31ª Bienal de São Paulo (2014) - Livro

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“Eu matei”. Houve mais de 100 mil mortes documentadas na Síria, segundo a ONU, desde o início da Guerra Civil, embora fontes não oficiais elevem o número para 200 mil. Mesmo assim, essa era diferente. Essa, graças ao vídeo, cria uma pausa, uma ruptura no fluxo acelerado dos acontecimentos. É claro que o fato de que o homem morto era inocente é importante, mas o que prende a atenção é a pequena frase “eu matei” no pretérito perfeito: ela é dita no passado, mas fala sobre o futuro, e o combatente está perturbado porque conhece o futuro. Ele entende essa distorção do tempo, provavelmente de modo confuso, mas a entende. Entende que após o ato de matar, ele será exatamente como aqueles contra os quais moveu guerra. Entende que após esse “eu matei”, a Síria com que ele sonhava – uma Síria livre de ódio, tirania e inúteis e frios assassinatos pelas mãos de um absurdo regime decadente – está destruída. Foi arruinada ainda em botão – e o vídeo captou esse momento terrível. Ao borrar a linha tênue entre os “mocinhos” e os “bandidos”, entre brancos e negros, destruiu nossas ilusões sobre uma revolução limpa, um ideal romântico que nós, testemunhando de fora o desenrolar dos acontecimentos, imaginávamos ou desejávamos ou ocasionalmente até influenciávamos. Todos tocamos a Internacional ou outro hino revolucionário qualquer em nossa cabeça cedo demais, depressa demais. Todos queríamos nos livrar de Assad e seu regime o mais rápido possível, e todos queríamos acreditar nos gritos de “O povo quer...”. Por outro lado, “eu matei”. A arte destrói, mas só insidiosamente. A arte é verdade, porque ela fala da verdade de nosso mundo, e de maneira fiel. Ao fazer isso, ela pode nos contar a história de um mundo fracassado – o nosso – e sua possível dissolução. Ela pode nos contar que há um outro mundo e que ele está neste aqui. Kafranbel é uma pequena aldeia em Idlib, no norte da Síria. Antes do início da revolução síria, muito pouca gente tinha ouvido falar de Kafranbel. Com o início da revolução, Kafranbel se viu no centro dos acontecimentos. A razão era simples: as faixas. No começo da insurreição, os militantes de Kafranbel – praticamente toda a sua população masculina – foram obrigados a fugir para a mata circundante; lá, eles organizavam “manifestações” todas as sexta-feiras, segurando as faixas por eles mesmos concebidas, faziam vídeos e tiravam fotos dos eventos, que eram postados na internet. Até aí nada fora do normal; esse tem sido o modus operandi de praticamente todas as revoltas que abalaram o mundo nos últimos anos, do mundo árabe aos movimentos Occupy na Turquia, no Brasil e assim por diante. A notoriedade de Kafranbel cresceu mais e mais, especialmente na ausência de um espaço ou praça central de onde a voz da revolução pudesse ser ouvida (como as praças Tahrir, no Cairo, Taksim, em

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