provocacoes_bookmakers_9788565242381

Page 1

Sumário Prólogo 9 Humanidade do homem

15

Bem e mal

25

Família evadida

35

Limite e não-limite

44

Bíblia contestada

51

Ciência dogmática

63

Teologia do fracasso

83

Realidade e fuga

99

Memórias do Éden

111

Quem sou eu?

119


“Estou tirando da esfera espiritual, como salvação de uma iminente morte por sufocamento, e trazendo para âmbito real tudo aquilo que, no menosprezo, o homem vulgarizou. Elevei a importância desses atributos esquecidos pelo homem decadente, e, por isso, haverá dor. Ao ver-se obrigado a interromper seu estado de inércia, o homem decadente revolta-se contra a hiperestimulação de seus sentidos e percepções. Para os que estão em vias de extermínio, toda vivificação é uma ameaça.” Jaydes Fuly – Robusto pensamento: crônicas do que não se fala

“É a este instinto teológico que faço a guerra: encontrei vestígios seus por toda a parte. Todo aquele em cujas veias corre sangue de teólogo acha-se, desde o princípio, numa falsa posição frente a todas as coisas, numa posição que carece de dignidade. O pathos que dele emana chama-se ‘fé’: fechamos os olhos uma vez para sempre para nós mesmos, para não sofrermos por causa do aspecto de uma falsidade incurável. Desta ótica defeituosa fazemos em nós mesmos uma moral, uma virtude, uma santidade, a boa consciência alia-se com a ‘falsa visão’; exige-se que nenhuma ‘outra’ espécie de ótica possua valor, depois de termos tornado sacrossanta a nossa própria com os nomes de ‘Deus’, ‘salvação’, ‘eternidade’. [...] Se sucede que os teólogos estenderam, por meio da ‘consciência’ dos príncipes (ou dos povos), os meios para o ‘poder’ [...]” Friedrich Nietzsche – O Anticristo

“[...] acredito num cristianismo que te aceite e considere a partir do que é, e procure te mudar a partir do que quer se tornar.” Jaydes Fuly – Vigor cristão


Prólogo

Q

uando permiti que algumas pessoas mais chegadas tivessem acesso aos primeiros escritos desse livro, as reações foram as mais diversas possíveis. Desde a repulsa de seu conteúdo até a veneração platônica, pude experimentar um misto bem variado das impressões iniciais suscitadas nos leitores. É claro que a pequena quantidade de pessoas a que se resume esse grupo inicial pode não caracterizar o todo que terá acesso à obra. O que ficou claro, apesar disso, é que não há como ler e se manter imparcial diante do conteúdo dessas páginas. Cada capítulo retrata assuntos que foram resumidos para adequar-se ao caráter de apresentação geral de um conteúdo que ainda virá em outras obras. Tenho certeza de que a expressividade deste exemplar não consiste nele próprio, mas no que veio anunciar. Alguns capítulos chegam a conter temáticas que tratarei em dois, ou até três livros. Minhas teses sobre a estrutura psíquica humana bem como sobre o desenvolvimento histórico e social das culturas e dos povos suscitarão vertigens pela profundidade e abrangência de sua substância. Esta obra é a primeira de uma série de cinco livros que pretendem tornar conhecidas as bases de minha produção. O teor dessas páginas, apesar de objetivo, se desdobra em implicações que exigem o diálogo com as mais diversas frentes do pensamento humano. Cada capítulo tende a agir de maneira independente para com o conteúdo total da obra, sem, contudo, perder o caráter

9


de conexão e diálogo das partes para com o todo. Como painéis que compõem um mesmo vitral, a autonomia dos assuntos não distancia, mas reforça sua composição final. Com textos que abrangem a humanidade em seu aspecto ôntico, social, psíquico, histórico, teológico, existencial, filosófico e epistemológico, a proposta se pode dizer, é caracterizada pela execução de uma análise para deslindamento humano. As pessoas no geral têm muito medo de provocar, suscitar, instigar. Existem sempre muitos dedos, muitas cautelas e cuidados. Eu decidi seguir na contramão, o que não quer dizer que esse livro seja um escândalo, mas que ele te fará pensar sobre alguns pontos que julguei pertinentes. Provocações – apenas o suscitar da discórdia vem tanto como algo que instiga como algo que gera. Instigar, ser provocado, e ao mesmo tempo, suscitar, gerando algo em meus leitores. As pessoas são doutrinadas a evitar riscos, a serem passivas e omissas, como se as atitudes provocativas exercessem alguma nocividade sobre nós. Que seria do homem sem suas provocações? Estou disposto a ir além. Estamos muito acostumados a viver em paz, não como quem está isento da guerra ou dos conflitos, mas como quem passou a confundi-la com apatia e acomodação. O caráter de inovação nos deixou quando passamos a valorizar estruturas já ultrapassadas e ineficazes para o nosso tempo. Verificamos na historicidade do capitalismo a inércia que nos consome, mas somos incapazes de identificar em nós mesmos a motivação para a mudança. Provocações – apenas o suscitar da discórdia surge como um retorno ao teor provocativo das produções humanas. Um choque, objetivo e direto, um confronto com as estruturas vigentes em cada um de nós. Sem piedade, as colunas que sustentam os vícios morais, religiosos, históricos, sociais, políticos, ideológicos, entre outros, precisam ser derrubadas. Enquanto nos abrigarmos sob definições que já não nos servem mais, o desenvolvimento do novo e o vislumbre do desconhecido permanecerão vedados a nós.

10


Vivemos a impressão de harmonia e saciedade diante da crise estabelecida, onde romper com a ilusão de que estamos em equilíbrio faz-se extremamente necessário. Tal fantasia só gera mais desconsolo, tropeços, contradições, incoerências, discursos ineficazes e toda sorte de fraqueza espelhada na glória de nossos sonhos. São fantasias das quais precisamos acordar: moral, religião, ensino, amor, paz e bondade, bem e mal, e tantas outras. Há, hoje mais do que nunca, uma grande necessidade de retornarmos o nosso chão. Sair dos pedestais imaginários e voltar para o que nos sustenta é imprescindível para a cura moderna. Existe doença? Apenas humanos que se elevaram sobre si. Apresentar esse livro é também me apresentar. Procurei selecionar alguns ensaios que pudessem expressar com alguma clareza o propósito desta obra. Todo arauto tem para si apenas a liberdade de anunciar aquilo que lhe sucede. Assim é este livro, um arauto do meu pensamento. Quero, através destas letras, instigar, provocar e incomodar, para que se lancem nas profundezas do que está abaixo de onde pisamos. O volume em suas mãos é o prenúncio do que está por vir. Resta-me apenas lhe perguntar, como quem faz um convite: até que ponto o caro leitor está disposto a perder seu equilíbrio? Cair? Não, não falo de cair, mas de voar. “Voar? Mas voar para onde?”, me perguntam os que ouvem minha voz. “Voaremos precipício abaixo, meus pupilos!”, responde uma tenra voz em meio a convidativos risos de satisfação, antes de prosseguir, dizendo: “O homem elevou-se sobre si para um lugar além de sua humanidade, e agora, no “além si próprio”, deverá encontrá-la. Para lá voaremos! Para baixo de nossos pés, para baixo de onde nos elevamos e de onde jamais deveríamos ter saído, é para lá que rumaremos em grande velocidade!” “Sim, em grande velocidade!”, gritam os pupilos ao ouvir para onde estávamos indo. Uma voz então ecoa timidamente pelo ambiente até que toma a forma de uma indagação: “Mas voar para baixo não é cair? Não é

11


numa queda que se traduz o seu convite? Está nos chamando para cair? Se lançar para baixo não é voo, é queda!” Os pupilos se alvoroçam na busca de quem pronunciara tais palavras. O mestre os fita com tenra perspicácia durante alguns minutos até que, num tino de sólida certeza, os atrai mais uma vez para si com sua voz firme: “A queda é necessária para encontrar o que se perdeu. Lançar-se do pedestal erguido sob nossa humanidade é cair para encontrá-la, abandonar os enxertos e os mefíticos corpos que nos fizeram acreditar serem humanos é o dever que nos foi dado. Encontrar a si próprio é a missão de todo homem em sua humanidade. O que dizer, porém, dos que preferem erguer-se para além de si mesmos e, na sonolência do ar rarefeito, estabelecem para si na justificativa do bem-estar a comodidade necessária para continuarem inertes sobre sua condição de sufocamento? O que está destinado a nós, homens, vai além da compreensão dos tolos elevados, que, ao se elevarem, tornam-se fracos e débeis demais para suportar a vida na sua condição natural. Nós somos o contraproduto, a contrapartida, o contramovimento. Ao homem comum, que não se dedica a tais palavras, a queda traduz-se pela ruína de quem está em livre caída. Mas nós, meus pupilos, vamos nos lançar em queda, não para a derrocada, mas para alçarmos o nosso voo. A queda resulta do instinto de destruição, mas o voo, esse é magnificamente artístico. É bem ordenado, bem trabalhado, resulta dos instintos de sobrevivência e das capacidades adaptativas bem consolidadas.” “Mas como vamos voar se não estamos prontos para isso! A destruição da queda nos ameaça a todo tempo, precisamos de equilíbrio, mesmo para alçar voo!”, incita um dos pupilos. “Mergulhemos no abismo que está abaixo de nossos pés! A queda é necessária, porém a queda para a arte não é queda, mas um mergulho. Mergulhemos, vamos! Estaremos blindados pela arte de voar. Essa é uma arte que se aprende com a falta do equilíbrio professado. Para que tantos pedestais? Experimentem um equilíbrio

12


ainda não visto! Voar não é se equilibrar com as asas? Queremos ter os pés livres de qualquer solo, cercados apenas pelo ar. O mesmo ar que nos inunda os pulmões deverá também levar vida aos nossos pés, a nossa sustentação. Isso não é belo, meus jovens pupilos? Eu vou ensiná-los a voar, entrarão por essas letras como suscetíveis da queda, mas ensinarei o mergulho, e sairão daqui artistas!”

13



HUMANIDADE DO HOMEM “O mundo interior está repleto de fantasmas e de reflexos enganosos...” Friedrich Nietzsche

O

mundo atual desfruta de uma condição de insatisfação para consigo. Economia, sociedade, política, educação, exercício de direitos e deveres, religião, industrialização, saúde e meio ambiente são apenas alguns exemplos do que gera insatisfação no homem de hoje. O fracasso das grandes ideologias políticas e econômicas, filosóficas e sociais, provoca um movimento de reação contrário a tudo o que até então foi praticado. Instaura-se o conflito entre o novo e o antigo, entre o velho e o moderno, entre a geração dos pais e a geração dos filhos. É tentada a todo custo uma ruptura, quase como um descolamento, entre o que passou e o que virá. Essa é a característica que classifica nosso momento como uma era de transição entre a Modernidade e a Contemporaneidade (segundo classificação de alguns), em que sentimos o movimento mas não sabemos ao certo para onde estamos indo. Na busca por apoio ao discurso da insatisfação, procuram alicerces que justifiquem os reflexos sentimentais de hoje em definições que já não nos pertencem. A história que nos gera não é a mesma que nos define. Os que aderem às definições já ultrapassadas sobre quem somos desenvolvem também uma

15


reação sentimental distorcida sobre o que nos tornamos. Hoje num estado de insatisfação pela frustração de nossa produção ideológica, com todo o seu resultado social, político, econômico etc., é que manifestamos o real motivo do desconforto. Não por terem fracassado as ideologias de outrora (foram muito bemsucedidas para o seu tempo), mas por estarmos insatisfeitos com nós mesmos, com aquilo que nos forma e afirma: nossa humanidade. A canalização da insatisfação humana para consigo tende a se manifestar, por exemplo, no desdobramento de doenças autodepreciativas como a depressão ou em transtornos alimentares (anorexia, bulimia, obesidade), chamadas doenças desse século. Como todo organismo em funcionamento busca seu equilíbrio, a oposição ao desconforto da insatisfação consigo é desencadeada como Instinto Compensador. A insatisfação pessoal precisa ser compensada de alguma forma para que a humanidade tente novamente chegar ao equilíbrio. Essa busca abre, então, um grande espaço para novas produções ideológicas que tragam significado, alternativas que ofereçam alguma margem de conforto. Na produção de algo compensador, o sentimento de satisfação pessoal faz com que o agente dessa produção sinta-se mais acolhido em si mesmo, em sua própria humanidade. Surgem então os gritos de nossa geração por paz, amor, liberdade, tolerância e, mais recentemente, pelo bem-estar do ecossistema. A busca de caminhos que ofereçam satisfação traduz-se na impressão de se estar aprisionado em alguma coisa que não se pode abandonar ou desprender-se com facilidade, em algo que não se pode rejeitar. Como se livrará o homem de si mesmo? Estar insatisfeito com a sua própria humanidade é a razão da corrida para qualquer coisa ou discurso que pareça uma (ou ofereça alguma) solução. Maximizando a busca por uma condição mais favorável de existência, o homem que não se satisfaz na sua humanidade tenta conduzir-se a uma satisfação global. Na incapacidade de

16


tornar melhor a residência humana em si mesma, a caridade, a filantropia, a compaixão e a bondade surgem como um exercício de indenização pessoal através dos benefícios obtidos para os animais, o ecossistema e o próximo. Se colocando em lugar alheio, uma recompensa é gerada como desfrute de uma condição favorável de bem-estar através de projeções de nós mesmos. Realizam-se os atos mais heroicos, não pelo objeto do heroísmo, mas por se pensar estar salvando a si próprio. A busca por um ambiente sustentável traz a ilusão de que é possível sustentar a condição humana naquilo que se tornou. No que se preservam outras vidas, tem-se a impressão de se poder manter e sustentar a própria existência. As forças de compensação que lutam pelo equilíbrio abrem diversas outras frentes diante de nós. Espalhar o amor, conviver em paz com as diferenças e exercer a tolerância são exemplos atuais de discursos compensadores que buscam algum tipo de equilíbrio para a insatisfação dos homens consigo mesmos. Os discursos e idealismos existentes na esfera social e coletiva tendem a aparentar a solução procurada, porém não encontrada na individualidade de cada um. Apelando às necessidades gerais, que só são gerais por pertencerem à individualidade de todos, os movimentos ganham proporção e audiência rapidamente. Ao contrário do que se possa pensar, essa adesão em massa não acontece pelo discurso em si, mas pela ampla mídia que gira em torno dele. Não se busca o amor, a paz, a tolerância ou qualquer coisa do tipo, mas os benefícios da popularidade que os mesmos oferecem. A razão disso é simples: a procura desses movimentos não acontece por motivos coletivos, mas, desde o princípio, sua atratividade está na possibilidade de que atendam vontades pessoais e reequilibrem o indivíduo diante da insatisfação experimentada em sua própria humanidade. “Pessoa de bem” é o nome dado aos que seguem e praticam os discursos de compensação (amor, tolerância, ecologia, etc.) para insatisfação humana. A intenção por estar e se manter perto de tais pessoas se dá pela necessária oportunidade de obter algum conforto através do outro. Uma família que busca outra família de

17


“bem”, por exemplo, tem a intenção de encontrar em outro núcleo familiar uma compensação para a sua própria insatisfação. É nesse momento que a mídia e a propaganda sobre a pessoa ideal (que atende ao estereótipo de ser “bem-sucedida”, moralista etc.), seja no aspecto coletivo ou individual, ganha espaço no reforço de todo esse sistema. No fundo, tal publicidade não visa outra coisa senão o ganho da popularidade familiar. A expectativa existente por trás dos interesses em gerar “pessoas de bem” faz com que surjam os pregadores do “bem”. Pessoas capazes de gerar uma Expectativa Social tão grande em torno do “certo”, do “bom” e do “bem visto”, que as comunidades visitadas por tais mensagens se veem na obrigação de, socialmente, apresentar as características e condições que atendam ao que foi pregado. Um modelo de recompensas também é gerado visando o incentivo de seus adeptos. Então os discursos que surgem propagando igualdade, tolerância, preservação ambiental e animal, além de tantos outros, são correspondidos não por se pretender de fato o que é professado, mas para se potencializar e usufruir uma ascendência de Prestígio e Poder para obtenção de todos os benefícios sociais possíveis. O “politicamente correto” vem como o padrão social para agradar as famílias que, seguindo tais publicidades, desejam compensar o desequilíbrio de seus componentes. Quando surge alguém, ou alguma situação, que se enquadre no “politicamente incorreto”, acontece um desmascarar sobre quem somos e como estamos. A insatisfação pessoal em relação a nossa própria humanidade é surpreendida num ambiente, o social, antes considerado “seguro”. Para proteção da busca por compensação e equilíbrio, acontece o que já estamos acostumados a ver: retaliações de todos os níveis sociais para proteger o “discurso do bem” e a “pessoa de bem”. As expectativas sociais geradas em torno das pregações do “bem” e também das “pessoas de bem” são capazes de causar um

18


frenesi que leva multidões a seguir um padrão de comportamento que concorde com suas normas. Com cada um buscando o seu próprio remédio, os interesses comuns formam grandes rebanhos. Incapazes de se ver ou de se ouvir, tais pessoas apenas seguem o modelo que lhes dá a esperança de reaver o equilíbrio. Sem perceber, apesar disso, que um desequilíbrio ainda maior assim se forma. Falamos sobre tolerância com o senso de que deveríamos ser, de alguma forma, recompensados por isso. Falamos sobre amor como se devêssemos sentir orgulho dessa tarefa. Falamos sobre paz como se fôssemos vitoriosos por carregar essa bandeira. Por que, então, quanto mais se pregam esses e tantos outros pontos, mais constatamos o contrário? Cuidado com os pregadores do “bem”, pois todos querem saciar os seus próprios interesses, e você é o meio usado para lhes conferir o prazer do poder. A razão disso é que a compensação exige algo mais; não basta apenas seguir uma nova produção, é preciso levar outros a assumir uma postura de semelhante concordância. O resultado é ainda mais desequilíbrio. Essas pregações, entretanto, são bem antigas – apesar da mídia de hoje fazer parecer recente. Sempre me perguntei o motivo por que, mesmo após milênios de pregações sobre paz, amor, tolerância, ecologia, harmonia e equilíbrio com as diferenças e tudo mais, as guerras, as chacinas, a fome, a desigualdade, os crimes, as injustiças e toda sorte de barbáries ainda não foram extintas. Quanto mais pregadores do “bem” surgem, quanto mais a sociedade preza as “pessoas de bem”, quanto mais se professa o desejo pelos discursos compensadores, mais desequilíbrio e “maldade” são encontrados no mundo. Na clara visualização desta e de outras incoerências, bem como pela constatação da condição pluralmente indeterminada, cria-se a ilusão imagética de que o homem teria se desumanizado em sua constituição. A “humanização” do homem de nosso tempo resulta da intenção de tornar todos os seres humanos padronizados

19


e inexpressivos. Pretende-se igualar a qualidade dos homens, uma vez que a diversidade torna imprevisível a nossa conduta e determinação. Perde-se o caráter da originalidade de nossa condição em função de regras e normas vigentes. Classificando a condição humana a partir de sua homogeneidade com o todo, e não mais pelo destacamento de sua existência, o nosso empobrecimento é visível. O instinto de rebanho dos séculos passados tem sido aperfeiçoado para uma condição de “manada” no século presente. Na tentativa das compensações, corremos o risco da insatisfação sentida subjetivamente ganhar, agora, outras frentes. Uma vez tendo, no reforço social do “bem”, a tentativa mais comum de encontrar o equilíbrio existencial, seu fracasso passa a significar não apenas a falha do homem em sua autossuficiência, mas também o fracasso das propostas comunitárias. Uma grave desesperança volta a inundar o ser humano e o que antes era sentido para consigo, passa a ser sentido também para com o próximo. O recuar diante da interação social é visto como inevitável. A consequência é expressiva e, ao mesmo tempo, sutil: o aumento da individualidade, do revanchismo com tons de crueldade, da impessoalidade das relações, da ineficácia e do despropósito da vida familiar e do matrimônio, entre outros fatores. O elo entre as relações tende, então, a ser visto sob a ótica socioeconômica de se evitar riscos, sustentar o ganho no custo-benefício e a passividade na capacidade para decisão e transformação. A relação do homem no coletivo começa a desdobrar-se não mais na correspondência desinteressada, mas na manipulação para o ganho, a satisfação e a saciedade pessoal. O que a nível pessoal e coletivo demonstra-se ineficaz, tende agora a dar seu último suspiro através de embates. Nesse momento é que todas as pregações do “bem” ganham um tom partidário, faccioso, como gritos de guerra aos que não aderem a elas. Perseguindo o amor, nos tornamos perseguidores dos que não acreditam nele. Pregando a tolerância, rechaçamos com violência aos que julgamos “intolerantes”. Sustentando a paz, entramos

20


em guerra. O sadismo dessas relações assusta: revoltam-se com maus-tratos aos animais, mas não há a igual revolta com os maustratos humanos. O homem é incapaz de satisfazer-se consigo mesmo, e os que tentam, por pensarem ter o equilíbrio a partir de si, não se conhecendo, mostram-se ainda mais incapazes. O desfecho é mais desequilíbrio, puro desequilíbrio. E toda a tentativa de compensar essa insatisfação consigo mesmo, mais uma vez, fracassa terrivelmente. Entendemos, mesmo que ainda superficialmente, porque a sociedade é tão canibal e autodestrutiva. A única razão pela qual ainda não sucumbiu é o fato da vivência coletiva impor Mecanismos de Frenagem a essa condição. O incentivo das “pessoas de bem” dentro do ambiente social é um deles. Quando o que produzimos falha, tentamos no outro a suplementação do que em nós fracassou. Quando é insuficiente essa última tentativa, surge em nós um ímpeto de destruição após outro. Uma vez vencidos pela insatisfação e pelo desequilíbrio pessoais, igual efeito para com o mundo e para com o próximo é desencadeado. O objeto de esperança ao tornar-se desesperança, suscita a leitura de antigas soluções como sendo as causas dos problemas de agora. Tanto as esferas coletivas quanto pessoais passam a refletir não mais as etapas tentadas como compensação, mas os campos exigidos para destruição. O encolhimento da capacidade de transformação humana decorre da aparente ameaça de nossos investimentos. Aqui está o tronco de toda criminalidade, que, resumidamente, é a manifestação concreta do desequilíbrio gerado pela insatisfação, cujos mecanismos de frenagem social foram, em algum momento, insuficientes. Os que costumam, em meio a tudo isso, assumir uma posição francamente moral e idealista, com frequência o fazem não por pretender a melhora da sociedade, mas por querer exercer o domínio dos “doentes”. Definir a humanidade do homem é uma tarefa que não me atribuo. Somos frágeis, nossa produção é frágil, nosso discurso é

21


frágil, nossa prática é frágil. Defendendo-nos da fragilidade que nos pertence, nos fazemos complexamente brutos. Pela complexidade de nossas relações é que sobrevivemos a nós mesmos. Como um organismo tão profundo e rico pode ser também tão simples e quebradiço? A humanidade é um enigma, com toda certeza, profundo demais para sairmos e grandioso demais para nos desinteressar. Curiosamente, todo esse rico paradoxo não esconde o fato: um estado de insatisfação permanente parece-me natural ao homem. Algo mais profundo, intenso, localizado no mais longínquo dos recônditos de nossa humanidade. Diante desse “algo”, nossas produções, por mais elaboradas que sejam, tornam-se paliativos mais ou menos eficazes pela ação do tempo. Os mais antigos já sabiam sobre ele e, assim como nós, tentaram suas compensações como solução ao problema da insatisfação. As religiões e místicas pelo mundo explicaram esse estado de diferentes maneiras, cada qual buscando alcançar a plena satisfação, a qual devolveria ao homem o seu equilíbrio. O que o cristianismo chamou de “queda”, “corrupção do gênero humano”, “pecado” e “herança de adão”, as demais religiões, mitologias e místicas nomearam a sua maneira. O que todas têm em comum? Procurar o motivo da insatisfação e explicá-la de forma que seja, mesmo que momentaneamente, suficientemente satisfatória. O equilíbrio buscado é expresso de todas as formas possíveis, inclusive para a compensação no além-vida – ou no pósmorte, se preferir. Todo esse empenho quase sobrenatural para encontrar as raízes de nossa insatisfação segue um método: ao homem é dada a capacidade de buscar e conciliar origens e finalidades. Para toda finalidade, buscamos uma origem correspondente, e assim estabelecemos nossas conexões de vida. É a partir da experiência do viver uma finalidade que toda uma ordem sequencial de eventos, intuições, cálculos, conexões e reflexões é desencadeada

22


a fim de encontrar sua respectiva origem. Desse processo é que aprendemos a conectar e prever as consequências que podem ser experimentadas como finalidades, a partir de origens ainda não realizadas – assim é que acontece o planejamento. Ainda assim, a pergunta continua com um tom ainda mais perseverante: diante de tão magnífica condição, donde provém a insatisfação por sermos o que somos? Desenvolvemos linhas de pensamento e reflexão extremamente complexas para obter o sucesso nessa busca. Somos capazes de buscar as origens para todas as finalidades experimentadas. Fazemos qualquer coisa para encontrar as respostas que precisamos, pois o “farejar” das origens nos pertence. Existe, entretanto, uma finalidade experimentada cuja origem nos é vedada, quase como uma proibição: somos incapazes de descobrir nossa própria origem. No momento em que o homem se torna capaz de experimentar a si próprio, todo talento para a busca das origens e finalidades se torna insuficiente. De saber que ele não é apenas um examinador impessoal, como quem olha de fora de um processo ininterruptamente intenso, mas que também é capaz de examinarse, inserido no que pretende desvendar. No exercício reflexivo do autoexame é que percebemos que somos em nós mesmos uma finalidade incompleta, carente do seu extremo inicial. Descobrimos que não somos apenas geradores de finalidades, mas também somos gerados como uma finalidade cuja origem se oculta de nós. Experimentando o mundo, buscamos suas origens; experimentando a nós mesmos, perdemo-nos no vazio. Volto a dizer que um estado de insatisfação permanente parece-me natural ao homem. Talvez por não conseguir encontrar para si uma origem lúcida. Talvez pelo homem se ver e reconhecer como uma finalidade ainda sem origem.

23


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.