Se assim fora, já estaria tudo resolvido em Bruzundanga, um dos campeões mundiais de acesso ao ciberespaço. Não importa sua natureza, tais ferramentas requerem forças sociais organizadas para que surtam efeito – e não poderemos abdicar jamais desta tarefa, sob o grave risco de que o fim de um regime de exploração e opressão não represente uma efetiva mudança na ordem social. De qualquer modo, entre serpentinas e rebeliões, espero que os nossos foliões tenham guardado um pouco de energia para a quaresma. Precisamos botar o bloco na rua para coibir tanta maracutaia que grassa de norte a sul do país, a começar pela turma da pelota e o obscuro imbróglio CBF & Rede Globo, que ameaça implodir de vez o decadente futebol brasileiro. Aliás, quem leu a “defesa” de Ricardo Teixeira contra a punição imposta à CBF pelo escândalo da arbitragem em 2005, em que a entidade considera os torcedores apaixonados meros “analfabetos funcionais”, deveria redobrar sua carga bélica contra o mafioso, sem esquecer, porém, outros coronéis dignos de muita bosta e urina, desde a tchurma do Planalto (Sarney, Kátia Abreu & Cia.) até a malta do agronegócio, que, se não for detida, em breve converterá Bruzundanga numa imensa fazenda de soja e de gado. Evoé, Baco! Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – poeta da Vila, cronista do Brasil e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.
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