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ISSN 1982-5994

UFPa • aNo XXXi • N. 134 • deZeMBro e JaNeiro, 2016/2017

Elementos tóxicos contaminam poços em Barcarena Páginas 6 e 7.

Nesta edição • Celular para todos • Game combate doença de Chagas • Botos encantam em Mocajuba


UniVeRSidAde FedeRAL dO PARÁ JORNAL BEIRA DO RIO cientificoascom@ufpa.br direção: Prof. Luiz Cezar Silva dos Santos Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-dRT/PE) Reportagem: daniel Sasaki, Hojo Rodrigues e Lucas Muribeca (Bolsistas); Glauce Monteiro (1.869-dRT/PA ) e Walter Pinto (561-dRT/PA). Fotografia: Adolfo Lemos e Alexandre Moraes Fotografia da capa: Alexandre Moraes ilustrações: Priscila Santos (CMP/Ascom) Charge: Walter Pinto Projeto Beira On-line: danilo Santos Atualização Beira On-Line: Rafaela André Revisão: Elielson Nuayed, José dos Anjos oliveira e Júlia Lopes Projeto gráfico e diagramação: Rafaela André Marca gráfica: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom Secretaria: Silvana Vilhena impressão: Gráfica UFPA Tiragem: Mil exemplares

Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho Vice-Reitor: Gilmar Pereira da Silva Pró-Reitor de Administração: João Cauby de Almeida Jr. Pró-Reitora de desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Karla Andreza duarte Pinheiro de Miranda Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Edmar Tavares da Costa Pró-Reitor de Extensão: Nelson José de Souza Jr. Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Rômulo Simões Angélica Pró-Reitora de Planejamento e desenvolvimento institucional: Raquel Trindade Borges Pró-Reitor de Relações internacionais: Horácio Schneider Prefeito: Adriano Sales dos Santos Silva Assessoria de Comunicação institucional – ASCoM/ UFPA Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa. N.1 – Prédio da Reitoria – Térreo CEP: 66075-110 – Guamá – Belém – Pará Tel. (91) 3201-8036 www.ufpa.br


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studo apresentado pelo Laboratório de Química Analítica e Ambiental (Laquanam), da UFPA, constatou que a água de consumo que atende à população de Barcarena está contaminada por elementos tóxicos, como chumbo, alumínio, cádmio e bário, em médias acima do permitido pela legislação do Ministério da Saúde. “A contaminação do meio ambiente é um problema que vem ocorrendo há mais de três décadas, em Barcarena”, informa Simone de Fátima Pinheiro Pereira, coordenadora do Laquanam e do estudo realizado por solicitação do Ministério Público Federal. Um grupo de botos-vermelhos (Inia araguaiaensis) tem encantado os moradores do município de Mocajuba (PA). Em setembro, pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Biologia e Conservação de Mamíferos Aquáticos da Amazônia (BioMA), em parceria com a UFPA e com a Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), acompanharam esses animais por duas semanas para saber mais sobre o comportamento deles. Nesta edição: tecnologia possibilita o uso de celulares em comunidades rurais isoladas e carentes da Amazônia; aplicativo traz informações sobre como prevenir a doença de Chagas. Todo esse conteúdo também está disponível no site do Jornal Beira do Rio www.beiradorio.ufpa.br, que está de volta com novo design e novos recursos.

Rosyane Rodrigues Editora

Índice Jean Hébette, o mestre se foi ... .......................................4 Qual a importância do Papai-Noel? .....................................5 Água contaminada em Barcarena ......................................6 Comunicação para todos .................................................8 Uma trajetória dedicada à Matemática ..........................................10 Eles, os botos de Mocajuba ........................................... 12 Jogando contra o barbeiro ............................................. 14 Arquitetura, memória e patrimônio ................................. 16 A era do rádio na cidade dos sonoros ................................. 18

Voo de parapente em Mosqueiro (PA) Fotografia de Alexandre Moraes


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FoToS ALExANdRE MoRAES

OPiniÃO Jean Hébette, o mestre se foi ...

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onheci o Jean nos anos 80 do século passado, quando fui expulsa da Fundação Nacional do Índio (Funai) “por justa causa”, ao denunciar os militares que dirigiam o órgão. Aqui, fui generosamente acolhida por ele para dirigir um Programa de Educação Popular no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea) e assim começou meu longo aprendizado com o mestre de muitos de nós que temos a Universidade Federal do Pará como lócus de trabalho. Pela mão de Jean Hébette, conheci os caminhos da pesquisa por dentro das veredas que nem todos alcançam. descobri, muito cedo, que o conhecimento do mestre foi sempre associado a uma militância exemplar, especialmente junto aos camponeses do sudeste do Pará. Tinha Belém por endereço e Marabá como campo de combate às injustiças, estas praticadas contra os camponeses e seus apoiadores no universo do Araguaia Tocantins, em plenos Anos de Chumbo. Por lá, muitos conhecem-no como Padre João, pois pertencia à ordem dos oblatos de Maria imaculada. Pesquisador rigoroso que muito escreveu sobre a Amazônia, era economista e, como acadêmico “de boa cepa”, possuía “notório saber”, reconhecido pelo Conselho Universitário da instituição em um tempo “sem Sucupira e Lattes”, quando o aplauso vinha da construção de espaços acadêmicos preciosos. Com ele, orientei Gutemberg Armando diniz Guerra, meu primeiro orientando. E, acompanhando a audácia do mestre, Gutemberg defendeu sua dissertação em Marabá, a primeira fora do auditório do Naea, que contou com uma plateia singular, composta pelos sindicalistas que, como interlocutores, ajudaram o então mestrando a preparar o trabalho acadêmico. Entretanto o mundo de Jean não se restringia aos muros da UFPA. Para fora dos muros e com o apoio de muitos, seu trabalho acadêmico vinculava-se a uma práxis de envergadura e, assim, construiu a utopia chamada Centro Agroambiental do To-

cantins (CAT), que deu muitos filhos: o Laboratório Socioagroambiental do Tocantins (LASAT), em Marabá; o Laboratório Agroecológico da Transamazônica (LAET), em Altamira; o Centro de Ciências Agrárias, que se transformou em Núcleo de Ciências Agrárias e desenvolvimento Rural, mais conhecido como NEAF, que, antes, foi o Centro Agropecuário e Ciências Agrárias da UFPA; e os inúmeros cursos de Especialização em Agricultura Familiar e Sociologia Rural. A utopia realizada produziu uma universidade articulada com os segmentos camponeses. Um projeto de desenvolvimento alternativo que contrariava a maré de “desenvolvimentismo” dos grandes projetos que pouco se importam com a vida de quem luta pela terra e faz dela seu lugar no mundo. os sindicatos rurais do sudeste do Pará, fonte de inspiração e interlocução de Jean, tornaram-se empoderados e donos de sua produção, que, antes da “movimentação Hebettiana”, era “vendida na folha” (sem o conhecimento dos resultados da safra). Associados, os camponeses esperavam o melhor preço. As ações eram dialogicamente planejadas, foram anos de expectativa e trabalho. Jean Hébette constituiu muitas das unidades acadêmicas da UFPA. Em Belém, o Naea foi a que mais usufruiu dos trabalhos do mestre, mas ele não se negava a colaborar com as demais unidades e, na verdade, muito fez não apenas em Belém, mas também nos campi da UFPA. Contou sempre com parcerias importantes na história da instituição, tanto por sua capacidade produtiva, como pesquisador, como pela ação como docente, mas sobretudo pelo imenso potencial de formação de novos quadros. Creio que, em cada unidade acadêmica da UFPA, temos profissionais formados ou influenciados por Jean. Poucos, como ele, romperam tantas fronteiras na Amazônia e articularam áreas de conhecimento conforme as necessidades exigiam. Jean ia da Arquitetura à Agronomia. o mestre se vai e nos deixa corroídos pela saudade e pela impossibilidade de tê-lo por perto. Saudade que se avolumou desde a sua aposentadoria e cresceu com o retorno à Bélgica. Padre João, Jean Hébette, mestre e amigo, recebe a saudação de despedida de muitos. Espero que os sinos da felicidade dobrem à tua partida e que a música extraída do bronze do campanário console cada um dos amigos que deixaste. Somos gratos pelo muito que fizeste e seremos eternamente agradecidos pelo que construíste pela Amazônia. Você foi o belga mais engajado que a Amazônia conquistou. Jane Felipe Beltrão é antropóloga, docente dos programas PPGA e PPGd. Vice-Presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). janebeltrao@gmail.com


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Infância

Qual a importância do Papai-Noel? Narrativas contribuem para o desenvolvimento das crianças Lucas Muribeca e Glauce Monteiro

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ão os pequenos que aproveitam, de forma mais intensa, a chamada “magia do Natal”. os pinheiros iluminados, a família reunida e a quase angustiante espera pela visita do Papai-Noel são

vividos, de forma única, por meninos e meninas no mundo todo. Mas por que é importante que as crianças acreditem no Papai-Noel? A pesquisadora Laura Alves, da Faculdade de Educação, iCEd/UFPA, reforça a importância da magia e das narrativas para o desenvolvimento infantil. o Papai-Noel que conhecemos hoje é uma fusão de histórias de São Nicolau e da propaganda criada por uma empresa de refrigerante em 1931. o conto de que ele é um velhinho bondoso que distribui brinquedos para as crianças é herdado da história de São Nicolau, enquanto as vestimentas vermelhas são a apropriação das cores da Coca-Cola. “Mesmo com um mundo cada vez mais digital e eletrônico, as crianças se encantam com o simbolismo que r o d e i a o Pa p a i Noel, pois encon-

tram nesse personagem a vontade de realizar sonhos e fantasias”, explica Laura Alves, doutora em Psicologia da Educação. Para ela, as histórias imaginárias, como a do Papai-Noel, da iara ou da Branca de Neve, contribuem para o desenvolvimento emocional e intelectual das crianças. “Ao ouvir essas histórias, elas aprendem aspectos da língua, estruturação de narrativas e repertórios verbais necessários para o desenvolvimento da linguagem”, o que facilita e incentiva a formação de futuros leitores. Por outro lado, complementa a professora, “a contação de história ativa o imaginário da criança, proporcionando a apreensão de elementos fundamentais para o seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e emocional. No mais, ao apreender a história, a criança tem a capacidade de contá-la e recontá-la, exercitando a sua criatividade”.

Pais decidem hora de dizer a verdade

iLUSTRAção PRiSCiLA SANToS

A professora Laura Alves também defende que a educação familiar que privilegia a “magia” das narrativas, como os contos amazônicos, os contos de fadas, as lendas e os mitos mundialmente conhecidos, como do Papai-Noel, proporciona o desenvolvimento de uma linguagem mais elaborada, o que é muito importante durante a primeira infância (de zero a cinco anos) e é quando ocorrem o amadurecimento do cérebro e o desenvolvimento da capacidade de aprendizado. Não existe uma idade máxima para a criança parar de acreditar no Papai-Noel. isso vai depender do ambiente social, cultural e econômico em que a criança vive. “isso depende do ambiente no qual a criança vive. isto é, da forma como a família e as pessoas

próximas estabelecem esta magia”, pondera a pesquisadora. A magia do Natal com o Papai-Noel faz parte do processo de criação e fantasia da criança e cabe aos pais escolher qual o melhor momento para contar a verdade. isso deve ser feito com calma para que a criança não perca a confiança nos pais nem se abale com “a novidade”. “As crianças sentem a necessidade de serem alimentadas por esses personagens mágicos e, com eles, vão elaborando a sua forma de ver o mundo, o que contribui para a base da sua formação”, afirma Laura Alves. A professora ressalta que deixar de acreditar em um conto específico – como o do Papai-Noel - ou nunca ter ouvido essas histórias não representa um problema. o importante é assegurar que as narrativas e a magia façam parte da formação dos pequenos para ajudá-los a se tornarem adultos felizes.


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Meio ambiente

Água contaminada em Barcarena Estudo comprova contaminação de poços por elementos tóxicos Fotos Acervo da Pesquisa

Comunidades que se abastecem de água subterrânea estão em situação maior de risco.

Walter Pinto

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esde que, por decisão política, a União implantou em Barcarena um dos maiores polos industriais do Estado do Pará, a população local convive, sobressaltada, com frequentes desastres ambientais. São acidentes que ocorrem quase anualmente, na maioria das vezes decorrentes de vazamentos de rejeitos das indústrias lá instaladas, todas de atividades efetivamente poluidoras. Mais recentemente, um estudo realizado pelo Laboratório de

Química Analítica e Ambiental (Laquanam), da UFPA, constatou outro grave problema ambiental, talvez mais alarmante em consequência da amplitude: a contaminação das águas de consumo, as que atendem à população local, com elementos tóxicos, como chumbo, alumínio, cádmio e bário, em médias acima do permitido pela legislação do Ministério da Saúde. “Trata-se de algo muito grave, porque não é pontual. O chumbo foi encontrado em 90% das comunidades pesquisadas. A contaminação do meio ambiente é um problema

que vem ocorrendo há mais de três décadas em Barcarena”, informa Simone de Fátima Pinheiro Pereira, coordenadora do Laquanam e do estudo realizado por solicitação do Ministério Público Federal. O laboratório realizou análises de metais e físico-químicas em 118 amostras de água coletadas em poços de 26 comunidades continentais e insulares de Barcarena, a saber: Vila do Conde (Distrito Industrial, Maricá, Canaã, Ilha São João, Curuperé, Acuí, Dom Manuel e Pra Major Peteca); Vila dos Cabanos (Fazendinha, Burajuba, bairro Murucupi, bairro Laranjal, Vila Nova e Vila itupanema); Cafezal, Furo do Arrozal, Vila Arapiranga, Fleixeira, Prainha; Ilha das Onças (Ponta de Cima e Furo das Laranjeiras); Ilha São Mateus (Vista Alegre); Ilha Trambioca (Porto da Balsa) e Vicaraí (Rio Aicaraú). Diante da impossibilidade de o estudo abarcar todas as comunidades, os pesquisadores selecionaram as que lhes pareceram em situação de risco mais iminente, após ouvirem a população. Das 26 comunidades que tiveram água de poços analisada, somente duas não apresentaram contaminação por chumbo.

Mutações genéticas podem atingir descendentes Em humanos, a acumulação de chumbo no organismo pode afetar severamente as funções cerebrais, o sangue, os rins, os sistemas digestivo e reprodutor, inclusive com possibilidade de produzir mutações genéticas em descendentes e causar câncer. Os sintomas clássicos são irritabilidade, cefaleia, tremor muscular, alucinações, perda da memória e da capacidade de concentração. Esses sintomas podem progredir até o delírio, convulsões, paralisias e coma. A cronicidade da exposição ao chumbo pode gerar distúrbios gastrointestinais, neuromus-

culares e sobre o Sistema Nervoso Central, além de alterar a pressão arterial, afetar o fígado e o sistema renal. Além disso, o chumbo pode atravessar a membrana placentária provocando efeitos teratogênicos em fetos. O saturnismo é o termo conferido à patologia resultante da intoxicação por chumbo. “Os moradores de Barcarena, tanto do continente como das ilhas, estão tomando água contaminada há bastante tempo, desde que as indústrias se implantaram na região. A tendência a contraírem doenças associadas à ingestão de

chumbo é muito grande”, alerta Simone Pereira. O estudo registrou diferença, embora não significativa, nos níveis de contaminação entre a água de consumo das ilhas e a dos locais próximos ao polo industrial. No continente, as amostras apresentaram maior concentração de chumbo. A explicação está na proximidade das comunidades avaliadas às bacias das indústrias. São os casos, por exemplo, das comunidades Vila Nova e Burajuba, na Vila dos Cabanos, e Distrito Industrial e Curuperé, na Vila do Conde, com índices de chumbo


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variando entre 10 e 13 vezes acima do limite permitido. “É muito provável que a proximidade das indústrias, como Alunorte e Imerys RCC, favoreça a maior contaminação das águas de consumo no continente. Não há outro motivo para que isso

aconteça”, ressalta a coordenadora da pesquisa. Essa contaminação das águas subterrâneas seria tão grande que se estenderia às comunidades insulares. Para Simone Pereira, o alto índice de chumbo no continente

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e, em menor escala, na região insular, embora não tão menor assim, pode significar algo bastante preocupante: o aporte de efluentes que se espalham do continente às ilhas pode também, na pior das hipóteses, chegar a Belém.

Água do rio está menos sujeita a contaminação Em Barcarena, as comunidades que se abastecem da água do rio estão menos sujeitas a contaminação do que as que se abastecem de água subterrânea. Isso se explica porque a água subterrânea tem influência da geoquímica local por estar confinada, enquanto as superficiais sofrem influência de emissões atmosféricas. Quando as indústrias realizam queima do petcoke, combustível sólido resultante da destilação do petróleo, ocorrem emissões atmosféricas. As chuvas, no entanto, encarregamse de trazer de volta o chumbo e o cádmio presentes no petcoke, que, assim, penetram no solo poroso, contaminando as águas subterrâneas. “O laboratório não pode bater o martelo e dizer, neste momento, de onde está vindo o chumbo. Há vários aspectos que devem ser considerados”, explica a pesquisadora. “Ele pode estar ligado às rochas do solo, assim como pode resultar de componentes industriais antrópicos depositados pelas indústrias, haja vista que algumas bacias não possuem impermeabilização”. Enquanto isso, o Laquanam, com a ajuda do Laboratório Central da Secretaria de Estado de Saúde do Pará (SESPA), está realizando uma pesquisa exploratória com o cabelo dos moradores, para estudar a presença de 28 elementos químicos. Segundo a pesquisadora, o cabelo é um excelente bioindicador, que sempre mostra uma contaminação passada. “O cabelo cresce à medida que as impurezas vão sendo excretadas. É o mesmo processo que ocorre no suor, nas fezes e na urina. Mas o cabelo tem a vantagem de ser uma matriz melhor de ser conservada”, informa. Contaminação - Em Barcarena, a qualidade da água piora à medida

que os poços vão se aprofundando. Enquanto nos poços mais rasos são encontrados alumínio, chumbo, fósforo e selênio, nos mais profundos, o estudo encontrou, além desses, outros elementos tóxicos, como o cádmio e o bário. Alumínio e ferro são elementos naturais na Amazônia, diferentemente do cádmio e do bário. “O bário não existe naturalmente na Amazônia. Em Barcarena, no entanto, ele chega até a 125 vezes acima do nível máximo permitido na água de rio, na época de vazamentos de rejeito do processamento do caulim. O ácido sulfúrico, usado no branqueamento do caulim, além de tornar disponíveis os metais ligados ao minério, também aumenta a acidez da água dos rios da região, o que pode alterar as

condições de vida aquática”, alerta Simone Pereira. Segundo Simone Pereira, o estudo é só um passo dado no sentido de melhorar a situação da população local. “Estamos trabalhando com a água de Barcarena desde 2012, mas a Delegacia do Meio Ambiente atua ali há mais de treze anos, já produziu 12 inquéritos sobre vazamentos na área e nenhum desses processos chegou, sequer, a ser julgado”, explica. Em Barcarena, as indústrias não melhoram seus processos e não cumprem a legislação que as obriga a tratar seus efluentes, retirando os elementos tóxicos que provocam doenças graves. “É uma tragédia ambiental que se arrasta por mais de 30 anos”, constata a pesquisadora da UFPA. A pesquisadora Simone Pereira fazendo coleta de água em uma das comunidades de Barcarena.


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Tecnologia

Comunicação para todos Projeto garante acesso à telefonia na comunidade de Itabocal (PA) Daniel Sasaki

A O Celcom vai proporcionar a inclusão digital de 500 moradores de Itabocal, no nordeste paraense.

tualmente, temos diversos meios de comunicação a nossa disposição: computadores, tablets, notebooks, televisão, rádio, entre outros. Porém os celulares são os mais usados, tornando-se indispensáveis na vida da maioria das pessoas. o aparelho revolucionou o meio social de tal maneira que é quase impossível imaginar que ainda existam pessoas sem acesso a esse tipo de tecnologia. Entretanto essa é a realidade de várias comunidades isoladas na Amazônia, que não possuem acesso à internet e, muitas vezes, também não possuem acesso à telefonia. Foi pensando na necessidade dessas comunidaFoToS ACERVo dA PESQUiSA

des que a Universidade Federal do Pará (UFPA) criou o Projeto de Extensão de Telefonia Celular Comunitária (Celcom). o trabalho já rendeu vários estudos e resultados, e um deles foi a dissertação elaborada pelo engenheiro Jefferson Breno Negrão Leite, sob orientação do professor Aldebaro Klautau Junior, intitulada Projeto de telefonia celular GSM baseada em Open Source e Open Hardware para comunidades rurais isoladas e carentes na Região Amazônica: Estudo de Caso em Itabocal – Irituia. A dissertação foi defendida em 2014, no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Elétrica (iTEC/UFPA). de acordo com Jefferson, a intenção do projeto é oferecer meios de comunicação para pessoas que vivem em comunidades afastadas das sedes dos municípios. “observamos que, nas comunidades alvo do projeto, havia escolas. Caso as crianças quisessem realizar uma pesquisa, teriam que se conformar com os livros da biblioteca, pois não tinham acesso à internet. Verificamos que a inclusão digital era necessária nessa região”, afirma. A ideia é implantar um sistema de comunicação via telefonia celular alternativa e de baixo custo, para que o serviço seja disponível de forma gratuita à comunidade. A partir dessa ideia, surgiu o Celcom. “Utilizamos uma tecnologia de 2ª Geração (Global System for Mobile Communication) por se tratar de uma tecnologia com mais de 20 anos de existência, já desenvolvida em código aberto (open source), ou seja, disponível para qualquer pessoa que queira utilizá-la. Em seguida, vimos que poderíamos utilizar equipamentos de baixo custo (open hardware), que poderiam funcionar como uma rede GSM, que dá acesso a ligações e troca de mensagens via SMS”, explica o engenheiro.

Prêmio Vale-Capes Em julho passado, a pesquisa de Jefferson Leite foi contemplada com o Prêmio Vale-Capes de Ciência e Sustentabilidade de melhor dissertação na categoria Tecnologias Socioambientais, com ênfase no combate à pobreza. Para ele, a premiação vai além da sua importância acadêmica. “Foi gratificante, pois o prêmio deu visibilidade para o projeto. Nós queremos impactar a vida dessas pessoas, mudar o seu estilo de vida. O principal objetivo, além do conhecimento científico, é poder dar um retorno social a essa comunidade”, finaliza.


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Moradores irão administrar distribuição de créditos Uma das comunidades escolhidas para implementação do projeto foi Itabocal, localizada a 13 km da sede do município de Irituia, no nordeste paraense. Enquanto a sede do município conta com acesso à internet móvel, os 500 habitantes de Itabocal não têm acesso à telefonia. “Quando ouviu falar no projeto, a comunidade ficou muito empolgada, principalmente os estudantes dos ensinos fundamental e médio, que viram no projeto uma oportunidade para melhorar seu aprendizado”, lembra Jefferson Breno Negrão Leite. Com o projeto, os membros da comunidade podem utilizar um celular comum que, hoje, está sendo descartado. “A nossa ideia é reciclar esses celulares e distribuí-los para as pessoas na comunidade. Eles conseguem utilizar o sistema sem que haja necessidade de configuração. Nós conseguimos registrar o chip de qualquer operadora em nossa rede, a Celcom. Ao receber o celular, a pessoa também rece-

berá um número próprio para uso dentro da comunidade”, esclarece Jefferson. Limites – Para que o serviço funcione com qualidade e sem congestionamento, é necessário que haja uma limitação em seu uso. Para isso, um sistema (Celcom Biller) vai administrar o limite de crédito das pessoas. A ideia é que a própria comunidade administre esse sistema. “O correto é que eles decidam a melhor maneira de fazer a distribuição de créditos. Por exemplo, o líder da comunidade talvez deva ter mais créditos, pois lida com situações diárias do local. As crianças que tirarem as melhores notas nas escolas talvez devessem ganhar mais créditos por conta dos seus esforços. Mas o mais importante é que a própria comunidade abrace a ideia e administre a distribuição de créditos”, explica Jefferson Leite. Para o pesquisador, esse envolvimento da comunidade é fundamental, pois ela é corres-

ponsável pela implementação e manutenção do sistema. “A ideia do celular comunitário não é que a Universidade se transforme em uma operadora, pois não temos recursos suficientes para isso. Nossa intenção é capacitar a comunidade envolvendo estudantes que tenham algum interesse em engenharia. Inicialmente, daremos o suporte e, com o tempo, eles aprenderão a agir por conta própria. Assim as pessoas desenvolvem um sentimento de pertencimento ao projeto”, ressalta. Desde 2015, o projeto conta com a parceria da Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Educação Técnica e Tecnológica (Sectet). Pelo convênio firmado, serão implantados dois projetos-piloto de telefonia celular e internet comunitárias: um, em Itabocal; e outro, na área de abrangência da Floresta Nacional de Caxiuanã. Em Itabocal, a meta é que o serviço esteja em pleno funcionamento ainda este ano.

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Em campo, pesquisadores testam o uso do sistema que será implementado.


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Entrevista

Tadeu Oliver Gonçalves

Uma trajetória dedicada à Matemática “Primeiro, criamos o fato e, depois, encontramos as soluções” Walter Pinto

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ecentemente, o professor Tadeu Oliver Gonçalves tornou-se professor titular da UFPA, culminância de uma longa e profícua carreira dedicada ao ensino e à pesquisa em Matemática, desde que começou a lecionar, ainda durante a graduação. Essa dedicação pode ser constatada pela marca registrada entre os anos de 2002 e 2012, quando Tadeu Oliver orientou 31% do total de pesquisas em Matemática realizadas na Região Norte, sendo, então, em nível nacional, o terceiro docente com maior número absoluto de trabalhos orientados em Matemática.

Além das pesquisas, ele atua na integração do ensino de Ciências e Matemática, preocupado em formar docentes também para as séries iniciais do ensino fundamental, um nível pouco privilegiado pela Academia.

Graduação na Ditadura Em 1973, concluí o ciclo básico e optei pelo Curso de Licenciatura em Matemática. Em 1974, na ditadura militar, fui eleito presidente do Centro Acadêmico de Matemática. Incomodavam-me muito as atitudes do então chefe do Departamento do curso, que sonegava informações sobre cursos de verão oferecidos pelas universidades

de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Na primeira reunião, reivindiquei os direitos discentes. O chefe do Departamento foi enfático: “meu filho, por acaso você não conhece o AI5?”. Senti-me pressionado. Naquela época, docentes e discentes eram lesados em seus direitos, havia perseguições e prisões de estudantes e professores.

Pós-Graduação Tornei-me professor colaborador do Departamento de Matemática da UFPA, em 1976. O contrato tinha umas peculiaridades: terminava ao fim de cada semestre. Recebíamos por hora-aula e não tínhamos direito

a férias e a décimo terceiro. No ano seguinte, fiz concurso para Auxiliar de Ensino, sendo aprovado, mas não chamado. Continuei como professor colaborador. Nesse mesmo ano, a Unicamp ofereceu à UFPA vagas para o Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática, mas o reitor da época, médico de formação e, certamente, pouco sensível às questões da educação, negou meu pedido para participar do mestrado. Resolvi ir mesmo sem remuneração. Para minha surpresa, dois dias antes da viagem, o pró-reitor, no exercício da Reitoria, comunicou-me que eu seria efetivado e havia autorizado minha liberação para o mestrado. Alexandre Moraes


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Administração Durante os anos de 1980 a 1985, fui coordenador do curso de Ciências e professor orientador. Para incentivar os alunos, criamos o Grupo Cultural de Ciências e Matemática, um espaço para promoção de atividades acadêmicas, como palestras e cursos. Foi um fator decisivo para aumentar a autoestima dos discentes. Por essa época, implantei a “nova matriz curricular” do curso de Ciências. Em 1985, tornei-me o primeiro diretor do CCEN eleito por voto direto e universal.

Interiorização Em meados da década de 1980, a UFPA passou a ser questionada por lideranças comunitárias e políticas para que se sensibilizasse com a falta de qualificação dos professores do ensino médio e fundamental no interior do Estado. O reitor aceitou o desafio, apesar de existirem, dentro da Instituição, grupos que consideravam que a intenção tinha objetivos político-partidários. Alguns eram contra a implantação do projeto, com o argumento de que os recursos a serem utilizados poderiam ser investidos para a melhoria dos cursos na sede. Na condição de diretor do CCEN, trabalhei para que a solicitação da população do interior fosse atendida, pois víamos que aquela seria uma oportunidade ímpar de a UFPA saldar uma dívida de quase 30 anos. Hoje, verifico que o apoio ao Projeto de Interiorização foi acertado. Temos uma Universidade m u l t i campi. Os oito campi criados inicialmente – e os que vieram posteriormente - contam com corpo docente próprio e ofertam outros cursos além das licenciaturas. Dois desses campi foram transformados em universidades.

Fora dos muros da UFPA Fora dos muros da UFPA, exerci os cargos de assessor de Planejamento e, posteriormente, diretor de Ensino da Seduc. Tive oportunidade de colocar em prática diversas ações que contribuíram para o desenvolvimento do ensino público no Pará, apesar de as questões político-partidárias nem sempre serem favoráveis. Foram essas questões que impediram, por exemplo, a efetivação de um projeto que considerava bastante relevante, voltado à qualificação superior de professores leigos, por meio da oferta de cursos de licenciatura.

experiência administrativa foi muito importante para a minha realização profissional.

Mestrado em Ciências e Matemática Após a defesa da tese, em 2000, eu e a Terezinha Valim voltamos a Belém e começamos a elaborar o projeto para criação do Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática. Era uma forma de retribuir o investimento feito na nossa formação e também um avanço considerável, pois seria a primeira pós-graduação stricto sensu na área, em todo o Norte. Seria também a oportunidade para docentes de outros Estados do Norte se pós-graduarem a um custo financeiro de estada mais acessível. Tivemos que contornar alguns percalços. Um foi a falta de incentivo na Propesp, na época. No entanto não desanimamos e seguimos em frente. Iniciamos sondagem junto aos professores de outras unidades sobre o interesse em fazer parte do programa. A ideia prosperou. Em 2001, a primeira turma registrou a demanda de 172 candidatos para 25 vagas. As aulas e as orientações realizadas pelos docentes não eram contabilizadas em nossos planos de trabalho. Por não termos espaço físico para o funcionamento da coordenação, optamos por destinar o pagamento das aulas que ministrávamos num curso de especialização para a construção da sala. Em 2005, foi proposto pela Reitoria a minha transferência para o NPADC, juntamente com Renato Guerra e Adilson de Oliveira, todos lotados no

A experiência administrativa foi muito importante para a minha realização profissional

Administração acadêmica Na UFPA, atuei como coordenador da Pós-Graduação e fui membro, durante 21 anos, dos Conselhos Superiores. Vivenciei tomadas de decisões importantes para a Universidade, como a implantação do Projeto de Interiorização, do Reuni, do Parfor, do Sistema de Cotas e dos atuais Regimento e Estatuto da UFPA. Exerci a direção adjunta do Instituto de Educação Matemática e Científica (IEMCI), contribuindo para a consolidação do PPGECM e da Licenciatura Integrada em Ensino de Ciências, Matemática e Linguagem, entre outras ações. No exercício da administração acadêmica, aprendi como fazer e também como não fazer. A administração, quando levada a sério, traz consigo uma desvantagem para o pesquisador: limita o seu tempo à investigação científica. Mas, ao final, a

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Departamento de Matemática. A troca de três doutores por apenas uma vaga (“3x1”) tinha uma razão política. Em 2008, o Programa de Mestrado do NPADC foi avaliado com nota 4. Com isso, propomos a criação do doutorado. Em 2009, iniciamos o doutorado, contando com dezoito docentes efetivos no programa.

Graduação para séries iniciais

Em 2008, o reitor Alex Bolonha Fiúza de Mello perguntou a mim e à Terezinha “o que vocês ainda gostariam de fazer pelo ensino de Ciências e Matemática?”. Eu, de imediato, respondi que somente teria motivação necessária se fosse para criar uma licenciatura para séries iniciais em Ciências e Matemática. Alex, então, solicitou que elaborássemos um esboço de projeto para apresentar ao MEC. O projeto precisou contornar muitos obstáculos até que conseguimos transformar o NPADC em Instituto de Educação Matemática e Científica (IEMCI), em junho de 2009, em função da criação do Curso de Licenciatura Integrada em Ciências, Matemática e Linguagem, como parte do Reuni. O IEMCI apresentou uma característica diferente das dos outros institutos: até a presente data, foi a única unidade acadêmica da UFPA que começou suas atividades na pós-graduação para depois criar a graduação. Após a criação da licenciatura, criamos o Mestrado Profissional, voltado aos professores das séries iniciais da rede pública de ensino estadual e municipal. Relembrei aos colegas que eram contra a criação do mestrado que em nossa trajetória sempre criamos o fato e, depois, encontramos as possíveis soluções. O projeto, aprovado pela Capes, obteve a nota 4, o que nos leva a crer que estamos no caminho certo.


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Fotos Acervo da Pesquisa

Eles, os botos de Mocajuba Pesquisa analisa o comportamento de animais que frequentam a orla da cidade Glauce Monteiro

U

m grupo com cerca de doze golfinhos de água doce tem chamado atenção de pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA). Os biólogos, veterinários e ambientalistas se surpreendem com a relação amistosa entre os moradores da cidade de Mocajuba, no nordeste paraense, e os botosvermelhos (Inia araguaiaensis) que frequentam a orla do município. Apesar de estudar o grupo há mais de dois anos, recentemente os pesquisadores organizaram uma expedição específica para entender melhor o comportamento e, acredite, as “conversas” desses animais míticos da Amazônia. Durante duas semanas, no mês de setembro de 2016, os integrantes do Grupo de Pesqui-

sa em Biologia e Conservação de Mamíferos Aquáticos da Amazônia (BioMA), em parceria com a UFPA e com a Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), acompanharam os botos-vermelhos e outras espécies que frequentam o local com o uso de boias flutuantes equipadas com hidrofones, soundtraps (aparelho de monitoramento sonoro) e com as Dtags (equipamento eletrônico usado no monitoramento de mamíferos marinhos em seu ambiente natural). O objetivo era saber mais sobre o comportamento e “espiar as conversas” entre os botos de Mocajuba. “É uma situação atípica, porque normalmente os botos são muito discretos. Esses, ao contrário, são dóceis e estão acostumados a interagir com humanos, o que nos concede uma chance única para pes-

quisar o comportamento destes animais, especialmente dos botos-vermelhos do rio Tocantins, que são uma espécie recémdescoberta, mas já ameaçada pela ação antrópica”, aponta Gabriel Melo-Santos, líder da expedição e doutorando do Núcleo de Teorias e Pesquisas do Comportamento da UFPA (NTPC). O pesquisador da UFPA diz que, embora as análises de todo o material coletado durante a expedição estejam ainda no início, a experiência já trouxe algumas descobertas. A primeira surpresa é que o maior período em que um boto-vermelho permaneceu com a Dtag foi por seis minutos. O equipamento, que já foi usado em mais de vinte espécies de cetáceos, em várias partes do mundo, simplesmente era retirado pelos botos da Amazônia.

“Ora as Dtags eram retiradas por outros indivíduos do grupo que usavam a boca para ‘cutucar’ o companheiro, ora o animal que estava com o equipamento simplesmente se aproximava do fundo do rio ou de uma área com pedras e se esfregava ali até que o equipamento se soltasse. Também vimos que eles eram capazes de retirar o equipamento de seu dorso realizando movimentos que lembram os de contorcionistas, o que não aconteceu com nenhuma espécie investigada. Precisamos observar melhor o que esse ‘truque’ dos botos significa. Talvez tenha a ver com a anatomia específica da espécie, com a adaptação diante da interação com o meio ambiente local ou, ainda, esteja relacionado ao intrínseco comportamento dos botos de Mocajuba”, anuncia o biólogo.


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Amazônia Ruídos naturais afugentam botos do canal principal O comportamento do grupo também trouxe novidades. “Vimos que eles não chegam ao local juntos, mas separados. Também conseguimos gravar sons deles próximo à orla da cidade, à noite, e obtivemos um registro inédito de um filhote de boto em contato social com a mãe. Os sons indicam, ainda, que os ‘cliques’, ou seja, os sons característicos dos botos, usados para navegação e procura de alimentos, são mais rápidos do que os registrados em espécies de golfinhos marinhos,

e acreditamos que isso aconteça porque os botos vivem em uma área com mais obstáculos, circulam por rios e igarapés estreitos, enquanto os animais de água salgada passam boa parte do tempo em mar aberto, sem lidar com muitos obstáculos”, pondera Gabriel Melo-Santos. Outra situação surpreendente foi o registro de um tipo de som de interferência natural que pode afastar os botos da orla de Mocajuba, em certos momentos do dia. “É um som ambiente que acreditamos

que seja gerado durante a enchente da maré e que se torna mais forte com o aumento do fluxo do rio. Esses sons são causados por partículas de areia se movimentando no leito do Tocantins. A presença desse som, supomos, afugenta os botos, pois, como eles usam um sistema de localização baseado em sons, no momento em que ocorre esse fenômeno, se estivessem ali, eles estariam cegos e surdos diante do meio ambiente, portanto vulneráveis”, revela o biólogo.

Boto-vermelho e tucuxi frequentam os mesmos lugares Gabriel Melo-Santos explica que, embora as Dtags não tenham permanecido por muito tempo com os animais, os pesquisadores consideram que tiveram êxito na pesquisa. “Os outros equipamentos utilizados nos trouxeram tantos dados e tantas situações não previstas que a expedição só pode ser considerada um sucesso. Além dos botosvermelhos, outra espécie de golfinho habita o rio Tocantins, os tucuxis, e monitoramos as duas espécies, por longos períodos, utilizando uma embarcação local. Chegamos a observar, em vários momentos, grupos de boto-vermelho e tucuxis em um

mesmo local e/ou muito próximos. Não registramos interação entre os grupos, mas o fato de frequentarem os mesmos lugares é significativo. As soundtraps nos proveram de informações sobre a presença e a ausência dos animais na região, nos possibilitando um primeiro quadro de como os botos utilizam o Rio Tocantins”, assegura o pesquisador. Além disso, todos os sons gravados durante a expedição trazem informações únicas sobre o comportamento dos botos, já que foi possível os pesquisadores saberem o que ocorria e até mesmo identificar qual dos animais emitia qual vocalização.

“Temos vídeo, áudios e outros dados raros como amostras de muco do espiráculo dos botos, muito difíceis de serem coletadas. Ressaltamos que todas as fases da pesquisa foram realizadas com licença emitida pelos órgãos ambientais. Além disso, conseguimos identificar, individualmente, seis botos, batizados, a maioria, em inglês para que todos na expedição entendessem. Nosso desafio, nos próximos meses e anos, será analisar tudo isso, descobrir e revelar um pouco mais sobre a vida desses animais surpreendentes”, afirma, animado, Gabriel Santos-Melo. Hidrofones,

soundtraps e dtags

foram alguns equipamentos utilizados para ouvir as "conversas" dos botos.


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Extensão

Jogando contra o barbeiro Aplicativo traz informações sobre combate à doença de Chagas FoToS ALExANdRE MoRAES

O jogo traz imagens de pontos turísticos de Belém, tornando o ambiente familiar para as crianças.

Hojo Rodrigues

S

ão muitas as doenças transmitidas ao ser humano por meio da ingestão de alimentos ou água contaminados. Entre elas, estão as salmoneloses e as parasitoses. Atualmente, em razão das mudanças na forma de transmissão, a doença de Chagas, causada pelo protozoário parasita Trypanosoma cruzi, passou a fazer parte da lista. Na Amazônia, a doença teve um crescimento significativo de novos casos, atribuídos ao consumo de alimentos mal higienizados e expostos a contaminação, com destaque para o açaí, fruto bastante consumido na região. de acordo com um levantamento feito pela Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa), este ano, já foram registrados 191 casos de pessoas infectadas pelo protozoário em todo o Pará, o que se constitui num grave problema de saúde pública. A maioria dos casos foi de transmissão por meio

de ingestão de alimentos contaminados. A doença de Chagas possui duas fases clínicas: a aguda, na qual os sintomas duram de três a oito semanas; e a crônica, quando os sintomas mais recorrentes estão relacionados a distúrbios no coração e no intestino. Entre outros sintomas da doença, estão a febre, o crescimento do fígado, o aparecimento de gânglios linfáticos e a inflamação das meninges. Para prevenir surtos da doença na capital paraense, foi elaborado o Projeto de Extensão “Ações integradas para a promoção da saúde e prevenção de doenças transmitidas por alimentos”, sob a coordenação da cardiologista dilma do Socorro Moraes de Souza, professora da Faculdade de Medicina (iCS/UFPA). o projeto teve início em 2013 e desenvolve ações de prevenção contra doenças transmitidas por alimentos, trabalhando políticas públicas de higienização de alimentos, mas com um foco maior na do-

ença de Chagas. Existe uma diferença muito grande entre uma infecção intestinal e uma doença cardíaca, ambas provocadas por parasitoses em alimentos mal higienizados. A doença cardíaca vai se tornar aguda e crônica, podendo até matar. daí a nossa preocupação com a doença de Chagas, que afeta o coração e tem uma grande incidência no Estado”, conta a pesquisadora.

Ciclo de contaminação O Trypanossoma cruzi é transmitido ao ser humano por meio das fezes do inseto vetor, o barbeiro. O percevejo hematófago adquire o T. cruzi por meio de sua alimentação. Ao defecar, o inseto libera os protozoários que contaminam alimentos expostos. Ao ingerir o alimento contaminado, a pessoa é infectada e apresenta os sintomas da doença de Chagas.


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Bairros da periferia apresentam maior registro de casos Até o momento, o projeto de extensão tem trabalhado apenas com crianças e adolescentes. Para Dilma Moraes Souza, esse público representa os principais multiplicadores de informações a respeito da doença. As ações são realizadas, na maioria das vezes, nos bairros endêmicos da capital paraense. As atividades são desenvolvidas em feiras e escolas públicas e privadas de Belém. “Escolhemos as zonas endêmicas para causar um impacto imediato, principalmente nos bairros nos quais foram registrados mais casos da doença, como Guamá, Tenoné, Jurunas e Canudos. Todos estão localizados na periferia da cidade”, revela Dilma. Teatro de fantoches, oficinas de higienização de alimentos, palestras e distribuição de gibis, cartilhas e fôlderes estão entre as ativi-

dades realizadas pela equipe. A cardiologista conta que resolveu desenvolver as ações lúdicas para tornar a temática interessante para as crianças. No teatro de fantoche, os personagens são animais e seres folclóricos regionais, como o boto, o papagaio, o Curupira e a Cobra Grande. Eles falam sobre a doença de Chagas usando uma linguagem típica da nossa região. O gibi sobre a doença de Chagas também faz sucesso entre as crianças. “A doença de Chagas é retratada nos quadrinhos, por meio de uma historinha contada também em uma linguagem regional. É mostrado o barbeiro, que é o inseto vetor da doença, os sintomas e a prevenção da doença. No final, há as palavras cruzadas e um jogo de caça palavras”, explica a cardiologista.

O projeto, que já atendeu 316 crianças e adolescentes, articula ações de extensão, pesquisa, ensino e assistência e conta com uma equipe multidisciplinar, formada por 16 pessoas. “Hoje, nós temos profissionais de Estatística, de Biologia, de Fisioterapia, de Nutrição e de Farmácia. Acredito que, quando se amplia uma equipe e há uma interdisciplinaridade, são envolvidos novos saberes que ajudarão a construir produtos que serão aplicados na população”, diz Dilma Moraes Souza. O projeto está inserido no Programa Interdisciplinar da Doença de Chagas, o qual possui outros projetos voltados para a doença. Segundo a pesquisadora, o projeto tem alcançado seus objetivos, já que, este ano, a equipe registrou menos

casos de pessoas infectadas com a doença, em comparação ao ano passado. “Este ano, nós tivemos cerca de 80 casos da doença até o momento. Em meados de 2015, nós já tínhamos mais de 100 casos”, revela. Entre os alimentos que transmitem a doença por meio da ingestão, encontram-se o caldo de cana-de-açúcar, a goiaba, a farinha d’água, a bacaba e o açaí, que continua como o principal alimento que transmite a doença, geralmente, por falta de higiene. “O açaí é um alimento muito consumido na região, por isso ele está associado à transmissão da doença. Mas há hipóteses sugerindo que, por ser um fruto calórico, o açaí libera CO² (gás carbônico), que atrai o barbeiro e, desta forma, há a possibilidade de o inseto ser triturado com o alimento”, explica.

Chagame foi desenvolvido para crianças de 5 a 7 anos Durante as atividades realizadas nas escolas, a equipe percebeu que algumas crianças se dispersavam ao utilizar aparelhos celulares e tablets. “Então pensamos em desenvolver uma atividade para os aparelhos eletrônicos e criamos o jogo Chagame, do qual participei como orientadora”, conta a professora Dilma Moraes Souza. A ideia de criar o jogo partiu do estudante da Faculdade de Medicina da UFPA, Jefison Lopes, 24 anos, voluntário do projeto. O Chagame já alcançou mais de mil downloads e está disponível em celulares com sistema operacional Android. O Chagame é um jogo em 2D, artesanal, com interface básica e lembra o jogo do Mário World, o qual tem como principal objetivo fazer o usuário se defender de obstáculos e perigos para poder avançar de fase. “No Chagame, o barbeiro é o principal obstáculo a ser vencido e suas fezes representam um grande perigo, assim como na vida real”, explica o estudante,

que se interessa por tecnologias desde a adolescência. “Acredito que a tecnologia tem o poder de disseminar informação e, para a área da saúde, isso é muito importante”, afirma. O jogo traz imagens de pontos turísticos da capital paraense, permitindo que as crianças se identifiquem com a plataforma. “Nas escolas, disponibilizamos celulares e tablets para que as crianças possam jogar durante alguns minutos. Em seguida, fazemos perguntas sobre a doença de Chagas e quais as melhorias que podem ser feitas no jogo”, explica Jefison Lopes. Inicialmente, o Chagame foi desenvolvido para crianças de 5 a 7 anos de idade. No entanto, com a sua disponibilidade no Google, pode-se perceber que adolescentes e jovens ficaram curiosos para conhecer o aplicativo. “O Chagame é uma isca para gerar educação em saúde. Ele traz informações importantes de como se prevenir da doença de Chagas”, conta Jefison.


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Arquitetura, memória e patrimônio Dissertação analisa projetos de preservação do centro histórico ALExANdRE MoRAES

Daniel Sasaki

A

o caminhar pelo centro da capital paraense, você pode se sentir em pleno século xVii, mais especificamente no ano de 1616, quando a força bélica portuguesa expulsou os franceses de pleno território amazônico e fundou a cidade que hoje conhecemos como Belém do Pará. Traços bélicos dessa época misturaram-se com o charme de construções da Belle Époque belenense e formam o atual centro histórico da cidade. Porém as belas construções arquitetônicas de época contrastam com os casarões abandonados, pichados e com os monumentos em estado de completo abandono. Foi o incômodo de presenciar cenários desastrosos como esse que motivou a arquiteta Márcia Teixeira Figueira Forte a realizar a sua pesquisa de mestrado, intitulada Trajetória do pensamento preservacionista e potencialidades para projetar no Centro Histórico de Belém-PA. o trabalho foi defendido no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, do iTEC/UFPA, sob a orientação da professora Thais Alessandra Bastos Caminha Sanjad. A pesquisa teve como ponto de partida a compreensão do processo de transformação do Centro Histórico de Belém, relacionando ideias preservacionistas à instituição de tombamento e à atividade projetual desenvolvida no núcleo histórico da cidade. “Partindo desse objetivo, fez-se necessária uma análise da trajetória do pensamento preservacionista em Belém desde as décadas de 1930 e 1940, quando foram realizados os primeiros tombamentos na capital, até os dias atuais, e como esse processo influenciou no desenvolvimento da atividade projetual no Centro Histórico”, explica. Um dos objetivos de sua pesquisa foi investigar os possíveis caminhos de produção arquitetônica contemporânea, capazes de manter o Centro Histórico de Belém preservado. “Considerando que a demanda de nossos centros urbanos nos impõe cotidianamente o desafio de projetar em espaços de memória, a pesquisa quis ampliar o debate acerca da liberdade projetual em áreas históricas e estimular um olhar profissional mais sensível em prol de atitudes contemporâneas conscientes do valor das preexistências”, afirma Márcia Forte.


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“Centro histórico nunca esteve tão abandonado” Adolfo Lemos

Segundo a arquiteta, a atual situação do centro histórico de Belém é de completo abandono, proveniente do descaso do poder público. Natural de Recife e morando há 14 anos em Belém, Márcia Teixeira Figueira Forte afirma que nunca presenciou o centro histórico tão abandonado. “Atualmente, são mais de três mil edificações situadas dentro do polígono de tombamento do centro histórico, muitas são propriedades privadas, sem nenhuma política pública local de incentivo à preservação. Hoje, podemos ver prédios históricos importantes, como o Palacete Pinho e o Solar da Beira, entre tantos outros, entregues à própria sorte”, destaca. Para a realização de sua pesquisa, de modo a identificar importantes contribuições que demonstrassem como intervir em construções preexistentes de maneira atual e harmônica, sem romper com a unidade dos conjuntos edificados e preservando a identidade de nosso centro histórico, a arquiteta elencou três construções para análise: O complexo Ver-o-Peso, o Sesc Boulevard e o Edifício Bechara Mattar. Márcia afirma que a escolha foi pautada em diferentes níveis de intervenção, uns mais pontuais, outros de maior interferência no contexto urbano. No Complexo Ver-o-Peso, principal representante da identidade

cultural da população belenense, foram analisadas as intervenções mais notáveis, em especial o projeto que atualmente faz parte da paisagem desse expressivo local. No Sesc Boulevard, que faz parte do skyline frontal da cidade e sofreu uma ampliação moderada e transformações na estrutura interna, com restaurações em sua fachada que repercutem de forma sutil sobre o casario do entorno, foi analisada a questão do uso responsável da edificação diante de um projeto de intervenção.

Já o Edifício Bechara Mattar, inserido numa área cercada pelos primeiros tombamentos da capital, que rompe, de forma ostensiva, com a tipologia do local, foi observado sob o ponto de vista de apresentar uma possibilidade de amenizar o dano ao conjunto edificado. “Representa uma intervenção da década de 1970, agressiva ao entorno, e está sendo alvo de polêmica envolvendo moradores da área, profissionais e população em geral”, afirma.

Centro histórico de Belém tem 3 mil edificações e muitas estão entregues à própria sorte.

Análise revelou mais aspectos positivos do que negativos Os resultados da análise mostram que os três casos abordados estão relacionados à prática projetual do arquiteto contemporâneo diante da difícil tarefa de atuar em áreas preexistentes, destacando o olhar profissional em relação ao patrimônio construído. Para Márcia Forte, a ausência de referenciais teóricos consistentes e de conhecimento tecnológico, aliada à falta de sensibilidade com relação ao patrimônio cultural, muitas vezes, contribui com um cenário

urbano repleto de resultados negativos, com reflexo direto na salvaguarda da essência da coletividade, dada a importância dos espaços na construção da memória e, consequentemente, da identidade cultural do local. “Considero as três intervenções mais positivas do que negativas, dentro desse contexto, apesar de ressalvas feitas durante a pesquisa, tendo em vista que os projetos foram pautados em questões fundamentais para um resultado satisfatório, como: aprofunda-

mento na pesquisa documental acerca do objeto de intervenção; realização de uma ampla leitura do conjunto em que a edificação está inserida; aproximação com os reais usuários do espaço, identificando o real significado do objeto frente à coletividade e, principalmente, afirmação como arquitetura contemporânea, que deve se inserir, de forma harmoniosa, no ambiente construído, sem agredi-lo ou descaracterizar o espaço histórico”, avalia a arquiteta.

Márcia Forte acredita que sua pesquisa pode contribuir para uma conscientização profissional. “Contribuir com relação ao importante papel da arquitetura nesse contexto, estimulando uma atuação mais segura do profissional, evitando o extremismo entre a tendência simplista bastante recorrente, munida de um engessamento que impede a realização de qualquer tipo de modificação e os recorrentes exageros descaracterizadores”, finaliza a pesquisadora.


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Resenha A Era do Rádio na cidade dos sonoros Reprodução

Walter Pinto

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os estudos históricos sobre os meios de comunicação no Brasil, o período compreendido entre o término da Segunda Guerra Mundial e o final da década de 1950 é conhecido como a Era do Rádio. Duas décadas depois de surgir no Brasil, o rádio alcançaria notável desenvolvimento em meados dos anos 40 por conta do aporte publicitário agora liberado, levando para os lares brasileiros entretenimento por meio de uma programação em que a música, transmitida diretamente dos programas de auditórios das emissoras, ocupava a maior parte das transmissões. Foi um momento do lançamento de muitas carreiras e de consagração de outras que já estavam na estrada, tanto para cantores, grupos vocais, orquestras e músicos, como também para “os homens de rádio”, os apresentadores. O público lotava os auditórios das emissoras de rádios num tempo ainda sem televisão – somente seria inaugurada em 1951 – seja porque era formado por fãs apaixonadas por seus ídolos, seja porque fazia parte de esquemas midiáticos de promoção de alguns deles. No Pará, a primeira emissora a entrar em operação foi a Rádio Clube, em 1928. A segunda levaria vinte e seis anos para surgir. Coube ao grupo Diários Associados, do empresário Assis Chateaubriand, inaugurar, em 1954, a Rádio Marajoara, ampliando sua rede de comunicação no Estado, no qual era proprietário de um grande jornal, A Província do Pará, relançado em 1947, após 21 anos de inatividade. As ondas dessas duas rádios embalaram os sonhos dos paraenses daquele período, de grande desenvolvimento e avanços tecnológicos, que se estabeleceu entre duas ditaduras, a do Estado Novo e a militar, de 1964.

É sobre esse período fecundo da rádio paraense em Belém do Pará que o livro Cidade dos sonoros e dos cantores: Estudo sobre a Era do Rádio a partir da capital paraense, do antropólogo e historiador Antonio Maurício Costa, trata em suas 150 páginas. O autor é professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da UFPA. Suas pesquisas e publicações no campo da cultura popular colocam-no como uma referência na Amazônia. O texto de Cidade dos sonoros e dos cantores é formado por seis artigos escritos em épocas diferentes, mas a uniformidade temática garante a fluidez da leitura como uma obra escrita de um só fôlego. Nos seis capítulos que compõem o livro, Costa reconstrói parte da história da radiofonia em Belém, desde o período inicial dos sonoros. Adentra os salões de dança e o convívio social dos clubes da

elite e do subúrbio, nos quais imperaram figuras lendárias da arte da dança popular. Revisita antigos programas radiofônicos em busca do sotaque amazônico identificador de uma maneira de fazer rádio no Pará. Investiga memórias que trazem à tona artistas que fizeram época nos microfones locais. E, por fim, oferece ao leitor de hoje a história de um ídolo paraense daquele período, o grande Ary Lobo, cantor que era conhecido por “Cidadão Samba” no Pará, mas conquistou o Brasil como intérprete de músicas nordestinas, tendo gravado nove Lps e alcançado a marca dos cem mil discos vendidos. No final da década de 1930, a Rádio Clube do Pará imperava soberanamente sem concorrente. Os períodos de transmissão eram curtos e a programação musical despontava como principal atração para os ouvintes. Ainda sem auditório próprio na década de 1940, os programas musicais ao vivo

eram transmitidos de clubes esportivos e de colégios de Belém. Um sucesso da época, conta-nos Costa, foi o “Navio Escola”, um programa de calouro que, como vários outros transmitidos até o final dos anos 50, revelou muitos músicos e cantores paraenses. O pianista Guiães de Barros regia a orquestra da emissora, antes de se transferir para a concorrente recém-fundada Rádio Marajoara. Coube à Marajoara inaugurar o primeiro auditório radiofônico paraense, numa área privilegiada, próximo à Praça Justo Chermont, na qual se instalava, durante o Círio, o Arraial de Nazaré. O auditório tinha capacidade para mil pessoas e os programas eram realizados sempre à noite. Na década de 50, o público pagava para assistir aos shows de artistas nacionais consagrados como Cauby Peixoto e Ângela Maria. Por sua vez, os espetáculos de artistas do cast da emissora eram gratuitos. O auditório ficava igualmente lotado quando Alzirinha Camargo, Cleide Lima e Tácito Cantuária, entre outros, cantavam. A fama que as apresentações nos rádios davam aos artistas paraenses irradiava-se pelos municípios. O circuito pelo interior era constante. E havia os que se sentiam estimulados a conquistas maiores e buscaram o sucesso no Rio de Janeiro, a meca da música brasileira na época. O livro mostra que o desenvolvimento de carreiras e performances de artistas paraenses da canção na Era do Rádio “se deu a partir da interação entre jornalistas, público ouvinte e espectador, além de profissionais do meio radiofônico. Ao mesmo tempo”. Serviço: Cidade dos sonoros e dos cantores: estudo sobre a Era do Rádio a partir da capital paraense. Antonio Maurício Costa. Editora: Imprensa Oficial do Estado.


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A Histรณria na Charge

#feliz2017



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