19ª Bienal de São Paulo (1987) - Exposição: Marcel Duchamp

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Armadilha/Trébuchet, 1917, réplica de 1964

testemunhada por um cavalheiro como aquele" 44 Na pintura Tu m' (Tu m') percebem-se as sombras lançadas por dois readymades (a Roda de Bicicleta e o Porta-Chapéus), assim como o de um saca-rolhas. Assumindo que o saca-rolhas poderia ser também um readymade, escrevi a Duchamp pedindo informações. Duchamp respondeu: "Pode-se considerar a sombra do saca-rolhas como um readymade, em vez do próprio saca-rolhas. Nenhuma inscrição no sacarolhas. Data: os seis primeiros meses de 1918". Esse é o elemento mais imaterial da obra de Duchamp. Tão imaterial quanto o emprego da amplitude elétrica numa obra de arte (nota 39). Caso não tivesse sido utilizada na pintura Tu m', nenhum de seus traços teria restado. U ma nota da Caixa Verde sugere a importância desse item: os planos de fluxo do Tobogã, um detalhe não realizado de O Grande Vidro, deveriam ser na forma de um sacarolhas (nota 118). O Readymade Infeliz, de 1919, era um livro didático de geometria pendurado do lado de fora de uma janela pela irmã de Duchamp, Suzanne. O original foi destruído e suas dimensões não estão registradas. A primeira referência indireta a esse item pode ser encontrada no projeto de Duchamp para fazer um "quadro doentio de um readymade doentio" (nota 61). O projeto foi concretizado quando Duchamp encontrava-se em Buenos Aires. Com a intenção de fazer um presente de casamento para sua irmã Suzanne, que acabava de se casar, em abril de 1919, com o pintor dadaísta Jean Crotti, Duchamp escreveu-lhe para Neuilly dando instruções para a preparação desse presente de casamento. "Ela deveria prender um livro de geometria, através de

cordas, ao balcão de seu apartamento; o vento passaria pelo livro, escolheria os problemas, arrancaria fora suas páginas e as rasgaria. Suzanne pintou uma pequena tela sobre o tema: Le Readymade Malhereux de Marcel (O Readymade Infeliz de Marce/). Foi tudo o que restou do objeto, visto que o vento o dilapidou. A idéia de introduzir o conceito de feliz e infeliz nos Readymades me pareceu divertida, e a chuva, o vento e as páginas a voar também eram uma idéia divertida"45 Exposto, assim, à intempérie, "o trabalho sofreu seriamente os fatos da vida" .46 "Sabia que cairia chuva, que o vento sopraria e que o livro se sentiria infeliz por estar ao ar livre daquele jeito" (para o autor). Já discutimos a identificação de Duchamp com sua criação, e o fato de que o estado desse readymade sugeria os sentimentos de Duchamp à época, assim como seu desejo de relembrar S uzanne da intimidade maior de seus tempos escolares. A escolha do presente por Duchamp salvou-se de assumir um caráter pouco condizente com sua atitude não romântica, tanto pelo toque de humor, evidenciado por esse trocadilho tridimensional com o conceito da geometria espacial, como pelo interesse idêntico em desacreditar "da seriedade de um livro repleto de princípios" 47 A relação de L.H.O.O.Q. de 1919 (uma reprodução comum da Mona Lisa de Leonardo, à qual Duchamp acrescentou, a lápis, um bigode e um cavanhaque), com a Noiva de O Grande Vidro pode ser sintetizada numa prática popular de Argos, em que as noivas costumavam colocar uma barba postiça em sua noite nupcial (Plutarco, As Virtudes da Mulher). O acréscimo da barba e do bigode à reprodução não era apenas um gesto iconoclasta;

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