24ª Bienal de São Paulo (1998) - Exposição: Núcleo Histórico

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"Acho que virei até antropófaga", escreveu Lygia Clark a Hélio Oiticica, "tenho vontade de comer todo mundo que amo" .18 Clark põe a Antropofagia na perspectiva psicanalítica do canibalismo. Como o "Manifesto antropófago" ("Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud"), ela também rejeita Freud: "Recusamos a idéia freudiana do homem condicionado pelo passado inconsciente".19 Totem e tabu, de Freud é o marco na discussão psicanalítica do canibalismo, mas foi recusado também pela antropologia 20 . No início dos anos 70, Lygia Clark leciona na Sorbonne, onde desenvolve suas propostas poéticas de vivências, trabalhando com jovens, "que são preparados desde a nostalgia do corpo [... ] até a reconstrução do mesmo para acabar no que chamo de corpo coletivo, baba antropofágica ou canibalismo". 21 No período, Clark fazia psicanálise com Pierre Fédida, que no outono de 1972 publica "Le cannibalisme mélancholique" no número "Destins du cannibalisme" da Nouuelle Reuue de Psychanalyse 22. Em 1973 Clark criou duas obras vinculadas ao pensamento de Fédida. Canibalismo, em que "o grupo come de olhos vendados do ventre de um jovem deitado".23 O uso do termo "canibalismo" é raro na cultura brasileira, que utiliza amplamente "antropofagia" (tida como devoração do ser humano-corpo e entidade moral). Clark diz que seu "trabalho é a minha própria fantasmática que dou ao outro, propondo que eles a limpem e a enriqueçam com as suas próprias fantasmáticas: então é uma baba antropofágica que vomito, que é engolida por eles e somadas às fantasmáticas deles vomitadas outras vez [... ]. Eis aí o que chamo de cultura viva".24 Fédida não usou o termo antropofagia em seu artigo. "O canibalismo é a consciência da segunda boca, expressão antropofágica do ser que me transforma no grande ventre perdido invertendo a posição e a mãe é comida para preenchê-lo",25 afirma Clark, conjugando dois exercícios antropofágicos: a apropriação de idéias do Outro (no caso, seu psicanalista) conforme a tradição da Antropofagia brasileira, além de tratar diretamente da fantasmática canibal. A boca mama, suga, engole, morde, devora, vomita, baba. A oralidade está para além do desenvolvimento da libido pelos prazeres de mamar e morder. No corpus da obra de Clark, a Baba antropofágica vincula-se a traumas de infância que emergem em sonho. "A gosma que saía da boca perdendo substância vital, sonho que há pouco tempo reintegrei reengolindo a mesma, o túnel me emparedando, me separando morta-viva."26 A voracidade canibal reaparece quando à Morte do plano Clark contrapôs sua devoração: "Esse retângulo em pedaços, nós o engolimos, o absorvemos em nós mesmos".27 Observando ainda que "a tranqüila fase oral-erótica de mamardesemboca sobre uma fase canibálica. Eu penso que o canibalismo não está somente a serviço do instinto de conservação, mas que os dentes são ao mesmo tempo as armas que servem às tendências libidinosas, instrumentos dos quais ajude a criança a penetrar o corpo da mãe. [. .. ] No primeiro cantata com o seio, a criança procura penetrar à procura do ventre, abrigo poético perdido; não podendo penetrar, introjeta-o, começando a fase canibálica. Ser devorada ou devorar é o processo de incorporação mútua", diz em "Sobre o canibalismo", adicionando que "o ventre é o abrigo poético de toda a matéria, envolve o feto e a forma"-o que nos remete à obra A casa é o corpo (1968), com suas áreas de penetração, ovulação, germinação e expulsão, Louise Bourgeois apresenta diversas possibilidades de explorara tema do canibalismo. As aranhas são, elas próprias, animais canibais, porque depois da cópula as fêmeas devoram os machos. The destruction ofthe father apresenta uma ameaçadora boca; que evoca uma vinculação mais antiga com a psicanálise de Freud. Estamos diante de um ato transgressivo frente à autoridade e à figura do pai, tendo como base teórica a obra Totem e tabu de Freud, como analisa Robert Storr. Outra dimensão do canibalismo na obra de Louise Bourgeois são as relações com o objeto do desejo, com as fantasias canibais suscitadas na fusão amorosa. Surgem aí os fantasmas

32 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


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