Os Mananciais da Vida Franciscana

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por

Frei Galo Haselbeck, O. F. M.

Versão de Fr. Leopoldo Pires Martins, O. F. M.

1933 Tipografia «Vozes» — Petropolis

Imprimatur Curitybae, die 2. Februarii 1932.

Fr. Philippus Niggemeier, O. F. M. Min Prov.

CAPPTULO PRIMEIRO

A individualidade franciscana

§ I. Princípio fundamental da vida franciscana

Vesperas de Profissão Religiosa!

O sol poente, coando pelos vitrais do Capítulo, ilumina as feições dos noviços. Á luz do sol, afogueiam-se as fisionomias num arroubo juvenil; amanhã, pelos votos sagra­ dos, passarão a filhos ditosos de São Fran­ cisco. E, ajoelhados deante da comunidade, com o coração nos lábios, pedem admissão aos votos religiosos: «Veneráveis Padres, e diletos Irmãos em Cristo, rogo-vos por amor de Deus, da Bem-aventurada Virgem Maria, do Nosso Seráfico Pai Francisco e todos os Santos, vos digneis adtnitir-me à profissão na Or­ dem Seráfica, para fazer penitência...

FAZER PENITÊNCIA, eis a que neste magno dever vai o objetivo de suas aspi­ rações futuras. Fazer penitência! eis a defi­ nição do caráter da vida franciscana.

Em abono de tal convicção podem in­ vocar o testemunho do Seráfico Pai São Francisco, o qual, recordando os desígnios de sua vida, perpetuou no seu Testamento a grata recordação: «Concedeu-me o Senhor a graça de uma vida penitente...»

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Princípio fundamental da vida franciscana

Com efeito, a penitência e a abnega­ ção são a nota dominante na Regra obser­ vada por São Francisco e os seus Filhos. * ★ * Lapidares são as palavras que abrem a nossa Regra: «A norma de vida para os Frades Menores é a observância do santo Evangelho de Jesus Cristo». E a Regra ter­ mina exortando: «Cumpramos à risca o san­ to Evangelho, conforme prometemos, de to­ do o coração.»

Depara-se-nos algum contrasenso entre o corpo e a epígrafe da Regra ? S. Fran­ cisco. para quem o Espírito Santo esclarecia o sentido das Escrituras, descobfiria na pe­ nitência o âmago das prescrições evangé­ licas ?

O Pobrezinho de Assiz tinha, sem dú­ vida, o dom de compenetrar-se das verda­ des divinas. Na interpretação das Escrituras não há meios de aproximá-lo daqueles que no Evangelho procuram a boa nova de uma redenção sem sacrifícios. São Francisco, re­ verente aos mistérios da Escritura, afasta-se dos que fazem do Evangelho um receituário vago de amor a Deus e ao próximo.

Não resta dúvida que o Evangelho é a grata mensagem da Redenção. Tomado em conjunto, porém, pressupõe nossa co­

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operação, para nos remir da petulância dos sentidos, do pecado que assoberba nossa fragilidade. «Completo em meu corpo o que me falta à paixão de Cristo», diz São Paulo Apóstolo, o mais ardente prègador do Evangelho.

Nossa cooperação participa do caráter da Redenção. Esta, porém, foi um portento de abnegação e sacrifício. Para assumir a forma de servo na Incarnação, o Filho de Deus obnubilou quanto possível a sua divindade. Mais tarde, teve de abandonar a forma de servo, quando sacrificou a sua hu­ manidade pela salvação do mundo. Não es­ tranha, pois, que a nossa cooperação seja de caráter penitente, na estrada real da San­ ta Cruz.

Tôda a doutrina, todos os preceitos e conselhos do Evangelho culminam na ex­ ortação à penitência: «Quem não renunciar a si mesmo, não pode ser meu discípulo».

Este princípio é o fundamento da moral evangélica.

Francisco teve a ventura de penetrar o sentido do santo Evangelho, quando fêz uma ordalia, para saber qual a norma de vida que devia seguir com seus irmãos. Com simplicidade pediu ao sacerdote abrisse, com sua mão ungida, o santo Evangelho, e por três vezes atinou com o conselho de renunciar a tudo. Na terceira vez deu com os olhos

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Pr i n cí pi o fundam ental da vida franciscana

na passagem : «Quem quiser seguir-me, re­ negue a si mesmo e abrace sua cruz». O Santo compreendeu, então, ter achado a fon­ te da sabedoria evangélica. Desvaneceramse as dúvidas. «Eia, pois, quem quiser aban­ donar tudo, venha à nossa companhia».

Quando quis, mais tarde, ultimar a re­ dação da Regra, começou com as palavras: «A vida dos Frades Menores é observar o santo Evangelho de Jesús Cristo». E as di­ versas prescrições da Regra, formulou-as tão conformes à penitencia, como não o fizera nenhum Fundador antes dêle. No fim da Regra declara não exceder-se em suas exi­ gências impondo a observância pura e for­ mal do santo Evangelho. «Para observarmos o Evangelho, conforme prometemos, de to­ do o coração». A interpretação ascética do Evangelho, muito apreciada na Igreja de Deus, colhe seu maior ^triunfo na Regra de Sao Francisco.

Sob o ponto de vis­ Caráter da pobreza ta ascético, o postulado franciscana

fundamental da Regra firma-se na completa abnegação de si mesmo.

Como ideal exige a maior mortificação pos­ sível das fórças morais do homem.

Antes de tudo, é de obrigação renun­ ciar completamente ao dinheiro, aos bens pas­

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sageiros dêste mundo. A um Filho de São Francisco não é só proibido todo luxo, mas até o gozo de muitos bens, tidos em geral como imprescindíveis. O franciscanó pratica, portanto, a pobreza na sua maior eficiência.

«Não tenham a propriedade de cousa alguma, nem de casas, nem terrenos, nem outras cousas. A modo de peregrinos e viandantes neste mundo, sirvam ao Senhor, em pobreza e humilhação.» Assim prescreve o programa de pobreza franciscana.

Estas poucas palavras exprimem uma renúncia sem exemplo em outras Regras monásticas. Não padece dúvida, os institu­ tos monásticos exigem dos membros a mais estrita renúncia de todos os bens. O reli­ gioso, como indivíduo, não pode reputar-se dono de cousa alguma. Mas, a comunidade como tal, a família monástica, sempre foi tida, em tòda a parte, como legítima pos­ suidora do convento e de todos os imóveis e pertences, cujo inventário cifra-se, não raro, numa fortuna considerável. Nas antigas Ordens monacais, o monge assumia, pelo voto de estabilidade, a obrigação vitalícia de permanecer no mesmo mosteiro, e assim obtinha um lar inamissível, com direito de ser sustentado dos bens claustrais. O voto de pobreza não implica aí necessàriamente a espoliação completa nem o abandono de

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todos os bens. E uma renúncia munida de certas clausulas.

Indo além, a Regra Franciscana ten­ de à mais alta pobreza possível. Prescinde inteiramente da propriedade, desapropriando não só o indivíduo, mas até a corporação.

Nenhuma comunidade, nenhuma província, nem a Ordem como tal pode invocar direi­ tos de possessão. «Os irmãos nada tomem para si, nem casa, nem terras, nem cousa alguma».

O comunismo cristão, praticado pelas outras Ordens religiosas, priva o indivíduo da propriedade pessoal, sem torná-lo pobre no rigor da palavra. Cada religioso tem di­ reito aos bens comuns do instituto. O Fra­ de Menor, entretanto, não só vive sem bens pessoais, mas é pobre em todos os senti­ dos De forma alguma encontra, dentro ou fóra da Ordem, um expediente financeiro que cubra legalmente suas precisões diárias.

O Franciscano não tem onde repousar a cabeça.

A Ordem Franciscana não tem a pro­ priedade de suas casas. Não póde, pois, dar foros de pátria a seus Filhos, aqui no mundo. Vivem os Franciscanos sem casa própria; simples hóspedes do Sumo Pontífi­ ce, a quem pertencem todos os conventos da Ordem. «Quais peregrinos e viandantes

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aqui na terra, sirvam ao Senhor com pobre­ za e humildade».

Em obediência à necessidade de viver, é licito ocuparmos as casas que nos forem cedidas a título de esmola ou empréstimo.

Não militam, todavia, as mesmas razões em favor de outros meios de manutenção, mórmente quanto aos bens imóveis. Quem possue rendas certas, quem não tem, ao rom­ per do dia, a dolorosa preocupação: «Que hei-de comer, que hei-de beber?» não póde considerar-se verdadeiro pobre. A simples ocupação de glebas consideráveis não é com­ patível com a vida de pobreza. E’ que o rendeiro, embora não seja o dono das ter­ ras, sempre tem um meio certo de vida.

Não admite, pois, exceções o preceito que «os frades não adquiram imóveis». Fora os jardins necessários para o recreio dos reli­ giosos, é proibido ao Franciscano ocupar áreas de grandes proporções, ainda que da­ das por empréstimo. Para o custeio da vida comum não pode a Ordem possuir, nem usufruir bens imóveis.

Nestes termos, deve ser interpretado o interdito franciscano de não usar dinheiro, um preceito sem par na legislação monásti­ ca da Igreja. Eis o texto: «Com o máximo rigor prescrevo a todos os irmãos, não acei­ tem dinheiro, de modo algum, nem por pes­ soa intermediária.»

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Principio fundamental da vida franciscana

Para apurarmos, através a letra morta, o sentido déste preceito, é preciso ter ante os olhos a situação econômica do século XIII. O dinheiro não corria como na época atual.

As compras e vendas não eram feitas por pagamento ; permutavam-se os produtos, sem intervenção pecuniária. Assim desenvolviase mais ou menos o comércio, quando São Francisco escreveu a Regra. Mas por èsse tempo, já se ia operando uma transforma­ ção. O dinheiro, entrando em franca circula­ ção, começava a manifestar tendências capi­ talistas. Não se escoando logo no comércio de varejo, afluia às mãos de quantos sabiam fazer altas transações, e tentava-os a usar de explorações e piratarias.

Familiarizado com as «changes» do alto comércio, S. Francisco reconheceu, pelas lu­ zes do alto, que o dinheiro conspirava con­ tra o seu ideal. Pressentiu quàsi visionariamente que o coração humano, embaído pela sedução do ouro, não podería compre­ ender e muito menos prelibar a beatitude de quem é pobre de espírito. Por isso, abor­ recendo o dinheiro com a mais abominável das cousas, interditou-o para si e seus com­ panheiros, com extremo rigor. Uma proibi­ ção que era mantida com zêlo inquebrantável.

Citemos uma única ocorrência. Um ir­ mão retirou, certa vez, as esmolas pecuniá­

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rias de sobre o altar, e colocou-as no res­ guardo de uma janela, para que não caís­ sem em mãos de gatunos. Mal soube disto, mandou o Santo, indignado, que o infeliz apanhasse, com os lábios, o dinheiro da ja­ nela e fosse à cata de um monturo, nos ar­ redores, onde devia lançar de si o maldito dinheiro.

A proibição de usar dinheiro, em últi­ ma análise, tem por fim evitar que se amon­ toem bens fugazes, alimento das traças. As­ sim como o passadio dos Frades não deve provir de bens imóveis, pode tampouco ser garantido por capitais líquidos. Esta é a ra­ zão principal do interdito pecuniário, e nesse sentido é que a Ordem inteira o cultiva com maxima fidelidade.

Que a Regra moldasse o preceito em termos draconianos, explica-se pelas circuns­ tâncias da época. Naqueles tempos, como se fazia o varejo por permutas, não admira que o menor uso de dinheiro levasse o ferrete de capitalismo. Mas, neste particular, deslocou-se por inteiro a situação econômica.

Hoje, compras e vendas realizam-se exclusi­ vamente a dinheiro. Até o mendigo tem seus níqueis no bolso. E as complicações da vi­ da moderna impedem a observância literal do preceito, de sorte que a Ordem do gran­ de Desprezador da moeda se vé na emer­ gência de usar dispensas, maiores ou meno­

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res, conforme as circunstâncias. Intata fica, contudo, a essência do preceito, que pode ser assim formulado: «Não é lícito fazer capital».

Desta forma, a Ordem Franciscana não tem proventos garantidos. Fica-lhe defeso tudo o que tenha feição de rendimentos.

Não tem direito sequer aos bens dos candi­ datos ao hábito. Nos requisitos para a ad­ missão diz a Regra: «Digam-lhes os minis­ tros a palavra do santo Evangelho, que vão e disponham de seus haveres, repartindo tu­ do entre os pobres... E abstenham-se os irmãos de se interessar pelos bens dos can­ didatos, para que estes possam dispor livre­ mente do que lhes pertence, segundo a inspiração de Deus». Dest’arte, o Frade Me­ nor deve viver, dia a dia, do pouco ou muito que puder dispor para seu sustento.

A despeito da maior sobriedade, não pode o homem prescindir de certos recursos econômicos. Com que meios, pois, acode Francisco às necessidades de seus irmãos ?

Em primeiro lugar, com o salário le­ gitimamente adquirido. E’ verdade, S. Fran­ cisco receava ter facilitado assim um meio certo de custear a vida. E não eram fúteis os seus temores, pois a mão de obra constitue uma espécie de capital, de cujos frutos vive o operário. S. Francisco não tardou,

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entretanto, em conjurar o perigo, por meio de sábias restrições. Ouçamos a Regra: «Os irmãos que, pela graça de Deus, são idôneos para o trabalho, trabalhem de boa vontade...

Como paga poderão aceitar o que for pre­ ciso para viver,... por sinal que humilde­ mente, como convém a servos de Deus e amantes da santa Pobreza».

Os Franciscanos podem, por conse­ guinte, aceitar a remuneração, à medida que o exigirem as injunções da vida cotidiana, mas de modo algum lhes é permitido explo­ rar o trabalho como fonte de lucros. O sa­ lário deve ser aceito com toda a humildade..

O sentido desta prescrição patenteia-se no Testamento de S. Francisco, onde veda aos Frades recorrerem à justiça, quando não re­ cebem a paga devida. Diz que então façam peditório. Assim está claro que, na mente do Fundador, o Franciscano não tem direito legal à remuneração do trabalho.

Evidente é que em tais condições o trabalho não fornece o sustento diário, ainda que vivendo com a mais absoluta parcimônia.

S. Francisco, todavia, soube como remediar.

Abre aos seus uma fonte, da qual nenhum Fundador tinha ainda cogitado, a mesa da Divina Providência, a santa mendicância.

«Quando nos negam o preço de nosso tra­ balho, recorramos à mesa do Senhor, pe­ dindo esmola, de porta em porta». Nestes

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termos é que fala no Testamento, e na santa Regra exorta: «Como servos de Deus, po­ bres e humildes, tirem esmolas com con­ fiança». O Santo, está claro, compreendia a pesada obrigação que impunha a seus fi­ lhos, e por isso ponderava que esmolar não é vileza. A esmola sobre a mesa não avilta o religioso, como se fôra madraço, nem o reduz à condição dos pobres comuns. Com o pedir esmola, o Frade Menor pratica uma obra meritória, um feito abnegado, por amor de Cristo que sendo rico, esposou a po­ breza voluntária. «Não devem envergonharse da mendicância, porque o Senhor se fêz pobre neste mundo, por amor de nós, e nela culmina a excelência da extrema pobreza!»

Mas voltemos ao programa da pobreza franciscana.

«Não tenham os irmãos propriedades como sejam casas, terras e outras cousas mais.» Esta última clausula, sumária e cabal, subtrai à Ordem a propriedade dos objetos mais insignificantes. O Frade Menor, como indivíduo, e a Ordem, coletivamente, não possuem utensílios próprios, mas podem usá-los com a permissão dos respetivos pro­ prietários.

Aos objetos de uso pertence, antes de tudo, o mobiliário. A Regra nada diz a res­ peito da instalação doméstica. E’ sabido, porém, que S. Francisco impunha neste

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ponto, a si e aos discípulos, as mais duras privações. «Os leitos eram tão grosseiros, -que os frades julgavam ter cama de luxo, quando podiam descansar numa pobre enxérga. O Cardeal de Ostia veio um dia a Assiz visitar seus queridos frades. Avistando os catres nas celas, disse, chorando, ás pes­ soas da comitiva: «Vede, assim descansam os Frades Menores!»

Déste episódio não é difícil concluir quais não eram os outros móveis. Mui con­ forme á mente de S. Francisco determinam as Constituições Gerais: «O uso de cousas inúteis e supérfluas deve ser totalmente ex­ tirpado. Os irmãos devem contentar-se com poucos móveis singelos, como convém a servos de Deus e amantes da santa Pobreza».

As Constituições Gerais são leis baseadas na santa Regra, e promulgadas para a Or­ dem inteira, com autorização da Santa Sé.

Pela Regra, o Franciscano pode ter, para seu uso, dois hábitos de pano ordiná­ rio. São Francisco queria a roupa da lã gros­ seira que era então usada pelos pobres, en­ quanto o luxo da época procurava tecidos de linho, seda e veludo. Para resguardo da friagem é permitido trazer capa. Em circuns­ tâncias ordinárias, considera-se supérfluo usar de sapatos.

A alimentação deve ser sóbria, visto que o sustento diário é custeado exclusiva33 - 79

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mente pelo trabalho e os peditórios. A Re­ gra ainda prescreve, duas vezes por ano, um jejum de quarenta dias, e deseja que os re­ ligiosos guardem, por própria iniciativa, a quaresma da Epifania, em atenção ao jejum de Cristo no deserto. No mais, não aten­ dam a razões gastronômicas, e tomem o alimento que lhes é apresentado.

RECAPITULAÇÃO. De que bens goza o Franciscano neste mundo ? Como seu proprio, de cousissima nenhuma. O Frade Me­ nor não tem a seu favor os direitos da pro­ priedade pessoal ou coletiva. A título de empréstimo, póde servir-se do que precisar para viver honestamente, mas deve fugir do conforto excessivo, de tudo quanto por mais tempo o afaste da «mesa do Senhor».

A Regra dá a entender que as concessões feitas nesta matéria foram extorquidas por cruéis imposições da vida que na realidade não permitem uma espoliação completa.

A Ordem Franciscana professa, de fato, a «copiosa paupertas», a plenitude da po­ breza, um desapêgo aos bens materiais, que maior não póde existir. Quem vive e mor­ re como verdadeiro Franciscano, não ouve debalde a exortação do Evangelho: «Quem não se desfizer de tudo quanto possue, nâo poderá ser meu discípulo». * ★ *

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A ^negação deve ainda calar mais fundo na dade franciscana . , j j x *■ . vida do Frade Menor. Pois a Regra não se contenta só com renunciar­ mos aos bens temporais. Quem a professa, deve também renunciar á família, aos en­ cantos do lar doméstico.

«Afasta-te de tua parentela e da casa de teus pais». Êste apélo divino a Abraão che­ fe dos Patriarcas, dirige-se também a todos que se recolhem no claustro, e o Franciscano déle não se póde esquivar.

A quem quer pertencer todo a Cristo, força lhe é desapegar-se da família, arrancarse do meio íntimo em que nasceu. Caso queira ter o coração só para Deus, deve sopitar aquela afeição por demais terrena que não deixa o homem «pensar naquilo que é de Nosso Senhor». «Quem vem ter comigo e não quer largar o pai, mãe, irmãos e parentes, não póde ser meu discípulo». E’ a separação da própria estirpe, e para tanto é preciso forçar o coração.

Em primeiro lugar, separação física, pelo menos quanto o exige o serviço de Deus. Tal sacrifício nobilita a nossa natural afeição ao proprio sangue.

S. Francisco, neste sentido, não pou­ pava sacrifícios a seus filhos. Como se des­ ligara éle da família, para ter um só pai, o Pai Celestial, quer da mesma fórma que seus Caráter da casti-

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Discípulos se libertem, quanto possível, dos' laços de parentesco. Tais fossem seus senti­ mentos, demonstram-no as observações que costumava fazer a quantos pediam o santo hábito.

A Regra não se declara a respeito, mas nela transparece a intenção do Funda­ dor. Os candidatos devem distribuir seus bens aos pobres, que não a parentes. E pre­ terindo um jovem êste preceito, S. Francisco despediu-o sem delongas, significando-lhe: «Não te afastes de tua parentela, nem da tua casa de teus pais».

O parentesco espiritual, entre padri­ nho e afilhado, não deve tampouco prender o Frade Menor ao mundo. «Não sirvam de padrinhos, nem a homens, nem a mulheres».

A fundação de família própria não se harmoniza com o abandono absoluto nas mãos de Deus. Se um casado, de acordo com a esposa, vier pedir o santo hábito, deve antes deixá-la no mundo, e daí por deante tê4a como morta para si. «Os Supe­ riores podem dar-lhes o hábito de novicia­ do... se a esposa já tiver entrado em con­ vento, ou feito o voto de continência, com a autorização do Bispo Diocesano, e pela idade não inspirar suspeitas contra sua con­ duta.» Êste caso, porém, não passa de uma exceção. De ordinário, o candidato está livre de laços matrimoniais. Para ser admitido na

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religião, deve renunciar para sempre, pela castidade perfeita, ao direito natural de fun­ dar familia. Esta renúncia é mais pungente que a espoliação de bens de fortuna, por­ que êstes, por mais apetecíveis que sejam, não fazem parte integrante da natureza hu­ mana. O cristão, professando castidade, refauncia portanto ao complemento de sua personalidade, ao «adjutorium símile sibi», á companheira da mesma especie, cujas rela­ ções intimas com o varão o Espirito Santo carateriza com majestosa singeleza: «Serão ^dois numa só carne».

Quem tiver repelido energicamente os bens deste mundo, não será tentado facil­ mente a correrdhes ao encalço. Sempre são cousas que se não identificam conosco. Mais imperiosas são, todavia, as exigências de nossa própria natureza, porquanto se as não podem reprimir com o simples desprêzo, com um gesto sobranceiro. Uma vez feita a renúncia, força nos é sustentá-la sem tré­ guas, e renová-la energicamente contra as loucas pretensões da natureza. Isto requer grande abnegação, o domínio de si mesmo e um combate ininterrupto aos apetites da carne. Tanto mais, que o celibato, para ser puro e grato a Deus, não quer dizer troca do matrimônio por um infame «solteirismo», mas é a prática nobilitante da suma casti­ dade que proibe o mais leve desejo, o

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mais fugaz pensamento, quando voluntários e, por conseguinte, pecaminosos. «Castigo meu corpo, e o mantenho em servidão». Es­ ta norma de S. Paulo constitue lei para quantos escolherem a vida espinhosa do ce­ libato cristão.

A tal ponto deve todo e qualquer re­ ligioso renunciar ao mundo. S. Francisco, porém, aspirando a maior perfeição, vai mais além: «Ordeno rigorosamente a todos os Frades, não tenham familiaridades ou rela­ ções suspeitas com mulheres». Assim diz a Regra.

Esta proibição não fere as relações que sem direta lesão da castidade excedem, con­ tudo, os termos de simples cortezia e cava­ lheirismo, que são estas defesas a todo ce­ libatário cristão, pois arrastam a caminhos escabrosos, e daí vai só um passo á quebra formal da castidade. Proibe ao invés todas as relações por si inocentes, mas que pos­ sam provocar a malícia do mundo. E’ pois evidente que o Frade Menor mal poderá assim travar relações amistosas com mulhe­ res. Não cogitamos daqueles sentimentalismos boçais, indignos de homem que se preze. Haja vista a amizade séria e correta, da qual a dra. Fanny Imle escreve: «Deus, Autor das harmonias, desferiu, ao crear o homem, o mavioso acorde do amor que desde então repercute não só na vida con­

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jugal, mas também na evolução da huma­ nidade inteira... Até os maiores Santos com­ preendiam o que era amor e amizade. A vocação de se dedicarem sem reservas ao serviço de Deus, fazia-os abraçar, de bom gosto o celibato, mas as vibrações de sua alma harmonizavarmse por vezes com a melo­ dia de piedosos corações femininos», sem turvar a própria pureza, sem impedir o do­ ce trato com Deus. «Mulheres de escol votavam-lhes amizade, e eram cooperadoras de suas missões».

O Frade Menor, compreende-se, não ppderá manter dessas amizades que em si não desagradam a Deus. A intenção de S. Francisco era extremar a renúncia á vida domestica, assim como sublimou a abnega­ ção das coisas temporais. «Mel envenenado, assim dizia, que póde iludir os proprios Santos».

Comete uma perfídia, o Frade Menor que se compraz de alguma mulher, porque assim trai os interêsses de Deus, seu Senhor e Rei. «Um monarca poderoso, dizia o San­ to numa parábola, mandou em ocasiões di­ versas dois pagens á Rainha. O primeiro entregou a resposta, sem mais comentários.

O segundo, porém, excedía-se em louvor á íormosura da soberana. «Em verdade, Se­ nhor, meus olhos viram o maior encanto de beleza; feliz o mortal que a tem por com­

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panheira!» A estas palavras, indignou-se o Rei, e disse: «Servo infame, contemplaste com olhar de malícia e querias para ti um bem que não te compete». E volvendo-se ao primeiro pagem: «Tu, com teus olhos castos e puros, ficarás a serviço de minha câmara; teu companheiro, porém, que se retire da minha Còrte, seria capaz de pro­ fanar a pureza de meu tálamo».

RECAPITULAÇÃO. Se interrogarmos quais alegrias do lar doméstico tem o Fra­ de Menor, não há dificuldade em respon­ der que, para sua pessoa, nenhuma. Póde entreter-se com parentes e senhoras, só quando o exigir o munus pastoral. «Não sei, diz S. Francisco, o que o Frade Me­ nor deva tratar com mulheres, a não ser que estas lhe peçam conselho, para fazer penitência e começar vida mais santa». Neste ponto, o espirito de abnegação só recua deante da irremissivel necessidade. Em com­ pensação, o Frade Menor encontra um am­ biente familiar na roda de seus confrades, onde se confirma a consoladora verdade: «Oh! quão bom e quão suave é viverem irm.os em harmonia!» (Salmo 133, 1).

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. A abnegação franciscana tem ainda raifranciscana r j zes mais fundas; em­ polga mais ao vivo a nossa existência, ca­ lando vitalmente em nossa personalidade pela última de suas elevadas ínjunções: a obediência e humildade.

Poder governar-se por si, ser o único responsável de seus atos, enfim a autonomia em sentido restrito, é mais o rico apanágio da natureza humana. E’ pois destronar o nosso eu, por assim dizer, quando pela obe­ diência e humildade depomos essa coroa nas mãos dos Superiores eclesiásticos, e nos desfazemos de nossa liberdade pessoal e pró­ pria autonomia, quanto o permitem as leis da ética e moral cristã. Isto é mais do que renunciar absolutamente aos bens temporais: é mais do que renunciar à fundação de fa­ mília, pois desta maneira quasi nos espolia­ mos de nossa personalidade, por amor a Jesús Cristo.

Todos os escritos e declarações do Se­ rafim de Assiz patenteiam a suma importân­ cia que ligava à obrigação de obedecer. A Regra designa até a agregação ao instituto como admissão à obediência. «Findo o ano de provação, sejam admitidos à obediência».

Esta disposição não envolve nenhum absurdo, e tem plena razão de ser na Or­ dem Franciscana. Poucos Fundadores monás-

Caráter da obediência

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ticos se afoitaram de marcar tão longe as li' nhas obrigatórias da obediência. Em matéria lícita não há limites nem restrições para a obediência franciscana. «Com todo o rigor ordeno a meus irmãos, obedeçam a seus Superiores em tudo o que prometeram a Deus observar, e que não ofenda a conciência nem contradiga à nossa Regra». Assim, por motivos sobrenaturais, é levada ao extremo a mortificação da própria vontade. No ámbito quasi imensurável da obediência franciscana prevalece, por princípio, o beneplácito dos Superiores. «Lembrem-se os Irmãos de que renunciaram à própria vontade, por amor de Deus. Por isso, ordeno-lhes rigorosa obediência aos Superiores». A mente desta prescrição, o Santo no-la dá em seu Testa­ mento : «Quero resolutamente obedecer ao Ministro Geral e ao Guardião que lhe aprouver dar-me. De tal forma quero abandonarme em suas mãos, que não possa dar um passo, nem fazer coisa alguma, sem ser por êles autorizado». A obediência do franciscano corresponde à medida que êste não deve recalcar a própria vontade.

Se bem que esta interpretação da obe­ diência já venha expressa no Testamento, São Francisco não deixou de exemplificá-la num colóquio espiritual com seus filhos.

Perguntado como se manifesta a obediência perfeita, respondeu: «Toma um cadaver, e

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coloca-o onde quiseres. Hás-de ver, não re­ siste, quando o moves. Onde quer que o ponhas, não clama; não geme, quando tom­ ba. Assentado numa cadeira, pende com a íronte, em vez de empertigar-se. Envolto em púrpura, mais e mais ressalta a lividez de seu rosto... Eis o retrato do religioso perfeito na obediência. Não indaga o motivo, quando o transferem; pouco se lhe dá o lugar a que tór destinado, porquanto nenhum empenho faz por realizar seus próprios desejos. To­ mando a si algum cargo, nem por isso deixa de ser humilde, pois quanto mais o cumu­ larem de honras, tanto mais indigno há-de parecer aos próprios olhos.

Ainda que a paixão do mando é assim reprimida e sofreada, a obediência não seria, contudo, um ato moral, se apenas consistis­ se na sujeição externa e servil, sem os de­ vidos sentimentos do coração. Renunciar à própria vontade pressupõe uma condição impreterivel: a humildade cristã.

A exemplo do divino Mestre, que la­ vou os pés dos discipulos, o humilde não reluta em ser servo de seus irmãos. Com a maior naturalidade procura conciliar a sub­ missão exterior com a sujeição íntima da vontade, fazendo com espírito de obediên­ cia o que as regras monásticas preceituam.

Desta maneira, o obediente faz-se servo da

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pessoa a quem deve obediência, e sua mor­ tificação toma o. vulto de um feito heróico.

Não admira, pois, que S. Francisco sempre colimasse o ideal da humildade cris­ tã. O nome dado à sua família religiosa inclue um programa de acordo com as idéas humildes do Santo. E’ o nome que o Pa­ triarca dos Pobres escolheu, quando dizia ao Cardeal Protetor: «Chamam-se Frades Me­ nores os meus filhos, para que não tenham a pretensão de se fazerem senhores».

Na Regra ocorre sempre a admoestação de serem todos bem humildes. S. Fran­ cisco «aconselha e exorta» seus irmãos — a quem chama de «servidores humildes do Senhor» — «guardem-se da ambição e so­ berba»; admoesta-os a «não desprezarem nem julgar aos que levam vida menos rigorosa»; «cada qual, pois, despreze e julgue a si mesmo».

Por amor à humildade, o Santo inter­ diz o uso de pomposas cavalgaduras, dissua­ de os irmãos leigos de procurarem estudos científicos. Os religiosos devem «receber com humildade» até o salário legalmente adqui­ rido. A humildade é, afinal, a última nota dos maviosos acordes com que S. Francisco impregnou sua Regra de melodias celestiais.

Assim termina a derradeira exortação da Regra: «...para seguirmos a pobreza e a hu­

Princípio fundamental da vida franciscana

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mildade e o santo Evangelho de Cristo, conforme prometemos de boa vontade».

RECAPITULAÇÃO. Que sobra, por­ tanto, para o Frade Menor, da liberdade na­ tural de viver sôbre si, como melhor lhe parecer? A liberdade únicamente indispen­ sável para a salvação da própria alma e para observância da santa Regra. No mais preva­ lece uma só vontade, a vontade do Supe­ rior, à qual todos devem curvar-se com hu­ milde submissão, para que a obra externa seja sublimada pela grandeza de um coração humilde. ¥ ★ ¥

Agora já conhecemos o princípio fun­ damental da vida franciscana, a renegaç^o do mundo que se manifesta, quasi extrema, na tríplice renúncia aos bens materiais, aos bens do matrimônio e aos bens da autono­ mia pessoal. Nisto consiste para o Poverelo o «facere paenitentiam», o fazer penitência.

S. Francisco não define o essencial da penitência em macerações ou tormentos ex­ traordinários, mas em renunciar de todo aos bens temporais, às alegrias da família, ao gosto de governar nossos atos e resoluções.

Numa palavra, a penitência é a realização perfeita do dito sagrado: «Quem quiser ser meu discípulo, abnegue-se a si mesmo». Dar

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Princípio fundamental da vida franciscana

a éste axioma evangélico a mais adeqüada expressão, é o fito de quasi todos os prin­ cípios ascéticos aduzidos na Regra. O prin­ cípio fundamental da vida franciscana tra­ duz-se, portanto, na mortificação de si mes­ mo, na penitência propriamente dita, na abnegação até ao último grau possível.

Ultimando seu programa de vida pe­ nitente, S. Francisco inculca a seus filhos não pratiquem o heroísmo da mortificação só por algum tempo, mas procurem manter seus magnânimos propósito’s até ao úhimo suspiro. «Prometam observar para sempre esta norma de vida, e não lhes é facultativo abandonar a Ordem, pois conforme a dou­ trina do Evangelho não é idôneo para o reino de Deus, quem lança mão do arado e olha para trás».

O princípio fundamental da nossa Re­ gra faz da vida franciscana uma «vita crucifixa», na qual se deslindam os segredos da palavra de S. Paulo: «Não cogito gloriar-me de cousa alguma, senão da Cruz de Jesus Cristo, pela qual o mundo me está crucifi­ cado».

§ 2. Méta régia

O desprézo do mundo e a mortifica­ ção franciscana, apesar’ de sublimes em sua intransigência, não constituem todavia o úl­ timo escopo da Regra, e não podem por conseguinte ser praticadas quasi como faquirismo religioso. Na mortificação vai a base, mas de modo algum a consumação da Re­ gra franciscana. Fim e. diretiva dessa cruel renúncia aos bens prescindíveis dêste mun­ do remontam às alturas do ideal evangélico, se lícito for usar de um termo «suspeito», tal renúncia tem por fim formar superhomens de mentalidade cristã, ou melhor, «príncipes e herdeiros do Reino dos Céus».

A Regra, propriamente, nada diz a respeito. Não admira, pois seria repisar uma cousa evidente e incontestável. Nada maisnatural que a mortificação tenha por fim rehaver e consolidar a supremacia da alma sobre os instintos baixos da natureza. Mor­ tificação e domínio de si mesmo significam a mesma cousa em linguagem ascética. Por isso, nem de longe nos surpreendería, se a Regra franciscana não se pronunciasse quan­ to a seus fins e intentos. No sexto capítulo, entretanto, São Francisco expande seu cora­

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Méta régia

ção paternal, dizendo que de seus filhos quer fazer «herdeiros e principes do Reino dos Céus».

Esta idéa desde muito preocupava o santo Legislador. Ja vinha expressa na pará­ bola com que alcançou em 1210 a aprova­ ção eclesiástica de seus planos.

«Era uma vez, dizia éle ao Papa, uma virgem formosíssima que vivia refugiada na solidão. Passando o Rei pelo deserto — Cris­ to na encarnação —encontrou-se com a vir­ gem e, atraído por seus dotes peregrinos, escolheu-a para esposa. Os filhos nascidos dêste enlace — os que seguem a Cristo em pobre­ za e mortificação — tinham as feições do pai, nas quais resplandecia também a formosura materna. Bem cedo chegou a hora da sepa­ ração. O Rei teve de recolher-se à Côrte, enquanto a espôsa preferiu ficar no ermo, onde ia educando os filhos com todo o esmêro e carinho. Estando já crescidos, disselhes a mãe: «Filhinhos, sois infantes de um grande Rei. E’ tempo de irdes prestar-lhe homenagem. Procurai, pois, os seus paços».

Partiram os principes e foram ter com o pai. Ao vê-los, o Rei reconheceu-lhes no semblante as próprias feições e a beleza ma­ terna, e com muita efusâo exclamou: «Sois meus filhos, sois meus príncipes reais. To­ mai lugar à minha mesa».

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S. Francisco quer, portanto, educar «reis do Reino dos Céus». Para êste fim é que assentou a Regra sobre o mais irredutível desprêzo do mundo.

Reino dos Céus! palavra mágica que nunca deixa de alvoroçar os corações sequio­ sos de plena felicidade. Tamanha exaltação provocou ela nos dias de Cristo, que os fariseus, escarninhos, tomavam ensejo de per­ guntar quando viria o mui falado Reino dos Céus. O Salvador, muito embora, repeliu-os com as palavras: «O Reino de Deus está dentro de vós». Não é para vós, que apete­ ceis pompas e grandezas mundanas, é das alma recolhidas».

Com esta explicação põe N. Senhor a descoberto as bases do Reino de Deus. On­ de reina Deus, aí está também o Reino de Deus. Para quem puder fazer suas as pala­ vras de S. Paulo: «Eu vivo, mas não sou eu, Cristo é que vive em mim», sinal é que em seu coração se arraigou o Reino de Deus. Tal pessoa deve, naturalmente, ter-se despojado de tudo que tenha sabor terre­ no; o «Reino dos Céus» é para nossa alma o tesouro do campo evangélico, por cuja causa o homem vai e vende seus haveres, para adquirir o tesouro.

E’ evidente. S. Francisco, com ensinar seus filhos a revestirem-se de Cristo, pelo abandono dos bens terrenos, não mira outra 33 - 79

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cousa, senão fazê-los herdeiros do Reino dos Céus.

Não padece dúvida que o educador S. Francisco visa os mais elevados ideais pe­ dagógicos. Suas injunções correm a vasta escala da abnegação e renúncia, porque seu fito não é somente educar herdeiros, mas reis e soberanos do Reino dos Céus.

Trés são as prerrogativas, pelas quais um rei ideal e perfeito sobrepuja seus seme­ lhantes: liberdade, poder, alegria. Os Frades Menores, trazendo no peito o Reino dos Céus, devem tornar-se homens livres e fortes.

Homens livres!... Quem nutre a ina­ balável convicção de que o mundo, com seus bens, só deslumbra para enganar; que as leis do sangue, dominando somente o que há de menos em nosso ser, não enriquecem a nossa alma; que o egoísmo é aviltante e mesquinho, em comparação com a grandeza espiritual da humildade, que de todos se faz servidora; quem, por convicç o, tiver cor­ tado tais compromissos com o gume de uma onimoda renúncia, livre está de mil peias que agravam o voo da alma humana, é li­ vre, enfim, por gozar da liberdade dos fi­ lhos de Deus. O mundo e as paixões não mais lhe tiranizam o coração, de sorte que a alma pode capacitar-se da verdade e abra­ çar o bem, sem nenhum embargo. Os filhos de Deus, livres de qualquer repressão íntima,

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fazem espontaneamente o que é direito, porque se libertaram, enfim, da servidão do pecado. Como o pássaro, fugido do laço, desfere os mais doces gorgeios, assim vibralhes a alma de encanto e alegria: «Nossa alma é livre como o passarinho que foge do laço. Romperam-se as peias, nós somos livres». Da mortificação promana, por con­ seguinte, a força com que almas generosas se desleiam das loucas pretensões da natu­ reza. Quanto maior a prontidão da pessoa em mortificar-se, tanto mais ampla a liber­ dade que daí lhe resulta. Quem conseguir mortificar-se em gráu quasi heróico, sentirá o máximo equilíbrio de espírito, a liberda­ de própria de quem é soberano no Reino dos Céus.

A mortificação, praticada de continuo, vai-nos purificando de tudo que nós ou per­ to de nós possa desagradar a Deus. Esta pu­ rificação assume aos poucos um certo pre­ domínio sóbre todos os apetites d’alma, con­ solidando em nosso íntimo a absoluta sobe­ rania de príncipes do Reino dos Céus.

No páteo de uma fábrica de explosi­ vos, na Europa, ergue-se um belo monu­ mento, de belíssima alegoria. Uma mulher, empunhando um facho de luz, símbolo da inteligência, subjuga a seus pés um dragão enfurecido. Entre os espasmos da morte, o dragão escarva na terra os dizeres: «Vitória

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do espírito humano sòbre as forças da na­ tureza». Elas, que tantas vezes hostilizam o homem, são dominadas pela acuidade de nosso espírito e tornam-se valiosos fatores das audazes invenções humanas.

O mesmo se dá com nossa vida in­ terior. Os bens mundanos, nossas próprias paixões, as energias ético-dinámicas do ho­ mem, quando revoltas, devastam e aniqui­ lam o jardim de nossa alma; mas quando contidas por mão forte e prudente, arreba­ tam nosso espírito às alturas da perfeição moral.

A esta dominação moral um só cami­ nho é conducente, o da própria mortifica­ ção, pela qual o espírito pode repelir as ignóbeis pretensões do mundo e a petulam cia dos sentidos. Com o reprimir tudo o que possa escravizá-lo, o espírito vai-se libertan­ do de instintos meramente naturais, a ponto de poder governá-los a bem de sua própria perfeição.

Da mortificação nasce o pleno domí­ nio de si mesmo. Quem tal consegue, pode realmente considerar-se um forte, visto que sob a influência da vontade até os sentidos promovem o rejuvenescimento do espírito, como fôr conveniente e necessário.

E o tipo perfeito do homem forte, te­ mo-lo em nosso Seráfico Pai S. Francisco.

Segundo o comentário de São Boaventura,

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o mundo exterior servia-lhe de escada, pela qual seu coração se abalava até Deus. Os arroubos de sua alma incendiam-se na cha­ ma ardente do seráfico amor de Deus e do proximo. S. Francisco não ignorava, portan­ to, como chegar à elevação quasi suprema do espírito, e querendo que seus filhos se tornassem, como éle, príncipes do Reino dos Céus, de todos, relativamente, procurava atin­ gir o máximo expoente de renúncia ao mun­ do e a si mesmos.

A par da liberdade e fortaleza d’alma, nasce em nosso coração, por meio delas, a régia tranqüilidade dos espíritos devotos.

A muitos, talvez, parece absurdo que a mortificação e a alegria se possam irma­ nar. Com sorriso incrédulo acolherão muitos a ingênua narração das «Florinhas»: — S. Francisco encaminhava-se, dia de inverno, de Perusa a Santa Maria dos An­ jos. A intensa friagem muito castigava seus membros franzinos. «Frei Leão, dizia êle ao companheiro, se os Frades Menores déssem, por toda a parte, o mais vivo exemplo de santidade e edificação, toma nota e atende: nisso não consiste a alegria perfeita».

E iam estrada afora. S. Francisco, a breve trecho, começou de novo a falar e de­ clarava que no dom dos milagres não con­ sistia tampouco a alegria perfeita.

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Nestes colóquios avançaram duas mi­ lhas de viagem, enquanto o santo Patriarca ia lembrando tudo o que podia apetecer ao coração humano, ciências teológicas e pro­ fanas, rasgos de eloquência e outras cousas mais. Mas, à guisa de refrão, repetia sempre: «Nisso não acharás verdadeira alegria».

Fr. Leão, todo suspenso e pasmado, não se conteve, enfim, de perguntar-lhe: «Meu Pai, dize-me, por amor de Deus, onde é pois que existe a verdadeira alegria neste mundo ?»

Respondeu-lhe o Santo: «Suponha­ mos... Se ao batermos à porta do Convento em S. Maria dos Anjos, molhados pela chu­ va e neve, cortidos de fome e cobertos de lama, o porteiro gritar impaciente: «Quem sois?» — e à nossa resposta, que somos dois confrades seus, nos retorquir: «Estais a mentir, sois uns tratantes, ilu­ dis o proximo e, pedindo esmolas, prejudi­ cais os pobres verdadeiros. Ponde-vos ao fresco, quanto antes, senão...»

E o irmão nos não acolhe, deixandonos ao relento, noite avançada, expostos à chuva e à neve, a tiritar de frio e de fome.

Se pacientes aturarmos a cruel repulsa, sem palavras de irritação e maledicência; se pen­ sarmos com humilde caridade: «O porteiro bem sabe quem somos de fato, mas Deus permitiu-lhe que nos afrontasse, — nesse

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caso, meu querido Fr. Leão, atende: Nisto consiste a alegria com toda a sua perfeição».

E motivando mais de perto suas afir­ mações, concluiu com santa sabedoria: «De todas as graças e dons do Espirito Santo, que Jesús Cristo concede a seus amigos, a maior é a graça de vencerem-se a si mesmos... as demais, provindo só de Deus, sem cooperação de nossa parte, não dão propria­ mente titulo de glória pessoal».

Muitos, como dizíamos, hão de ridi­ cularizar tamanha candura, mas não vejo por que duvidar do que o Santo nos asse­ gura: «Deves desprezar e repelir tudo o que lisonjeia aos sentidos. Isto te causará amar­ gura e sofrimento, mas o que antes não apreciavas, tornar-se-á, em compensação, uma fonte de imensa doçura e alegria».

Demos fé ao Santo, pois fala de pró­ pria experiência, conforme declarou em seu Testamento: «Como eu então vivia em pe­ cados, revoltava-me ver leprosos, mas o Se­ nhor me levou a êles, e com éles tive com­ paixão. E apartando-me déles, aquilo que antes me parecia amargo, se me converteu em doçura da alma e do corpo».

A alegria íntima de uma alma mortificada não tem, fora do nome, nenhuma re­ lação com as alegrias do homem mundano.

O que vem a ser essa alegria, di-lo a bela

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expressão, cujo sentido originário S. Fran­ cisco de Sales relembra em suas obras ascé­ ticas: Devoção! — Quer dizer, de acordo com a etimologia latina, o ato de entregar-se ou abandonar-se nas mãos de Deus, como a creança nos braços do pai. Neste sentido não pode ser tomada como recolhimento, que é a disposição indispensável de uma boa prece.

Devoção!... eis o enlêvo da alma que aspira por Deus, fonte primeira de tòda ale­ gria e bem-aventurança. O trato filial com Deus é a única coisa que pode aquietar a ansia do coração por ter a alegria verdadei­ ra. A ventura inaudita dos príncipes do Reino dos Céus está em gozar da grande consolação que aqui neste mundo nos advém do abandono nas mãos de Deus. Causará espécie que o mundo não possa auferir o gòzo de tais transportes íntimos ? A seu res­ peito vale, com ligeira modificação, a pala­ vra da Escritura: «O olhar não viu, nem o ouvido percebeu, nenhum mortal jamais ex­ perimentou o que Deus, já neste mundo, tem preparado a todos que o amam».

De tal alegria exultava S. Francisco, e seu desejo ardente era vé-la brilhar no ros­ to de seus discípulos. Esta é a aspiração que na Regra primitiva manifesta com as se­ guintes palavras: «Os irmãos não andem tristonhos, com rosto hipócrita e compun­

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gido; sejam, pelo contrário, alegres no Se­ nhor, prazenteíros, amáveis e discretos».

Não inculcando, embora, a mesma ex­ ortação na Regra definitiva, tomava muito a peito educar os Frades Menores na mais lídima jovialidade cristã. Significativas são as lendas que se teceram em redor da vida dos primeiros Franciscanos. Sempre termi­ navam com a observação: «E todos alegra­ vam-se sobremaneira».

O nutriente da santa alegria é a ora­ ção. Pela prece fica o homem todo absorto eiextático em Deus N. Sehor, mergulhando-se no mar beatífico da essência divina. Esta é a razão de S. Francisco exortar na Regra: «Não percam os irmãos o espírito de ora­ ção e piedade, ao qual de-/em subordinar-se todos os interesses dêste mundo»... «Aspi­ rem ter, antes de tudo, o espírito do Se­ nhor... rezar sempre a Deus, com toda a pureza do coração».

A beatitude em Deus não se restringe, entretanto, á íntima familiaridade com o Altíssimo. Para a pessoa devota, é do espí­ rito de oração que dimanam as mais copiosas alegrias, cuja efusão irradia seus en­ cantos sôbre tudo o que a rodeia, comuni­ cando um que de bem-aventurança.

Coisa admirável! A’ medida que des­ denhar generosamente as alegrias aviltantes do mundo, o homem verifica com surprésa

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que no caminho da Cruz se lhe deparam outras alegrias do mundo, puras, santas, es­ piritualizadas. O homem espiritual descobre nas creaturas a imagem de Deus, e nesta lembrança regozija-se da bondade do Creador.

Uma testemunha irrecusável désse fa­ to é o grande Santo Seráfico, cujo afeto aos homens e amor à natureza incutem admi­ ração a pessoas que, por anticatólicas, não se conformam com os ideais do Santo.

Só quem não desatende ao caráter vis­ ceralmente religioso de sua alegria, poderá de fato aferir a tempera psicológica do San­ to. Bem compreendia S. Boaventura a índo­ le de seu Patriarca, em dizendo: «Para ínflamar-se, por toda a parte, de amor a Deus, alegrava-se de tôdas as creaturas de Deus.

Contemplando-as com ânimo jovial, sentia o coração erguer-se à Fonte viva, donde provinham. Na beleza creada entrevia o Au­ tor de toda a beleza, e nos vestígios da Creação procurava o Esposo de sua alma.

Do mundo qué o cercava, fazia uma escada, pela qual galgasse as alturas, para chegar A’quele que é todo amor e bondade. Inun­ dado de gozo inaudito, fruía nas creaturas, como por mil canais, a bem-aventurança que por elas lhe advinha da Fonte primeira de toda bondade. E como se apurasse com os ouvidos carnais as harmonias do Universo,

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convidava todos os seres a contribuírem, quanto possível, para a glorificação de Deus.»

Assim, toda creatura, sem tirar o ver­ me inútil, despertava-lhe n’alma um ine­ fável regozijo, qual haurimos da convivência com entes queridos, com um irmão ou irmã carinhosa. Nem a Morte, essa cruel ceifadora de vidas, logra desmanchar as ale­ grias do Santo. Entre cânticos, aguardava éle sua vinda, e íraternalmente lhe estendeu as mãos descarnadas: «Benvinda sejas, ó minha irmã Morte!»

Com estas palavras nos lábios findam só príncipes do Reino dos céus, homens que, calcando aos pés as alegrias mundanas, à fôrça de mortificação, se tornaram livres, fortes e joviais. A éles cabem as insígnias de realeza, a admirável coroa da justiça.

CAPFTULO SEGUNDO

A Corporação franciscana

De confronto com Ordens monásticas mais antigas, a Ordem Franciscana, como família espiritual, ostenta dois distintivos essenciais.

1. A antiga família monástica está, por virtude dos estatutos, ligada ao claustro de sua primeira fundação. Este se compõe, é verdade, de muitos prédios e dependências: priorados, ou, como lá dizem, mosteiros, para onde os monges pódem ser destacados, ou de lá removidos. Com relação ao mos­ teiro, entretanto, não tinha o monge liber­ dade de domicJio; onde ingressasse, ali fi­ cava por tôda a vida, entregando-se de pre­ ferência á vida espiritual e á administração dos bens claustrais. Quando, por exceção, diversos mosteiros se coadunavam numa só junta, dita Congregação, não chegavam to­ davia a levar vida comum entre as diferen­ tes famílias. A tal se opunha o voto* de es­ tabilidade, pelo qual o monge se obrigava a morar para sempre em mosteiro determinado.

O convento franciscano, ao contrário, não agasalha uma família independente. Re­ ligiosos que hoje se abrigam debaixo do mesmo teto, em dez anos mais ou menos estarão espalhados aos quatro ventos, e seus lugares serão ocupados por outros irmãos.

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A família do Frade Menor é a Ordem in­ teira. Quem quer que traga o burel franciscano, pertence a uma família única e universal. A base jurídica desta particulari­ dade, têmo-la no preceito da Regra: «Quan­ do se acharem juntos, tenham-se os irmãos como pessoas da mesma casa». Onde quer que se encontrem, pelas bandas do Oriente ou do Ocidente, sob as palmeiras tropicais, ou nas amplidões de neve e gélo, por toda a parte os Frades Menores são companhei­ ros do mesmo convento, membros da mes­ ma comunidade. O teto da família francis­ cana é o mundo inteiro.

Um idilio encantador, oriundo do sé­ culo XIV, conta que a Dona Pobreza que­ ria visitar o convento dos Franciscanos. Êstes levaram sua Soberana ao tôpo de uma co­ lina, donde se descortinava a vista pelos arre­ dores. E apontando para todas as direções, disseram-lhe: «Véde, Senhora, eis o nosso convento».

A falar estritamente, as antigas Ordens monásticas não podem ser tidas como uma família, visto formarem muitas famílias que obedecem a uma regra comum. A Ordem Serafica, porém, segundo a mente da Regra, constitue uma unica família monástica. A Ordem em si e as comunidades particulares não se distinguem, pois a Regra as quer or­ ganizadas como uma só família. Quem ob­

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serva a Regra, onde quer que pare, sempre faz parte da comunidade que o agasalha *).

Por isso, a estabilidade não tem razão de ser na Ordem, e o Franciscano, qual ave de arribação, em toda a parte encontra casa e comunidade própria.

Com o aumento de irmãos, força era cercear a liberdade do domicilio, em inte­ resse da organização administrativa.

Formaram se primeiro jurisdições de maior vulto, Províncias chamadas, a cuja testa governavam os Ministros provinciais.

As primitivas Províncias abrangiam países inteiros. Dentro em pouco, foi preciso des­ membrá-las em distritos menores, que vieram a chamar-se Custódias, e eram governadas por um Custódio 1 2).

Tal a organização administrativa, quan­ do S. Francisco formulou a Regra atual.

Mais tarde, ainda em vida do Fundador, re­ cebiam os diversos conventos um superior especial, com o título de Guardião.

1) A par da Família Franciscana propriamen­ te dita fundaram-se mais tarde duas outras Famí­ lias que professam a Regra de S. Francisco. Os Conventuais, aprovados por Leão X, vivem com algumas mitigações da Regra; os Capuchinhos, aprovados em 1527, observam a Regra, como os Franciscanos, mas obedecem a outras Constituições Gerais, confirmadas pela Igreja.

2) Com o tempo desapareceram as Custó­ dias quasi todas, visto que as Províncias, em evo­ lução posterior, se reduziram consideravelmente.

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Êste regime visa tão sómente fins ad­ ministrativos. Nem por isso se romperam os laços de família. A’ frente de todos está o Ministro Geral, sucessor de S. Francisco, não como sombra de chefe, mas apercebido dos amplos poderes da jurisdição ordinária so­ bre a Ordem, em geral, e sôbre todos os irmãos individualmente. O Ministro Geral pode dispôr de qualquer Frade, sem prévia consulta dos Superiores Provinciais.

Ainda assim, a divisão em províncias pode arrefecer as relações fraternas. Para neutralizar o perigo, quer S. Francisco que «os Ministros Provinciais e Custódios se reu­ nam em Capítulo Geral da Ordem, de trés em trés anos, mais cedo ou mais tarde, con­ forme o beneplácito do Superior Geral. De­ pois disso podem convocar seus próprios súbditos em Capítulo Provincial.

O Capítulo era, a princípio, uma re­ união de todos os Frades. Coagido por ra­ zões de ordem econômica e disciplinar, S. Francisco ordenou se reunissem apenas os Ministros Provinciais e Custódios. Quem poderia aliás custear a hospedagem e manu­ tenção de milhares de irmãos, pois se tan­ tos já contavam nos dias de S. Francisco ?

Mas, como iamos dizer, o Santo folga­ ria muitíssimo, se pudesse congregar Jtodos os seus filhos em cada Capítulo, porquanto o cogitara como «vinculum caritatis». Dou­

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tra forma não escolhería a comparação com que certa vez explicou aos irmãos as vanta­ gens da vida religiosa: «Nossa Ordem asse­ melha-se a um Capítulo Geral que, disper­ so embora por todo o mundo, se mantém convocado em virtude de uma só Regra».

A Regra primitiva está por esta inter­ pretação. Determina expressamente que ao menos os Ministros Provinciais convoquem anualmente todos os religiosos, para se acon­ selharem, uns aos outros, dos interesses de Deus.

Desta feição é que o Santo Patriarca propriamente ideava os Capítulos Gerais e Provinciais, como reuniões familiares da Or­ dem Serafica. A bela idéa, dentro em pou­ co, deixava de ser praticável em toda a sua extensão. Depois da morte de S. Francisco, os Capítulos Gerais degeneraram em assembléas administrativas, sem caráter familiar.

O Capítulo Provincial passou também por idêntica evolução. Destarte a Ordem perdeu, enfim, um laço de família, de pouco valor jurídico, mas de grande atuação psicológica.

2. Outra nota, que patenteia o caráter particular da Família Franciscana, são as atribuições dos Superiores.

Nos primordios da Idade Média implantou-se o costume, que o chefe espiritual de um mosteiro tivesse dignidade prelatícia.

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O Superior era prelado, em toda a extensão da palavra; não só por exercer oficialmente jurisdição eclesiástica, mas por usar também das insígnias de sua investidura: anel e báculo, mitra e cruz peitoral.

S. Francisco rejeitou tais preeminências. Seus Superiores não devem ser prelalados. Na Regra primeira se lê: «Ninguém se diga prior; mas um irmão lave os pés a outro». S. Francisco, nô-lo atesta S. Boaventura, prezando o Evangelho, muito a peito tomava a exortação: «Quem de vós quiser ser o primeiro, seja o servo de todos». Não satisfeito de dar aos Superiores o título ofb ciai de Ministro, isto é, criados, chama-lhes com significativo pleonasmo «Ministros e ser­ vos». E como se pouco dissesse, acrescenta: «Os Ministros devem ter tanta condescen­ dência para com os irmãos, que éstes te­ nham a impressão de serem éles os Supe­ riores e disporem de um servo na pessoa de seu Ministro». Poder-se-ia dizer com maior evidência, que o título de Ministro envolve também um preceito de rigor?

No caso interêssante, contado por Jor­ dão de Giano, reflete-se nítida a mentalida­ de dos primeiros irmãos. «Alberto de Pisa, Ministro Provincial da Alemanha, queria promover o Guardião de Erfurt, Fr. Nicolau, a Custódio de Saxe. . Conhecendo sua humildade, não lhe fez prévia comunicação,

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para assim lhe cortar mais fácilmente as ra­ zões em contrário. Esperava lograr seu in­ tento com palavras de carinho e persuasão.

Chegado que foi em Erfurt, pediu logo os bons ofícios de Fr. Jordão de Giano para testemunha, e mandou chamar o Guardião Fr. Nicolau. Este, mal soube a que fôra chamado, entrou a escusar-se com humilda­ de. Alegava ignorância para c leulos, inca­ pacidade de haver-se como senhor e pre­ lado. Mas, estas palavras o comprometeram.

A fingir cólera, retrucou o Ministro: «Ora, muito bem! não podes «bancar» de senhor?

Somos porventura, nós que nos amofinamos com os cargos da Ordem, somos nós os se­ nhores? Dize imediatamente a tua culpa, por teres em conta de regalias os cargos da Ordem, enquanto realmente só dão traba­ lhos e canseiras». Fr. Nicolau, obediente e humilde, confessou a culpa. O Provincial deu-lhe por penitência administrasse a Cus­ tódia de Saxe, e Fr. Nicolau, de joelhos» curvou-se ao jugo da obediência».

Uma Ordem isenta — outras não havia naquela época — depunha logicamen­ te a jurisdição espiritual nas mãos dos Su­ periores. A Ordem Seráfica, em virtude da isenção, não podia esquivar-se dessa neces1) Ordem isenta, quer dizer, independente da autoridade episcopal, sujeita diretamente ao Papa.

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sidade. Seus ministros gozam dos mesmos poderes espirituais, como os mais superiores religiosos. Mas, até ao presente, não pos­ suem insígnia que os destaque de seus con­ frades. Desta fórma se mantém intata a es­ sência do preceito da Regra.

Desde o comê;o, a Ordem mante­ ve por princípio que o Superior pode ser demitido de seu cargo. Consultemos a Re­ gra: «Convencendo-se todos os irmãos de que o Ministro não governa para o bem geral da Ordem, cabe-lhes a obrigação de eleger outro, em nome do Senhor».

A princípio, os Ministros eram de fato eleitos para cargo vitalício, quando apre­ sentavam as qualidades necessárias. Aos pou­ cos, porém, arraigou-se o costume de ele­ ger o Superior para certo número de anos.

Esta praxe não contraria, por certo, a inten­ ção do Fundador. Hoje em dia, os Estatu­ tos fixam o prazo de seis anos para o man­ dato ordinário do Ministro Geral; de trés anos, para os Ministros Provinciais e Guar­ diães. Uma vez deposto o cargo nas mãos dos legítimos sucessores, os antigos dignatarios de per si voltam á condição de sim­ ples religiosos.

Esta dupla particularidade da família franciscana, a falta de estabilidade monástica e o espírito igualitário entre os frades, favo­ rece a cariade fraterna que S. Francisco

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queria muito ver cultivada em sua Ordem.

Os Francíscanos devem, na vida privada, apresentar-se como verdadeiros discípulos da Religião, os quais caraterizou Nosso Se­ nhor, com as palavras: «Quem se não mortificar a si mesmo, não poderá ser meu discíoulo». Na vida comum, devem ter outro caraterístico dos discípulos de Cristo: «Nis­ to reconhecerão todos, que sois meus discí­ pulos, se vos amardes uns aos outros». Sen­ do S. Francisco o Patriarca Seráfico, sua Ordem não podia formar senão uma famí­ lia seráfica.

Por isso, S. Francisco procurou evitar que o respeito á autoridade afastasse os súbditos dos superiores. Instituiu os supe­ riores como servos dos irmãos e legou-lhes na Regra as mais graves prescrições, segun­ do as quais devem extremar-se pelas neces­ sidades dos irmãos, visitando-os, animandoos carinhosamente. Se necessário fôr, devem dar-lhes correção, mas com o espírito de caridade.

A’ regeneração dos delinquentes é que S. Francisco aplica a maior diligência. Re­ ceando que o zêlo pela lei extinga a cari­ dade, exorta os Ministros: «não se irritem com a falta de algum confrade, pois ira e exaltação ofendem a caridade; mas corrijamno com muita compaixão». E a Regra pri­ meira acrescentava: «Socorram, quanto pos-

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sivel, aos culpados,- porque os doentes pre­ cisam de médico, que não os válidos». . Os Superiores devem atender ao ir­ mão que a éles recorrer em lutas espirituais, de formas que não sàia desiludido em sua confiança filial.

Assim deve expandir-se a caridade obsequiosa do Ministro, segundo a determina­ ção formal da Regra. Desta feição é o Su­ perior que S. Francisco caraterizou, certa vez, num colóquio íntimo. No dizer de To­ más de Celano, S. Francisco queria Minis­ tros amáveis e condescendentes para com os súbditos. Devem ser tão meigos e man­ sos, que os culpados possam confiar de sua bondade e indulgência.

Cordato em suas determinações, pre­ ferindo antes padecer injustiça, do que praticá-la ; inimigo do érro, e amigo dos transviados, deve o Superior ir á frente de seus súbditos, alumiandodhes o caminho pela observância exata e viva da santa Regra.

Os subalternos, de sua parte, devem dar mostras de carinho, pela obediência hu­ milde aos Superiores. Já nos é notória esta vontade do Santo, mas na Regra exige tôda a confiança para com os Superiores, acon­ selhando e mandando que os irmãos re­ corram a seus Ministros, quando se virem nalguma aflição espiritual. Por último, pre­

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vine que não murmurem, quando descon­ tentes, porquê a murmuração destrói o amor filial e rompe o vinculo sagrado entre Superior e súbditos.

Organizando sua Fundação como fa­ mília universal, e não admitindo comuni­ dades insuladas, S. Francisco conjurou mais um perigo contra a caridade fraterna, e obstruiu uma fonte inesgotável de atritos e rivalidades.

De mais a mais. A Família Seráfica não devia ser uma organização quimérica. A santa Regra frisa: «Onde quer que os ir­ mãos se encontrarem, tratem-se uns aos ou­ tros como pessoas da mesma casa, abrindo confiadamente o coração, pois se uma mãe nutre e ama o filho de suas entranhas, quan­ to não devemos amar e auxiliar a nossos irmãos espirituais ?» Nas viagens apostólicas não devem tampouco «desavir-se e brigar entre si»; guardar-se-ão de desacreditar os confrades aos olhos de estranhos, «procuran­ do, ao invés, proteger-se mutuamente».

Nenhum irmão, diz a Regra primeira, fará mal a outro, pois todos devem servir e submeter-se uns aos outros, em espírito de obediência. «Em nossa Ordem, dizia o San­ to, os prudentes podem aprender dos ingê­ nuos, vendo como aspiram ardentes ás cousas do alto, e como recebem, apesar de igno­

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A Corporação franciscana

rantes, as luzes do Espírito Santo, para culti­ var a verdadeira sabedoria espiritual. E os ir­ mãos simples podem também edificar-se com o exemplo dos eruditos, ao verem homens distintos nivelarem-se a éles, homens que no século galgariam posição de destaque.»

Atenção especial deve-se aos irmãos enfermos: «Adoecendo um irmão, tratem-no tão bem, como em caso análogo gostariam de ser atendidos». Nem dos mortos São Francisco se descuida, pois ordena a seus Filhos «rezem pelas almas».

A Família Franciscana conserva assim a união da caridade fraterna. Ninguém tem licença de apartar se da vida comum, por amor a caprichos pessoais, nem que julgue achar, desta forma, vida de maior perfeição.

A Regra nada diz a respeito, mas S. Fran­ cisco, pela solução de um caso concreto, declarou indispensável o espírito de comuni­ dade na organização familiar de sua Ordem.

Eis o caso. Os irmãos enalteciam a ati­ tude de um confrade que, para observar o mais estrito silencio, até se confessava por sinais. Indignou-se o Santo, e disse: «Não me venhais com histórias, não me louveis o que é tentação do inimigo. Em verdade, não é outra cousa, senão tentação infernal e peri­ gosa ilusão». Na vida de comunidade, o Fra­ de Menor aperfeiçoa as virtudes que adqui­

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re por sua piedade pessoal. A cunhagem dá ao ouro seu valor cambial; da mesma for­ ma é a dileção fraterna que reveste a mor­ tificação de um caráter divino. Diz Sáo Paulo: «Ainda que distribuísse toda a minha fortuna aos pobres, e entregasse meu corpo para ser queimado, de nada me aproveita­ ria, se não tivera a caridade».

CAPPTULO TERCEIRO

Os Franciscanos e o mundo

S. Francisco, com os seus, tinha posto em prática a palavra do Apostolo: «Não ameis o mundo, nem o que é do mundo». A se­ renidade de espírito que daí lhe provinha foi todavia perturbada por uma dúvida: «Como nos haveremos futuramente para com o mundo ? Interiormente, já,nos descartámos dêle. Mas, que fazer exterio**mente ? Rompe­ remos também as relações externas? Deve­ remos manter posição no mundo, para con­ firmar nossa influência social?»

Em aflição de conciência, S. Francisco foi ter com os irmãos: «Dai-me um alvitre.

Deverei viver para a oração, ou andar missionando a palavra de Deus? Eu, pobre, Jhano, sem facúndia, mais aptidão tenho pa­ ra rezar do que para prègar. Além disso, creio eu. na oração alcançamos graças sobre graças, enquanto pela prègação temos de distribuí-las. Pela oração a alma purifica-se, unida que está com o sumo Bem verdadei­ ro; habilita-se para o exercício de toda e qualquer virtude Pela prègação, no entanto, ficamos, por assim dizer, com os pés empoados, e com as múltiplas distrações rela­ xamos na disciplina religiosa. Na oração, en­ fim, fazemos colóquio com Deus, conversa­ mos como anjos entre os anjos. Na prèga-

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Os Franciscanos e o mundo

çâo, porém, é preciso condescender com as fraquezas humanas, acomodamos aos ho­ mens, atender a cousas profanas, vê-las e ouvi-las. Uma razão de peso está, contudo, pela vida de prègação: O Filho Unigériito de Deus, a suma Sabedoria, preferiu aban­ donar o seio de seu Divino Pai e assumir a triste condição humana, para salvar a hu­ manidade. E como nossa intenção é seguirlhe o exemplo, será mais agradável a Deus que interrompendo o sossêgo da oração, per­ corramos o mundo, a trabalhar pela salva­ ção dos homens.»

Mas, em vão rebatia as dúvidas. Por fim mandou recado a Fr. Silvestre e a S. Clara, pedindo-lhes rezassem nessa intenção.

E como ambos, sem conchavo, respondes­ sem unânimes que devia fazer-se arauto de Cristo, São Francisco tomou a resposta co­ mo revelação de Deus e saiu a logo a prègar.

Abandonando o mundo, S. Francisco não quis abraçar uma piedade egoísta, uma piedade que se descurasse da sorte dos mí­ seros pecadores. Não, purificado e fortaleci­ do, tornava Francisco da solidão, para com­ bater o mundo maligno, para libertar o que há de mais nobre no mundo, as almas imortais. S. Francisco começou a «converterse» pela mortificação de si mesmo, afastan­ do de si o que neste mundo contraria os

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Os Franciscanos e o mundo

planos divinos da salvação. Sua conversão consumou-se pela sua generosa resolução de tornar ao mundo, afim de separar a semen­ te de Deus neste mundo, limpando-a de toda sizania.

E aos Filhos deixou como ideal da vocação o que éle mesmo praticava em vi­ da. Pois assim os Franciscanos constituem, a par dos frades domínicos, a primeira e mais antiga Ordem monástica que por vo cação se dedica á cura pastoral das almas.

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§ 1. O sermão do exemplo

Não pode ficar oculto o forte situado no tôpo da montanha. Muito menos uma vida, cujos dias decorrem em face do mun­ do, e cujos alicerces morais foram lançados nos píncaros da mortificação cristã.

Quando S. Francisco com os seus só­ cios agarrou o bastão das viagens apostóli­ cas, sem contudo mitigar a austeridade de vida, forçosamente devia abalar ôs espíritos e fazer sensação. Devia realizar o dito evan­ gélico: «Deixai resplandecer vossa luz dian­ te dos homens, para que vejam vossas boas obras e exaltem o Pai que está nos céus».

Devia, enfim, dar exemplo ao mundo, prégando não tanto pela palavra, como pelas boas obras.

Contasse, de fato, que S. Francisco saiu um dia a prégar, em companhia de um irmão. Modesto e calado, percorreu ruas e becos, a cortir apupos e motejos. Em ca­ sa, perguntou ao companheiro se apreciara o sermão. «Não sei, respondeu-lhe o frade, que tivesse prégado». Com veemência lhe tornou Francisco: «Sem dúvida, fizemos um magnífico sermão, com sofrer as injúrias, resignadamente.»

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Este episódio pertence, talvez, ao re­ pertório das lendas. Certo é, contudo, que o Santo encarecia mais a pregação do exem­ plo do que a da palavra. Êle mesmo edificava o próximo, antes de tudo pela fôrça do exemplo. Tomaz de Celano diz que S. Francisco, como asceta, transformou seu cor­ po macerado numa língua que prégava com muda eloqíiência.

O santo exprimia, portanto, sua íntima convicção, quando escreveu as palavras for­ midáveis : «Ai do religioso que não guarda as inspirações divinas no próprio coração, nem as põe em pr<tica, para exemplo do mundo; porque assim só se contenta de proclamá-las com a boca». Do mesmo sen­ tido são as palavras que por carta dirigiu ao Capítulo Geral: «Cristo enviou-vos ao mun­ do, para que deis testemunho de vossa vida santa, por palavras e obras». A Regra pri­ meira diz categoricamente : «Todos os Irmãos devem prégar pelo exemplo». Não ha pois dúvida, a prégação do exemplo é uma das obrigações essenciais do Franciscano para com a sociedade, embora a Regra, na fórma atual, nada diga a respeito. E’ sabido que na redação definitiva da Regra omitiram-se os pontos que estavam acima de qualquer discussão.

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O Frade Menor préga pelo exemplo, todas as vezes que pela fiel observância da Regra demonstra a fôrça vitalizante dessa mesma Regra. Esta prégação, a mais genuína de todas as prégações franciscanas, resumese essencialmente na palavra do Apóstolo: «Grande vantagem tem a piedade unida com a discrição». ★

Que vantagem não é a prégação do exemplo para a formação de uma grande personalidade!

O homem moderno costuma exagerar ou depreciar o valor que os bens terrenos teem para a grandeza moral do indivíduo.

Valorizando indevidamente os bens ter­ renos, e- dando assim á sua vida uma orien­ tação egoística, o homem moderno joga-se precipito no sorvedouro da tríplice concupiscência, dos olhos, da carne e da vida so­ berba. Para cohonestar êsse suicídio moral, apaga a distinção entre o bem e o mal, adormentando-se na ilusão de que já vive «para lá do bem e do mal». Vangloria-se de ter conseguido a liberdade, considera-se como «super-homem», cuja personalidade se desen­ volve pela dissipação de energias em gozos mundanos.

Que repugnante trocadilho se faz com palavras despidas de sua verdadeira signifi­

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cação: «Para lá do bem e do mal, emanci­ pação, super-homem, gozar da vida». Todos são termos lídimos, mas que só nos lábios de uma pessoa mortificada exprimem a gran­ deza de sua significação. Só pode gozar, quem sabe renunciar.

Poderei eliminar, pela simples negativa, a distinção entre o bem e o mal ? Mete-se a ridículo, quem julgar pôr-se «além do bem e do mal», armando sofismas tão grosseiros.

A mortificação é o único caminho que conduz a ésse «além» da moral. Renuncian­ do a si mesmo e desprezando o mundo, com esforço másculo, o homem consegue regular suas idéias e aspirações pelas normas do bem, afastando de si ésse dualismo fatal, o pendor da vontade entre o bem e o mal.

Assim o homem avança «para 11 do bem e do mal», não porque negue a existência do mal, mas porque do mal se defende pela mortificação de si mesmo.

Não se dá outra cousa com a verda­ deira mortificação. Quem a confunde com a cega tirania dos instintos, deve atribuir maior liberdade ao bruto do que ao homem. O animal não conhece os embargos que, sob o nome de conciência, combatem a livre ex­ pansão dos instintos humanos. Nisto não pode definir-se a verdadeira liberdade hu­ mana, pois seu fim é libertar a vontade da insolência dos sentidos. Como engendrar-se

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O sermão do exemplo

essa libertação ? Pela mortificação e repressão dos impulsos meramente instintivos de nos­ sa natureza. Por aqui é que o ânimo nobre conquista a própria liberdade.

Ainda mais. Ninguém ignora que dominar-se e renunciar a si mesmo são virtu­ des gêmeas. Quem se não dominar pela mortificação, sempre será uma alma de es­ cravo, ainda que se diga super-homem. O genuíno super-homem só pode existir quan­ do a alma, cuja função é reger o corpo, de fato empunha o cetro de soberana.

Que vem a ser, afinal, o brado moder­ no : Gozar! gozar! Nos lábios de um mun­ dano não quer dizer outra cousa senão esgotar-se. O protótipo dessa personalidade, temo-lo no filho pródigo, envolvido em tra­ pos, a pascer os porcos. O mortificado, po­ rém, expande verdadeiramente suas energias vitais, desenvolvendo e revigorando a pró­ pria personalidade. Pois a mortificação de si mesmo nutre a vida interior, que por essên­ cia colima a maior perfeição do espírito.

Esta, porém, é ilimitada como Deus mesmo.

«Sêde perfeitos, como vosso Pai no céu é perfeito». Neste sentido, não é blasfemo pro­ curar a expansão de nossas energias vitais.

Não há que ver, a vida do asceta penitente avantaja-se ao triste vegetar do filho pródigo.

Os predicados retumbantes, com que o homem moderno alardeia sua personali­

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dade, só se tornam verdadeiros para quem, por «atrasado», segue o programa do Divino Mestre: «Quem quiser ser meu discipulo, renegue a si mesmo». Nietzsche, cuidando, por mania de grandeza, ter criado uma nova personalidade, o superhomem ímpio e revel, fez no entanto a triste figura de «símia Dei» e caricaturou a liberdade que Nosso Divino Mestre promete com o dito lapidar: «Quem sacrificar-se por minha causa, con­ servará sua vida», isto é, a sua personali­ dade.

E’ natural, entre abdicação e abdicação vai o abismo de uma enorme diferença.

Nem todos os mortificados atinam com o caminho para o alto. O homem terreno, egoísta por caráter, enerva-se e torna-se pes­ simista, quando por acerbas desilusões ou morbidez de espírito, é forçado a dar de mão os bens dêste mundo. Não acerta com meio termo das cousas, vilipendiando o que pessoas sensatas teem em justo apreço, des­ prezando cinicamente o que Deus, sábio e bondoso, criou para nosso bem e felicidade.

Para não esbarrar da Cila — do apréço indébito — na Caribdisdo sacrílego vilipéndio, deve o mortificado pertencer ao nú­ mero daqueles «qui seipsos castraverunt propter regnum caelorum», aos que por amor ao reino dos céus se desapegam de tudo que não é de Deus, neste mundo.

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Quem se faz herdeiro e príncipe do reino dos céus, graças à renúncia cristã, sente em si a bem-aventurança de Deus, a qual o não deixa cair em cinismo e pessi­ mismo. O abnegado entrevê nas creaturas a centelha divina escondida sob a cinza das cousas transitórias, fascinantes. Não obstan­ te seu desapègo, nutre em si um sádio oti­ mismo, aceitando o que de bom e belo, criado por Deus, o mundo lhe propina pa­ ra o desenvolvimento da personalidade.

Destas considerações se conclue que o mundo faz sossobrar a personalidade do mundano, quer vá ao encalço de seus bens, quer os repila, com o desenfado de rtiisántropo. Se souberes aliar a religião com a so­ briedade, esse mesmo mundo que esmaga seus adoradores, hide fornecer-te os mais amplos recursos para a formação de tua personalidade. Ao mortificado o mundo le­ va às alturas da liberdade, força e alegria moral. O mundo te dá os bens que lhe são próprios, mas tu deves usá-los «sub specie aeternitatis».

Que vantagens, portanto, não podemos auferir do «obsequium rationale», da de­ voção irmanada com a sobriedade!

RECAPITULAÇÃO. Todo Frade Me­ nor, vivendo neste mundo, a exemplo de seu Pai, como jogial de Deus ealegr^men­

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digo do Senhor, é uma viva pregação e confirmação desta grande verdade.

Como amante da mortificação, evitará a menor sombra de mundanismo e, banindo de si toda tristeza, andará alegre no Senhor, prazenteiro e amavel, sem ofensa da discri­ ção.

Quanto não precisamos de tais prègadores para a sociedade que em parte só co­ nhece alegrias aviltantes — a concupiscência dos olhos, os prazeres carnais, a paixão do dominio — para uma sociedade que, na fal­ ta de tais gozos, é acometida de negro té­ dio à vida! Não há dúvida, a prègação franciscana do exemplo é atualissima, e para logo não háde antiquar-se.

Compreende-se7 Valores sociais da nem todos os mun­ prègação do exemplo.

danos são epicúreos ou pessimistas. O âmago da natureza hu­ mana é bom, apesar da culpa original. O homem pode, por conseguinte, fazer obras boas, ainda que o não acalente o sol da graça. !) Homens de tal índole, dotados de uma bondade inata, não conhecem um ob­ jetivo sobrenatural para sua conduta, visto que seu âmbito moral é limitado por interêsses passageiros. Não obstante, quebradas 1) Essas obras, logicamente, são destituídas de valor e mérito sobrenatural.

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as cadeias do egoísmo mesquinho, dedicamse ao serviço da humanidade, pois a gran­ deza moral do homem está, para êles, em criar fatores de cultura e bem-estar social.

Êsses indivíduos, de per si, não são ignóbeis. Não é por princípio que contes­ tam a eficiência da devoção e sobriedade na formação do caráter individual. Julgam somente, que a vontade, assim orientada, inutiliza o homem para um fim superior, o bem da coletividade. Como interêssar-me pe­ lo soerguimento da cultura, pela crescente prosperidade social, se devo refugiar-me no slém, negando empenho ás cousas dèste mundo, onde prevalecem a cultura e o pro­ gresso? Por que então trabalhar? Mas, quem cruza os braços, em extática contemplação, sem trabalhar, nada vale nêste mundo.

Por mais convincentes que pareçam tais razões apriorísticas, ao toque da experiên­ cia pulverizam-se em vãos sofismas. Que os grandes santos, sem exceção, foram ao mes­ mo tempo expoentes da evolução cultural e social, não o contestam os verdadeiros so­ ciólogos e historiadores. Em primeira plana, ninguém nega a influência de S. Francisco.

Os fatos dão prova de que piedade e vida frugal acarretam grandes vantagens, não só para o indivíduo, como também para a soied ade humana.

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Que pode dar ao mundo a devoção e frugalidade, em seu cunho franciscano ? Que fatores de civilização prega o verdadeiro discípulo de S. Francisco ?

Antes de entrarmos na apreciação franciscana do trabalho, cumpre dizer: todas as ardilezas em provar que o homem, mor tificado para o mundo, não sabe estimar o trabalho, fracassam irremediàvelmente ante o amor ao trabalho, tal qual se nos antolha na Regra e no Testamento de S. Francisco.

Poder-se-á impor de modo mais inequívoco a vontade e o dever do trabalho, do que pelas palavras do Testamento: «Eu traba­ lhava e quero trabalhar. Quero decidida­ mente que todos os meus irmãos trabalhem; os que o não sabem, devem aprender».

Guardar-se-ia de assim falar, quem menos­ prezasse, por qualquer razão, a dignidade do trabalho.

O preceito da Regra — com fran­ queza — é menos categórico, mas sempre revela um amor ao trabalho, que nenhum mundano é capaz de imitar. Fala de poder trabalhar, como de um dom de Deus. Quem atribue ao Pai das luzes a origem do tra­ balho, como faz S. Francisco, não desco­ nhece tãopouco a sua fôrça nobilitante.

Ninguém poderá encarecer tanto o valor intrínseco do trabalho.

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O sermão do exemplo

Alguns agitadores' socialistas disparateiam uma tal religião do trabalho, procla­ mando pelo mundo afóra: «O trabalho é o salvador de nossa época». Na realidade, me­ ros palavrórios. Para os sequazes do materialismo, Deus é uma noção vã de sentido.

Tais blasfêmias, por conseguinte, só querem dizer: o trabalho é seu próprio fim. Traba­ lha-se, por trabalhar. Nes5e caso, porém, o trabalho já não está a serviço do homem, mas o homem a serviço do trabalho. Se nasce como escravo do trabalho, o homem peca quando dãle usar para a consecução de outros fins. Isto seria reduzir o homem à condição de besta de carga. Ora, ninguém adotará uma teoria, da qual resulta tanta aviJtação para o homem.

Dentro das teorias razoáveis, nossa Re­ gra é que mais engrandece o trabalho. Nos pontos já tocados, o Frade Menor não dis­ corda dos seculares na cotaç o do trabalho; só que o toma sob o ponto de vista reli­ gioso e, por conseguinte, mais elevado. Apa­ recerão duros contrastes, quando indagarmos a finalidade do trabalho.

O capitalismo faz do trabalho uma fonte exclusiva de lucro. Se essa tendência guardasse limites razoáveis, não havia o que lhe objetar, pois trabalho e lucro teem rela­ ções recíprocas, naturais. Até S. Francisco permite a seus Filhos «receber como salário

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o que precisarem p^ra o sustento próprio e dos irmãos.»

Mas, o ferrete do capitalismo consiste exatamente em não respeitar os termos que legalizam o aumento do lucro. A ganância do capitalismo é incontida, é enorme, é ili­ mitada. Não pára, nem quando os lucros não teem possibilidade de boa aplicação.

Não rendendo bastante, o mais nobre traba­ lho é tido por miserável; prometendo gran­ des lucros, qualquer trabalho é logo empre­ endido, sem que se atenda a seu valor mo­ ral. Desta maneira, o capitalismo acoberta trapaças, agiotagens, açambarcações.

Graças ás agitações socialistas, acostumámo-nos a malsinar apenas as grandes emprêsas, ao passo que a nódoa da ganância adere a todo trabalho que unicamente visa o aumento de lucros. Os operários que das tarifas de salários fazem um meio de extor­ são, são levados pelo espirito ganancioso, mau grado as idéias comunistas que dizem professar. A concepção cristã do trabalho reprova êsse espirito como cubiça e ga­ nância.

As normas da vida franciscana, em seu ápice, tendem a destruir toda e qual­ quer aspiração gananciosa Por isso é que o espírito franciscano combate, sem tréguas, a capitalização do trabalho. Exige que «o tra­ balho não extinga o espírito de oração,

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ao qual devem subordipar-se todos os interêsses temporais». A bem de fins mais altos, o trabalho deve ser normalizado, ainda que os lucros talvez emagreçam. Do mesmo es­ pírito foi ditada a exortação do Testamento: «Ocupem-se só do trabalho honesto, não trabalhem por cobiça do salário», desistindo até do direito natural, «quando lhes fôr ne­ gada a remuneração devida».

Para se aferir a imoralidade materia­ lista do capitalismo, não é preciso ser cris­ tão, muito menos franciscano. Muitos ho­ mens sem fé condenam, sem rebuços, o trabalho por mera ganância, por verem na prosperidade coletiva o fim ideal do traba­ lho. Segundo êles, trabalhamos, para favore­ cer a economia política, para que o bemestar social se alastre por todas as camadas do povo e o faça participar das bênçãos da civilização.

Cultura e bem-estar social dependem necessariamente do trabalho ativo. Um po­ vo inerte — eis o exemplo da Turquia — decai em barbaria e pobreza. -Mas êsse ideal trabalhista não pode dar a última fi­ nalidade, embora seja muito mais elevado que os princípios do crasso materialismo.

Fôsse a aquisição de bens a suprema lei do trabalho, não havia por que reduzir sua expansão aos termos de uma produtividade relativa. O trabalho deveria produzir sem

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medidas, ainda que,cobertas já fossem as precisões de nossa vida normal. E a super­ produção? Para lhe dar vasa, fôrça é que o reclamo sugestione ao povo necessidades novas, meramente fitícias. Dai proveem a hipercultura e devassidão que fazem guerra á verdadeira prosperidade.

Sobre a eficiência do trabalho a bem da cultura, a Regra Franciscana não se pro­ nuncia de maneira alguma. E’ pois lícito ao Frade Menor trabalhar para fins de cul­ tura, e a História da Ordem nos prova que o fêz com muito descortino de vistas. Pre­ terimos a ação educadora dos missionários em diversas nações; ambas as Américas, as Filipinas e mais países dela podiam narrar livros inteiros.

Nos arraiais das letras basta nomear S. Boaventura, Joio Duns Escoto, Rogério Bacon, para logo se pôr em evidência quan­ to os Franciscanos promoveram a cultura e civilização humana.

Mas S. Francisco não admite que tal seja a última finalidade do trabalho. E os Franciscanos não discordam de seu Patriar­ ca, que no Testamento nos deixou a sábia ponderação: «Todos os irmãos são obriga­ dos a trabalhar... para fugir do ócio». Os perigos que na vida de abnegação podem provir de «ocupações ociosas», ditaram a S. Francisco o preceito do trabalho. Assim o

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trabalho se congraça com a vida franciscana, e sua finalidade, na Ordem, é de natu­ reza ascética. Trabalhando para não comer o pão do comodismo, ou para ser útil à sociedade humana, o Franciscano não tra­ balha com êsse fim exclusivo; pela inten­ ção de santificar todos os seus atos, traba­ lha antes de tudo para engrandecer sua alma.

Não deve, portanto, perder se em ocupa­ ções excessivas. Existem para nossa alma bens mais preciosos, aos quais o trabalho não pode ser preferido. A Regra di-lo aber­ tamente : «Os irmãos devem trabalhar com dedicação, mas de tal maneira, que não extingam o espírito de oração e recolhimento, ao qual devem servir todas as cousas dêste mundo». Trabalhar com espírito de oração não só requer que a atividade exterior seja moderada em benefício da piedade, mas também que o trabalho mesmo se transfor­ me em oração, por meio de piedosa oferta feita a Deus, pela assim chamada boa in­ tenção. Por isso a Regra preceitúa que «tra­ balhem com devoção». Desta fórma, o Fra­ de Menor trabalha por amor de Deus, e o trabalho para êle não é senão uma fórma especial de oração.

S. Francisco acertou com o verdadeiro objetivo do trabalho. Dé nos a prova a épo­ ca atual.

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Hoje, o trabalho na Alemanha, por exemplo, é trabalho de escravos. Serve cada vez mais á plutocracia e contribue para o depauperamento das classes menos favoreci­ das. Mas, como nestas condições o trabalho por interêsse não pode subsistir, vai-se alas­ trando a aversão ao trabalho e a queda pa­ ra o luxo e dissipação, males que abafam o espírito de parcimônia.

Entretanto, que vantagens não goza o indivíduo que trabalha por amor de Deus e de sua alma! Seu trabalho, orientado pelo ideal verdadeiro, não carece de outros estí­ mulos.

O Patriarca de Assiz quer também que seus Filhos trabalhem por causa do «bom exemplo». Ora, nos tempos que correm, a prègação do exemplo é máxima utilidade, para que o mundo se redima do ídolo ma­ terialista, do trabalho ganancioso, excogitado por economistas irresponsáveis; para que atine com a santa finalidade do trabalho, com a alegria que lhe tira o caráter de penalidade.

Inestimável é pois a prèga<ão franciscana do exemplo: «Reza e trabalha, Deus ajuda a quem trabalha!»

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A prègação franciscana Não vimos ainda a do exemplo, com rela- última e suprema atua­ ção aos diversos esta- ção social do exenidos sociais. pio franciscano. Ma-

nifesta-se pela categoria social do Francisca­ no e pela missão que lhe cumpre desempe­ nhar nesse estado.

Múltiplas e variadas são as feições do progresso humano. Para explorá-las não bas­ ta o esforço de um só indivíduo, resultan­ do daí a especialização da sociedade em di­ versas profissões. Cada indivíduo tem atri­ buições que lhe absorvem toda a atividade.

E permutando os frutos de seu ramo com os produtos de outra industria, todos os trabalhadores beneficiam, com seu tanto, a cultura e prosperidade geral.

A sociedade compara-se com um or­ ganismo. As múltiplas funções do organis­ mo vivo dístribuem-se pelos diversos mem­ bros, de sorte que a função própria de ca­ da um esteja em harmonia com a dos ou­ tros. Cada orgão funciona a bem do orga­ nismo todo, mas é, por sua vez, beneficia­ do pela função de outros orgãos (a função endocrina, dos fisiólogos). A mesma influên­ cia exercem entre si os estados sociais, quan­ do cumprem a missão que lhes impõe o progresso e civilização humana.

Ora, o serviço de Deus é irrecusável postulado da sã cultura. Todos os bens e

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prazeres terrenos, quer materiais, quer espi­ rituais, são fugazes e deficientes, enquanto se não recolherem á sombra da eternidade e não tomarem relação a Deus que é o bem supremo. Por conseguinte, se é verdade que a cultura abrange todos os fatores que engrandecem e nobilitam a vida humana, o homem culto deve ocupar-se, aqui na terra com Deus e a eternidade. Sem esta perfei­ ção sobrenatural, a cultura terrena não pas­ sa de uma triste mendiga. Com ambos os pés firmes na terra, na árdua luta pelo pão quotidiano, devemos, muito embora, lem­ brar-nos da única cousa necessária nêste mundo, da salvação de nossa alma. Do con­ trário, o fruto de nosso trabalho seria esgra­ vatar a terra e extinguir em nós a centelha divina.

Mas, consagrar-se tôdo a Deus numa profissão mundana é tão difícil, que rara­ mente se consegue na vida prática. Por isso é preciso que um estado social tome por norma de vida o serviço de Deus, e déle faça profissão; é preciso que uma classe de pessoas, renunciando ao mundo, pertença exclusivamente a Deus Nosso Senhor.

Quem, portanto, observa os conselhos evangélicos, levando vida de pobreza, casti­ dade e obediência, não está perdido para o mundo, pois se foge de seu convívio, é para melhor servir á coletividade. Atraindo as

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bênçãos de Deus sobre todas as classes sociais, o religioso aumenta a influência cultural da Religião, assim como as profissões profanas prestigiam a cultura profana. Pois, fora o patrimônio moral que o «homo Dei», o ho­ mem consagrado a Deus, lega a seus con­ temporâneos, pelo sermão e pela pena, já o exemplo de sua vida é uma exortação, de não nos abalarmos com pensões terrenas, mas de unirmos nossas ocupações externas com uma sólida piedade de coração. Por aqui é que o religioso, foragido do mundo, contribue para o progresso, sadio e harmo­ nioso, da humanidade.

Esta é a importância social do estado ascético que, por amor a interêsses mais al­ tos da humanidade, sacrifica os interêsses temporais do indivíduo. Quanto mais per­ feito o sacrifício, tanto mais profusas as bên­ çãos que irradia em redor de si. E’ facil de calcular que bênçãos a Ordem Franciscana esparge entre os homens, pela prègação do exemplo, isto é, seguindo à risca a vida pe­ nitente, com extremos de abnegação, segun­ de* os ditames do Fundador. * * ¥ 1. Desçamos a particularidades. A coluna^mestra da sociedade perfeita é a vida exemplar de família Esta, porém, não pode subsistir sem o mais elevado conceito do

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matrimônio. Esse conceito só pode nas­ cer do amor á santa pureza. Quem, portanto, não coibir a sensualidade, contrai o matri­ mônio, sem ter muitas vezes a aptidão fí­ sica, para não falarmos da falta de critério quanto ás graves obrigações conjugais. Caso lhe falem de felicidade e vínculo indissolú­ vel, tál pessoa encolhe os ombros, num gesto de indiferença. E como podería o devasso ter conciéncia de seus deveres matrimoniais?

Sem ela, porém, não ha solução moral do problema da natalidade, de maneira que o sustentáculo do matrimônio só pode ser a castidade, porquanto dela depende a vita­ lidade de um povo. Exempla abundant...

Ora, o instinto sexual prorrompe com tal veemência, que poucos indivíduos pode­ rão, de própria energia, resistir-lhe por mais tempo. E quem uma vez sucumbe à tenta­ ção, corre perigo de tornar-se escravo de suas paixões.

E que valor não tem o exemplo da pureza virginal, a Deus consagrada! Quanta coragem não incute ela a quem luta e braceja contra as ondas encapeladas da paixão!

Cingindo os rins com mão forte e volun­ tária, renunciando, por amor de Deus, aos encantos do lar legítimo, o religioso rebate o sofisma de uma sensualidade indomável e confunde os íracalhóes que se rendem sem nenhuma resistência. Como um farol er­

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guido por sobre as águas, serve de luz e guia a muitos, cuja pureza ameaça naufra­ gar na tormenta das tentações.

O matrimônio e a família muito de­ vem àqueles que, renunciando ao lar do­ méstico, como Filhos de S. Francisco, pre­ gam, pelo exemplo, amor e respeito à cas­ tidade.

2. Mais ampla do que a família, es­ tende-se a rede urdida pelas relações de or­ dem econômica. Nas malhas desta rede existe um nó que sempre tem preocupado os sociólogos: «o modus vivendi» entre ri­ cos e pobres. Como atá-lo tão firme, que as revoluções econômicas não rompam a rede contínuamente ?

Na solução dêste problema esgotaramse todas as teorias possíveis, a começar do superhomem brutal que escraviza o proprie­ tário mais fraco, até à nivelação criminosa de todos os estados sociais, pelos moldes do comunismo. No decorrer da História, malograram todas as tentativas de irmanálos, e para se descobrir as causas não é preciso aparato científico. São patentes à luz meridiana.

Pràticamente, a questão social sempre foi tida como questão de predomínio. Con­ forme as circunstâncias, a parte mais fraca era oprimida incondicionalmente: Quando muito, chegava-se a um acordo que a ninguém

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satisfazia, porque atrás déle acuava uma besta-féra, a ambição do rico e a ambição do pobre. Todos querem lucrar e possuir, ninguém quer desistir e renunciar. Em com seqüencia, todas as vezes que se desloca a preponderância econômica, de pronto pere­ ce a paz entre ricos e pobres.

Para a durabilidade do edifício social, fôrça é que a pedra fundamental e a peça de remate sejam lavradas na pedreira mís­ tica do Sermão da montanha. A vida eco­ nômica do mundo deve ser pautada na doutrina de Cristo que diz: «Bem-aventura­ dos os pobres de espírito». O pendor natu­ ral de «querer possuir» deve irmanar-se com a virtude sobrenatural de «poder renunciar».

Fosse o proletário pobre de espírito, contentando-se com seu quinhão; fosse o rico pobre de espírito, pelo desapêgo aos bens, pela prontidão de repartir com o indigente algo de sua abundância, — lançadas seriam as únicas bases possíveis para a solução da questão social.

Neste ponto é que aparece a eficiência cultural da pobreza voluntária e religiosa.

Com o fito de merecer o tesouro do Reino dos Céus, o pobre evangélico não se con­ tenta de sofrer a ambição imoderada de bens terrenos; indo mais além, num gesto he­ róico, afasta-os de si como cousas inúteis.

Tendo com que atenda às necessidades da

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vida, sente-se rico sobremaneira, em atenção à palavra de Cristo: «Bem-aventurados os pobres de espirito, porque dêles é o reino dos Céus».

Ungido e consagrado pela renúncia incondicional e voluntária, o pobre evangé­ lico, pelo simples exemplo prèga, no palacio dos ricos, que a riqueza não é o supremo dos bens e, por conseguinte, ninguém deve preferir o mamon iniquo aos tesouros do Céu. Que nenhum rico entra no Céu, an­ tes de se fazer pobre de espírito, dividindo sua fartura com o necessitado, e não des­ prezando o próximo por causa de sua po­ breza. O pobre voluntário é também o con­ solador das classes indigentes. Sua renúncia proclama que a pobreza, de per si, não é desgraça. Pelo contrário. O pobre, que sabe conformar-se, não é um desherdado da sorte, porque tera maior contemplação no Reino dos Céus. O exemplo da pobreza voluntária impele os pobres a unir a pie­ dade com a vida modesta, em vez de co­ biçarem os bens do próximo, visto que a felicidade humana é fruto da virtude e, co­ mo tal, não depende dos bens temporais.

Ensinando resignação com a sorte, o pobre evangélico enche a pobreza de luz e espe­ rança, enquanto os agitadores sociais provo­ cam a ganância, sem poderem contentá-la.

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Eis o alcance da pobreza voluntária, cujos princípios devem moralizar a econo­ mia social. Baseada no princípio cristão «Bem-aventurados os pobres de espírito», a pobreza voluntária reprova ambos os ex­ tremos contrários à economia social, a ga­ nância tanto do capitalista como do socia­ lista e do comunista. Em virtude dêsse prin­ cípio, suaviza os contrastes entre pobres e ricos, pregando ser inviolável, sim, o direito de propriedade, mas que os donos são obri­ gados a administrar seus bens, segundo os ditames do amor a Deus e ao próximo.

Este é o comunismo cristão, que, em vez de tirar, cede de bom gôsto e da com abundância.

Desta fôrma, os religiosos fecundam com novas idéias e luzes a cultura humana, a prosperidade material dos povos.

Neste sentido é que a eloquência do exemplo franciscano póde atuar com maior intensidade. E de fato tem colhido frutos extraordinários. Isto não supreende a quem conhece de perto a afeição caraterística da pobreza franciscana, cujas normas raiam quasi no impossível.

Alguns doutores, por sinal que alheios á mentalidade católica, supunham que São Francisco não queria propriamente fundar uma ordem, mas sentia em si a vocação para reformador social de sua época.

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Entretanto, é muito discutível que o Santo tivesse uma noção definida da ques­ tão social. Seja lá como fór. Seu ideal de pobreza não representa um programa eco­ nômico. No seu dizer, é apenas o caminho mais seguro ã perfeição cristã. S. Francisco, por lógico, não exigia que todos os homens largassem da fortuna; exigia-o daqueles que lhe pedissem admissão como discípulos. A nenhum rico fez imposição de suas idéias, nem se indispunha com quem rejeitasse seus ideais e planos. Obrigava até os discípulos «a não desprezar nem julgar aos que se vestem com luxo e usam de boa mesa».

Tais não são as falas de nenhum re­ formador social, nem que fosse de orienta­ ção religiosa. S. Francisco visava fins mais altos. Queria ser asceta. Um espírito de fér­ rea intransigência para consigo e para com todos que espontàneamente se punham à sua direção. Queria governar-se, incondicio­ nalmente, pela sua norma evangélica: «Quem não se abnegar a si mesmo, não pode ser meu discípulo». Esta é a única razão de seu espoliamento heróico e das graves prescri­ ções feitas na Regra.

O exemplo de S. Francisco revelou ao mundo a verdade incrível que a pobreza voluntária torna o homem feliz e contente, muito mais que a posse de todas as rique­ zas. E a todos que tivessem boa vontade,

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S. Francisco os fazia crér na palavra da Es­ critura: «Bem-aventurados os pobres de esp rito!» Em consequência, muitos procura­ vam participar dessa bem-aventurança, uns contentando-se com a própria sorte, outros fazendo beneficência com o que tinham de copioso.

Nesta base única possivel o Santo sua­ vizava e diminuía os contrastes sociais, e sua Ordem tem mantido a mesma influência através dos séculos. Heimbucher diz, sem medo de errar: «A atividade social da Or­ dem Franciscana remonta do presente aos primórdios da Ordem. A instituição da Or­ dem Primeira foi, de per si um feito social.

Com a fundação da Ordem Terceira nasceu uma obra social de suma relevância. A ação franciscana empolga a alma do povo e por ser toda social, imprime um caráter social ás instituições que vai criando. Se os anti­ gos mosteiros procuravam as solidões... os mendicantes, ao invés, demandavam as ci­ dades... e aqui os franciscanos desenvolviam uma ação social que tudo abrangia, uma atividade única no mundo.

3. Outra categoria de relações impor­ tantes para a cultura de um povo, são os interêsses políticos do Estado. Governantes e súbditos são as partes interessadas. Auto­ ridade e jurisdição é o que quer o gover­ nante. Garantia e liberdade, o governado. O

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direito autoritário do govêrno está acima de toda contestação. Mas, como se deduz da preponderância cultural dos povos livres, não é lá para se reprovar a liberdade e au­ tonomia individual, que, dentro de boas normas, representa um fator de cultura.

Não obstante, a ânsia libertária dege­ nera muito fácil em desordens pessoais. A coberto do grito «Liberdade!» combate-se enfim a própria autoridade e tenta-se inver­ ter a ordem social, apesar de indispensável para o bem-estar de um povo. E a liberda­ de «idolatrada» arvora-se em anjo de exter­ mínio, em revolução e desordem.

Contra o embate dessas ondas tremen­ das, levanta^e o dique do exemplo daque­ les que, por amor de Deus, se curvam sub­ missos ao jugo da obediência.

Os profitentes da obediência evangéli­ ca, quanto lhes permite a moral, desistem do direito de governar-se, para submeterem sua conduta àqueles que; em sua convicção, ordenam como lugar-tenentes de Deus. Quem assim procede, defende tàcitafnente o prin­ cípio fundamental do Cristianismo: «Não há autoridade, a não ser que venha de Deus», Por conseguinte, todos devem obedecer à autoridade; não por servilismo, por causa do castigo, mas por imperativos de conciência.

Mas, acentuação tão cabal do princípio autoritário, como quer a obediência monás­

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tica, não dará largas ao despotismo, à flagran­ te lesão da liberdade ?

Nem por sombra! Já o fato de se te­ rem averiguado inegáveis coerencias entre o «movimento frariciscano» e a expansão da liberdade burguesa, só isto depõe em con­ trario.

Um rápido exame da Regra de S. Francisco desfaz a dificuldade. A Regra or­ dena aos irmãos obedeçam aos Superiores em todos os pontos, a não ser que as or­ dens recebidas ofendam a Regra ou a conciéncia. Pretendesse o Superior governar arbitràriamente e exceder suas legítimas atri­ buições, o Frade Menor pode e deve negarlhe obediência e opôr-lhe máscula resistên­ cia. Desfarte o Frade Menor cultiva em si e no próximo aquela liberdade que de fato enobrece o homem, a liberdade de agir bem, conforme as leis da conciência. Ademais, a Regra prescreve sem cláusulas que os prepósitos sejam, em verdade, servidores de to­ dos os irmãos. Enquanto o detentor da au­ toridade mantiver êste ponto de vista, não há perigo que se rebaixe ao despotismo.

Como súbdito, o Franciscano dá ao povo o exemplo de respeito à autoridade por Deus instituída, e de legítima defesa, quando a liberdade moral do indivíduo fôr violentada. Na qualidade de Superior, inculca aos poderes políticos a obrigação de se

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dedicarem, unicamente, aos interêsses do povo. A Ordem Franciscana vai, assim, tra­ çando a via para reconciliação perene da autoridade com a liberdade, e a vida social é beneficiada pelo exemplo de quem se desapossa de regalias civis e se curva ao jugo da obediência evangélica.

4. Outra esfera social, sèriamente amea­ çada pelo anarquismo reinante, são as rela­ ções dos fiéis para com a Igreja, e aqui as consequências da rebelião calam mais inten­ samente. Graças, pois, a S. Francisco, por ter educado seus Filhos no genuíno espírito eclesiástico, pelo qual dão ao mundo o lu­ minoso exemplo de como se deve reveren­ ciar e atender a S. Igreja.

No capítulo primeiro da Regra onde estão fixas as normas fundamentais da vida franciscana, o Santo declara por si e por seus Filhos: «Frei Francisco promete obediência e acatamento ao Senhor Papa Honório, a seus legítimos Sucessores e à Igreja de Ro­ ma». Não admira, pois, que para a entrada na Ordem seja a primeira das condições: «Os Superiores estão obrigados, sob conciência, a provar o espírito católico dos aspi­ rantes...» os quais só podem ser aceitos, «se crerem todas as verdades da fé. dispostos a professá-las sem receio, e seguir para sempre éste modo de viver». Esta condição, não há dúvida, impõe-se por si mesma. Mas, a!e-

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gando-a formalmente na Regra, S. Francisco queria logo declarar que dignos de seu ideal só podiam ser os candidatos que em sua conduta não desmentissem a fé católica.

A’ luz desta mentalidade compreendese como S. Francisco veio a ser o primeiro Fundador monástico que renunciou à orga­ nização de nova liturgia, à creação do Ofí­ cio divino franciscano. «Digam os clérigos o Ofício divino, conforme o rito da Igreja Romana».

Tocante é, com efeito, a piedade filial que o grande Patriarca nutria aos represen­ tantes da Igreja, aos dignatários do sacerdó­ cio. Para incutir iguais sentimentos a todos os Filhos, diz no Testamento: «O Senhor deu-me tanta confiança nos sacerdotes cató­ licos, que a éles hei de recorrer, ainda que me fizessem perseguição. E tivesse eu a sa­ bedoria de Salomão, não prègaria na paró­ quia do mais humilde sacerdote do mundo, se me fosse negada a licença. A éles e a todos os mais quero temer e amar como meus senhores, sem me ofender de suas fra­ quezas, porque neles contemplo o Filho de Deus, e porque são meus Superiores. Assim procedo, já que com os olhos do corpo nada vejo do Filho de Deus, senão o seu Santís­ simo Corpo e Sangue. Os sacerdotes, porém, consagram o augusto mistério, e só éles o administram aos fiéis... E a todos os teólo­

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gos e os que nos expendem a palavra de Deus, devemos honrar e extremecer como pessoas que nos comunicam espírito e vida».

E no final da Regra transparece o mes­ mo caráter de lídima catolicidade : «Pelo mé­ rito da obediência imponho aos Superiores a obrigação de pedirem ao Papa um Car­ deal que seja guia, protetor e conselheiro desta Ordem, para que, sempre humildes e obedientes aos pés da S. Igreja, permaneça­ mos firmes na fé católica».

RECAPITULAÇÃO. Eis quanto a prègação do exemplo franciscano tem influído na sociedade civil e religiosa. Sua diretriz: «Grandes vantagens tem a vida sóbria e pie­ dosa» — apregoa valores de alto alcance, não só para o indivíduo, como para a so­ ciedade. Ai! do mundo, se esta prègação al­ gum dia emudecer.

§ 2° A pregação da palavra

Na campanha contra os madianitas ar­ mou Gedeâo seus trezentos companheiros com facho e trombeta. Na calada da noite, irromperam, ao clangor das trombetas, pelo arraial a dentro, e rechassaram os inimigos de Israel. Com a mesma estratégia é que os homens apostólicos atacam e vencem ó mundo. Com o facho do bom exemplo e a trombeta da palavra divina.

O verbo deve, realmente, ser acompa­ nhado do exemplo. A palavra é abstrata e morta, se não for animada pela ação. Esta é também suscetível de muitos sentidos, quando não comentada e esclarecida por palavras. A palavra e o exemplo formam, pois, uma unidade, à semelhança de nosso corpo e nossa alma.

Obrigando os irmãos à prègação da palavra, S. Francisco não introduz nenhuma inovação na Regra. Dá-lhe unicamente a última perfeição devida.

Naturalmente, para anunciar a palavra de Deus, nem todos dispõem dos justos predicados. A Regra mais antiga, enquanto obrigava todos à prègação do exemplo, fa­ zia rigorosa seleção dos que se destinavam 33-79

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A prègação da palavra

ao ministério da palavra. Mais terminantes ainda sâo as disposições da Regra defini­ tiva: «Nenhum irmão ouse prégar ao povo, sem ter sido examinado por seus Superiores, e por éles admitido ao oficio da prègação».

Os irmãos prégadores «reflitam em que vão dizer,... sejam breves,... guardem-se de assuntos profanos e sensacionais». Humilde singeleza, fruto de boa elaboração, deve caraterizar, quanto à fôrma, a prèdica do Fra­ de Menor. A exemplo de S. Paulo, queria Francisco atender a sábios e ignorantes, para conquistá-los todos em Cristo. E pelo caráter da prègação franciscana queria exer­ cer um apostolado universal. Sendo singela, a prègação fica ao alcance do ignorante.

Sendo bem refletida, não provoca a crítica dos inteletuais.

Quanto ao assunto, diz a Regra que exponha «as virtudes e os vícios», o «galar­ dão e o castigo». Estas palavras caraterizam a prègação franciscana como peculiar de pe­ nitência. S. Francisco de fato não prègava outra cousa, senão a penitência, mas da ma­ neira que a interpretava, isto é, como desprêzo do mundo e mortificação integral do indivíduo. Inocencio III, tendo aprovado o fim da nova fundação, despachou o Santo e seus Socios com as palavras: «Ide-vos com Deus, e prègai penitência, como o Senhor vos inspirar».

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Antes de enviar seus discípulos para prègar, S. Francisco instruia-os sobre o desprézo do mundo, a regeneração da próoria vontade e a mortificação da carne. Diz Tomaz de Celano: «Com espírito arrebatado e com grande alegria de coração, começou Francisco a prègar, por toda a parte.»

A Regra primeira traça uma espécie de esquema de prèdicas, do qual os Irmãos pódem valer-se, como lá se diz, com a bênção de Deus. A penitência é o tema dominante: «Temei a Deus e honrai, iouvai-o e bendizei-o dai-lhe preito e gratidão...

Fazei penitência, a morte vem próxima...

Confessai todos os vossos pecados. Bem-aventurados os que morrem penitentes; en­ trarão no Reino dos Céus. Ai daqueles que morrem sem penitência, pois serão filhos do demônio, cujas obras imitam, e cairão no fogo eterno. Acautelai-vos e abstende-vos de todo o mal... Perseverai no bem, até ao fim de vossa vida.» Na carta ao Capítulo Geral quer Francisco que os Irmãos em to­ das as prèdicas exortem ã penitência.

A prègação típica fran­ A cura d’almas ciscana háde ser prègação franciscana

de penitência, e enquadra-se orgànicamente na missão do Frade Me­ nor. Ele próprio, na vida individual, deve levar a penitência ás últimas raias da abne­

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gação, prègando-a com a eloquência muda do exemplo. As leis monásticas de S. Fran­ cisco tornam-se então a base de um fecun­ do apostolado.

O Frade Menor não faz penitência por amor á penitência, mas para fazer-se príncipe e herdeiro do Reino dos Céus.

Na mente de S. Francisco, a prègação da penitência é também um meio para a con­ secução de um grande fim. Êste fim, o único móvel da prègação franciscana, é anunciar a paz. Francisco declara-o em seu Testamento: «Deus reveloume a saudação: O Senhor te dê a paz!»

E por aqui governava sua vida. Refere Tomaz de Celano que S. Francisco, antes de começar o tema do sermão, saudava os fiéis com as palavras: «O Senhor vos dê a paz!»

Compungir as almas pela prègação da pe­ nitência, e aliviar os corações contritos pela nova da paz, nisso vai a tarefa do Franciscano chamado à prègação do verbo divino.

Hoje em dia, qualificamos êsse gênero de cura d’almas com o nome de «missões», A História seja testemunha de que os Fi­ lhos do Poverelo nunca se furtaram dêsse arduo ministério. Vultos como Antônio de Padua, Bertoldo de Ratisbona, Bernardino de Sena, Tiago de Marca, Diderico Coelde, Leonardo de PortO"Maurício, Antônio do Extremo, provam não serem de mera bene­

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volência as palavras de Gregório IX, con­ temporâneo de S. Francisco: «Na Ordem Franciscana dá-se uma nova aparição de Cristo Senhor Nosso. Pelo exemplo dos Ir­ mãos, por suas prèdicas e milagres, vai Deus operando a salvação de muitas almas».

Nos tempos atuais, a Ordem Francis­ cana absorve grande atividade nas missões populares. No Brasil, a atividade franciscana assumiu na cura d’almas um caráter aberta­ mente missionário. As duas Províncias irmãs, de S. Antônio ao Norte, e da Imaculada Conceição ao Sul, o Comissariado Mineiro e as falanges dos ativos Padres Capuchinhos, manteem missionários efetivos que percor­ rem o País inteiro, no âmbito de suas ju­ risdições. Até os religiosos incumbidos do paroquiato não pódem prescindir do caráter missionário, na visita das Capelas filiais.

Estas numerosas distes, só podem ser aten­ didas poucas vezes por ano. As visitas, em tais emergencias, assumem a feição de bre­ ves missões.

A’ primitiva missão de prègador associa-se, para o Franciscano, a cura dalmas auxiliar.

Onde forem chamados, os Franciscanos acodem a auxiliar o Clero secular. Com re­ ferência ao Evangelho da pesca milagrosa, S. Boaventura compara os Frades Menores, que ajudam o Clero secular na pesca das

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almas imortais, com os pescadores da segun­ da barca que acudiram a S. Pedro.

Como é de esperar, os Franciscanos colhem no confessionário o fruto de suas prègações, das de penitência, principalmen­ te. Do contrário, fariam serviço mal acaba­ do. O mandato de Gregorio IX, de admi­ nistrar o sacramento da penitência, é para os Frades Menores o complemento da mis­ são canônica de prègarem o Evangelho do Reino de Deus. ★ ¥ - t

O coração ardente de Francisco palpitava de amor pela humanidade inteira. Por isso ardia em desejo de prègar «aos sarracenos e outros infiéis» o Evangelho e a santa penitência.

Esta é também a razão de ter a Regra um capítulo especial sobre as missões entre gen­ tios. Enquanto o cargo de prègar pode ser conferido, por obediência, aos irmãos idô­ neos, as missões pagãs devem ser providas por voluntários. «Quem por inspiração diviva quiser ir para as terras dos sarracenos e outros infiéis, peça autorização do Ministro Geral». O proprio Santo estivera entre sar­ racenos e. conhecendo o grande sacrifício, não quis impô-lo contra a vontade de nin­ guém. Medindo também os grandes riscos, ordenou que «os Ministros não facultassem Missões pagãs

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a partida, senão aos que vissem perfeitamente idôneos para tal ministério».

Os Franciscanos atenderam com entu­ siasmo à voz de seu Pai, e faz setecentos anos que defendem os Santos Lugares à custa do próprio sangue. Para mais de dois mil Irmãos lá deram a vida pela fé, e uns seis mil lá padeceram o martírio incruento do amor. Já no século XIII os Franciscanos percorriam a Asia então desconhecida, aventurando-se até á índia e Pekim. Em muitos países da America Central e Meridional os primórdios do Catolicismo coincidem com a abertura das Missões Franciscanas naquelas paragens. Não há país de maior importân­ cia que não tenha impressas no sólo as pi­ sadas de Missionários Franciscanos. E ainda hoje os Frades missionam entre gentios de todas as religiões e raças.

Quando Francisco, do trono de sua glória, contempla o campo das Missões Fran­ ciscanas, não deixa, com certeza, de exultar, assim como outrora exultou seu coração, quando lhe foi dada a notícia do primeiro martírio de seus Filhos.

¥ ★ * A julgar pelo ditado que se reconhe­ ce a arvore nos frutos, a dupla vocação missionária dos Frades Menores tem os si­

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nais de origem divina A Ordem Franciscana tem colhido frutos tão copiosos na prègação da penitência aos cristãos e nás mis­ sões externas, que lhe assiste aplicar a si mesma a palavra da Escritura: «O espiri­ to do Senhor está sobre mim, ungiu-me e enviou-me a prègar o Evangelho e salvar os corações contritos».

EPÍLOGO O movimento franciscano, no século XIII, alastrou-se pela Europa, como fogo sa­ grado. Um único recanto podia regozijar-se da convivência de Francisco, mas os varões que partiam em todas as direções, com a Regra nas mãos, eram dignos émulos de seu Patriarca., Por intermédio dêles é que Fran­ cisco transformou a face da Europa.

A’ evidência dêste fato, não é justo que se brade por um novo Francisco. Ou­ tro Francisco não nos poderia exemplificar o Evangelho de maneira mais frisante que o humilde Frade da Umbria.

Mas, S. Francisco, o Serafim em carne humana, não desapareceu do mundo. Per­ dura em seus Filhos. Como no século XII reformou a Europa pelo espírito que soube incutir nos Filhos, assim fará no século XX, pois nas mãos de seus Filhos atuais está a mesma Regra d’outrora.

Em vez de clamar por um novo Fran­ cisco, seria de melhor aviso votar maior so­ lidariedade à missão de seus Filhos.

No entanto, muitos pedem a vinda de um Francisco, e escandalizam-se da vida franciscana.

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Epílogo

Muitos, de cujo espírito eclesiástico não é lícito duvidar, melindram-se com o pedi­ tório franciscano. Caso Francisco tornasse ao mundo, amaria menos a pobreza e dei­ xaria de esmolar ? Por qual meio, senão êste, havia de operar a grande reconciliação social que um Francisco deve realizar? O peditório que, por via de regra, é mortifica­ ção para o Franciscano, mitiga os contrastes sociais, porque o povo se faz ciente dos mo­ tivos sobrenaturais da mendicância religiosa.

Outros querem alta erudição e, como os Franciscanos, fiéis à Regra e à Tradição da Ordem, primam em anunciar a palavra de Deus com lhaneza e candura, ficam desgostosos e julgam que a Ordem não satisfaz as exigências da época.

No entanto, por necessária que seja a ciência para o Clero, não era do programa de S. Francisco fundar escolas de erudição, mas instituir prègadores que, para serem compreendidos do povo, não alardeassem ciência na tribuna sagrada. Não é portanto o espírito do Fundador que faz a Ordem dedicar-se, de preferência, às missões católi­ cas e à catequização dos gentios?

E’ natural, tais intentos não são osten­ sivos, mas a fôrça da palavra de Deus é que salva o mundo, não a prudência mundana.

«Os pagãos querem de mim sabedoria, diz S. Paulo, mas eu prègo a Cristo Crucificado,

Epílogo

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uma loucura aos olhos dos gentios. Para os eleitos é força e sabedoria divina».

Quem portanto tiver a convicção que o mundo precisa de Francisco, procure inteirar-se do espírito de sua Regra, para de­ pois compreender e amparar a sublime mis­ são de seus Filhos e imitadores. Por êste ca­ minho virá Francisco transformar o mundo hodierno, e há de salvá-lo, quando as semen­ teiras alvejarem para a colheita.

Plano I. Capítulo: A individualidade franciscana 3 § 1. Princípio fundamental da vida franciscana ...

5 § 2. Meta régia ....

31 II. Capítulo: A corporação franciscana .

45 III. Capítulo: Os franciscanos e o mundo 61 § 1. O sermão do exemplo .

66 § 2. A prègação da palavra .

97 Epílogo .................................... 105