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CULTURA

De 23 a 29 de outubro de 2003

HIP-HOP

Em Cuba, o valor da mistura de raças Com orgulho de suas origens, juventude adere ao hip-hop e ao rap, mesclando a música com ritmos tradicionais Por Liliane Braga de Havana (Cuba)

E

Em Cuba, o hip-hop ganhou força entre os jovens, que cantam a mestiçagem do povo do seu país

social, diferentemente de outros países, onde o branco é o capitalista, tem dinheiro e vive melhor”. Um ditado da ilha diz que “quem não tem algo de Congo, tem de carabali”, referência a duas etnias africanas que compõem a cultura do país. O provérbio exprime a onipresente força do negro e de sua cultura. O próprio nome do grupo Orishas, o mais famoso do gênero, é uma menção à afro-cubanidade. “É como um carimbo que o cubano recebe ao nascer”, explica Alain, iniciado no Palo Monte (religião de procedência bantu muito presente no oriente do país). Para o rapero,

vembro. O festival, que a cada ano lembra um país da África, em 2001 abriu uma exceção para homenagear o Brasil. Do evento nasceu um CD, a ser lançado ainda em 2003 pela organização não governamental Sambatá. No outro lado da ilha, o TNT defende a idéia de que em Cuba a cultura afro-descendente não foi subjugada. Para Raulicer, o hiphop traz mais elementos da cultura africana do que as referências mostradas nas letras de rap. “A cadência do tambor que acompanha as histórias contadas pelos griots é igual à do rap. O hip-hop traz mui-

a religião não limita a expressão artística, pois o negro “pode crer no que quiser, desde que creia em si mesmo. Quando crê em si mesmo, o mal não é problema”.

FUSÃO DE RITMOS O grupo Primera Base, nascido no reduto iorubá de Guanabacoa, Havana, trabalha com a fusão de vários ritmos: a música afro-norte-americana, a guaracha, o chachachá, o mambo e elementos da cultura local. Já levou sua mistura de hip-hop e tambores a um festival de raízes africanas, o Wemilere, realizado anualmente no mês de no-

tos elementos dessa cultura e nossa pesquisa visa identificar esses pontos comuns”, diz Alain. A valorização das raízes e da ancestralidade, tão próprias da cultura africana, colabora para elevar a autoestima da juventude. Alain lembra seus ancestrais e diz que “o que mantém o homem vivo é sua história”. E a história, em Cuba, é muito viva. Por toda a ilha se vêem carros antigos e charretes constrastando com mansões e carros modernos, homens usando guayaberas (a tradicional camisa cubana) e jovens vestidos na última moda, graças à ajuda de parentes que vivem em Miami. As dificuldades por que passa a ilha não intimida os raperos. “No capitalismo, há mais diferença social. Muitos ricos e muitos pobres. Aqui, não necessitamos descarregar toda essa diferença no rap, como nos países capitalistas”, opina o grupo Elemental, de Baracoa. Alain cita o líder negro estadunidense Malcom X para ressaltar a importância da luta, “seja de qualquer raça, de qualquer nacionalidade, qualquer religião”. Para ele, por meio da música todos os povos se irmanam.

Divulgação

m meados da década de 90, Cuba começou a se abrir para o turismo e a uma economia que misturava socialismo e capitalismo. Nesse período, o hip-hop ganhou força entre a juventude. No entanto, nem todas as manifestações artísticas do movimento se desenvolveram. O grafite, a dança de rua e a discotecagem ainda são tímidas no país governado por Fidel Castro. Mas o rap (sigla, em inglês, para ritmo e poesia) cantado pelo mestre de cerimônia (MC), com forte influência de vocais da salsa e dos demais gêneros musicais cubanos, conquista a garotada. Em Cuba, diferentemente do que acontece no Brasil e nos Estados Unidos, o rapero fala da mestiçagem do povo. A música “Raíces”, do TNT, Hip-hop – Movide Santiago de mento surgido nos Cuba, é um anos 60 em Nova exemplo. A leYork, no meio das discussões sobre tra diz: “Está a marginalização sob meu teto de camadas da o direito de anpopulação. Entre os negros, surgiram dar com essa artistas como Isaac fusão às cosHayes que faziam tas”. Raulicer, os habitantes do gueto dançarem um dos interaps, som de base grantes grupo, musical dançante e explica: “Em letras de conteúdo Cuba, não exispolítico e social. O movimento completem brancos ou ta-se com a dança negros puros. (break) e as artes Para nós, ser plásticas (grafite). Griots - Contadores afro-descendende história da África te não influennegra tradicional cia na posição

TEATRO

Peça discute manipulação da opinião pública Tatiana Azevedo e Raquel Freitas da Redação Tudo começou com estudos sobre indústria cultural, fabricação da imagem e manipulação da consciência. A partir daí o grupo teatral Companhia do Latão criou O Mercado do Gozo, seu sétimo espetáculo. Resultado de um trabalho de pesquisa coletiva, a peça procura entender os métodos contemporâneos de manipular, pela forma, a opinião das pessoas. O Mercado do Gozo faz parte do projeto contemplado com o Programa de Fomento para o Teatro para a Cidade de São Paulo. O processo de produção da peça começou em novembro de 2002, com seminários públicos sobre mídia e poder. Para atingir seus objetivos – fazer não apenas teatro social, mas teatro anticapitalista – a Companhia do Latão utiliza-se de textos e recursos políticos e críticos, buscando uma dramaturgia brasileira atual. O espetáculo está ambientado em 1917, ano da revolução bolchevique e do início da industrialização brasileira, quando a burguesia emergente enfrentou as primeiras reivindicações de trabalhadores, um processo que culminou na grande greve de São Paulo. Nesse contexto, um jovem herdeiro de uma fábrica de tecidos rejeita a fortuna e se embrenha no submundo da prostituição e do ópio, buscando um sentido para sua vida. Segundo os diretores, o texto enfatiza o poder do capitalismo, que transforma tudo em mercadoria, inclusive as relações. “Tudo está sendo tragado por essa mercantilização, menos o ponto de vista do público, que deve se posicionar”, diz Sérgio de Carvalho, que dirige o espetáculo junto com Márcio Marciano.

No início do espetáculo, o público é tratado como figurante de um filme. Iluminação sofisticada e reprises de uma mesma cena por outros ângulos produzem emoções e reações. Ao utilizar clichês da indústria cultural, a Companhia do Latão quer que as pessoas se posicionem diante do que vêem. “Exige um trabalho do público para

não ser engolido pela mentira”, diz Carvalho. O Mercado do Gozo Direção: Márcio Marciano e Sérgio de Carvalho De quinta à sábado, às 21 horas; domingo, às 19horas – R$10,00 Teatro Cacilda Becker Rua Tito, 295 – Lapa Tel: 3864-4513

Cena da peça O Mercado do Gozo põe em cena a mercantilização das relações

Grupo mostra a vida como não deveria ser A futilidade ainda predomina no teatro comercial. A opinião é de Sérgio de Carvalho, que divide com Márcio Marciano a direção da Companhia do Latão, grupo com base no teatro dialético proposto por Bertold Brecht. O grupo, fundado em 1996, propõe-se a formar uma dramaturgia brasileira focada no social. Brasil de Fato – Como é fazer teatro político hoje em dia? Sérgio de Carvalho – Estamos em um momento em que a arte brasileira volta a se preocupar com temas sociais, a pensar em politização. Mas ainda são poucos os grupos que tentam fazer isso de modo mais crítico e usar, por exemplo, o marxismo como base. A Companhia do Latão usa essa herança principalmente na reflexão sobre o materialismo dialético e as contradições do capitalismo. BF – Como o público reage a uma proposta política no teatro? Carvalho – Em uma sociedade dividida em classes, não se pode querer fazer um teatro que unifique todos, pois seria criar uma unidade que não existe. Não

Quem é Sérgio de Carvalho é diretor da Companhia do Latão. Unida a outros grupos no movimento Arte contra a Barbarie, a companhia é co-autora da Lei de Fomento ao Teatro para cidade de São Paulo. Como jornalista, edita o Sarrafo, periódico criado por diversos grupos teatrais para discutir arte e política. fazemos teatro realista, da vida como ela é. Nossa arte mostra a vida como ela não deveria ser. Nesse trabalho, estabelecemos diálogo com um público considerado razoável e mobilizamos outros públicos, como um grupo de 40 operárias com quem também fizemos um debate. Essas pessoas sabem que a questão da luta de classes ainda existe e que a exploração do trabalho é um fato.

dessas produções é de peças com ares de crítica à corrupção do país, por exemplo. Isso ameniza um pouco a culpa de uma elite que acredita ser autocrítica. Por outro lado, há grupos que tentam trabalhar temas sociais de modo mais amplo. Vê-se que existe mais um sentimentalismo social de compaixão pelos pobres do que capacidade de crítica, vontade de ativar os conflitos e tornálos mais claros para o público.

BF – De que forma os grupos que atuam no campo social trabalham esse tema? Carvalho – A futilidade ainda predomina, principalmente no teatro comercial. A maior parte

BF – E como a grande imprensa lida com esse tipo de trabalho? Carvalho – Conseguimos um espaço razoável para um grupo de esquerda. Mas há um paradoxo: a grande imprensa dá espaço, e

ao mesmo tempo malha, de um ponto de vista crítico. No fundo, é um pânico diante de uma posição que se assume de esquerda. Há respeito pela qualidade estética, mas tentam diferenciar nossos trabalhos: dizem que, apesar de politizados, são bons. O que é uma mentira, pois é devido a esse conteúdo que a forma é boa. BF – O teatro pode provocar ação efetiva, ou apenas reflexão? Carvalho – O teatro não tem o alcance da televisão, da indústria cultural. De um ponto de vista mais imediato, pode modificar pouca gente. No entanto, a qualidade da relação teatral é muito intensa. A possibilidade de ativação crítica, de provocar reflexões, é grande. Em vários momentos históricos, durante processos sociais importantes, períodos de intensa agitação política, o teatro teve grande participação porque se expandia a partir do contato humano. O teatro tem algo a oferecer contra o terror totalitário da indústria cultural, pois é uma arte privilegiada do ponto de vista da politização: impõe o trabalho coletivo, a disciplina de trabalhar em equipe. (TA e RF)


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