Edição 313 - de 26 de fevereiro a 4 de março de 2009

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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 313

São Paulo, de 26 de fevereiro a 4 de março de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br

Igor Ojeda

Cuba, 50 anos

Bia Pasqualino

Cinco músicos rebeldes e a resistência à invasão dos EUA

Por perseguição política, Yeda e MP fecham escolas do MST

Na terceira parte da série de reportagens sobre os 50 anos da Revolução Cubana, o grupo musical Quinteto Rebelde e a invasão da Baía dos Porcos (foto), em abril de 1961, comandada pelos EUA. Págs. 10 e 11

O Ministério Público do Rio Grande do Sul e a governadora do Estado, Yeda Crusius (PSDB), determinaram o fechamento de escolas em acampamentos do MST. A medida afetará 400 crianças. Pág. 5

José Cruz/ABr

Folha tenta abrandar crimes cometidos pela ditadura militar O jornal Folha de S.Paulo criou um neologismo para certas ditaduras, como a brasileira: “ditabranda”. O termo foi criticado por intelectuais, como os professores Fábio Comparato e Maria Victoria Benevides, que, em seguida, foram destratados pelo periódico. Pág. 3

Chávez terá de enfrentar crise mundial e rearranjo da direita Após a vitória no referendo da emenda constitucional, que colocou fim ao limite para a reeleição aos cargos públicos na Venezuela, o governo do presidente Hugo Chávez terá pela frente a crise financeira internacional e a rearticulação da oposição, que busca

recuperar espaços políticos perdidos nos últimos dez anos. No campo econômico, o principal desafio será amenizar os efeitos da crise financeira, a qual afeta a economia venezuelana por meio da queda abrupta dos preços Grampos da PF do barril de petróleo. Pág. 9 escancaram Bernardo Londoy

David Katz

Gravações feitas pela Polícia Federal desnudam o poder do presidente do Senado, José Sarney, sobre a mídia no Maranhão e até sobre a Abin. Nas conversas, o ex-presidente discute com o filho, Fernando Sarney, a inserção de matérias contra o governo maranhense na imprensa do Estado. Na segunda, o senador pergunta se o filho recebeu dados da Abin sobre um processo no qual é investigado. Fernando diz que sim. Pág. 8

Em Israel, palestinos pagarão a conta da crise

ISSN 1978-5134

PMs de SC se veem enquanto seres políticos

É do petróleo que provêm 93% das divisas que ingressam no país, e é com ele que Chávez (foto) financia os programas sociais

Nova tecnologia ameaça o campo Transnacionais investem na criação de organismos vivos Depois da invasão dos transgênicos, sem normas de segurança, uma nova tecnologia promete entrar nos campos do país: a biossintética. A técnica permite

a criação artificial de organismos para variados fins – de micróbios para acelerar a produção de etanol a armas biológicas. Como ocorreu com os transgêni-

cos, ainda não há nenhuma regulação sobre essa tecnologia, que é controlada por transnacionais; e duas pesquisas já estão previstas no Brasil. Pág. 4

AFOGANDO EM NÚMEROS A Embraer anunciou que irá demitir

4.700 trabalhadores, o que

corresponde a 20% do efetivo da companhia. O sindicato da categoria denuncia que a União emprestou

7 bilhões de dólares à

empresa desde a sua privatização, em 1995. Os trabalhadores querem redução da jornada de

43 horas semanais, a maior entre as

companhias aeronáuticas do mundo.

Ricardo Stuckert/PR

Para Sérgio Yahni, do Centro Alternativo de Informação em Jerusalém, a coalizão recémformada em Israel deve manter a política neoliberal e militarista do país. Além disso, os cortes orçamentários em função da crise deverão incidir nas áreas com maior concentração de palestinos. Pág. 12

influência de Sarney no MA

O que nasceu como um movimento de caráter corporativo vem se tornando um importante espaço de formação e organização dos praças da PM de SC. A categoria se mobilizou para pedir o cumprimento de uma lei que reajustaria seus salários. Mas, dada a repressão, o movimento seguiu na forma de vigílias que questionam o papel das polícias. “Movimento social não é caso de polícia, é para ser resolvido no espaço da política”, afirma liderança. Pág. 7


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editorial PARECE QUE o ano começa mesmo só depois do carnaval, como diz o ditado popular brasileiro. Passadas as festas de fim de ano, as férias e o carnaval, agora a vida volta ao normal. E o normal será cada vez mais anormal neste 2009. As notícias da economia, do meio ambiente e das condições de vida da classe trabalhadora são as piores possíveis. A crise do sistema capitalista, que estourou no segundo semestre de 2008 nas economias dos países ricos, começa a chegar com força nos países periféricos como o Brasil. Alguns acontecimentos desse período: muitas empresas amargaram prejuízos e sua produção caiu; mais de 800 mil trabalhadores com carteira assinada, 70% deles na indústria, perderam o emprego de novembro até agora; e as taxas de juros continuam as mais altas do mundo. O governo paga ao redor de 12,75% ao ano aos bancos, representando mais de 30% de tudo o que arrecada da população. E o povo, quando compra a prazo, paga taxas de juros ao redor de 48% ao ano. Igualmente, a mais alta do planeta.

debate

O ano está recomeçando. Muitas preocupações e desafios O governo já liberou mais de R$ 180 bilhões em socorro a bancos e empresas. Repassou 20 bilhões de dólares de nossas reservas no exterior para pagar as dívidas das empresas brasileiras lá fora. 50% do depósito compulsório no Banco Central para os bancos fazerem o que quisessem. E eles, em vez de emprestar para as empresas, reaplicaram em títulos da divida pública a 12,75% de juros. Ou seja, as medidas paliativas do governo não amenizaram os efeitos da crise sobre os trabalhadores. O que fazer? Há diversas iniciativas das centrais sindicais, da Coordenação de Movimentos Sociais (CMS), da Via Campesina Brasil, da Assembleia Popular e dos movimentos sociais ligados à Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) para articular jornadas de mobilização

conjuntas. Muitas ideias foram debatidas durante o Fórum Social Mundial (FSM), e outras plenárias serão realizadas em nível nacional. Há muitos sinais de que existe vontade política da classe trabalhadora para lutar e enfrentar o desemprego e a crise, exigindo que o governo e os capitalistas paguem a conta. Há pelo menos uma consciência unitária em todos os movimentos: sem mobilização social, sem lutas de massa, não deteremos a sanha do capital, que, como sempre, vai procurar jogar o peso da crise sobre a classe trabalhadora, como defendem discaradamente todos os dias em seus jornalões. Por exemplo, Roger Agnelli, presidente da Vale (ex-estatal Companhia Vale do Rio Doce), apesar de ter registrado R$ 21 bilhões de lucro líquido em 2008, defendeu publicamente que, para sair da crise,

é preciso suspender todos os direitos sociais e trabalhistas. Ou seja, o nobre banqueiro do Bradesco, impostor e usurpador do patrimônio público, quer jogar na lata do lixo 100 anos de lutas do povo trabalhador. Para as elites brasileiras, tudo é possível, até a reeleição de José Sarney para presidir o Senado. Por isso, esperamos que os movimentos sociais e as centrais sindicais, de fato, se mobilizem. E março já promete muitas mobilizações ao redor do Dia Internacional de Luta da Mulher, da jornada mundial dos atingidos por barragens e da jornada mundial contra a crise e a guerra, agendada durante o FSM para acontecer entre os dias 28 de março e 4 de abril. O momento é grave. Estaremos enfrentando uma grave crise, que será profunda e prolongada. É uma

crônica

Dom Pedro Casaldáliga

crise do sistema capitalista, que pode engendrar novos mecanismos de maior exploração da classe trabalhadora e dos recursos naturais para recompor suas taxas de lucro. Mas também pode abrir brechas para que a classe trabalhadora enfrente o capital. Tudo depende da luta social e de um programa claro de enfrentamento da crise. A tarefa agora dos movimentos sociais, e de nós, da imprensa popular, é desencadear urgentemente, em todos os setores sociais, um amplo mutirão de debate sobre a natureza da crise, sua gravidade e consequências para a classe trabalhadora. O Brasil de Fato já está há seis anos nessa trincheira ideológica de seguir sendo um instrumento para a discussão de ideias. Nesse sentido, conclamamos a que todos os setores sociais promovam debates, seminários, conferências, programas de rádio etc. para levar informações para a mais ampla camada da população. Só a consciência e o conhecimento profundo da gravidade da situação nos levarão a construir formas verdadeiras para enfrentá-la com o menor custo social possível para o povo.

Luiz Ricardo Leitão

“Hoje não tenho mais esses sonhos”

Surpreendente cinquentona

O CARDEAL Carlo M. Martini, jesuíta, biblista, arcebispo que foi de Milan e colega meu de Parkinson, é um eclesiástico de diálogo, de acolhida, de renovação a fundo, tanto na Igreja como na sociedade. Em seu livro de confidências e confissões Colóquios noturnos em Jerusalém, declara: “Antes eu tinha sonhos acerca da Igreja. Sonhava com uma Igreja que percorre seu caminho na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse de raiz a desconfiança; que desse espaço às pessoas que pensem com mais amplidão; que desse ânimo, especialmente, àqueles que se sentem pequenos ou pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje não tenho mais esses sonhos”. Essa afirmação categórica de Martini não é, não pode ser, uma declaração de fracasso, de decepção eclesial, de renúncia à utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do próprio Deus. Ele e milhões de pessoas na Igreja sonhamos com a “outra Igreja possível”, a serviço do “outro Mundo possível”. E o cardeal Martini é uma boa testemunha e um bom guia nesse caminho alternativo; ele tem demonstrado. Tanto na Igreja (na Igreja de Jesus, que são várias Igrejas) como na Sociedade (que são vários povos, várias culturas, vários processos históricos) hoje mais do que nunca devemos radicalizar na procura da justiça e da paz, da dignidade humana e da igualdade na alteridade, do verdadeiro progresso dentro da ecologia profunda. E, como diz Bobbio, “é preciso instalar a liberdade no coração mesmo da igualdade”; hoje com uma visão e uma ação estritamente mundiais. É a outra globalização, a que reivindicam nossos pensadores, nossos militantes, nossos mártires, nossos famintos... A grande crise econômica atual é uma crise global de humanidade que não se resolverá com nenhum tipo de capitalismo, porque não é possível um capitalismo humano; o capitalismo continua a ser homicida, ecocida, suicida. Não há modo de servir simultaneamente ao deus dos bancos e ao Deus da Vida, conjugar a prepotência e a usura com a convivência fraterna. A questão axial é: trata-se de salvar o sistema ou se trata de salvar a humanidade? As grandes crises, grandes oportunidades. No idioma chinês, a palavra crise se desdobra em dois sentidos: crise como perigo, crise como oportunidade. Na campanha eleitoral dos EUA se arvorou repetidamente “o sonho de Luther King”, querendo atualizar esse sonho; e, por ocasião dos 50 anos da convocatória do Vaticano II, tem-se recordado, com saudade, o Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre. No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 Padres Conciliares celebraram a Eucaristia nas catacumbas romanas

A REVOLUÇÃO Cubana completou seu 50º aniversário. Houve tantos eventos insólitos e polêmicos, no início do novo ano, que este cronista, velho admirador da ilha, não pôde sequer dedicar sua atenção ao evento, digno de registro e análise. Em meu livro de crônicas e reflexões sobre o arquipélago, escrevi que compreender Cuba é uma missão quase impossível: o réptil comprido e sinuoso que se estende entre as Antilhas é mais do que uma ideia, uma bandeira ou um acidente geográfico paradisíaco no Mar dos Caraíbas. Imantado por séculos de lutas e eventos transcendentais, ele deixa marcas profundas em sua gente e nos estrangeiros que se dispõem a viver em suas entranhas de espírito aberto e desarmado. Muitos o admiram, outros o odeiam, mas poucos lhe permanecem indiferentes. Como, aliás, igualmente raros são aqueles que conseguem emitir uma opinião serena e ponderada sobre a figura magnética de Fidel Castro ou, ainda, sobre esse ícone da era globalizada em que se converteu o próprio Che Guevara. A posição estratégica da ilha no enlace do continente americano com o Atlântico Norte fez com que os colonizadores do Velho Mundo a apelidassem de “a chave das Américas”, estimulando em muito o interesse dos antigos sistemas coloniais sobre a maior de todas as Antilhas. No século 19, Cuba se converte na “fruta madura” que John Quincy Adams julgava prestes a cair no quintal dos Estados Unidos e a partir daí seriam outros os conquistadores ansiosos por domesticar o arisco lagarto verde. As visitas indesejadas foram muitas: primeiro vieram os grandes proprietários ianques, que compraram as fazendas de cana para prover o Império de açúcar; depois desembarcaram as tropas de Tio Sam, que há mais de cem anos mantêm encravada em território insular a fatídica Base de Guantánamo; no rastro dos marujos viria também ancorar, poucas décadas mais tarde, a poderosa máfia ítalo-estadunidense, cujos capi mais famosos, como Lucky Luciano, se instalaram em luxuosas mansões e hotéis de Havana e Varadero. Por sua tenaz resistência ao Tio Sam, a maior das Antilhas terminou por motivar a formulação das duas principais iniciativas da política de expansão imperial dos EUA sobre o continente, relembranos Darcy Ribeiro em As Américas e a civilização. A primeira foi a Doutrina Monroe, que nasce como um visível esforço de fundamentar juridicamente a dominação ianque sobre os vizinhos. A segunda seria a famigerada “Aliança para o Progresso”, proposta pelo Presidente John Kennedy em 1961 como “um programa de ajuda econômica e social dos EUA para a América Latina”, com investimentos da ordem de 20 bilhões de dólares. A “Aliança”, em realidade, era o eufemismo pelo qual se designou a tutela do Império do Norte sobre o continente, em inequívoca reação ao desafio representado pela Revolução Cubana, cujo conteúdo antiimperialista e a paulatina adesão ao ideário socialista implicaram crescentes obstáculos à hegemonia político-econômica de Washington sobre a região. O maior desafio da Revolução, porém, foi superar o colapso representado pela queda do bloco socialista do Leste Europeu no limiar dos anos 1990. As consequências daquela terrível cadeia de eventos registrada ao final da década de 1980 no interior da URSS e dos países alinhados com Moscou foram absolutamente desastrosas para os caribenhos. Da noite para o dia, o país perdeu cerca de 85% de suas relações comerciais com o exterior. Face à expressiva queda na importação de petróleo, a produção industrial estagnou-se e o PIB retroagiu quase 34% em apenas três anos. A crise cambial foi espantosa: a moeda nacional se desvalorizou tanto, que um dólar ianque chegou a valer 150 pesos cubanos em 1993, talvez o pior ano do novo ciclo de adversidades que o povo cubano enfrentava. Ninguém podia prever o que iria acontecer no futuro. Poucos ainda acreditavam que o país conseguiria resistir à pressão de Tio Sam e superar a grave crise econômica em que estava mergulhado. Até mesmo Noam Chomsky, um dos mais lúcidos e coerentes pensadores da esquerda mundial, chegou a aventar, em uma entrevista concedida em 1992, a hipótese de um eventual colapso do sistema e do próprio regime revolucionário. Pois a surpreendente cinquentona continua a resistir, apesar dos percalços da nova fase. Com os dólares do turismo, reergueu a economia, embora esteja pagando um preço alto por isso (criação de um fosso social no país, ressurgimento da prostituição etc.). Com o apoio da Venezuela, da China e de outros países, pôde sustentar sua via socialista, sem privatizar os serviços públicos, como a Saúde e a Educação, um exemplo para todos. E ainda pôde promover a saída de Fidel sem nenhuma comoção social, ao contrário do que previam as pitonisas de plantão. Orgulhosa dos cabelos brancos, ela sequer pretende ser um modelo a exportar; é apenas uma prova contundente de que um outro mundo é possível.

de Domitila e firmaram o Pacto das Catacumbas. Dom Hélder Câmara, cujo centenário de nascimento estamos celebrando neste ano, era um dos principais animadores do grupo profético. O Pacto, em seus 13 pontos, insiste na pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos, sem privilégios e sem ostentações mundanas; insiste na colegialidade e na corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus e na abertura ao mundo e na acolhida fraterna. Hoje, nós, na convulsa conjuntura atual, professamos a vigência de muitos sonhos; sociais, políticos, eclesiais, aos quais de jeito nenhum podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neoimperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome uma grande maioria da Humanidade. E seguiremos rechaçando toda discriminação por motivos de gênero, de cultura, de raça. Exigimos a transformação substancial dos organismos mundiais (a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC...). Comprometemo-nos a vivermos uma “ecologia profunda e integral”, propiciando uma política agrária-agrícola alternativa à política depredadora do latifúndio, da monocultura, do agrotóxico. Participaremos nas transformações sociais, políticas e econômicas, para uma democracia de “alta intensidade”. Como Igreja queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecumênica e macroecumênica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de jeito nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. Chega de fazermos do nosso Deus o único Deus verdadeiro. “Meu Deus, me deixa ver a Deus?”. Com todo respeito pela opinião do Papa Bento XVI, o diálogo interreligioso não somente é possível, é necessário. Faremos da corresponsabilidade eclesial a expressão legítima de uma fé adulta. Exigiremos, corrigindo séculos de descriminação, a plena igualdade da mulher na vida e nos ministérios da Igreja. Estimularemos a liberdade e o serviço reconhecido de nossos teólogos e teólogas. A Igreja será uma rede de comunidades orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma

Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhida, de perdão, de ternura, samaritana à beira de todos os caminhos da humanidade. Seguiremos fazendo que se viva na prática eclesial a advertência de Jesus: “Não será assim entre vocês” (Mt 21,26). Seja a autoridade serviço. O Vaticano deixará de ser Estado e o Papa não será mais chefe de Estado. A Cúria terá de ser profundamente reformada, e as Igrejas locais cultivarão a inculturação do Evangelho e a ministerialidade compartilhada. A Igreja se comprometerá, sem medo, sem evasões, com as grandes causas de justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anúncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será aquela “expressão mais alta do amor fraterno” (Pio XI). Nós nos negamos a renunciar a estes sonhos mesmo quando possam parecer quimera. “Ainda cantamos, ainda sonhamos”. Nós nos atemos à palavra de Jesus: “Fogo vim trazer à Terra; e que mais posso querer senão que arda” (Lc 12,49). Com humildade e coragem, no seguimento de Jesus, tentaremos viver estes sonhos no dia a dia de nossas vidas. Seguirá havendo crises e a humanidade, com suas religiões e suas Igrejas, seguirá sendo santa e pecadora. Mas não faltarão as campanhas universais de solidariedade, os Foros Sociais, as Vias Campesinas, os movimentos populares, as conquistas dos Sem Terra, os pactos ecológicos, os caminhos alternativos da Nossa América, as Comunidades Eclesiais de Base, os processos de reconciliação entre o Shalom e o Salam, as vitórias indígenas e afro e, em todo o caso, mais uma vez e sempre, “eu me atenho ao dito: a esperança”. Cada um e cada uma a quem possa chegar esta circular fraterna, em comunhão de fé religiosa ou de paixão humana, receba um abraço do tamanho destes sonhos. Os velhos ainda temos visões, diz a Bíblia (Jl 3,1). Li nesses dias esta definição: “A velhice é uma espécie de pós-guerra”; não precisamente de claudicação. O Parkinson é apenas um percalço do caminho e seguimos Reino adentro. (Circular 2009). Pedro Casaldáliga é bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Patrícia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

Para Folha de S.Paulo, regime militar no Brasil foi “ditabranda” IMPRENSA Jornal considerou a indignação de intelectuais como “mentirosa e cínica”; o jurista Fábio Konder Comparato e a cientista política Maria Victoria Benevides foram ofendidos por uma nota da redação Renato Godoy de Toledo da Redação EM EDITORIAL, no dia 17 de fevereiro, o jornal paulista Folha de S.Paulo criticou a vitória do “Sim” no referendo na Venezuela, que permite a reeleição ilimitada de políticos em cargos eletivos naquele país. A oposição do jornal ao mandatário venezuelano não foi surpresa, já que todos os meios da chamada grande imprensa seguem essa postura. No entanto, ao comparar o processo venezuelano com as ditaduras militares latinoamericanas, a Folha criou um neologismo que causou indignação entre representantes da sociedade civil. Para o jornal controlado pela família Frias, o regime militar brasileiro foi uma “ditabranda”. O editorial afirma que as ditaduras brasileiras percorreram o caminho inverso dos atuais presidentes de esquerda da América Latina. Enquanto os militares romperam com a institucionalidade democrática e “implantavam formas controladas de disputa política”, os novos “autoritários” “minam os controles democráticos por dentro”. Vale lembrar que Chávez, em 10 anos de poder, disputou 15 eleições, venceu 14, sendo uma delas proposta por ele mesmo

Maria Victoria Benevides também considera que a reação do jornal é uma contraofensiva ao movimento que debate a anistia a torturadores da ditadura. “Todo esse descontrole da Folha de S.Paulo, que passa do nível do irracionalismo e da indecência, se deve a uma reação contra uma campanha, na qual o professor Fábio e eu estamos envolvidos, de discutir a anistia aos torturadores, que visa questionar vários pontos do regime militar que tem sido tratado no velho estilo da conciliação brasileira”, analisa.

para que o eleitorado decidisse sobre sua continuidade, em 2004. Todos os processos foram acompanhados por observadores internacionais. Indignação

A opinião do diário causou indignação entre alguns leitores. No dia 19 de fevereiro, o leitor Sérgio Pinheiro Lopes teve sua carta publicada na Folha. Para ele, a atitude da publicação é “um tapa na cara da história da nação e uma vergonha para este diário”. A redação respondeu: “Na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional”. No dia seguinte, mais cinco cartas foram publicadas sobre o tema. Apenas um militar reformado defendeu o jornal. Entre os críticos do editorial, estavam o jurista Fábio Konder Comparato e a cientista política Maria Victoria Benevides, que foram ofendidos pela nota da redação: “A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como

“A primeira medida que eu tomei foi cancelar a assinatura do jornal, porque um jornal que se preze não pode ter como assinante um cínico e mentiroso”, afirma Fábio Konder Comparato aquela ainda vigente em Cuba, sua ‘indignação’ é obviamente cínica e mentirosa”. Reação O professor de direito da Universidade de São Paulo, Fábio Konder Comparato, analisa o caso para saber qual a providência deve tomar. “A primeira medida que eu tomei foi cancelar a assinatura do jornal, porque um jornal que se preze não pode ter como assinante um cí-

Comparato. “Eu tenho total confiança no professor Comparato e no seu saber jurídico. Vou acompanhar a decisão dele. No momento, temos que esperar um pouco, porque é uma época muito difícil de mobilizar as pessoas, por ser carnaval”, afirma. O fato de a publicação ter aceitado a crítica de outros leitores, mas rechaçado a de Comparato e Benevides, é motivado por questões estritamente políticas, segundo ela. “O jornal está comprometido com outra proposta eleitoral, outro tipo de governo. Eles querem uma aliança com a política mais tradicional, oligárquica, ligado ao neoliberalismo e está sentindo a ameaça que pode ser a candidatura da Dilma Rousseff”, avalia. A professora também critica a forma como a empresa identificou o autor das respostas. “Normalmente, a Folha publica no painel do leitor a resposta do autor da matéria. Mas dessa vez assinava como ‘da Redação’. Quem é a redação? O dono do jornal? O conselho editorial? Tenho certeza que, no conselho editorial, o Jânio de Freitas e o Marcelo Coelho [colunistas do jornal], não escreveriam esses insultos”, pontua.

nico e mentiroso. De resto, estou analisando o caso para ver se cabe uma ação judicial [contra o diário]”, afirmou. Para o jurista, o caso é sintomático. “Acho que é a primeira vez que um jornal usa essa expressão de muito mal gosto [‘ditabranda’]. Em um momento em que se discute a anistia aos assassinos, estupradores e torturadores, a postura do jornal vai ser avaliada”, acredita.

Tal como Comparato, Benevides cancelou a assinatura do jornal e afirma que não irá mais escrever artigos ou conceder entrevistas ao periódico. Ela diz ter recebido dezenas de mensagens de solidariedade de ex-alunos e intelectuais, muitos dos quais afirmam ter cancelado a assinatura do jornal. Benevides afirma que irá acompanhar o desdobramento judicial do caso ao lado de

Colaboração na ditadura

e fingir que se tratava de um carro de reportagem em atividade jornalística”. (Cães de Guarda – jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1989, de Beatriz Kushnir, Boitempo Editorial). Em sua coluna, Amorim reitera ainda a denúncia feita por Mino Carta a respeito do afastamento do jornalista Cláudio Abramo do comando do jornal. Quanto ao episódio da utilização dos carros da FSP para fins repressivos – como apontam Mino Carta e Paulo Henrique –, é fato que consta de diversas publicações e depoimentos. A revista Teoria & Debate – da Fundação Perseu Abramo – nos anos de 1990, publicou uma carta do ex-preso político e hoje advogado de movimentos populares e causas ligadas aos direitos humanos, Aton Fon Filho, que denuncia exaustivamente essa ligação criminosa.

a Folha de S.Paulo nos anos da ditadura era apenas um título (ainda que o carro chefe), num conjunto que somava mais de meia dúzia de outros, como os jornais Última Hora, Noticias Populares, Folha de Santos etc., sem esquecermos, é claro, a meninados-olhos da repressão, a Folha da Tarde. A Folha da Tarde (FT) é um capítulo à parte. Algo assim, como se a FSP coubesse em “obras escolhidas” e ela, a FT, merecesse “obras completas”. Até 1968 esse jornal cobria de forma razoavelmente decente o movimento estudantil e outras manifestações de oposição à ditadura. Contava com uma equipe formada, em sua maioria esmagadora, de bons e sérios profissionais – muitos dos quais acabariam posteriormente presos, como o caso da jornalista Rose Nogueira. Na ocasião, o logotipo do jornal era vermelho. Passados alguns meses da decretação do Ato Institucional Número 5, de repente, não apenas o logotipo foi mudado para preto, como sua direção passou a ser composta de pessoas ligadas

aos órgãos de repressão, inclusive à famosa Escuderie Le Coc (nome fantasia do Esquadrão da Morte) – o que facilmente qualquer neófito é capaz de perceber, folheando a coleção desse jornal. Também a essa questão se refere, com detalhes, a historiadora Beatriz Kushnir em seu livro Cães de Guarda.

De acordo com a cientista política, o editorial da Folha e a sua reação frente às críticas fizeram com que muitos lembrassem do papel da empresa durante o regime militar. “Entre as mensagens que tenho recebido, muitos estão ressaltando o fato de que a Folha da Manhã emprestava seus furgões à repressão para transportar presos e torturados”, revela.

ANÁLISE

De rabo preso com quem? Alípio Freire A criação, pelo jornal Folha de S.Paulo (FSP), da expressão “ditabranda” em seu editorial de 17 de fevereiro, para nomear a ditadura imposta com o golpe de 1964 e, em seguida, a agressão aos professores Maria Victoria de Mesquita Benevides e Fábio Konder Comparato, expressa em nota na seção de cartas da edição de 20 de fevereiro, não podem ser atribuídas apenas aos “maus bofes” de um jovem (?) herdeiro rico, mimado, que se supõe gênio (o que diariamente lhe repete sua corte), que não conhece limites e, portanto, afeito a chiliques. Embora seja também isso, é muito mais, e só pode ser entendido a partir da história daquele jornal, e no quadro mais amplo do avanço (em nível internacional) das idéias, valores e políticas nazi-fascistas. Sobre a trajetória do pasquim da Barão de Limeira, vejamos alguns depoimentos: “Abandono do emprego”

A jornalista Rose Nogueira, presa pelos órgãos de repressão da ditadura no dia 4 de novembro de 1969, quando estava de licença-maternidade da FSP, onde trabalhava, conta: “Vinte e sete anos depois [1997], descubro que fui punida não apenas pela polícia toda-poderosa (...), pela justiça militar (...). Ao buscar, agora, nos arquivos da Folha de S.Paulo a minha ficha funcional, descubro que, em 9 de dezembro de 1969, quando estava presa no Deops, incomunicável, ‘abandonei’ meu emprego de repórter do jornal. Escrito a mão, no alto: ABANDONO. E uma observação oficial: Dispensada de acordo com o artigo 482 – letra ‘i’ da

CLT abandono de emprego’. Por que essa data, 9 de dezembro? Ela coincide exatamente com esse período mais negro, já que eles me ‘esqueceram por um mês na cela’. (...) Todos sabiam que eu estava lá (...) Isso era – e continua sendo – ilegal em relação às leis trabalhistas e a qualquer outra lei, mesmo na ditadura dos decretos secretos. Além do mais, nesse período, se estivesse trabalhando, eu estaria em licença-maternidade.” (Rose Nogueira, “Em corte seco”, in Tiradentes um presídio da ditadura, Coord. Alípio Freire, Izaías Almada e J.A. de Granville-Ponce – Scipione Cultural - 1997). Palafreneiros da ditadura

O jornalista Mino Carta, em entrevista à AOL, em 2004, quando se completavam 40 anos do golpe, comenta as relações da FSP com a ditadura: “A Folha de S.Paulo não só nunca foi censurada, como emprestava a sua C-14 [carro tipo perua, usado para transportar o jornal] para recolher torturados ou pessoas que iriam ser torturadas na Oban [Operação Bandeirante]. Isso está mais do que provado. É uma das obras-primas da Folha, porque o senhor Caldeira [Carlos Caldeira Filho], que era sócio do senhor Frias [Octavio Frias de Oliveira], tinha relações muito íntimas com os militares. E hoje você vê esses anúncios da Folha – o jornal desse menino idiota chamado Otavinho [Otavio Frias Filho] –, esses anúncios contam de um jeito que parece que a Folha, nos anos de chumbo, sofreu muito, mas não sofreu nada. Quando houve uma mínima pressão, o sr. Frias afastou o Cláudio Abramo da direção do jornal. Digo que foi a “mínima pressão” porque o sr. Frias estava envolvido na pior das candidaturas possíveis, na

sucessão do general Geisel. A Folha estava envolvida com o pior, apoiava o Frota [general Sílvio Frota, ministro do Exército no governo Geisel]. O Claudio Abramo foi afastado por isso.” (“A mídia implorava pela intervenção militar”. Entrevista com Mino Carta. Por Adriana Souza Silva, da Redação, abril de 2004) O testemunho

A historiadora e pesquisadora carioca doutora Beatriz Kushnir, autora do mais completo trabalho sobre o comportamento da grande mídia comercial durante a ditadura, Cães de Guarda, é lembrada pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, em sua “Conversa Afiada” de 20 de fevereiro, a propósito da FSP: “Como demonstrou Beatriz Kushnir (...), a Folha cedia as vans para o Doi-Codi fazer diligências, levar suspeitos para as sessões de tortura

Diário oficial da repressão

Mas não pensem os leitores que a história da empresa Folha da Manhã (propriedade da família Frias), da qual

Reproduzo aqui as cartas enviadas à Folha de S.Paulo, pelos professores Maria Victoria Benevides e Fábio Comparato, que faço questão de subscrever publicamente. E no pé, para conhecimento dos leitores, a nota da redação da Folha de S.Paulo. Maria Victoria de Mesquita Benevides, professora da Faculdade de Educação da USP (São Paulo, SP): “Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de ‘ditabranda’? Quando se trata de violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar ‘importâncias’ e estatísticas. Pelo mesmo critério do editorial da Folha, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi ‘doce’ se comparada com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com a senzala – que horror!”

Fábio Konder Comparato, professor universitário aposentado e advogado (São Paulo, SP): “O leitor Sérgio Pinheiro Lopes tem carradas de razão. O autor do vergonhoso editorial de 17 de fevereiro, bem como o diretor que o aprovou, deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito devido à pessoa humana.” Nota da Redação - A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua “indignação” é obviamente cínica e mentirosa.

Ameaça aos brasileiros

Dadas essas breves pinceladas sobre a trajetória da Ilustre Folha, cabe chamar a atenção para um importante aspecto que é o verdadeiro significado da nota e da agressão contra os professores Maria Victoria e Comparato: ao atacar tão virulenta e desrespeitosamente essas duas figuras que merecem toda a admiração do nosso povo e de todos os homens e mulheres que lutam por uma sociedade democrática e justa, onde os direitos humanos e todos os direitos dos cidadãos sejam respeitados, o que pretende a Folha de S.Paulo, sua direção, é ameaçar todos os que se oponham à sua visão de mundo e aos seus objetivos. Aliás, entendemos que caberia ao governador José Serra, seu partido e seus aliados do DEM – de quem a FSP é deslavado cabo eleitoral, transgredindo todas as normas éticas e legislação eleitoral – manifestarem-se publicamente a respeito desse episódio que, sem dúvida alguma, os compromete. Alípio Freire é jornalista e escritor, foi presidente da Associação Brasileira de Imprensa – Seção São Paulo (1978-1979) e editor de Política Internacional da Folha de S.Paulo (1977-1979). Preso político (1969-1974), pertence hoje aos conselhos editoriais do jornal Brasil de Fato, da Editora Expressão Popular e da Revista Fórum, além de integrar o Conselho Político da revista Teoria & Debate. Colabora ainda com diversas publicações populares e de esquerda.


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brasil Divulgação/Monsanto

Biologia sintética, uma arma desconhecida CIÊNCIA Nova tecnologia que permite a criação artificial de organismos vivos já está sendo aplicada no Brasil e nos EUA Michelle Amaral da Redação OS IMPACTOS relacionados à produção do etanol com a utilização de transgênicos e a produção do etanol celulósico estão sendo sorrateiramente agravados por uma nova tecnologia, altamente complexa e ainda desconhecida por muitos: a biologia sintética. Tal tecnologia permite que se criem artificialmente organismos vivos para variados fins. No caso da produção dos agrocombustíveis, por exemplo, grandes grupos transnacionais têm investido na criação de micróbios que aceleram o processo de fermentação dos materiais orgânicos para extração do álcool. Os danos que a utilização da biologia sintética, para a produção de agrocombustíveis, bem como de outros produtos, possam causar ao meio ambiente são ainda desconhecidos. A tecnologia tem sido desenvolvida por grandes transnacionais, que avançam em suas pesquisas sem nenhum controle por parte dos governos. De acordo com a mexicana Silvia Ribeiro, pesquisadora do Grupo ETC, as aplicações da biologia sintética são muitas e abrangem até a criação de novas armas biológicas. No entanto, um dos objetivos mais caros para as empresas que estão investindo atualmente é o desenvolvimento de novas formas de combustíveis agroindustriais (incluindo o processamento de monocultivos de árvores), novos combustíveis e também novos materiais, como por exem-

plo substâncias que podem substituir o plástico. Uma realidade

A pesquisadora revela que, ao contrário do que se poderia prever, o desenvolvimento dessa nova tecnologia e sua aplicação já são realidade em alguns campos, principalmente no Brasil e nos Estados Unidos. De acordo com ela, existem pelo menos dois contratos de uma das principais empresas de biologia sintética – Amyris Biotech – no Brasil: um com Crystalsev

“[Existem dois projetos no Brasil] para processar a cana-de-açúcar com micróbios da biologia sintética, mas isso é apenas o começo”, afirma Silvia Ribeiro e outro com a Votorantim. “Em ambos os casos para processar a cana-de-açúcar com micróbios da biologia sintética, mas isso é apenas o começo”, relata. Nos Estados Unidos, a DuPont (associada com Tate&Lyle, agora propriedade da Bunge) já instalou uma “biorrefinaria” em Tennessee para produzir Sorona, uma substância parecida com o nylon, a partir do milho. “Apesar de alguns ambientalistas con-

siderarem que isso é bom, porque substitui o plástico derivado do petróleo, Sorona não é decomposto nem biodegradável e, ainda pior: para produzir 45 mil toneladas deste ‘nylon’, são requeridas mais de 150 mil toneladas de milho”, descreve Ribeiro. Riscos

O impacto imediato que a utilização dessa nova tecnologia na produção agroindustrial pode trazer à biodiversidade é o agravamento da disputa por terra, água e nutrientes, além do aumento exponencial de contaminação com agrotóxicos e transgênicos, explica a pesquisadora. Mais do que isso, Ribeiro faz um alerta sobre o tipo de tecnologia que se pretende usar: “Trata-se de micróbios artificiais, mas vivos, e mesmo que as empresas o desenvolvam em tanques de fermentação, não existem medidas de biossegurança para evitar que possam haver escapes à natureza. Ninguém sabe o que pode acontecer com a interação desses micróbios no ambiente”. Além disso, Ribeiro explica que, por ser nova e protegida pelas grandes transnacionais, não há nenhuma regulação no mundo inteiro para a utilização da biologia sintética, o que contribui para o seu avanço e também para o aumento de riscos à biodiversidade. “Os proponentes da tecnologia querem estabelecer ‘códigos de conduta’ que sejam aplicados pelas próprias empresas, sem verificação nem controle independente, o que é absurdo”, protesta.

Sociedade parece indefesa frente ao “avanço” científico Para engenheiro, academia deve se mobilizar no sentido de obter mais informações sobre o que acontece nos laboratórios da Redação O engenheiro agrônomo Horácio Martins de Carvalho, membro da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), ressalta a dificuldade que os movimentos sociais e a sociedade têm para se defender de tecnologias como a biologia sintética. De acordo com ele, falta um maior envolvimento do mundo acadêmico às questões populares, já que ele, com suas propriedades intelectuais, teria mais condições de se contrapor a tais avanços tecnológicos. “É uma área extremamente delicada, difícil por causa do alto nível de desenvolvimento científico. Nós temos uma dificuldade de envolver a universidade a favor dos interesses populares, pa-

ra denunciar o que se passa numa velocidade fantástica”, afirma Carvalho. O engenheiro agrônomo explica que os movimentos sociais têm dificuldades de acesso à informação sobre o que se passa nos laboratórios das transnacionais, garantidos pelo direito à patente. “Com a propriedade intelectual que vigora hoje no Brasil e com a precariedade do controle da segurança biotecnológica que está ainda sob a pressão das multinacionais, e o Brasil cedendo à pressão delas, tudo leva a crer que a biologia sintética vai entrar no país, como entrou a nanotecnologia [manipulação de partículas subatômicas], sem qualquer controle a partir do governo ou de um controle social do que vai ser usado”, prevê. Mobilização acadêmica

Para ele, é necessário que haja uma mobilização do mundo acadêmico em prol das causas populares, para que se tenha acesso à informação do que é feito nos laboratórios e o que está sendo introduzido nos produtos, que são de consumo popular. “Nós vamos acabar consumindo produtos alimentares, produtos terapêuticos, medicinais, va-

mos usar farinha láctea, fermentos em alimentos etc., remédios que já estão sendo adotados a partir da biologia sintética sem que saibamos”, prevê Carvalho. Ele ainda acrescenta que é necessário “exigir uma legislação que nos respalde, no sentido da precaução, de que novos produtos devem viver um período de teste para verificar seus impactos”, defende. Além disso, a pesquisadora Silvia Ribeiro, do Grupo ETC, orienta que, para se contrapor ao avanço dessa tecnologia, os movimentos precisam se pautar cada vez mais sobre ela, de modo a conhecer seus impactos e reais ameaças. “É importante incorporar o tema da biologia sintética e outras tecnologias novas, como a nanotecnologia, e sua discussão e rechaço às agendas dos movimentos e organizações e seus campos de ação em muitos níveis, já que são avanços que acontecem muito rápido, com potenciais impactos econômicos, ambientais e sociais enormes”, ressalta. Carvalho lamenta que “o que nós temos hoje de fato é uma perda do controle popular sobre a produção científico-tecnológica que afeta diretamente a vida e a saúde das pessoas”. (MA)

Empresas envolvidas no desenvolvimento de produtos a partir da biologia sintética

Quem investe no desenvolvimento da tecnologia

Produção de agrocombustíveis Amyris Biotech, Gevo, Mascoma, Synthetic Genomics, LS9, ProtoLife

Petroleiras Shell, BP, Marathon Oil, Chevron, ConocoPhillips

Produção de plásticos DuPont, Bunge, Genecor, Telles Co, ADM (Archer Daniel Midland) e Metabolix

Cerealistas ADM (Archer Daniel Midland), Cargil, Bunge, Louis Dreyfuss

Produção de nylon (chamado Sorona, para substituir os plásticos) DuPont associada a Tate&Lyle, propriedade da Bunge

Sementeiras e produtoras de transgênicos e agrotóxicos Monsanto, Syngenta, DuPont, Dow, Basf

Fármacos e Químicos Industriais Codexis associada a Shell, Merck, Schering Pough, Bristol-Myers Squibb e Pfizer, LS9

Financeiras Virgin Group

Tecnologias para produção de etanol avançam sem controle Mecanismos desenvolvidos por transnacionais aumentam as ameaças à biodiversidade e à soberania alimentar e energética da Redação Apesar dos inúmeros alertas feitos por movimentos sociais e ambientalistas acerca dos danos que a expansão da produção do etanol causa à biodiversidade, diversas tecnologias têm sido lançadas e aperfeiçoadas por grandes transnacionais que visam à consolidação do produto no mercado mundial. Silvia Ribeiro, pesquisadora mexicana do Grupo ETC, afirma que as seis empresas que controlam a produção de transgênicos em todo o mundo – Monsanto, Syngenta, DuPont, Bayer, Basf e Dow – já têm investigações e investimentos na produção de novos cultivos transgênicos dedicados aos agrocombustíveis. De acordo com ela, estão sendo desenvolvidas plantas resistentes a múltiplos agrotóxicos ao mesmo tempo, assim como também existem projetos da Monsanto e Syngenta para introduzir cana-de-açúcar transgênica no mercado brasileiro, em parceria com o Centro de Tecnologia da Canavieira (CTC). A pesquisadora explica que, em resposta aos estudos que comprovam que os agrocombustíveis competem com a produção alimentar, tais empresas alegam que farão cultivos transgênicos mais específicos para a produção de etanol, o que, na avaliação de Ribeiro, “é muito grave, porque

a contaminação transgênica se torna um grande risco para a cadeia alimentar”. Tal avanço tecnológico, explica, representa um enorme estímulo aos monocultivos industriais “que aumentarão o deslocamento da produção camponesa e familiar para fins alimentares, além de elevar os impactos ambientais e à saúde e ampliar a dependência com as transnacionais”. Etanol celulósico

Dentre as novas formas de produção do etanol desenvolvidas atualmente, está o etanol celulósico, que é obtido a partir de madeira decomposta, submetida a um processo de fermentação através de enzimas. Segundo o engenheiro agrônomo Horácio Martins de Carvalho, membro da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), esse agrocombustível pode ser produzido a partir de qualquer tipo de madeira, assim como de bagaço da cana-de-açúcar e palha do milho, permitindo, assim, que o etanol seja produzido mundialmente. “Com essa mudança no tipo de oferta do etanol, abre-se uma possibilidade mundial de países do Norte e da Europa produzirem etanol a partir das suas florestas de pinheiros ou de outras matérias secas”, conta. Porém, ele alerta para o fato de que a consolidação mundial do produto – agora não mais somente para a pro-

Combinação com os transgênicos A biologia sintética “complementa e aumenta os riscos dos transgênicos”, observa Silvia Ribeiro, pesquisadora do Grupo ETC. “Chamamos essa nova tecnologia de ‘engenharia genética extrema’, já que é engenharia genética, mas com genes construídos artificialmente para conseguir propriedades que não existem na natureza nem na indústria, agregando novos genes artificiais a organismos existentes ou alterando seus passos metabólicos”, define Ribeiro.

dução de combustível, mas também de outras matérias, como o plástico –, acompanhada por essa revolução tecnológica, está sendo monopolizada pelas grandes transnacionais. Assim, não há como prever as consequências. “Essa é uma revolução que está no escuro, nós ainda estamos tateando para ver o que vai acontecer”, comenta. Martins afirma que o etanol já se tornou a segunda fonte de energia brasileira, atrás somente do petróleo, e prevê que a produção do etanol celulósico possa significar uma redução no ritmo da expansão da cana-de-açúcar. Mas alerta: “Isso é relativo, porque, assim como o Brasil abriu as portas para o capital estrangeiro, que vem sendo convidado a comprar terras no país para aumentar os investimentos, não significa que outras culturas não vão pressionar as culturas alimentares”. O engenheiro agrônomo denuncia que, no Brasil, grandes grupos de celulose, como Aracruz, Votorantim e Stora Enzo, já estão investindo em usinas de álcool, se preparando para o etanol celulósico. Em relação a tais empresas, Silvia Ribeiro acredita que possam avançar em novos experimentos na área. “É possível que também as grandes empresas de monocultivos de árvores pretendam usar árvores transgênicas para a produção de etanol celulósico”, supõe. (MA)

No caso do etanol celulósico, a tecnologia vem para supostamente facilitar o seu processo de produção. A pesquisadora revela que esse é um dos grandes objetivos das transnacionais. “A digestão de celulose para combustíveis requer tanta energia, que não era viável. Com os micróbios sintéticos e o desenho de árvores e plantas transgênicas, isso se facilita”, descreve. A pesquisadora alerta para o fato de que a tecnologia não substituirá o modo de processamento do etanol já existente, mas “irá aumentá-lo e, portanto, aumentará a demanda por terras, água e pelos monocultivos industriais de cana-de-açúcar, milho, soja, eucaliptos e outras plantas e árvores”. (MA)


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brasil

Yeda e Ministério Público fecham escolas em acampamentos sem-terra RIO GRANDE DO SUL Termo de Ajustamento de Conduta assinado entre a Secretaria Estadual da Educação e o Ministério Público Estadual determina fechamento de escolas em sete acampamentos sem-terra; medida irá atingir 400 crianças Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS) UMA experiência educacional de 12 anos e que serviu de exemplo para outros Estados pode ser encerrada no Rio Grande do Sul. O Ministério Público gaúcho e a Secretaria Estadual de Educação (SEC) assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que determina o fechamento das escolas em sete acampamentos sem-terra. O TAC prevê que até o dia 4 de março devem ser desativadas as turmas de educação infantil, ensino fundamental e de Educação de Jovens e Adultos (EJA). As crianças devem ser matriculadas na rede pública e ter transporte escolar. Caso não seja cumprido, o governo do Estado será multado em um salário mínimo por dia de atraso. O Procurador de Justiça e integrante do Conselho Superior do Ministério Público, Gilberto Thums, argumenta que o objetivo do acordo é garantir que as crianças semterra tenham o mesmo ensino da rede pública, o que não estaria acontecendo. “A gente tem um nicho de professores que são escolhidos a dedo pelo Instituto Preservar, que são afinados ideologicamente com ideias extremistas. Isso provoca um ensino completamente fora dos padrões que o Estado tem que garantir. A ideia é que tenhamos

Bia Pasqualino

um ensino com pluralidade de ideias e inclusão social”, diz. O procurador lista uma série de irregularidades. Entre elas, a infra-estrutura das escolas é precária e o poder público não estaria conseguindo fiscalizar o conteúdo programático e nem a carga horária. Thums ainda alega que o convênio entre o Instituto Preservar e o governo é ilegal, pois repassa a uma organização não-governamental o dever da educação que é do Estado.

Perseguição No entanto, a coordenadora pedagógica das escolas itinerantes, Marli Zimermann de Moraes, contesta as críticas do Ministério Público. Ela garante o cumprimento do conteúdo programático e diz que a falta de infraestrutura reflete o sucateamento promovido pelo governo. Educadores estão com salários atrasados desde julho passado e escolas não recebem material pedagógico. Além disso, o convênio permite a contratação de apenas 13 educadores e de uma merendeira por escola para cuidar de 400 crianças. Para Marli, o principal motivo para o fechamento é tentar enfraquecer o Movimento Sem Terra (MST). “Acabar com as escolas itinerantes é impedir que as famílias lutem pela terra. Porque quem vai acabar indo para a luta vai ser só quem não tem filho. Em cinco dias que a criança não vai para a escola, o Conselho Tu-

Mesmo com verba cortada, MST resiste Vinicius Mansur de São Paulo Segundo a coordenadora do setor de educação do MST, Isabela Braga, a comunidade escolar sequer foi consultada sobre o que era melhor para as 130 crianças que lá estudavam. Mesmo com as verbas cortadas, Braga afirmou que, a princípio, o trabalho não deve parar. “Nós estamos e vamos continuar com nossas escolas. É uma história de 13 anos, que foi aprovada e regimentada

pelo conselho de educação do Estado e, da noite para o dia, eles decidiram terminar com uma história construída. Não queremos prejudicar a vida escolar da criança. Se elas tiverem que sair do acampamento para ir para escolas da cidade, também vão ser prejudicadas por argumentos que não se justificam”, afirma. De acordo com Braga, essa ação está sendo feita sem conhecimento da realidade. Ela conta que os promotores alegaram, em Sarandi, que a escola seria fechada por não ensinar coisas como “hiato, ditongo, tritongo”. Mas uma das educadoras ofereceu o seu caderno de planejamento para análise e eles recusaram, afirmando que vieram somente para notificar o fechamento. (Radioagência NP)

Para promotor gaúcho, FSM reúne “terroristas e marginais” Criança em sala de aula de acampamento do MST

telar é chamado e o pai pode ir preso. A itinerante tem a especificidade de acompanhar o acampamento”, argumenta. O fechamento das escolas itinerantes é um dos desdobramentos das Ações Civis Públicas encaminhadas pelo Ministério Público no ano passado. Nas ações, promotores determinaram medidas para conter ações do MST e

até mesmo chegaram a propor a extinção do movimento, o que depois foi negado. As escolas itinerantes foram reconhecidas no Estado pelo Conselho Estadual de Educação em 1996. Baseados na experiência gaúcha, outros estados adotaram o sistema, entre eles Santa Catarina, Paraná, Piauí, Alagoas e Goiás. (Agência Chasque)

Leia declarações do promotor do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, Gilberto Thums: “Com o Fórum, para onde vieram terroristas e marginais de tudo que é espécie pagos com dinheiro público, veio também o pessoal das Farcs, da Colômbia, para mostrar aos brasileiros que a forma de reivindicação não era a que estava sendo utilizada.” “A intelectualidade é toda de esquerda. Mas é muito fácil ganhar R$ 20 mil por mês e ser de esquerda. No próprio Ministério Público temos procuradores da Justiça ganhando R$ 21 mil; e são vermelhos, esquerdistas, são do PCdoB, por exemplo.”


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Com MPF ativo, quilombolas conquistam os seus direitos João Zinclar

POVOS TRADICIONAIS No Pará e em Sergipe, procuradores federais defendem terras quilombolas e apostam em “efeito dominó”

Crianças pegam água de poça em pequena comunidade quilombola da Ilha de Marajó (PA)

Gurupá vê como inexplicável o fato de que um fazendeiro, no caso Liberato Castro, goze de poderes que ultrapassam os limites de um Estado repressor, “que queima, tomba casa, e nada acontece”. O juiz federal também determinou que Liberato Castro deve tomar medidas para que o seu rebanho não invada áreas cultivadas pelos quilombolas. A multa para o descumprimento dessa decisão é de R$ 5 mil. O criador de búfalos tem o direito de recorrer à sentença. Pedagogia do exemplo Fevereiro de 2009 será lembrado por essas vitórias, tanto a de Sergipe, como a da Ilha do Marajó. Entretanto, para que ocorressem foi muito importante o apoio do Ministério Público Federal junto a outros órgãos, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e prefeituras. “Foi fundamental a pressão do procurador Felício”, atesta o líder quilombola Osvaldo Batista dos Santos. Felício Pontes, o procurador federal do Estado do Pará, citado pelo quilombola, espera que, a partir da decisão relacionada à Ilha de Marajó, se desencadeie um efeito pedagógico para as outras regiões desse território, “onde outras comunidades quilombolas possam ter o direito à terra”, principalmen-

te porque “essa decisão não envolve um caso isolado”. A acusação que pesa sobre Liberato Castro vai além do cerceamento das atividades dos quilombolas e envolve também o uso da força policial do Estado. “No momento em que eles (quilombolas) começaram a se organizar e reivindicar os seus direitos, foram acusados de cometer crimes ambientais e invadir suas propriedades; nesses casos específicos o aparato policial foi usado contra os quilombolas”, explica o procurador federal do Pará. Além do processo na Justiça Federal, existe também um procedimento aberto na Corregedoria de Polícia Civil do Pará apurando a participação de servidores públicos nas ameaças à comunidade. Vários quilombolas chegaram a ser intimados a comparecer à delegacia, ou mesmo foram presos, para responder a acusações falsas do fazendeiro. “Isso é outra coisa que eu quero que sirva de exemplo”, diz Felício. Segundo ele, a Corregedoria afastou os policiais que foram acusados. “Peito” Em relação à retomada das atividades para a delimitação do território da comunidade Brejão dos Negros (SE), no dia 17, outro procurador federal, Silvio Roberto Oliveira de Amorim Júnior, concorda com

Titularizar o território e... resistir João Zinclar

Enquanto espera por processo de titulação, comunidade de Brejão dos Negros não deixará que juíza e outras figuras a intimide da Redação Junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), tanto a comunidade de Gurupás, na Ilha do Marajó, como a de Brejão dos Negros, em Sergipe, estão em processo de delimitação de suas terras. Na última, o Incra de Sergipe anunciou o reinício dos trabalhos de identificação e delimitação do território, situado no município de Brejo Grande (SE). A comunidade quilombola Brejão dos Negros tem hoje 186 famílias cadastradas no Incra/SE que se reconhecem como quilombolas. O curioso é que a desapropriação da Fazenda Batateiras tinha como objetivo principal servir à reforma agrária e assentar camponeses. Isso até o momento que os quilombolas, há cerca de três anos, iniciaram sua reivindicação do território como remanescente de quilombo. Agora, o trabalho consiste na elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território (RTID) e na consequente regularização de áreas pertencentes a comunidades tradicionais remanescentes de quilombos. Sobre a comunidade de Gurupá, um outro relatório, assinado pela

Esquemão eleitoral Sem o menor pudor, todas as secretarias do governo do Estado de São Paulo estão preparando o envio de correspondência para todos os usuários e beneficiários dos programas governamentais. A desculpa é fazer uma pesquisa sobre os serviços públicos, mas, na verdade, é uma forma do governador José Serra, do PSDB, se apresentar ao eleitorado. É o uso descarado de funcionários e dinheiro públicos para fins eleitorais. Segredo bancário O banco suíço UBS foi enquadrado pelo governo dos Estados Unidos a identificar os milhares de cidadãos estadunidenses que sonegaram impostos com a orientação daquele banco. Se a moda pega aqui, com certeza será possível localizar o dinheiro sujo do narcotráfico, os caixas dois das empresas, os depósitos ilegais nos paraísos fiscais e as propinas não declaradas à Receita Federal. Outro Brasil é possível.

Eduardo Sales de Lima da Redação EM FEVEREIRO, duas decisões importantes foram tomadas pelo poder público em relação a comunidades quilombolas. Uma, em Brejo Grande (SE), outra, em Cachoeira do Arari (PA), na Ilha de Marajó. No primeiro caso, a partir da desapropriação da Fazenda Batateiras, foi retomado o trabalho de identificação e delimitação do território para a comunidade de Brejão dos Negros, após anos de letargia, provocada, sobretudo, pela pressão local de fazendeiros. O anúncio ocorreu no dia 17. O segundo caso se trata, nas palavras do próprio procurador da República do Estado do Pará envolvido no caso, Felício Pontes, de um ato “pedagógico”. Com uma decisão inédita da Justiça Federal, Liberato Magno da Silva Castro, um fazendeiro da Ilha do Marajó, não pode mais expulsar famílias remanescentes de quilombos que vivem entre os igarapés Murucutu e Caju, em Cachoeira do Arari. E mais, se impedir a comunidade de praticar pesca e extrativismo no local, o criador de búfalos pode receber uma multa diária de R$ 100 mil. “Não podia tirar nem um cacho de açaí”, conta o líder quilombola Osvaldo Batista dos Santos. Ele é presidente da Associação dos Remanescentes Quilombolas da comunidade de Gurupá. A decisão foi tomada no dia 11 de fevereiro pelo juiz federal Antônio Carlos Almeida Campelo, da 5ª Vara Federal em Belém. “Nós temos uma luta [para regularizar o território] que dura 40 anos aqui no nosso quilombo. Hoje a gente está começando a colher essas primeiras sementes”, comemora Osvaldo. O líder da comunidade

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Comunidades são perseguidas pelo poder institucional

“Historicamente, essas populações, da região da Foz do São Francisco, foram submetidas ao trabalho servil nas fazendas de domínio de grandes posseiros” pesquisadora Rosa Acevedo Marin, da Associação das Universidades da Amazônia (Unamaz), em parceria com o Incra, confirma que as terras quilombolas de ocupação secular somam 12.852 hectares e começaram a ser invadidas há 30 anos pelo fazendeiro Liberato Castro. “Esperamos uma decisão final que reconheça a área como quilombola”, afirma o procurador

federal Felício Pontes. Segundo o líder quilombola da comunidade, Osvaldo Batista, são 146 famílias, num total de 700 pessoas. As fases posteriores ao RTID precisam passar pelo presidente do Incra e por decreto presidencial. A última fase do processo consiste na titulação do território quilombola. Segundo a Comissão Pró-Índio de São Paulo, até setembro de 2008, de 610 processos em tramitação, apenas 72 tinham seus limites identificados pelo Incra e contavam com o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Intimidação institucional Porém, enquanto aguardam as decisões do Incra, as comunidades são perseguidas pela sombra de alguns fazendeiros, políticos e servidores públicos que, segundo os quilombolas, os intimidam com o uso do poder institucional.

Felício e acrescenta que “esse tipo de atuação tem esse efeito dominó, de tocar outras instituições para verificar e para reconhecer que existe isso e que precisa haver um cuidado e um olhar a essa questão”. Para Alzeni Tomáz, da Comissão Pastoral dos Pescadores da região Nordeste, a participação do Incra, mas sobretudo do MPF – na pessoa do procurador Silvio – tem sido preponderante para “impor” limites à ação intimidatória de fazendeiros, dentre eles da juíza Rosivan Machado da Silva. “O procurador peitou essa figura e chamou as instituições do governo para dar continuidade ao processo”, atesta. Segundo o procurador, para que ocorra uma maior participação do Ministério Público Federal (MPF) em relação aos direitos dos povos remanescentes dos quilombos, é necessário compreender a situação “não como mera obrigação, mas como uma questão de justiça social e de política pública”. E, para ele, as consequências dessa participação beneficia a legitimação tanto dos órgãos públicos como das comunidades perante o restante da sociedade civil. “A construção do reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos é uma coisa que vem aflorando entre os próprios remanescentes de quilombos e as instituições públicas”, defende.

Por isso que, se na Ilha de Marajó, junto à comunidade de Gurupá, o fazendeiro Liberato Castro melindrou, em Sergipe, o caso não é tão pacífico. “A gente acha que esse processo não vai ser tão tranquilo porque os fazendeiros estão bastante fortalecidos politicamente”, acredita Alzeni Tomáz, da Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP). “Historicamente, essas populações, da região da Foz do São Francisco, foram submetidas ao trabalho servil nas fazendas de domínio de grandes posseiros”, conclui. Ela lembra que, durante anos, lideranças que apoiam a causa quilombola foram bastante perseguidas e ameaçadas, entre elas o padre Isaías Nascimento. A militante social aponta a juíza eleitoral da cidade de Neópolis, Rosivan Machado da Silva, como uma das principais responsáveis pela intimidação da comunidade. “Ela também é latifundiária e foi uma das pessoas que tentou impedir que o processo de Brejão dos Negros caminhasse”, recorda Alzeni. “Ela fez questão de estar na reunião realizada pelo Incra com a Associação Quilombola Santa Cruz”, relata Antônio Bonfim Barretos dos Santos, presidente da Associação Quilombola Santa Cruz do Brejão dos Negros. Foi nessa reunião, ocorrida no dia 17, que se anunciou a retomada dos trabalhos para que ocorra a titularização das terras da comunidade. Para Bonfim, “a presença dela intimidou algumas famílias”. O procurador federal pelo Estado de Sergipe, Silvio Roberto Oliveira de Amorim Junior, pondera, entretanto, que “o problema inicial foi superado”. Sobre o futuro, não faz previsões. “A gente não tem condição de avaliar o que outros vão fazer em função desse trabalho”. (ESL)

Repressão carioca Inacreditável, mas o fascismo e a violência contra os pobres continuam avançando no Estado do Rio de Janeiro: agora o famigerado Batalhão de Operações Especiais (Bope), especializado em chacinas nas favelas, passou a atuar na perseguição e fechamento das rádios comunitárias, que era uma tarefa exclusiva da Anatel e da Polícia Federal. Recentemente o Bope fechou cinco emissoras na Cidade de Deus. É o fim da picada! Abuso total No dia 19 de fevereiro, a Polícia Federal invadiu a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), às 5h30 da manhã, destruiu os estúdios, quebrou a antena e sequestrou os equipamentos da Rádio Muda FM, uma emissora universitária que há muitos anos presta serviços para a comunidade. O curioso é que o mandado de busca utilizado, assinado pela juíza Fernanda Soraia Pacheco Costa, é de 21 de junho de 2007. Isso é que é democracia! Enganação global A imprensa brasileira embarcou com tudo na história da brasileira Paula Oliveira, que teria sofrido agressão neonazista na Suíça. A Rede Globo se encarregou de espalhar a primeira versão do caso, dada pelo pai da moça, fez sensacionalismo sem checar as informações, e tudo acabou desmentido após alguns dias de investigação. Pior: as autoridades brasileiras acreditaram na Globo e quebraram a cara! Explicação básica Ao defender a posição do Brasil no caso do italiano Cesare Battisti, que recebeu a condição de refugiado, o famoso escritor italiano Toni Negri disse o seguinte: “Governo italiano, depois de 30 anos, quer recuperar, para fazer um exemplo, as pessoas que se refugiaram no exterior. E que se refugiaram no exterior porque na Itália havia uma condição de Justiça que era impossível de aguentar”. Claríssimo. Desemprego massivo Primeiro o governo se vangloriou de que a crise econômica internacional não afetaria o país. Quando começaram as demissões em massa, o governo declarou que só daria recursos (empréstimos) e benefícios (isenções fiscais) públicos para à empresa que não demitisse trabalhadores. Agora a crise continua provocando muitas demissões, inclusive nas empresas financiadas pelos cofres públicos. O que fazer? Luta internacional A manifestação do Dia Internacional da Mulher, em São Paulo, tem concentração marcada para as 10 horas na Praça Osvaldo Cruz, no Paraíso, com a seguinte convocatória: “8 de março de 2009, levantamos nossas bandeiras contra o capitalismo, o imperialismo, o machismo, o racismo e a lesbofobia”. Toda força para a luta das mulheres. Modelo tucano Levantamento do jornal O Estado de S. Paulo concluiu que o Estado de São Paulo tem o maior número de professores provisórios do Brasil na rede pública de ensino. De um total de 217.928 professores, 104.074 (47,8%) são temporários – situação que impede o estabelecimento de uma política sólida de educação. Vale lembrar que o Estado tem sido governado, desde 1994, pelo PSDB.


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brasil

Policiais defendem seu direito à voz SEGURANÇA PÚBLICA Policiais, esposas e parentes fecham unidades militares de Santa Catarina e montam vigílias politizadas Fotos: Aprasc

Pedro Carrano enviado a Florianópolis (SC) “OS PRAÇAS do Estado de Santa Catarina não estão em greve, mas estão permanentemente mobilizados”. Essa é uma das frases presentes nas manifestações da Associação de Praças do Estado de Santa Catarina (Aprasc), movimento composto por policiais militares e bombeiros, ao lado do movimento de mulheres, organizados em vigílias desde o início de janeiro em seis cidades do Estado. No final de 2008, as esposas e parentes dos praças desencadearam uma luta por melhores salários para os maridos, e nada menos que 34 unidades militares estiveram bloqueadas entre os dias 22 e 27 de dezembro. A maior parte das tropas ficou aquartelada e, apesar do risco da punição, muitos se somaram à luta puxada pelas próprias esposas em frente aos quartéis. Cerca de 4 mil pessoas, entre praças, mulheres e parentes, participaram ativamente. O movimento contou com o apoio da categoria, formada por soldados, cabos, sargentos e subtenentes, todos impedidos pela corporação de reivindicar direitos. Agora, a vigília é uma forma de resistência contra a criminalização dos praças que atuaram no movimento. Em Florianópolis, estão instalados no centro da capital. “A vigília é a nossa forma de nos mantermos vivos”, afirma um dos soldados. A bandeira principal da Aprasc é a Lei nº 254, aprovada em 2003 e ainda não cumprida. Com ela, a categoria tem direito a 93% de aumento dos soldos, cuja média no Estado é de R$ 1.300 – o 21º pior do país. Há três anos, os salários estão congelados. A Lei nº 254 também estabelece um limite para a diferença de salários, entre oficial e praça, de quatro vezes. O governador de Santa Catarina, Luiz Henrique Silveira (PMDB), foi reeleito em 2006 e acenava com o cumprimento das exigências. Até agora, porém, conce-

Principais exigências da Aprasc: - Justiça salarial. Reajuste de salário e efetivação da Lei 254/2003 - Isonomia salarial entre oficialato e praças. Proporção de quatro vezes entre o maior e o menor salário - Plano de Carreira - Mudança no regulamento disciplinar - Fim da repressão ao movimento deu somente 50% de reajuste. A promessa do governador transformou-se em criminalização e violência: neste instante, 17 praças ativos nas mobilizações passam pelo Conselho de Disciplina (que geralmente analisa crimes como estupros etc.). Outros cerca de cem praças estão no Inquérito Policial Militar (IPM) e no Conselho Administrativo da corporação.

“Não acreditava que a instituição que amo de coração fosse me tratar assim”, lamenta soldado Enfrentamento

Era a manhã do dia 25 de dezembro. Durante a mobilização desencadeada pelas mulheres dos praças, o governador esteve prestes a gerar um enfrentamento militar em Santa Catarina. Negouse a dialogar com a Aprasc e enviou a tropa de elite para retirar os bloqueios da frente das unidades militares. O confronto era dado como certo, uma vez que os praças não estavam dispostos a sair e montaram barricadas com as viaturas. A maioria da tropa de confiança de Silveira, porém, recusou-se a cumprir o operativo. As informações que chegavam para a Aprasc, de dentro dos quartéis, era um sinal de apoio da categoria à luta.

“Uma vez que o governador se recusou a conversar, ofendeu o movimento”, analisa o sargento Amauri Soares. O governador pediu ainda a dissolução da Aprasc e a retirada do ar do site da organização. Nesse contexto, Soares analisa que houve um salto na politização dos aprasquianos. A luta passou a ser por dignidade. A pauta política do movimento posiciona-se contra a criminalização dos movimentos sociais (fenômeno crescente nos três estados do Sul do país). No horizonte dos praças está o questionamento dos regulamentos disciplinares da corporação; a possibilidade de associar-se, reivindicar sem ser reprimido. O soldado Eliseo, 43 anos e 22 no cargo, é um dos nomes chamados no Conselho de Disciplina. “Não acreditava que a instituição que amo de coração fosse me tratar assim”, lamenta. Também indiciado, Cesar Ney Rosa, subtenente aposentado há um ano e meio, afirma que, com o enfrentamento político, os praças passam a ser vistos como categoria, não mais apenas como um braço da repressão do Estado. “Exigimos direitos sociais como toda categoria de trabalhadores”, afirma. Toda semana, o movimento realiza um ato durante o depoimento de um companheiro. “A vigília é um quartel nosso, é um quartel da liberdade, onde mantemos a chama acesa. Aqui, a qualquer momento, conseguimos mobilizar 50 pessoas. Se não fosse isso, já teríamos vários companheiros presos”, declara o soldado Eliseo.

Esposas e parentes dos praças se uniram na luta por melhores salários

Estado precisa de policiais cegos politicamente Aprasc

Sargento acredita que só assim militares podem atuar como instrumento da classe dominante

Movimento de esposas e familiares de praças conquista autonomia e visibilidade política do enviado a Florianópolis (SC)

do enviado a Florianópolis (SC) O sargento Amauri Soares, presidente da Aprasc e deputado estadual (PDT), é o representante escolhido pela categoria para atuar no parlamento, onde faz denúncias semanais do descumprimento da lei 254. Na sua análise, no marco da sociedade de classes, no qual o Estado é um instrumento da classe dominante, a força policial é incumbida da contenção do movimento social organizado e da pobreza, o que determina a hierarquia da corporação e os interesses que defende. “É preciso uma força militar cega do ponto de vista político e suficientemente disciplinada para isso, o que significa obedecer a ordem independentemente de qual seja, desde que esteja sendo dirigida pelas esferas de comando”, analisa. Essa situação faz do profissional da segurança pública um “sujeito cheio de contradições, sujeito que sofre por conta dessa condição, inclusive sem saber por que está sofrendo, daí o índice de

Mulheres que lutam

Para o sargento, “movimento social não é caso de polícia nunca”

“Não vamos vencer se o conjunto da classe não vencer”, analisa Amauri, completando: “Movimento social não é caso de polícia nunca, é para ser resolvido no espaço da política” suicídios ser maior dentro das polícias, um índice maior que a média da sociedade. Do ponto de vista de sociedade, a maioria das ordens que escutamos são absurdas. Precisamos democratizar a polícia, ainda que seja impossível sem outra forma de organização social”, avalia. Memória

Ano de 1988. A aprovação da Constituição favorece o movimento militar progressista, quando cabos e solda-

dos passam a votar. Passada a ditadura militar e a repressão dentro da corporação, um dos primeiros manifestos de peso de policiais militares e bombeiros ocorreu, de forma espontânea, em 1997, em Minas Gerais. Ali, os praças conquistaram um código de ética que permite mais autonomia ao profissional da segurança pública, em contraposição aos regulamentos disciplinares. Amauri reconhece as limitações da Constituição, mas

analisa que tem início nesse período um silencioso movimento por salários e também mais liberdade de organização no interior da Polícia Militar. Em Santa Catarina, a Aprasc foi formada em 2001. Até então não havia movimentos de praças organizados, apenas para questões recreativas. Amauri narra a história de um policial excluído por 12 anos por iniciar a organização naquela época. Hoje, no plano político, a Aprasc avança para a unidade com o movimento social. “Não vamos vencer se o conjunto da classe não vencer”, analisa Amauri, completando: “Movimento social não é caso de polícia nunca, é para ser resolvido no espaço da política”. (PC)

O Movimento de Esposas e Familiares dos Praças ganhou corpo no final de 2008. À revelia do comando da Aprasc, as mulheres decidiram fechar os comandos da Polícia Militar de Santa Catarina. Lucita Costa Pereira, uma das coordenadoras do movimento, narra que um dos batalhões da capital Florianópolis foi fechado por cerca de 300 mulheres. O movimento de mulheres começou com apenas nove delas. Logo após a primeira assembléia, decidiram fazer a paralisação por uma tarde. Como não foram atendidas, a mobilização atingiu seu ápice, atravessando os dias 22 e 27 de dezembro. “Nossos maridos não podem reivindicar salário”, justifica. Houve um fator simbólico na ocupação do quartel, na opinião de Lucita, algo que causou furor no oficialato. A mídia local fez uma cobertura de acordo com os interesses desse segmento, oferecendo as filmagens para ser instrumento da denúncia do comando da PM, narra a coordenadora. Criminalizados

No dia 12 de março, a repressão contra a Aprasc se transformará em ato nacio-

nal contra a criminalização dos movimentos sociais, em Florianópolis (SC). O objetivo da manifestação é reunir sindicatos, movimentos sociais e a militância de outros estados. Em uma conjuntura de crise do capitalismo e possível ascenso das lutas populares, a criminalização tende a se acentuar, avaliam. Uma derrota da vigília e da mobilização dos praças levaria anos para reorganizar-se, reflete Adriana Carvalho, do Comitê contra a Criminalização dos Movimentos Sociais. Ela ressalta a unidade proporcionada pela vigília entre o movimento dos praças e de outras organizações. Durante a apuração desta reportagem do Brasil de Fato, a vigília dos praças recebeu a solidariedade do Comitê de apoio à Palestina e da comunidade árabe em geral. Até mesmo o Movimento Passe-Livre (MPL) de Florianópolis, que sofre criminalização e, em certos momentos, esteve em lado oposto da barricada, contra os PMs, compareceu à vigília da Aprasc para ressaltar a identidade de classe entre os dois movimentos, na luta por direitos. O movimento social também assinou um manifesto de apoio à luta da Aprasc, no qual mais de 100 sindicatos incluíram o nome. (PC)


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brasil Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Grampos da PF revelam o poder de Sarney DENÚNCIAS Em conversas com o filho, José Sarney escancara sua influência sobre a mídia e, até mesmo, a Abin Patricia Benvenuti da Redação POUCOS DIAS depois de assumir a presidência do Senado, no dia 2 de fevereiro, José Sarney (PMDB-AP) já aparecia, mais uma vez, envolvido em denúncias. No início de fevereiro, foi divulgado um grampo realizado pela Polícia Federal contendo uma conversa telefônica entre o expresidente da República e seu filho, o empresário Fernando Sarney. O diálogo, de abril de 2008, revela uma articulação da família para usar dois dos seus meios de comunicação no Maranhão – a TV Mirante, afiliada da Rede Globo, e o jornal O Estado do Maranhão – contra o grupo que apoia o governador do Estado, Jackson Lago (PDT). Em uma das conversas, Sarney liga para Fernando e pede que o filho leve à televisão acusações contra Aderson Lago, primo do governador e chefe da Casa Civil maranhense. No diálogo, o empresário afirma que já estava preparando reportagens sobre o tema tanto na TV como no jornal que pertencem à família. Em outra gravação, Fernando pergunta ao pai se há novidades sobre seu “negócio”, provavelmente um processo que, até então, corria em sigilo na 1ª Vara da Justiça do Maranhão. Sarney respondeu que, até o momento, não haviam lhe dado nada. Já Fer-

nando avisa: “Aqui já tive notícia, aqui do Banco da Amazônia”. O senador, então, pergunta: “É, né. Da Abin?”, e o filho confirma: “Também”. O grampo foi feito pela Polícia Federal com autorização da Justiça nos telefones de Fernando, envolvido na Operação Boi Barrica, que investiga movimentações financeiras de empresas da família Sarney durante o período eleitoral de 2006, quando Jackson Lago venceu Roseana Sarney. Entre os dias 25 e 26 de outubro daquele ano, três dias antes do segundo turno, Fernando sacou R$ 2 milhões.

Ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, pode ser a aposta do grupo Sarney para retomar o poder no Maranhão via eleições, em 2010 Relações e corrupção Na avaliação do historiador e professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) Wagner Cabral da Costa, o teor das conversas entre pai e filho comprova o poder da família Sarney sobre a mídia maranhense, exercido através de sua extensa rede de comu-

nicação no Estado. Além disso, o diálogo evidencia uma teia de relações que a família vem tecendo ao longo de décadas na região, por meio de interferências em empresas de serviço público e de uma política de favorecimento com o setor privado. “Foi nesse jogo, dessas relações completamente patrimoniais, marcadas por fraudes e corrupção, que eles vão estabelecendo um campo de relações com esses diferentes setores do empresariado, principalmente construtoras”, afirma, lembrando da atuação de construtoras como a Mendes Júnior e da Odebrecht no Maranhão, cujas irregularidades já foram alvo de investigações da Polícia Federal. O setor de energia, para o historiador, representa hoje o melhor exemplo da influência de Sarney no sentido de alcançar seus objetivos. “Ele sempre teve cuidado de ter gente sua ocupando postos nesse ramo desde os anos de 1960 – os postos na Eletronorte, aqui no Estado, na Companhia Estatal de Energia (Cemar), na Eletronorte”, recorda o historiador. “Isso é funcional exatamente por conta de grandes investimentos na área da construção de hidrelétricas, de contratos, essas coisas todas, e também na negociação que esse setor vai fazer com as indústrias de alumínio, que usam eletricidade de uma forma extremamente intensiva”, pontua.

TSE adia julgamento de Jackson Lago Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Acusado de irregularidades eleitorais em 2006, governador do Maranhão pode perder o mandato

Recuperação do poder Embora considere que a eleição de José Sarney para a presidência do Senado seja mais uma questão política, relativa ao apoio do PMDB ao PT nas próximas eleições, Costa acredita que o prestígio político de seu novo cargo deverá ser usado principalmente para recuperar o poder em nível regional.

“Do ponto de vista do Maranhão, ele reforça a posição em qualquer cenário. Independente do que for a decisão do TSE em relação à cassação de Jackson, Sarney vai ter um cenário extremamente interessante para estruturar e organizar as candidaturas dele à disputa estadual de 2010”, analisa. E uma possível sucessão

da Redação

O governador do Maranhão, Jackson Lago

(MST), classificou como absurda a tentativa de cassação, mas acredita em um resultado positivo. “Acho difícil cassar um governador de Estado, principalmente um governador com força popular ao seu lado, como é o caso do governador Jackson Lago”, afirmou. Já o ex-senador João Capiberibe relatou a perseguição política, por parte do PMDB, da qual foi vítima em 2005, e que resultou na cassação de seu mandato e o de sua esposa, a deputada federal Janete Capiberibe (PSB-AP). No lugar de Capiberibe, assumiu Gilvan Borges, um dos aliados de Sarney. “É uma lástima que a ambição pelo poder possa levar o senador Sarney a fazer coisas tão condenáveis, tanto contra o povo do Maranhão como contra o povo do Amapá”, lamentou Capiberibe.

Sob suspeita Uma possível cassação de Lago, no entanto, não garantiria Roseana como a nova governadora do Maranhão, já que a senadora também enfrenta processos de abuso de poder econômico e pagamento de despesas eleitorais durante as eleições de 2006.

As irregularidades foram denunciadas por Aderson Lago (PSDB), também candidato a governador em 2006 e primo Jackson Lago; e pelo candidato a deputado pela coligação União Democrática, Celso Augusto Ribeiro. De acordo com eles, Roseana seria responsável pela doação de R$ 168,7 mil para a coligação União Democrática Independente (formada pelo PSL, PTC e PCdoB), em troca de apoio político dos três partidos. Os recursos teriam sido incluídos na prestação de contas do então partido da senadora, o PFL (atualmente DEM). Em 13 de abril de 2007, o procurador regional eleitoral do Maranhão, Juraci Guimarães Júnior, decidiu pela inelegibilidade de Rosana por três anos. Em novembro do mesmo ano, porém, o Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão (TRE-MA) derrubou o parecer do procurador regional e deu ganho de causa à senadora. Com a derrota no Tribunal maranhense, os autores da denúncia recorreram ao TSE. O caso aguarda, agora, parecer da Procuradoria Geral Eleitoral (PGE). (PB)

da família em 2010 no Maranhão, segundo o historiador, pode sair do próprio setor de energia. A publicidade e a mídia sobre o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, por conta sobretudo de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Estado, seriam um indicativo de que ele está nos planos de José Sarney.

Aliados de Sarney preparam império de comunicação na Amazônia Afiliado do oligarca pleiteia 321 concessões de rádio e televisão na região

da Redação O Superior Tribunal Eleitoral (TSE) adiou novamente, no dia 19 de fevereiro, o julgamento que pode determinar a cassação do mandato do governador do Maranhão, Jackson Lago (PDT). Pouco antes do início da sessão, o ministro Fernando Gonçalves passou mal e não pôde participar do julgamento, que ficou previsto para o dia 26 de fevereiro. Lago é acusado de compra de votos e abuso de poder econômico e de comunicação durante as eleições de 2006. Para entidades da sociedade civil e movimentos sociais, no entanto, a cassação seria uma tentativa de golpe da família Sarney, que está movendo o processo em nome da coligação “Maranhão – a Força do Povo”, que apoiou a candidata Roseana Sarney, segunda colocada no pleito e que poderia assumir o governo no lugar de Lago. No dia 18 de fevereiro, representantes de organizações populares e movimentos sociais e lideranças políticas e sindicais iniciaram uma vigília, em São Luís (MA), em apoio a Lago. A mobilização terminou no dia seguinte, com uma caminhada pela capital maranhense até o Palácio dos Leões, sede do governo. Presente no ato, João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

Presidência do senado pode ser usada por Sarney para recuperar poder regional

Além de possuir seu próprio conglomerado de comunicação no Maranhão, a família Sarney ainda conta com aliados que planejam construir o maior império de comunicação da Amazônia. É o caso de Gilvan Borges (PMDB-AP), afilhado do presidente do Senado, Jo-

sé Sarney, e membro da Comissão de Comunicação do Senado. Segundo um levantamento do blog Caneta sem Fronteiras, do jornalista e publicitário Walter Júnior, a família Borges possui atualmente 321 processos, entre pedidos de concessão e concessões já liberadas de emissoras de rádios e TVs, no Ministério das Comunicações. Gilvan Borges pleiteia 154 concessões de rádio e dois canais de TV no Amapá, Pará, Maranhão e Tocantins. No entanto, para não correr o risco de perder a concessão, o senador participa do processo com pelo menos duas empresas, a Beija Flor Radiodifusão Ltda., dele próprio, e a SBC Radiodifu-

são, de seu irmão Geová Pinheiro Borges, o que lhe dá uma óbvia vantagem sobre os demais participantes. Em alguns processos, ele também conta com o reforço de mais uma empresa da família, a Tropical Radiodifusão Ltda., do também irmão Reginaldo Pinheiro Borges. Com isso, o total de solicitações de concessões da família alcança 321, duas vezes mais do que o número que vinha sendo publicado na imprensa. Se todas as solicitações forem atendidas, a família Borges será a maior concessionária de emissoras de rádio do mundo e dominará o setor de comunicação em quatro estados da Amazônia. (PB)

Relatório aponta irregularidades no TJ do MA CNJ aponta nepotismo, corrupção, má administração de recursos públicos e morosidade na condução de processos da Redação Mais uma denúncia, agora envolvendo o Judiciário maranhense, veio se somar à série de escândalos que envolvem o presidente do Senado, José Sarney, referente ao tempo em que sua família governava o Estado. No final de janeiro, foi divulgado um relatório elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que revela casos de nepotismo, corrupção, má administração de recursos públicos e morosidade na condução de pro-

cessos no Tribunal de Justiça do Maranhão. As irregularidades foram dectectadas durante um mês de fiscalização da corregedoria do CNJ, chefiada pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Gilson Dipp. Um dos problemas mais graves, de acordo com o documento, é o número de servidores empregados nos gabinetes de desembargadores (até 18 em cada gabinete), além de pagamento indevido de diárias a magistrados. O Conselho também constatou bloqueios judiciais em

contas de bancos no Maranhão em favor de desembargadores, juízes e promotores de Justiça, todos autores de ações de restituição de contribuições previdenciárias. Antes da divulgação do relatório do CNJ, o desembargador do TJ-MA Antonio Bayma Araújo já havia denunciado que juízes do Estado tiveram condutas “não recomendáveis”, principalmente durante as eleições de 2008, e que a corregedoria do Tribunal estaria fazendo “corpo mole” para apurar as possíveis irregularidades. (PB)


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américa latina

Crise e rearticulação da oposição são os próximos desafios do chavismo VENEZUELA Queda no preço do petróleo pode levar governo a ter de diminuir gastos com programas sociais; oposição escolhe, agir localmente como nova estratégia, para recuperar espaço perdido no Parlamento visando às eleições de 2010 Bernardo Londoy

Manuela Sisa de Caracas (Venezuela) A VITÓRIA no referendo da emenda constitucional, que colocou fim ao limite para a reeleição aos cargos públicos na Venezuela, trouxe novos e velhos desafios para o governo do presidente Hugo Chávez. Antes de competir a um terceiro mandato, para o qual Chávez já anunciou ser “pré-candidato”, o governo chavista terá de terminar os quatro anos que ainda lhe restam de seu segundo mandato na presidência da República. E pela frente terá de enfrentar a crise financeira internacional e a rearticulação da oposição para recuperar espaços políticos perdidos ao longo da última década. No campo econômico, o principal desafio, em curto prazo, será amenizar os efeitos da crise financeira, a qual afeta a economia venezuelana por conta da queda abrupta dos preços do barril de petróleo. De julho de 2007 até o início deste ano, o preço do combustível sofreu uma queda de 70%, passando de 147 dólares a 35 dólares o barril. Programas sociais Analistas advertem que dependendo do tempo de duração desta crise, o governo poderá ser levado a reduzir o gasto público, medida que pode afetar diretamente as classes populares, principal base de sustentação do governo. “Até agora foi possível financiar ambiciosos programas sociais (com a renda petroleira), ao mesmo tempo que esse capital continuava seu fluxo entre os ricos e a classe média. Agora, é pouco provável que isso possa continuar”, afirmou ao Brasil de Fato Daniel Hellinger, analista político estadunidense e especialista em Venezuela. É do petróleo que provêm 93% das divisas que ingressam no país, e é com ele que o governo financia quase que a totalidade do gasto social destinado às Missões (programas sociais) – cujo alcance consolidou a base de sustentação do governo junto às classes populares. Chávez, porém, “garantiu” que, “apesar da crise”, não diminuirá o orçamento das missões porque “são sagradas e são a vida do povo”, afirmou o presidente em um ato público, no dia 20 de fevereiro. O governo afirma que poderá manter o gasto social com o uso das reservas internacionais, estimadas em 82 bilhões de dólares, de acordo com cálculos do Centro de Pesquisas de Política Econômica (CEPR, na sigla em inglês) de Washington. De acordo com a CEPAL, as missões foram responsáveis pela redução da pobreza venezuelana na última década. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, de 1998 a 2008, a taxa de pobreza caiu de 54% para 26% da população. “Os três erres” No discurso de celebração da vitória no dia 15, Chávez advertiu que 2009 será um ano de “consolidação” dos projetos implementados até agora pelo governo, sinalizando que não abrirá novas “frentes” no ano da crise. Ao mesmo tempo em que Chávez considerou a vitória como um feito “histórico”, repetiu o discurso da derrota no referendo em 2007, ao prometer relançar a política dos “três erres”. “Revisão, retificação e reimpulso”, anunciou. Na avaliação do analista político Luis Lander, da Universidade Central da Venezuela, essas mudanças devem obrigar o governo a ter uma política muito mais austera do que a praticada nos últimos anos. “O problema é se o governo cumprirá com a promessa ou se ficará apenas na retórica, como ocorreu depois da derrota de 2007”, afirmou. Entre outras prioridades, Chávez prometeu combater a criminalidade, a corrupção e a burocracia.

Quanto De julho de 2007 até o início deste ano, o preço do petróleo sofreu uma queda de 70%, passando de 147 dólares a 35 dólares o barril.

Venezuelanos favoráveis ao presidente Hugo Chávez festejam a vitória no referendo da emenda constitucional

Chavismo recupera eleitores; oposição também avança de Caracas Contrariando as pesquisas de opinião de voto que apontavam uma vitória apertada do governo no referendo, a emenda constitucional foi aprovada com mais de 1 milhão de votos de diferença em relação ao “Não” defendido pelos opositores. De acordo com o Conselho Nacional Eleitoral, com 99% das urnas apuradas, o “Sim” obteve 6,319 mil votos (54%) contra 5,198 mil (45%) dos que apostaram no “Não”. “Isso se chama nocaute, compadre!”, comemorou Chávez no ato de promulgação da emenda constitucional, dia 20. O resultado final mostra que o chavismo recuperou cerca de 2 milhões de votos em relação ao referendo da reforma constitucional de 2007, quando o governo saiu derrotado. Naquela ocasião, 4,3 milhões de venezuelanos votaram a favor da proposta oficialista, enquanto 4,5 milhões de eleitores a rechaçaram.

Para o sociólogo Edgardo Lander, será a partir de experiências locais que a oposição tratará de convencer os venezuelanos que podem ser uma alternativa ao chavismo nas eleições de 2012 O auge do número de votos conquistados por Chávez foi em 2006, quando o mandatário foi reeleito com mais de 7,3 milhões de votos. Nesse período, a diferença em relação à oposição foi superior a 20%. “No referendo da emenda, no entanto, foi a primeira vez que uma proposta do presidente recebeu a rejeição de mais de 5 milhões de eleitores”, afirmou Luis Lander. Maioria no Congresso Na avaliação do sociólogo, se essa tendência de crescimento de

opositores se mantiver, a próxima batalha do governo será nas eleições de 2010, quando se definirá a composição do novo Parlamento. Ali, a oposição tenderá a apostar todas as suas “fichas” para recuperar o espaço perdido em 2005, quando decidiram abandonar as eleições com o objetivo de deslegitimar o pleito tanto interna como externamente. A estratégia não funcionou e o governo conquistou todas as cadeiras da casa, maioria com a qual vem governando há cinco anos. E na disputa desse espaço, de acordo com o sociólogo Javier Biardeau, a oposição apresentará seus principais dirigentes para competir com os atuais deputados chavistas. “Os representantes da oposição que se candidatarão ao Parlamento estão melhor preparados que os chavistas para travar uma disputa na casa”, afirmou. “Se esse grupo conseguir recuperar uma quantidade de espaços importantes, poderá atuar, inclusive, para criar uma crise de institucionalidade que o governo terá de enfrentar com o risco de não ter uma maioria (qualificada) no Congresso”, afirmou Biardeau. Vitrine local Na opinião de analistasa gestão pública dos municípios e estados conquistados pela oposição nas eleições regionais do ano passado será a “vitrine” por meio da qual os antichavistas tendem a competir com a administração oficialista. No município de Sucre, em Caracas, onde encontra-se a Petare – a maior favela do país – o prefeito Carlos Ocariz, do partido Primeiro Justiça (direita), anunciou um plano de recuperação do espaço público, incluindo a coleta de lixo e o combate à criminalidade, problemas que o chavismo até agora tem sido incapaz de solucionar. Para o sociólogo Edgardo Lander, professor da UCV, será a partir de experiências locais que a oposição tratará de convencer os venezuelanos de que podem ser uma alternativa ao chavismo nas eleições de 2012. “O governo parece que ainda não se deu conta disso (...) De um lado está Chávez, falando da revolução; de outro, os opositores, recolhendo o lixo”, afirmou. (MS)

Rumo ao terceiro mandato? de Caracas Os analistas ouvidos pelo Brasil de Fato advertem que “ainda é cedo” para avaliar se o presidente Chávez poderá ser reeleito com facilidade nas eleições presidenciais de 2012. No cenário presidencial, a ofensiva da oposição tende a não ser a mesma que esse grupo pretende implementar nas esferas municipal e parlamentar. Na opinião do analista político Luis Lander, a diversidade de correntes de pensamento na composição do antichavismo impede a construção de uma plataforma única capaz de enfrentar o presidente venezuelano.

A oposição tende a repetir a fórmula utilizada na candidatura de 2006, cujo candidato, Manuel Rosales, tinha como única plataforma política a promessa de um país sem Chávez “A oposição vai desde setores de ultradireita, que defendem abertamente um modelo neoliberal, a uma corrente social-democrata. Colocar de acordo tudo isso em um único projeto de país é quase impossível”, afirmou. A seu ver, a oposição tende a repetir a fórmula utilizada na candidatura de 2006, cujo candidato, Manuel Rosales, tinha como única plataforma política a promessa de um país sem Chávez. “Em quatro anos será difícil para a oposição construir uma força política coerente, com projeto próprio”, afirmou.

Para Luis Lander, se a divisão opositora se mantiver, continuará prevalecendo a lógica de que somente “Chávez derrota Chávez”. Isso quer dizer que na prática, somente um fracasso da administração do governo poderá retirar o presidente venezuelano do poder, não necessariamente um programa da oposição que seja capaz de superar o chavismo. A maneira como reagirá à crise financeira poderá determinar os rumos do governo a partir de agora. “Se a crise afetar a economia de maneira moderada, dificilmente a oposição chegará à presidência, mas se o impacto for severo, Chávez poderia perder as eleições”, afirmou Lander.

Mudanças concretas O analista político Carlos Romero pondera. Na sua opinião, além da economia, o “fator Chávez” nesse caso tem que ser considerado. “A relação que Chávez mantém com o povo pode ser um ‘amortecedor’ que tende a amenizar os efeitos da crise no imaginário popular”, afirmou. A relação política, mas também emocional, que o presidente venezuelano mantém com seus simpatizantes foi demonstrada uma vez mais nas urnas com a aprovação da emenda. Na opinião de Javier Biardeau, porém, grande parte da base de apoio chavista “não votou de maneira incondicional e exigirá mudanças concretas por parte do governo”. Chávez, até agora, dá sinais de ter entendido a mensagem enviada através das urnas. “O povo ratificou sua confiança e temos que estar à altura, não podemos defraudar a confiança popular (...) o socialismo não vai chegar do céu. Ou fazemos nós mesmos ou nunca existirá”, afirmou o mandatário ao promulgar a primeira emenda à Carta Magna de 1999 . (MS) Bernardo Londoy

Antichavismo impede construção de plataforma única


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américa latina Fotos: Igor Ojeda

A guerrilha musical de Fidel

Do próprio bolso

QUINTETO REBELDE Em plena Sierra Maestra, banda cubana tocava para desmoralizar os inimigos e alegrar os revolucionários Igor Ojeda e Tatiana Merlino de Bartolomé Masó (Cuba) EUGENIO estava aterrorizado. Sua barriga, e seu corpo inteiro tremiam. Via-se em uma trincheira, em pleno combate. Balas e bombas voavam de um lado para o outro, e o barulho da batalha era ensurdecedor. A certa altura, um morteiro cai em uma área próxima. Alguém ao lado provoca os adversários: “Isso é um morteirinho! Afinem a pontaria!”. A “súplica” parece ter sido ouvida. Logo em seguida, outro morteiro cai dentro da trincheira. A explosão é tão grande que levanta Eugenio do chão e o joga longe. Outro combatente exclama: “Andem, andem!”. Eugenio sai correndo. Quando para, reclama de uma dor no peito. Os homens a seu lado riem e atenuam: “Menos mal que você não caiu nas mãos do inimigo para ver como seria a coisa!”. Com sua família, Eugenio participava do combate de Santo Domingo, na Sierra Maestra, em Cuba, em meados de 1958, um dos períodos mais decisivos da guerra entre o Exército Rebelde, de Fidel Castro, e as forças do ditador Fulgencio Batista. Mas, ao contrário de seus companheiros, não carregavam pistolas nem fuzis.

Já durante as intensas batalhas, Fidel Castro chama, outra vez, o pai de Eugenio: “Medina, vocês têm que se preparar porque vão ao combate, vão combater com a música” Na verdade, as armas que levavam nas mãos eram instrumentos musicais: violão, maraca, marimba, clavicórdio, bongô. Eugenio e sua família formavam o Quinteto Rebelde, grupo musical idealizado por Fidel que, desde 1957, contribuía com a revolução entretendo a guerrilha nas montanhas do oriente cubano. Semianalfabeto, Eugenio tinha então 16 anos e era o mais jovem dos músicos. Na época, mal entendia as motivações da insurreição armada à qual servia. Hoje, mais de meio século depois, aos 67 anos, é capaz de conversar com propriedade sobre os mais diversos assuntos. Fala com a mesma naturalidade com que abre sua casa à reportagem, como quem recebe a visita de um amigo antigo. Extrovertido, gesticula, faz caretas, vira os olhos, sorri, gargalha e conta os detalhes da história que viveu. E não foi uma história qualquer. Encontro com os rebeldes Tudo começou em 1957, quando seu pai, Osvaldo Medina Parra, comprou um pedaço de terra na Sierra Maestra para viver com a esposa e os dez filhos. “Quando chegamos, na primeira semana já conhecemos os rebeldes. Tinham nos dito que havia um bandido na serra, que se chamava Fidel Castro”, lembra. O pai, que era

então membro do Partido Ortodoxo – de caráter progressista –, já conhecia o Movimento 26 de Julho, organização criada pelo líder revolucionário. Mas o primeiro contato foi com um desertor do Exército Rebelde que bateu à porta da casa da família pedindo ajuda. O homem havia levado uma surra e estava urinando sangue. “Chegou à minha mãe e disse que, se não o atendesse, ele lhe daria um tiro ali mesmo, porque estava muito doente. Ela correu e lhe deu um par de sapatos e uma muda de roupas do meu pai.” O homem deixou o fuzil ali mesmo e partiu. Duas horas depois, os rebeldes apareceram. Seguindo o rastro do homem, chegaram à casa dos Medina, e a mãe informou que ele já havia partido. “Ele se foi. Aqui está o fuzil e sua muda de roupa. Venham que vou fazer um café para vocês”, disse ela. Foi então que os rebeldes viram os instrumentos pendurados na casa da família e perguntaram: “Quem é músico aqui?”. Nós, responderam os Medina. “Então toquem um pouquinho.” “Quando tocamos, nos disseram: ‘olhem, não sabíamos que aqui na Sierra havia pessoas que pudessem tocar como vocês’. Então, depois de 15 dias, o Fidel passou por lá e mandou nos buscar”, lembra Eugenio. Sua família criava porcos, galinhas, bovinos e plantava tubérculos. Na ocasião que recebeu o jornalista estadunidense Herbert Matthews, do The New York Times, que apresentaria o guerrilheiro à opinião pública dos Estados Unidos, Castro mandou buscar, com os Medina, carne e música. “Então, nos levaram para tocar pela primeira vez, para o jornalista e para todos os rebeldes. Estavam lá Fidel, Raúl, Camilo Cienfuegos. Nesse dia o Che não foi porque estava doente.” Músicas de luta

Algum tempo depois, em 24 de fevereiro de 1958, para rebater “as mentiras que diziam quando davam notícias”, os guerrilheiros decidem criar um novo instrumento contra a ditadura de Batista. Surgia a famosa Rádio Rebelde. Passado uns meses, os locutores da nova estação reivindicam a Fidel que, entre a veiculação das notícias, deveriam colocar música. “E que não seja de um músico ou cantor daqueles que há em Havana, porque aqui há uma revolução e os homens estão morrendo. Aqui, os filhos de Medina é que vão tocar.” A família de Eugenio foi chamada, então, para fazer um programa dominical. “Estávamos um pouco assustados. Nós nunca havíamos cantado com microfone nem nada. Aí, chega um momento em que lembram que era preciso que o grupo tivesse um nome. Depois de algumas sugestões, o técnico da estação, Eduardo Fernández, disse: ‘Vocês são cinco, e são rebeldes, então vão se chamar Quinteto Rebelde!’”. Depois do primeiro programa, no dia 14 de maio, Fidel chamou o velho Medina. “O programa foi muito bom, mas é preciso que cantem música revolucionária, que tentem criar algo que os soldados do Batista escutem e fiquem desmoralizados e, ao mesmo tempo, que deixe o Exército Rebelde alegre.”

e vêm com todo tipo de arma e aviões. E eu não sei onde vocês vão se enfiar. Porque se vocês ficarem nesse casebre, e vierem os soldados da ofensiva, só quero ver o que vocês vão fazer’. E nós: Não vamos poder cantar? ‘Sim, podem cantar, mas.. cuidemse!’”, relembra, em meio a gargalhadas.

Cabana dos Medina na Sierra Maestra

longe os Medina, o grupo esperava um pouco e voltava a tocar em seguida. “Até que um dia começamos a pedir que nos dessem armas quando estivéssemos tocando, para a gente atirar também. Queríamos disparar contra o inimigo. Porque, como tínhamos nos incorporado à Revolução, já éramos soldados. Então, Fidel dizia que a melhor arma era a gente que tinha, a arma ideológica. Mas nós não sabíamos o que ele queria dizer com ‘arma ideológica’. Ficamos esperando, e a arma ideológica nunca chegou”, diverte-se Eugenio. Para todos os efeitos, a nova estratégia funcionava perfeitamente. Os soldados de Batista não entendiam nada, já que o Exército Rebelde, segundo a propaganda oficial, era considerado um bando de homens desorganizados. “Como era possível que fizessem uma apresentação musical no meio de uma batalha? Não pode ser! Quem está desorganizado não pode fazer isso! Então ficavam parados por um tempo, pensando... era quando toda a guerrilha começava a atirar morteiro, disparar bazuca.” Che e Camilo

Eugenio Medina, um dos membros do Quinteto Rebelde

Trecho da música Respeto al Che Guevara Procura respectar al Che Guevara Evitate un problema com Fidel Las cosas de Raúl hay que pensarlas Los rebeldes son dificiles de coger Procura no encontrarte con Almeida Con Camilo, con Guillermo y otros más Hay que verle la cara a los soldados cuando los rebeldes le hacen uma embocada (...)

A demanda, no começo, foi um problema para a família: “Um analfabeto não pode fazer música. É impossível. Ainda que não seja compositor, se tem conhecimento cultural, pode fazer uma canção, mas não criar um número musical. Mesmo assim, nós criamos canções que diziam o que queríamos dizer, criamos nós mesmos, com a ajuda dos locutores da rádio. E daí surgiram ‘Hay que Cuidar a Fidel’, ‘Que Venga la Ofensiva’, ‘Respeto al Che Guevara’...”. Esta última, possivelmente representando o primeiro registro do nome do revolucionário argentino em uma música. “Estreia” em combates

Foi então que, em meados de 1958, Fulgencio Batista decide realizar uma grande ofensiva contra as forças rebeldes, com o envio de mais de 10 mil soldados à Sierra Maestra. Já durante as intensas batalhas, Fidel Castro chama, outra

vez, o pai de Eugenio: “Medina, vocês têm que se preparar porque vão ao combate, vão combater com a música”. “Depois, quando meu pai nos disse aquilo, perguntamos: ‘Não vão nos dar um fuzil?’. Não, não, sem fuzil, temos que ir com a música, respondeu o velho. Então, replicamos: E o que vamos fazer lá com a música? ‘Fidel disse que vamos desmoralizar os homens de Batista e alegrar o Exército Rebelde’, retrucou-nos. Mas o que nós vamos fazer não vai doer em ninguém, eles sim podem nos matar, respondemos. E foi quando meu pai, disse: O diretor aqui sou eu!’”, recorda Eugenio, rindo. Assim, em julho, depois de sete ou oito domingos do primeiro programa na rádio, o Quinteto Rebelde estreava em combate, na famosa batalha de Santo Domingo. Quando uma bomba ou morteiro caía perto, como o que arremessou

O sucesso do Quinteto Rebelde chegou a tal ponto que, quando foram criadas as colunas que partiriam para o ocidente do país, Camilo Cienfuegos, o chefe de uma delas, requeriu a presença do grupo, demanda negada por Fidel, que achava arriscado a presença dos Medina fora da Sierra Maestra. Camilo,assimcomoCheGuevara, convivia com frequência com a banda. Do primeiro, Eugenio lembra como um verdadeiro tirador de sarro. “Quando havia uma ladeirinha no morro, ele cortava a corda que sustentava a rede até deixar só um fiozinho. Então, quando a pessoa se sentava, a rede arrebentava e quem estava nela caía no chão.” Já o revolucionário argentino não era de “brincadeira pesada”. Com a exceção de um dia em que, quando estava na casa dos Medina, Che chamou um menino que andava por ali. “Ele tirou um canivete do bolso e lhe disse: Vem aqui, que vou te capar! O menino se assusta e sai correndo. Che não dá importância e guarda o canivete. Depois de um tempo, o pessoal começa a procurar o menino, e ele não aparece. Che se levanta e pergunta: Quem vocês buscam, o menininho com quem eu brinquei? Aí, ele mesmo começa a procurar o menino, em volta de casa.” Um irmão de Eugenio o encontra em um quarto, em cima da cama, debaixo de um paletó, dormindo. “Che veio e disse: Olhe, vou te dar uma coisa. E lhe deu uma bala.” O guerrilheiro sempre estava na casa dos Medina, cuidando de rebeldes feridos que estivessem por ali. Um dia, conta Eugenio, Che perguntou aos integrantes do Quinteto Rebelde o que cantariam no domingo seguinte. “Uma música boa: ‘Que Venga la Ofensiva’.” O argentino pediu, então, que a mostrassem. “Quando terminanos, Che nos disse: ‘Vocês sabem o que é uma ofensiva?’. E nós: Não. ‘Olhe, uma ofensiva são 10 mil homens que estão chegando para nos atacar

Já de Fidel, a lembrança de Eugenio é de que o líder guerrilheiro era um homem sério. Para ilustrar sua impressão, ele conta que, em certo momento da guerra contra as forças de Batista, o comandante da revolução pediu ao velho Medina um pedaço de sua propriedade, para que nele fosse levantado um acampamento para as tropas. O camponês e diretor do Quinteto Rebelde aceita, mas com a condição de que recebesse por isso. Fidel, então, responde que sim, iria pagar, mas quando os rebeldes triunfassem. Depois do triunfo, em janeiro de 1959, os dois voltam a se encontrar e o então primeiro-ministro de Cuba pergunta a Medina se lhe haviam pagado. Diante da negativa, lhe pede que retirasse um cheque com seu médico pessoal. “Então, meu pai foi a Havana e, cada vez que chegava a um banco, o atendente virava o cheque, de 1.500 pesos, via que estava assinado por Fidel e diziam que ali não se descontava. Até que, em um dos bancos, um funcionário disse: ‘Olhe, vá até a praça da Revolução, lá tem um banco pequeno. Entregue o cheque, lá que vão te pagar’. Meu pai foi lá, entregou o cheque, e o pagaram”. O velho Medina, surpreso, explica ao atendente que tinha ido a vários bancos e ouve, como resposta, que era naquele banco que ficava o dinheiro de Fidel. “Ele não pagou a terra com o dinheiro da Revolução! Ele pegou de seu próprio dinheiro, de seu bolso! Às vezes eu me ponho a pensar que Fidel preza tanto a Revolução que não é capaz de pegar 1.500 pesos para pagar uma coisa que é da Revolução”, admira-se Eugenio.

Fidel dizia que a melhor arma era a gente que tinha, a arma ideológica. Mas nós não sabíamos o que ele queria dizer com ‘arma ideológica’. Ficamos esperando, e a arma ideológica nunca chegou”, diverte-se Eugenio Retorno

Após o triunfo dos barbudos, o Quinteto Rebelde é chamado para fazer um programa em um canal de TV na capital Havana. “Depois de um mês, nos incorporamos ao Exército, e o grupo acabou.” Eugenio, depois de servir às Forças Armadas, passa a exercer uma série de atividades profissionais. A banda que tanto sucesso havia feito na Sierra Maestra estava quase esquecida quando, em 1981, em uma visita de Fidel Castro à Bartolomé Masó, cidade próxima à serra onde Eugenio passou a viver, o presidente cubano os reuniu novamente. Hoje, com CDs gravados, o Quinteto Rebelde já não conta com todos os seus integrantes originais. O velho Medina faleceu, e foi substituído por um neto, enquanto outro de seus membros permaneceu no Exército. Em seu lugar, entrou mais um dos filhos do líder da banda. Apesar das baixas, um novo fim do grupo está fora de cogitação, garante Eugenio. “Dizem que nós não podemos nos aposentar enquanto Fidel não o fizer. E Fidel não vai se aposentar.”


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Três dias entre balas e fuzis

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BAÍA DOS PORCOS Passados 48 anos, testemunhas vivas da invasão ao território cubano que tentou derrubar o governo de Fidel recordam a luta contra os mercenários treinados pela CIA Igor Ojeda e Tatiana Merlino de Playa Larga e Playa Girón (Cuba) NA MADRUGADA de 17 de abril de 1961, o céu sobre uma entrada de mar na costa sul de Cuba iluminou-se como nunca antes. Pouco mais de dois anos depois da vitória da insurreição armada contra a ditadura de Fulgencio Batista, os Estados Unidos davam o troco. E para valer. “Eu pensei que ia acabar o mundo. Porque tinha tiro por todo lado, combate, mortos, era o inferno que havia aqui em nosso país.” Gregorio Moreira, o Pite, lembra bem do dia em que testemunhou a primeira derrota do imperialismo estadunidense na América Latina: a invasão da Baía dos Porcos, operação posta em prática por mercenários e exilados cubanos treinados pela CIA, que tinha o objetivo de derrubar a Revolução Cubana. “Dezessete de abril? Ai, filhinha... Aquele dia eu estava em outra zona e mandaram me trazer de lá. Quando chego aqui, comento com o rapaz que estava comigo: ‘O que é isso? Por que o céu está iluminado?’ Era pelo bombardeio. Quando encontrei meu pai, perguntei: ‘O que é esse bombardeio?’. E ele respondeu: ‘Meninos, e vocês não sabem que aqui chegou um avião?’ Já estavam invadindo, e foi quando deram os tiros em mim. Mataram muitas pessoas. Olhe o dano que me fizeram. Fiquei com duas balas no ombro”, conta Pite, mostrando as cicatrizes que ainda carrega no corpo, passados 48 anos do ocorrido.

Um pequeno museu é, praticamente, a única recordação de um combate que assombrou o mundo. Nas finas e brancas areias da praia histórica, não há quase ninguém. Um ou outro turista toma sol, incluindo algumas mulheres loiras e brancas que fazem topless Praia deserta Aos 72 anos, Pite continua vivendo na Playa Larga, onde nasceu, e um dos pontos de entrada dos invasores. “Toda vida morei aqui. Era carvoeiro, a vida era muito ruim, não havia comida, tínhamos que aguentar a fome”, diz, lembrando do período anterior à Revolução. Sentado em uma cadeira no terreno arborizado ao lado de sua casa, Pite não para de se mexer. Está agitado, e, tirando a todo o momento o boné que leva à cabeça, reforça a dramaticidade do evento de quase meio século atrás: “Ainda bem que vocês não viram. Eles entraram pelos dois lados, por aqui e pela Playa

Girón. Mesmo assim, eu disse ‘bem, já ganhamos’. Porque vi nosso poder de guerra. Eu já estava ferido... é difícil falar disso”, recorda, com a voz embargada. Cerca de cinco quilômetros separam a casa de Pite e a de Argelio Laffita, que também foi surprendido na madrugada de 17 de abril de 1961 pelo céu iluminado. “Era cerca de uma da manhã quando um miliciano, um menino de 14 anos, me chamou e perguntou: ‘oficial, o que é aquilo que se vê ali? Uma luz que explode?’”. Era um grupo de mercenários desembarcando em Playa Girón, na entrada da Baía dos Porcos. Hoje, para se chegar ao local, é preciso passar por uma guarita, que dá acesso a um hotel luxuoso localizado à beira da praia. A região, destino internacional de praticantes de mergulho, nem parece o local onde há 48 anos ocorreu a invasão de mercenários comandados pelos Estados Unidos. Um pequeno museu é, praticamente, a única recordação de um combate que assombrou o mundo. Nas finas e brancas areias da praia histórica, não há quase ninguém. Um ou outro turista toma sol, incluindo algumas mulheres loiras e brancas que fazem topless. A invasão À época da invasão, com 25 anos, Argelio era chefe de companhia do Exército Rebelde, que integrava desde antes do triunfo da Revolução. E foi por “mera casualidade” que estava no local no dia que os cubanos contrarrevolucionários aportaram para “reestabelecer a democracia” na ilha caribenha. “Estava aqui porque me mandaram cumprir uma missão e vinha trabalhando com camponeses.” Através de um equipamento de rádio, Argelio conseguiu comunicação com os homens que estavam de guarda em Playa Girón: “Nos disseram que havia um desembarque, e que um monte de botes estavam saindo de um barco maior, que uma lancha se aproximava. Eles vinham com metralhadoras, com armas M52 e metralhadoras BZ, de corpo, para brigar assim a um quarteirão. E que eram muitos”. Argelio e seus homens se dirigiram a uma central militar mais distante da costa, subiram em alguns caminhões com outros soldados e voltaram para a Playa Larga. Chegaram às três da manhã. Os homens que haviam desembarcado já tinham feito uma trincheira e fincado seus armamentos na areia. – Alto lá, disseram os homens do Exército Rebelde. – Somos do Exército de Libertação. Viemos libertar Cuba da tirania de Fidel Castro, responderam – Viva Fidel! Pátria ou morte!, retrucaram os revolucionários. Ambos lados começaram a disparar, até que aviões dos invasores começaram a dar rasantes, soltar bombas e dar disparos de metralhadora. Argelio e seus homens, então, foram obrigados a recuar e fugir para o morro, que, na ocasião, estava descampado, pois estava sendo preparado para a construção de uma estrada. “Ficamos vulneráveis, hoje me arrependo disso.”

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1 – Família caminha em Playa Larga, na Baía dos Porcos; 2 – Playa Girón; 3 – “Na minha casa mando eu”, diz placa em estrada de Cuba

O combate Cercados pela aviação dos invasores, muitos dos soldados e dos milicianos que também resistiam à ofensiva não conseguiram sair e foram abatidos. A salvação foi quando chegou a milícia da cidade de Matanzas, que tinha sido avisada. “Eles começaram a avançar, e nós nos unimos a eles. Seguiram combatendo

contra os aviões, se aproximaram dessa região e, quando os invasores viram que as forças daqui não iam se mover, tentaram ir rumo à Playa Girón”, lembra Argelio. Durante os três dias ininterruptos de batalha, ele passou por momentos difíceis. “Quando se está no comando, é preciso ficar para lá e para cá movendo-se e atenFotos: Tatiana Merlino

dendo o pessoal. Ainda mais porque eles não tinham conhecimento de combate.” Muitos dos que não haviam passado por treinamento acabavam feridos. “Enquanto tentava atender um companheiro e movê-lo para ser tratado, aparecia um avião metralhando. Umas três vezes o avião disparou contra mim, mas não fiquei com nenhum arranhão”, recorda Argelio, hoje um senhor de 74 anos, óculos, cabelos brancos, bigode e fala mansa.

“Fidel estava aqui já cinco, seis horas depois. Orientou e dirigiu tudo. O primeiro disparo dado contra o barco dos invasores foi dele. Subiu num tanque, avançou pela costa e fez um disparo... não atingiu o alvo. Mudou para outro tanque e fez dois disparos no meio do barco. E o afundou.” No alto, o ex-carvoeiro Pite; abaixo; o ex-oficial Argelio

Uma invasão entre tantas A invasão da Baía dos Porcos foi mais uma de uma série de desembarques semiclandestinos na costa de Cuba que marcaram a história da ilha ao longo de séculos. Assim como as demais, foi organizada com incompetência, mal dirigida e mal sucedida. Dos defensores cubanos que tomaram parte do combate, 160 foram mortos. Dos 1.500 exilados que participaram da invasão, mais de cem morreram, e 1.200 foram capturados. A maior parte dos comandantes invasores era ex-oficiais do Exército de Batista. Destes, cinco foram executados, e nove condenados a 30 anos de prisão. A maioria dos prisioneiros ficou detida em Cuba enquanto esperava uma transferência para os Estados Unidos. Os prisioneiros foram trocados, em dezembro de 1962, por 53 milhões de dólares em alimentos e remédios. O desastre da invasão fez com que o governo Kennedy revisasse sua estratégia, mas as tentativas de destruir a Revolução Cubana não foram abandonadas. (IO e TM)

Apesar de ter deixado as Forças Armadas há mais de 30 anos, Argelio mantém a rigidez de um militar. Desconfiado, demora a aceitar dar entrevista. Depois de certa insistência, concorda, mas mantém-se reticente nos primeiros minutos, até que, aos poucos, começa a sentir-se à vontade. O oficial que lutou na Baía dos Porcos lembra da reunião que teve um dia antes da invasão, quando, junto com outros homens do Exército, vistoriavam o armamento que tinham para o treinamento. “Eram armas que seriam usadas para treinar, não para lutar. Foi uma surpresa”. Fidel entra em cena A invasão da Baía dos Porcos havia sido um plano herdado pelo então presidente dos EUA, John Kennedy, de

seu antecessor, Dwight Eisenhower. Cerca de 1.500 exilados cubanos, treinados pelos estadunidenses, desembarcaram na costa sul de Cuba. Fidel já esperava um ataque à ilha, já que, dois dias antes da invasão, um bombardeio aéreo contra-revolucionário fez com que o país decretasse estado de alerta. Com a invasão iminente, Fidel anunciou, em discurso no dia 16 de abril, o caráter socialista da Revolução. Assim, Argelio e o resto dos cubanos sabiam da iminência de uma invasão “a caminho, rondando a costa”. “Só não se esperava que fosse aqui. Achávamos que seria em alguma província oriental. Dizia-se que podia ser por Baracoa, por Trinidad.” Mesmo surpreendido, o líder revolucionário não se furtou em participar do combate, fato lembrado com orgulho por Argelio. “Fidel estava aqui já cinco, seis horas depois. Orientou e dirigiu tudo. O primeiro disparo dado contra o barco dos invasores foi dele. Subiu num tanque, avançou pela costa e fez um disparo... não atingiu o alvo. Mudou para outro tanque e fez dois disparos no meio do barco. E o afundou.” Para enfrentar os inimigos, os integrantes do Exército Rebelde contaram, ainda, com a ajuda de camponeses de todo o país e operários que estavam na região trabalhando com construção. “Todo mundo se uniu. As armas utilizadas pelos milicianos eram vindas de Cienfuegos.” Argelio tinha, com ele, 12 fuzis. “Entreguei-os aos que mais conheciam de armamento. Mas havia quatro companhias, com 120 milicianos cada uma. Muitos deles morreram”, relembra. Mas o sacrifício não foi em vão. Setenta e duas horas depois, as Forças Armadas tinham tomado todas as posições nos lugares onde havia ocorrido a invasão. O governo revolucionário havia triunfado. A derrota do plano orquestrado pelos EUA teve impacto não apenas em Cuba, mas em toda a América Latina. Na avaliação de Argelio, “foi o primeiro passo para a consolidação da Revolução”. Ainda assim, segundo ele, há muito que lutar, uma vez que o bloqueio econômico estadunidense permanece. “É preciso nos mantermos atentos.”


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internacional

Crise deve inflar nacionalismo em Israel David Katz

ENTREVISTA Para Sérgio Yahni, codiretor do Centro Alternativo de Informação em Jerusalém, demandas sociais tendem a se transformar em reivindicações nacionalistas

ligados ao controle da produção de energia. Portanto este governo terá que defender a supremacia militar imperialista na região, da qual Israel faz parte, como a única forma de conter a expansão política do Irã. Por outro lado, considerando o alto custo dessa supremacia, o regime de Obama poderá pretender chegar a algum tipo de acordo com o Irã ou com seus aliados. Principalmente com a República Árabe Síria. Israel poderia ser um problema para essa política, já que sua gestão agressiva desestabiliza os regimes árabes próimperialistas atualizando a revolução islâmica como uma alternativa popular de defesa da soberania nacional. Portanto o presidente estadunidense terá que decidir ou apoiar as políticas de Israel, contendo a tendência a revoluções islâmicas na região por meios militares, ou chegar a algum acordo de convivência com Irã e seus aliados, no qual o Oriente Médio ficaria dividido entre zonas de influência imperialista, em que o Irã não apoiaria os movimentos revolucionários, e zonas de influência iraniana. Nesse último caso, Israel teria que adaptarse a novas realidades e até se poderiam ver certas tensões entre o projeto dos EUA e seus interesses regionais e domésticos israelenses. As forças do poder político em Israel apostam que a tendência dos Estados Unidos seria conter o Irã e não chegar a um acordo de zonas de influência.

Tatiana Merlino da Redação APESAR DE o Kadima, partido de Tipzi Livni, ter alcançado 28 cadeiras nas eleições legislativas em 10 de fevereiro, uma a mais do que o Likud, o presidente de Israel, Shimon Peres, escolheu, no dia 20, o líder deste último, Benjamin Netanyahu, para tentar formar a coalizão de governo e obter assim o cargo de primeiro-ministro. O fato de Netanyahu dispor de uma maioria de 65 parlamentares devido a uma aliança com partidos da extrema-direita (laica e religiosa) e com os ultraortodoxos foi decisivo para que Livni fosse preterida por Peres. Para Sérgio Yahni, codiretor do Centro Alternativo de Informação em Jerusalém, a opção feita por Peres não altera muita coisa já que, para ele, os objetivos de um governo Likud-Israel Beitenu não serão fundamentalmente diferentes dos objetivos de um governo Kadima-Trabalhista. “Ambos os blocos apoiam projetos de liberalização econômica e pauperização social ao mesmo tempo em que apoiam uma política anti-insurgente ofensiva.” Para Yahni, os primeiros a sofrer esse impacto serão os 20% dos cidadãos palestinos de Israel, já que os cortes orçamentários conduzidos pelo governo Netanyahu para contra-atacar a crise econômica global deverão incidir em especial sobre as áreas que afetam diretamente os palestinos.

“É de se esperar que as primeiras vítimas sejam os 20% dos cidadãos palestinos de Israel. O nacionalismo, que fará com que os judeus pobres se enfrentem com os palestinos pobres, poderá servir para traduzir as demandas sociais em reivindicações nacionalistas” Brasil de Fato – Qual é o significado de uma aliança entre o Likud e o Israel Beitenu?

Sérgio Yahni – Os objetivos de um governo Likud-Israel Beitenu não serão fundamentalmente diferentes dos objetivos de um governo KadimaTrabalhista. Os quatro partidos políticos compartilham uma agenda socioeconômica neoliberal e uma agenda político-militar ofensiva. Ou seja, ambos blocos apoiam projetos de liberalização econômica e pauperização social ao mesmo tempo em que apoiam uma política anti-insurgente ofensiva: o estabelecimento de um Estado palestino de acordo com as demandas de Israel, e não às reivindicações históricas do povo palestino; a repressão do movimento na-

Benjamin Netanyahu, que pode vir a ser o primeiro-ministro de Israel

cional palestino dentro de Israel; e a luta contra o “terrorismo islâmico”. Mas a diferença entre esses dois blocos está em sua imagem. Enquanto o bloco Kadima-Trabalhista se apresenta como moderado, o bloco Likud-Israel Beitenu se apresenta como nacional. Nas eleições de 10 de fevereiro, o Partido Trabalhista e o Kadima se apresentaram como a continuidade do processo de paz, respondendo aos interesses de certa parte da burguesia israelense e às necessidades de seus correligionários no exterior. Por outro lado, o Likud e o Israel Beitenu se apresentaram como partidos que não estão dispostos a vender barato seus interesses nacionais. Claro, intencionalmente essa representação eleitoral, sobretudo de Israel Beitenu, foi vista como uma afiliação à direita do Kadima e do Partido Trabalhista.

meiras vítimas sejam os 20% dos cidadãos palestinos de Israel. O nacionalismo, que fará com que os judeus pobres se enfrentem com os palestinos pobres, poderá servir para traduzir as demandas sociais em reivindicações nacionalistas. Adicionalmente, poderiam cortar primeiro os orçamentos que afetam a população palestina de Israel, criminalizando qualquer tipo de protesto social como um perigo à segurança do Estado. Claro, este cenário não seria diferente em um governo de coligação Kadima-Trabalhista. Ainda que nesse caso a história das relações internacionais de Israel demonstre que tais políticas estariam quase automaticamente legitimadas pela social-democracia europeia. Aos liberais europeus, levará mais tempo para adaptar-se à coligação Likud-Israel Beitenu. Mas não há dúvida que o farão.

Qual será o perfil de um governo formado pelo Likud, que contará, muito provavelmente, com partidos de extremadireita? O que isso resultará em termos de políticas internas e externas?

O que isso significará, por exemplo, com respeito às negociações de paz com a Palestina e às relações com Irã?

Não se trata de que Israel Beitenu não seja de extremadireita, mas sim de que tanto o Likud, o Kadima e o Partido Trabalhista compartilham com este uma ideologia neoliberal e militarista. A situação geopolítica da burguesia israelense, que depende do imperialismo estadunidense para sua sobrevivência, e sua corrupção institucional levarão o governo Netanyahu-Liberman a adaptar-se às políticas estadunidenses mais cedo que tarde. Por outro lado, esse governo precisará compensar seu ultranacionalismo, que poderia ser contrariado pelas demandas de futuras políticas estadunidenses, e ao mesmo tempo impor recortes orçamentários para contra-atacar a crise econômica global.

Quem deve ser atingido primeiro?

É de se esperar que as pri-

Desde 29 de setembro de 1999, não existe o processo de paz. Também não houve negociações sérias de paz. Desde que o general Ehud Barak começou sua ofensiva contra a Autoridade Palestina, Israel demanda a capitulação total – ou seja, que a Autoridade Palestina e todas as suas facções políticas aceitem a criação de um Estado Palestino vazio de qualquer tipo de soberania. Até o momento, somente a facção mais reacionária e colaboracionista dentro do Fatah, a facção dirigida por Abu Mazen [Mahmoud Abbas], está disposta a aceitar as condições de Israel.

A que se deve o enfraquecimento eleitoral do Partido Trabalhista e o avanço de Israel Beitenu?

O projeto político de integração global e regional do Partido Trabalhista, o processo de Oslo, fracassou frente às contradições sociais do Estado de Israel e às de seus paí-

ses vizinhos. Em ambos os casos este fracasso se deu principalmente porque o projeto de integração vinha ligado a políticas econômicas neoliberais e políticas de pauperização social. Enquanto no mundo árabe as massas se voltavam justamente ao islamismo para poder sobreviver economicamente, ao mesmo tempo que pretendiam defender a soberania nacional frente ao imperialismo, em Israel as massas se voltavam ao fundamentalismo religioso. A grande diferença está em que estas assumiam que seu futuro está ligado ao poder do imperialismo na região. No contexto político particular de Israel, isso significa que, frente à ofensiva neoliberal liderada pelo Partido Trabalhista durante o processo de Oslo, as massas em Israel pretendiam defender seus direitos sociais transformando-os em privilégios étnicos. Poderia se dizer que as massas judias empobrecidas buscavam refletir em relações

“Enquanto no mundo árabe as massas se voltavam justamente ao islamismo para poder sobreviver economicamente, ao mesmo tempo que pretendiam defender a soberania nacional frente ao imperialismo, em Israel as massas assumiam que seu futuro está ligado ao poder do imperialismo na região”

de classes em Israel o lugar privilegiado que o Estado de Israel tem junto ao imperialismo para que seus direitos fossem protegidos. Como isso se deu na prática?

O Partido Trabalhista abraçou o projeto de integração regional e global vendo-o como uma oportunidade que favorecesse os setores mais dinâmicos da economia israelense, sobretudo aqueles ligados à alta tecnologia e à comunicação, desligando-se dos trabalhadores industriais e dos pequenos produtores rurais – ambos foram lançados à pobreza extrema e ao desemprego sem nenhuma rede de segurança social que amortecesse o impacto das novas políticas neoliberais. Portanto, as massas israelenses veem no projeto político de inclusão global do Partido Trabalhista um perigo imediato à sua qualidade de vida e têm decidido votar um projeto alternativo.

O avanço dos partidos de direita talvez possa se explicar pelo grande apoio dos israelenses aos ataques à Faixa de Gaza. Mas a que se deve esse forte apoio às políticas belicistas contra a Palestina?

A direita captou o retrocesso das massas em seu discurso que defende os privilégios da população judia em Israel, conseguindo a maioria de votos. Claro, o objetivo político da direita e ultra-direita, que, além de manter um discurso extremamente racista, apoia a liberalização radical da economia, é subjugar o voto antiglobalizador das massas aos interesses dos setores da burguesia associados à burocracia militar, aqueles setores ligados à produção de tecnologias de segurança e seus associados, e aos interesses regionais do imperialismo.

Qual deverá ser a postura do governo Obama ante o novo governo israelense?

O governo Obama defenderá os interesses estadunidenses na região. Primeiro, e principalmente, os interesses

“Na realidade, a ruptura já não é entre Hamas e Fatah, senão entre o setor do Fatah associado à Autoridade Palestina e o resto das forças políticas palestinas” Hamas e Fatah vêm tentando uma nova aproximação. Crê que isso, de fato, vai acontecer? Em que termos? Quais podem ser as consequências para as relações com Israel?

Na realidade, a ruptura já não é entre Hamas e Fatah, senão entre o setor do Fatah associado à Autoridade Palestina e o resto das forças políticas palestinas. A Autoridade Palestina, defendida pelas tropas paramilitares treinadas pelos Estados Unidos, leva adiante um projeto colaboracionista, enquanto o resto da sociedade política palestina leva adiante um projeto de resistência. Para não se isolar totalmente, a Autoridade Palestina negocia com a resistência, e não somente com o Hamas, um suposto projeto de unidade nacional, mas esse setor não está disposto a dissociar-se do projeto imperialista regional. O futuro da política colaboracionista da Autoridade Palestina está também intimamente ligado às perspectivas do imperialismo na região: se Obama e a administração estadunidense apostam pela contenção do Irã, os choques entre a Autoridade Palestina e a resistência aumentarão. Por outro lado, se os Estados Unidos decidem-se por um acordo com o Irã, isso poderia ter uma influência decisiva no diálogo entre a facção do Fatah na Autoridade Palestina e a resistência.

Quem é Sérgio Yahni é judeu, codiretor do Centro Alternativo de Informação em Jerusalém. Em 19 de março de 2002, foi condenado a 28 dias de prisão ao negarse a prestar serviço militar em Israel.


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