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CULTURA

De 30 de março a 5 de abril de 2006

ARQUITETURA

Uma construção coletiva e livre Pedro Fiori Arantes de São Paulo (SP)

Divulgação

O arquiteto Sérgio Ferro propõe aos movimentos populares que multipliquem os canteiros de obra com autogestão

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BF – O senhor tem uma trajetória importante de militância política, primeiro no PCB, depois na Ação Libertadora Nacional (ALN), com

Ex-militante do PCB e da ALN, companheiro de Carlos Marighella, o arquiteto Sérgio Ferro foi preso pela ditadura, demitido da Universidade de São Paulo e exilado na França, onde tornou-se professor da Escola de Arquitetura de Grenoble. Ferro mora no país até hoje, com a esposa e quatro filhos. Ele ilustrou as agendas e calendários do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no ano 2000. Seus desenhos encontramse expostos na Escola Nacional Florestan Fernandes. prisão e exílio. Como foi a história dessa radicalização política dos anos 1960? Ferro – O autoritarismo do poder já era visível na época da inauguração de Brasília. Mas Juscelino era sorridente e enganava bem. Assustado pelas reações populares de 1963 e 1964, o poder entregou-se aos militares, que logo iniciaram uma brutal repressão: prisões arbitrárias, desrespeito às leis, torturas, assassinatos. Líderes operários e das Ligas Camponesas foram perseguidos, martirizados, professores foram afastados, presos. Não era possível não resistir – se guardássemos um pouco de dignidade. E, com a brutalidade crescente da ditadura, o recurso às armas se impôs. Saí do PCB por esse motivo – cuja atitude era ainda desenvolvimentista. Por isso acompanhei o Carlos Marighella na ALN, que tinha uma postura mais forte e correta. Aí a radicalização foi rápida. BF – Encarcerado pelo regime militar, no presídio Tiradentes, como forma de resistir à violência, o senhor montou um ateliê de pintura com outros presos. Como foi isso? Ferro – A política dos cárceres era (é) dupla. Primeiro, tenta quebrar o prisioneiro com a tortura, cujo objetivo, além de obter informações, é colocar o corpo martirizado (que pede que fale para evitar o sofrimento) contra a cabeça (cuja honradez exige silêncio). Depois, passada essa fase, vem o tempo da humilhação, da degradação, do desrespeito que procura a perda da auto-estima. Para resistir, então, era (é) preciso constantemente procurar atividades que reafirmassem nossa dignidade, que afirmassem nossa oposição À degradação. Ginástica e esportes para nos reaproximarmos de nos-

Para Ferro, o desenho da arquitetura é um dos fatores de exploração dos trabalhadores, por desvalorizar ainda mais seu salário

sos corpos, seminários, leituras, atividades artesanais para manter ativas nossas cabeças. O ateliê de pintura foi uma das muitas atividades artesanais de resistência desenvolvidas então. Lembro ainda com emoção um episódio. Após uma das tantas vistorias brutais e aleatórias, os carcereiros levaram tudo o que tínhamos para trabalhar. Sem uma palavra, Rodrigo Lefèvre recolheu lascas de madeira de nossos mocós, tiras de nossos lençóis e, com isso, armou um gigantesco móbile no centro da cela. Depois cantamos, aos berros, Apesar de você, do Chico. Ganhamos sem nada. BF – A pintura é, para o senhor, um grande contraponto em relação à alienação do trabalho na construção. Ela guarda o que o senhor chama de trabalho livre. Explique como é isso. Ferro – A pintura é a atividade de um homem só, diante de uma tela em que deposita cores. Teoricamente ele pode fazer o que quiser. Não é bem assim no caso da pintura profissional: aí o mercado impõe suas regras, delimita a liberdade, o que é compreensível. A liberdade da arte não pode vingar completamente pois se encontra em oposição à não liberdade de todos os outros trabalhos sociais. Entretanto, enquanto memória ou antecipação de uma liberdade desejada para todos, há que continuar a pintar (ou compor, ou fazer poesia, etc.), mesmo sabendo de sua deformação atual. BF – No livro, o senhor deixa muito claro que o lugar privilegiado desse trabalho livre deveria ser a arquitetura, pois ela poderia ser a maior das artes, como trabalho de uma comunidade livre de produtores. Como é sua proposta para esse novo canteiro de obras? Ferro – O núcleo da construção civil é o trabalhado coletivo, operários especializados reunidos por um objetivo comum, a coisa a construir. Hoje os operários não

MST usa tecnologia defendida por Ferro O assentamento Dom Tomás Balduíno, em Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo, vai construir casas utilizando uma tecnologia desenvolvida por Sérgio Ferro nos anos 1960: as abóbadas. A partir de um processo participativo de discussão de projeto realizado por estudantes de arquitetura da Universidade de São Paulo e pelo grupo de assessoria Usina, uma parcela de assentados decidiu fazer suas casas com esse tipo de cobertura curva. Trata-se de um sistema construtivo simples e muito econômico. Com o mesmo recurso que é empregado para casas de 60m2, as casas em abóbada chegarão a 90m2, abrigando um mezanino e três dormitórios. Na experiências que realizou antes de ser preso, com os colegas Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, Ferrro comprovou que essa técnica, por utilizar a menor quantidade de material para cobrir o maior vão, era ideal para a casa popular. Os assentados que optaram pela abóbada justificam a escolha: “O MST é o parteiro do novo, por isso deve ter uma proposta diferente para a moradia” (FPA).

se reúnem por vontade própria, mas é o capital que os põe juntos, após comprar sua força de trabalho. A finalidade do capital é a exploração desse trabalhador coletivo, a apropriação da maisvalia. Os trabalhadores então não são livres, devem obedecer a vontade de quem os comanda, são mão de uma cabeça alheia. Ora, é possível pensar um trabalhador coletivo livre (já existem experiências nesse sentido). A cooperação autônoma, autogerida, livre, permitindo que mão e cabeça se unifiquem, que o pensamento e as habilidades coletivas dêem forma ao material comum, sem intervenção de nenhum poder dominador, abre o campo para a arte no seu sentido mais puro: expressão da alegria no trabalho livre. E, sendo o trabalhador coletivo livre a união de muitas vontades, sua obra escaparia da estreiteza do indivíduo isolado, e manifestaria melhor os valores éticos da comunidade: a arquitetura seria assim a maior das artes. BF – O senhor tem uma enorme admiração pelos movimentos populares no Brasil, em especial pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que vem se dando conta de que seus assentamentos não são apenas territórios de produção do espaço agropecuário, mas também de produção do “espaço construído” (casas, escolas, igrejas, armazéns, etc.). Isso exige um programa do movimento. Quais suas sugestões para uma atuação também emancipadora do MST nas suas atividades de construção e arquitetura? Ferro – Essa é uma questão fundamental. Os movimentos populares, como o MST, visam a superação de sociedades injustas, tirânicas e exploradoras como a nossa. A esquerda acreditou que bastaria suprimir o capital para que tudo mudasse. A triste realidade dos ex-países ditos socialistas mostrou o erro dessa crença. Suprimiram o capital – mas não mudaram as relações de produção que ele havia criado. Chefes continuavam a comandar autoritariamente a hierarquia rígida da produção. Pior, em nome de um povo abstrato, exigiam mais sacrifício ainda do trabalhador. Ora, a produção é o núcleo de toda a sociedade. E as relações de trabalho entre todos os produtores são as que mais têm peso na conformação do conjunto das relações sociais. A sociedade espelha o que se passa no seio da produção, seu momento mais determinante. Repito: a construção é sobretudo feita por homens em colaboração. Ao contrário da indústria, utiliza poucas máquinas,

sua técnica é relativamente simples. O que a estrangula hoje é a voracidade do capital. Nos assentamentos, entretanto, desaparece (relativamente) seu poder. Os assentamentos podem, livremente, se associar em coletivos autogeridos, isto é, constituir trabalho coletivo livre. E isso tem importância não somente para suas construções (que podem assim ser verdadeiras obras de arte popular) – mas para a constituição de uma outra sociedade, igualitária e democrática. É preciso utilizar a simplicidade técnica da construção e seu fundamento, o trabalhador coletivo, como terreno de experimentação e desenvolvimento de relações de trabalho novas, dignas, respeitosas de todos. O canteiro de obras dos assentamentos livres é o lugar privilegiado para iniciar a construção de uma outra sociedade. Divulgação

Brasil de Fato – São quatro décadas em que o senhor reafirma, de diferentes modos, as mesmas contradições na produção da arquitetura, um belo exemplo de coerência intelectual, tão rara nos dias de hoje. Como resumiria essa sua perspectiva crítica? Sérgio Ferro – Ao contrário do que divulga a ideologia (dominante), os setores avançados da produção, aqueles que contam com muitas máquinas, cadeias de montagem, automação, etc. não são os que geram maior quantidade relativa de valor, de lucro. O valor só é criado pelo trabalho humano – e os setores avançados da produção empregam pouco trabalho humano, relativamente ao capital imobilizado. Os setores ditos “atrasados” da produção, ao contrário, utilizam proporcionalmente muito mais trabalho, criando assim muito mais valor. Por meio de muitos artifícios (como subpreços, astúcias contábeis, arranjos bancários, etc.), o lucro produzido nos setores “atrasados” é transferido aos “avançados”. E, para aumentar a massa de valor transferido, a exploração aumenta constantemente nos setores “atrasados” – que são mantidos assim para a salvação do sistema. Esses setores “atrasados” cumprem na economia nacional um papel similar ao que os países subdesenvolvidos desempenham na economia mundial: são mananciais de extração de mais-valia que alimentam as áreas modernas. A construção civil é um desses setores “atrasados” tecnicamente da produção, como também uma parte da agricultura e da mineração. É um setor ultra-explorado: menores salários, maiores jornadas de trabalho, maiores índices de doenças, acidentes, rotação e instabilidade, sindicatos fracos etc. O desenho de arquitetura, freqüentemente, ajuda na exploração, por desprezar o saber operário, degradá-lo, contribuindo assim para a queda dos salários.

Quem é Divulgação

m arquiteto muito diferente dos seus colegas de profissão, Sérgio Ferro propõe uma arquitetura nascida no canteiro de obras, na qual os trabalhadores são sujeitos ativos no processo de criação e execução. Ou seja, nada de linhas e curvas traçadas pelo “gênio artístico” do arquiteto, e que se transformarão, na obra, em comando autoritário para um trabalhador idiotizado e submetido a arbitrariedades. Com base nesse pensamento, ele acaba de lançar o livro Arquitetura e trabalho livre, pela editora Cosac Naify, onde reúne 40 anos de produção sobre arquitetura e autogestão operária, dos anos 1960 até hoje. Nesta entrevista ao Brasil de Fato, ele explica que a arquitetura, se liberada dos aspectos de dominação impostos pelo capital, pode ser um excelente espaço de criação coletiva, sem a opressão do trabalho manual pelo intelectual. A arquitetura, assim, seria a maior das artes, e a melhor expressão técnica e estética de uma comunidade livre de produtores. Segundo Ferro, esta é uma tarefa para os movimentos populares, que deveriam experimentar em seus territórios e assentamentos, em casas, escolas, armazéns e galpões em construção, uma produção livre da arquitetura, em que todos os produtores sejam ativos colaboradores.

UMA OBRA DE INTERESSE SOCIAL Com debates em São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Brasília e Salvador, Sérgio Ferro tem balançado as convicções de uma classe profissional que se acomodou diante da visão de trabalho e acha natural que alguns “projetem”, os arquitetos, enquanto uma legião de trabalhadores executa seus desenhos sob condições muitas vezes violentas e indignas. Os arquitetos se especializaram em produzir discursos generosos para sua prática, e não gostam de reconhecer, mesmo os comunistas, que colaboram com um sistema de exploração na indústria da construção. A crítica de Sérgio Ferro, realizada de forma sistemática e coerente durante 40 anos e pela primeira vez reunida em livro, desafia esse “coro dos contentes”. O livro, por isso, interessa não apenas a arquitetos, mas a todos que procuram, em suas práticas e pesquisas, definir novas formas de organizar a produção a partir do poder popular. Bibliotecas dos movimentos podem solicitar o livro gratuitamente à editora Cosac Naify, pelo telefone (11) 3823-6595. (PFA)


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