Beira 155

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ISSN 1982-5994

anos

UFPA • Ano XXXIV n. 155 • Jun/Jul/Ago de 2020

Artigo

Inclusão

Especial

Violência doméstica cresce durante isolamento social

Assistência estudantil garante permanência na universidade

Epidemias e estatísticas de mortalidade na Amazônia

Página 4

Páginas 6 e 7

Páginas 16 e 17


Universidade Federal do Pará

JORNAL BEIRA DO RIO cientificoascom@ufpa.br Direção: Prof. Luiz Cezar Silva dos Santos Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE) Reportagem: Adrielly Araújo, Flávia Rocha e Gabriel Mansur (Bolsistas); Walter Pinto (561-DRT/PA). Fotografia: Alexandre de Moraes Fotografia da capa: Alexandre de Moraes Ilustrações: Walter Pinto e Priscila Santos Charge: Walter Pinto Projeto Beira On-line: TI/ASCOM Atualização Beira On-Line: Rafaela André Revisão: José dos Anjos Oliveira e Júlia Lopes Pereira Projeto gráfico e diagramação: Rafaela André Marca gráfica: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom Impressão: Gráfica UFPA Tiragem: Mil exemplares © UFPA, Junho/Julho/Agosto, 2020

Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho Vice-Reitor: Gilmar Pereira da Silva Secretário-Geral do Gabinete: Marcelo Galvão Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Edmar Tavares da Costa Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Maria Iracilda da Cunha Sampaio Pró-Reitor de Extensão: Nelson José de Souza Jr. Pró-Reitora de Relações Internacionais: Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira Pró-Reitor de Administração: João Cauby de Almeida Jr. Pró-Reitora de Planejamento e Desenvolvimento Institucional: Raquel Trindade Borges Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Raimundo da Costa Almeida Prefeito Multicampi: Eliomar Azevedo do Carmo Assessoria de Comunicação Institucional – ASCOM/ UFPA Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa. N.1 – Prédio da Reitoria – Térreo CEP: 66075-110 – Guamá – Belém – Pará Tel. (91) 3201-8036 www.ufpa.br


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os seus 35 anos de existência, o Jornal Beira do Rio já enfrentou ondas de todos os tamanhos. Com maiores ou menores avarias em seu casco, o barco sempre seguiu. Isso nos faz um dos veículos de divulgação científica mais longevos da região. E foi essa vocação para enfrentar tempestades que nos inspirou a fazer esta edição, a primeira, da sua história, realizada com 100% de trabalho remoto da sua equipe e dos seus entrevistados. A edição traz reportagens que já estavam sendo produzidas quando fomos atingidos pela pandemia da covid-19, seguindo a nossa linha editorial de divulgar pesquisas desenvolvidas pela UFPA e também produções sobre esse cenário tão adverso e novo para todos nós. A professora do ICJ Luanna Tomaz de Souza abre a edição fazendo um alerta em relação aos riscos do isolamento social para as pessoas que vivem em situação de violência; a assistente social Ellana Barros Pinheiro defendeu dissertação no PPGSS/ ICSA, na qual analisou as Políticas de Assistência Estudantil implementadas pela UFPA, com atenção especial ao Programa Permanência; para aquecer o coração em tempos de festas juninas canceladas, temos duas reportagens sobre pesquisas que tiveram a aparelhagem Super Pop e o carimbó como temas; em conteúdo especial, o professor Daniel Souza Barroso nos conta que, em tempos de pandemia, a subnotificação e o uso político dos números não são novidades. Rosyane Rodrigues Editora

Nesta Edição O isolamento social e a violência doméstica .........................4 O espaço é aqui. O tempo é agora. .....................................5 Aprovação no processo seletivo é só o começo .......................6 O arrasta povo do Pará ...................................................8 Identificação, controle e prevenção .................................. 10 Rural e urbano, legítimo e estilizado ................................. 12 Camarão, tucupi e jambu em conserva .............................. 14 Epidemias, estatísticas e mortalidade ............................... 16 Roteiros, potencialidades e descasos ................................ 18

Foto Alexandre de Moraes


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ACERVO PESSOAL

Opinião O isolamento social e a violência doméstica

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o atual contexto de pandemia da covid-19, com o crescimento da estratégia de isolamento social, tem também aumentado o registro de casos de violência, em especial aqueles que ocorrem no ambiente doméstico. Desde a China, epicentro da doença, até a América Latina, houve um aumento no número de casos de violência doméstica. Recentemente, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgou nota técnica para “Proteção da Criança durante a Pandemia do Coronavírus”, diante dos casos de violência contra as crianças. A ONU Mulheres também lançou um documento intitulado “Covid-19 na América Latina e no Caribe: como incorporar mulheres e igualdade de gênero na gestão da resposta à crise”, que aborda as dimensões de gênero na pandemia. Segundo a agência da ONU, as mulheres são particularmente afetadas pela pandemia, já que são a maioria entre trabalhadoras informais, domésticas e trabalhadoras da saúde. Ao enfrentar os impactos da pandemia, devemos, contudo, perceber que essas mulheres são distintas, como são distintas as consequências da crise para elas. Convém identificamos os marcadores geracionais,

raciais, sexuais, entre outros, e como estes se imprimem de forma inter-relacionada para essas mulheres. Essa situação torna também complexo o atendimento jurídico prestado, especialmente em um momento em que muitos serviços deixaram de funcionar ou estão funcionando de forma precária. Em verdade, na Região Norte, já há precariedade de serviços disponíveis, isso apenas se agravou. É muito importante, neste momento, ter atenção para aqueles que estão em funcionamento. Não podemos deixar que as pessoas em situação de violência sofram no “vai e vem” de lugares. Além disso, nesse atendimento, é necessário termos cuidado com a situação de fragilidade em que as pessoas se encontram, a qual foi agravada pelo contexto de crise. Deve-se tornar o atendimento acessível e compreensível, para além dos jargões jurídicos. Cabe a essa assistência oferecer diferentes saídas para a situação de violência, inclusive, para além da judicialização. Cada caminho jurídico traçado deve compreender as particularidades de cada história de vida, por isso a importância de uma escuta atenta.

É necessário apresentar para as pessoas envolvidas os percalços de cada caminho para que elas tomem decisões baseadas em informações precisas. É fundamental compreender que cabe às pessoas em situação de violência escolherem a melhor forma de resolver os conflitos em que estão envolvidas, com base nas orientações prestadas, merecendo respeito e apoio em suas decisões. Somente elas sabem quais as condições que possuem para enfrentar esses percalços e qual caminho será menos doloroso. A Universidade pode contribuir oferecendo reflexões, diagnósticos e orientações que possibilitem o desenvolvimento de linhas de ação nesse cenário tão difícil que estamos enfrentando. Luanna Tomaz de Souza – advogada e pós-doutora em Direito (PUC-RIO), diretora adjunta do Instituto de Ciências Jurídicas/UFPA, professora da Faculdade de Direito e do PPGD, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia da Clínica de Atenção à Violência (CAV) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Violência na Amazônia (NEIVA). E-mail: luannatomaz@ufpa.br LOLOSTOCK / ADOBE STOCK


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Educação

O espaço é aqui. O tempo é agora. O Planetário como espaço de ensino de Ciências   Flávia Rocha

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vida em sociedade proporciona a todos os indivíduos um espaço de aprendizagem constante. Os conhecimentos adquiridos por meio de vivências constroem e moldam identidades e visões de mundo. Essas informações são aprendidas na escola, nos museus, por meio dos jogos de tabuleiro, até mesmo nas receitas caseiras que são passadas de pais para filhos. Segundo o Ministério da Educação, há educação formal, não formal e informal. A educação formal acontece dentro

de espaços institucionalizados, como escolas e universidades, e possui formação progressiva e avaliação anual de acordo com as diretrizes estabelecidas. É fiscalizada por órgãos superiores e possui uma hierarquia, com o professor no centro. A educação não formal ocorre dentro de espaços específicos. Há os que são institucionalizados, isto é, possuem uma gestão por trás, como os museus. Há também os não institucionalizados, como praças, parques e bosques. Eles têm um responsável, que é a prefeitura, mas não têm nenhuma gestão

pedagógica. Diferentemente do espaço formal, aqui todos podem participar, não há avaliações, e as atividades são mais flexíveis e dinâmicas. Por sua vez, na educação informal, os conhecimentos não são sistematizados. Eles são transmitidos por meio de experiências e práticas vividas. Os agentes educadores são a família, os amigos, os vizinhos, os colegas da escola, o grupo religioso, os meios de comunicação em massa, entre outros. Cada vez mais, essas modalidades se misturam, especialmente no ensino básico. “Em

uma era em que a informação é abundante, novas formas de adquirir conhecimento afloram e invadem as salas de aula. Novos espaços são vistos como educativos, suas estruturas são repensadas para um público maior ou mais específico”, afirma o professor de Biologia Endell Menezes de Oliveira. Em sua dissertação O espaço não formal e o ensino de ciências: um estudo de caso no Centro de Ciências e Planetário do Pará, Endell buscou entender como ocorre o ensino de Ciências em um local de educação não formal.

Discursos estão alinhados com o modelo formal Para a pesquisa, foram entrevistados oito estagiários do Centro de Ciências e Planetário do Pará (CCPP). Todos acadêmicos de cursos de Licenciatura em Biologia, Física, Química e Ciências Naturais, vinculados ao Centro de Integração Empresa Escola (CIEE). “Esses sujeitos foram escolhidos por serem a ‘imagem’ do Planetário, aqueles com acesso direto e maior interação com o público. Eles desenvolvem, diariamente, as principais atividades educacionais do espaço”, justifica o professor. Com base nas entrevistas, Endell Oliveira concluiu que o Planetário é um espaço permeado de características formais e não formais, porém a mais latente é a de caráter “para-formal”, ou seja, as exposições e os discursos dos estagiários estão alinhados com o modelo formal de ensino. “Os estagiários observam o CCPP como um complemento ou extensão da sala de aula formal. Assim, o espaço proporciona um aprender diferente do modelo

formal, mas respeitando seus programas educacionais”, explica o professor. Segundo a pesquisa, os diferentes tipos de educação não podem ser colocados em caixas hermeticamente fechadas. No cotidiano, eles se combinam e complementam-se. “Nesse processo, é preciso ter cuidado para não negar ou menosprezar nenhum tipo de educação. A ideia é valorizá-los”, afirma o pesquisador. Baseado nisso, o autor traz o conceito de hibridismo no ensino de Ciências. Com o Projeto “Desvendando os Céus do Equador: o Planetário no interior amazônico”, o CCPP leva astronomia para as escolas do interior do estado. Na ocasião, é inflada uma cúpula, e a equipe projeta imagens iguais às que podem ser vistas em sua sede, em Belém. “O Planetário leva a sua equipe, o seu acervo e a sua pedagogia para as escolas. Isso possui características não formais, mas o espaço é formal. Como poderíamos definir isso?”, desafia Endell.

“Existem muitas formas de mistura entre os tipos de educação. Você pode usar um espaço com característica formal e a maneira de transmitir o conhecimento ser não formal. A educação acontece na prática”, afirma. “Acredito que a pesquisa pode abrir portas para estudar como os espaços

não formais funcionam na escola. Tentamos investigar de que forma podemos potencializar o ensino formal, já que a nossa região apresenta muitas deficiências neste aspecto”, conclui. Para mais informações, acesse: paginas.uepa.br/planetario/ ACERVO DA PESQUISA

Os estagiários do CCPP propõem aos visitantes um conteúdo educacional em novos e dinâmicos formatos.


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Inclusão

Aprovação no processo seletivo é só o começo Dissertação analisa impacto da assistência estudantil na UFPA   Adrielly Araújo

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Ao garantir alimentação, moradia, material didático e transporte, auxílios democratizam a permanência na UFPA.

esde que as iniciativas para a assistência estudantil começaram a ser implementadas na Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2007, com o estabelecimento do Plano Nacional de Assistência Estudantil, nenhuma pesquisa específica para estudar a sua importância e o seu impacto na vida dos estudantes havia sido realizada até 2017, quando a assistente social Ellana Barros Pinheiro, que, à época, trabalhava na equipe responsável pela gestão e operacionalização das políticas de assistência estudantil na UFPA, resolveu refletir sobre o assunto.

Esse foi o pontapé que deu origem à dissertação A Política de Assistência Estudantil na UFPA: um estudo do Programa de Assistência Estudantil Permanência, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS/ICSA) da UFPA, com orientação da professora Maria Antônia Cardoso Nascimento. A pesquisa analisa a trajetória e a implementação dessas ações na Universidade, visto que o Programa Permanência é o de maior demanda na UFPA. A dissertação foi dividida em três capítulos: o primeiro analisa as políticas públicas sociais que rodeiam a Política de Assistência Estudantil; o segundo busca retratar essa assis-

tência dirigida ao ensino superior no Brasil e o terceiro mostra um retrato dessa política desenvolvida especificamente na UFPA. “Neste estudo, combinei mais de um método para orientar todos os procedimentos desenvolvidos ao longo da investigação. O primeiro deles foi o método observacional, para investigar a concepção e as avaliações da política de permanência desenvolvida na UFPA. Com o método estatístico, obtive o quantitativo de discentes contemplados pelos Auxílios de Assistência Estudantil nos anos de 2014 e 2015, bem como pude comparar os coeficientes de rendimento acadêmico de amostras selecionadas para a pesquisa”, explica a autora. ALEXANDRE DE MORAES


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Dados coletados em Belém e em outros campi Foram selecionados coeficientes de rendimento dos subgrupos de discentes inseridos no Programa Permanência (modalidades permanência e moradia), de forma aleatória e proporcional à extensão de cada curso de graduação da UFPA com mais participação no processo seletivo. “Foram elencados cinco cursos de graduação que obtiveram participação expressiva no processo seletivo de 2014, nas modalidades permanência e moradia: Pedagogia (Belém), Letras/Língua Portuguesa (Cametá), Pedagogia (Abaetetuba), Serviço Social (Belém) e Pedagogia (Cametá)”, revela Ellana Barros Pinheiro. Foram comparados os coeficientes de rendimento acadêmico da amostra selecionada do ano de 2014 (primeiro ano de recebimento de auxílio estudantil) e 2015 (após o primeiro ano desse recebimento) a fim de verificar se houve estabilidade, crescimento ou diminuição de rendimento acadêmico. “Esses dados foram comparados, mediante análise do histórico escolar, com base nas informações acadêmicas inseridas no Programa Permanência, por meio do Sistema SigaEst”, conta a assistente social.

De acordo com Ellana Pinheiro, o Programa de Assistência Estudantil é imprescindível para a permanência e o sucesso na produtividade acadêmica do estudante economicamente vulnerável. “A Política de Assistência Estudantil, como política social, tem o papel de mobilizar recursos de forma a garantir a permanência e o percurso dos estudantes no processo de formação profissional. Deve contemplar dignas condições de moradia, alimentação, esporte, lazer, material didático, acesso à informação, oportunidade de participação em eventos acadêmicos e culturais, assistência à saúde física e mental, acompanhamento social e familiar, entre outras ações imprescindíveis para a ampliação do acesso e da inclusão do estudante em vulnerabilidade socioeconômica na educação superior”, afirma. Para a pesquisadora, a Universidade carece de “uma discussão mais participativa e da reavaliação para o aperfeiçoamento da Política de Assistência Estudantil, pois ela não é diferente das demais políticas sociais que colaboram com a reprodução dos modos de produção e da vida, norteados pelos valores da ordem social hegemônica”.

Os primeiros universitários da família Ellana Pinheiro constata a importância da assistência estudantil como alternativa para a democratização da permanência do discente na Universidade: “É inegável a busca da UFPA na implantação de programas que priorizem a democratização do acesso à educação superior, abrindo caminhos para a construção de um meio equânime, capaz de fortalecer a diversidade na produção de pensamento científico”. Por outro lado, a autora alerta para a necessidade de aperfeiçoamento e propõe parcerias com os sistemas federais de identificação da população em situação de vulnerabilidade, por exemplo, o Cadastro Único, como alternativa de elementos fiscalizatórios. Para pessoas como Amanda Dayane Barbosa da Costa, aluna de Graduação em Ciências Sociais, em Belém; Adilson Ferreira, aluno de Graduação em Física, em Abaetetuba; ambos de 22 anos, e Adriana da Luz Ramos, aluna de Graduação em Pedagogia, em Bragança, de 25 anos, que recebem Auxílio Permanência, o programa é de extrema importância para cobrir despesas com locomoção, alimentação e

material. “Às vezes, é necessário ficar o dia todo no campus para fazer trabalhos ou estudar para provas. Sem o auxílio, minha família não teria condições de arcar com essas despesas, o que prejudicaria minha permanência na Universidade”, conta Adilson Ferreira. Os universitários sempre estudaram em escolas públicas e foi preciso mais de uma tentativa no processo seletivo até a aprovação na UFPA. Amanda, Adilson e Adriana são a primeira ou a segunda pessoa da família a entrar em uma universidade. De acordo com os estudantes, as maiores dificuldades para conseguir o deferimento no Programa de Assistência foram os “bugs” no site, os quais dificultavam o preenchimento do questionário; e a grande quantidade de documentos exigidos no processo. Os três afirmam que o auxílio nem sempre é o suficiente. “Além de materiais de curso, alimentação e transporte, há gastos com aluguel, energia, água etc.”, afirma Adriana Ramos. O reajuste no valor das bolsas é o principal aspecto a ser melhorado, de acordo com os estudantes.

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Programas de Assistência Estudantil da UFPA Programa Alimentação Estudantil: proporciona alimentação de qualidade por meio dos Restaurantes Universitários, cobrando apenas R$ 1,00 pelo serviço. Em 2010, foi consolidado o Auxílio Taxa Zero, destinado à isenção do pagamento da taxa de alimentação nos RUs. Este auxílio dispõe de 200 vagas para estudantes do Campus de Belém. O perfil do estudante é identificado pela seleção do Programa Permanência, não havendo inscrição por demanda espontânea nem edital. Programa Estudante Saudável: promove ações de saúde no âmbito individual e coletivo, visando ao bem-estar e à qualidade de vida do discente de graduação na UFPA. Para acessar os serviços, o estudante é encaminhado pela Diretoria de Assistência e Integração Estudantil (DAIE/ Proex) mediante autorização e consulta prévia com um clínico geral da Equipe Multiprofissional da própria diretoria. Programa Moradia Estudantil: seleciona estudantes de graduação que estejam impossibilitados de arcar com o custo de moradia fora de seu local de origem. As vagas da Casa de Estudantes Universitários da UFPA são preenchidas, preferencialmente, por alunos de graduação. Atualmente, a DAIE/Proex mantém casas para estudantes nos munícipios de Belém, Altamira, Breves, Castanhal e Tucuruí. Programa de Apoio Pe d a g ó g i c o : o f e r e c e suporte para o nivelamento e o desenvolvimento de competências básicas aos acadêmicos. Entre eles estão: Auxílio às Viagens Acadêmicas; Apoio a Eventos Estudantis; Cursos de Nivelamento da Aprendizagem; Plantão Psicoeducacional; Acesso às Línguas Estrangeiras; ProDigital (pela implantação de Infocentros equipados com computadores e impressoras de uso geral dos discentes). P r o g ra m a Pe r m a n ê n c i a : seleciona estudantes cursando a primeira graduação e sem recursos financeiros para arcar, total ou parcialmente, com alimentação, moradia, material didáticopedagógico e transporte até a universidade. São 11 modalidades de auxílios, entre eles: Auxílio Permanência e Moradia; Auxílio Permanência Especial (PcD); Auxílio Creche; Auxílio Emergencial; Auxílio Kit Acadêmico; Auxílio Casa do Estudante e Bolsa de Apoio à Atividade Acadêmica.


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Cultura

O arrasta povo do Pará A experiência comunicativa nas festas de aparelhagem ACERVO DA PESQUISA

A aparelhagem Super Pop surgiu nos anos 1980 com o nome Big Som Progresso e hoje realiza, em média, 15 shows por mês.

Flávia Rocha

A

s festas de aparelhagem são intrínsecas à realidade do paraense. Ainda que o indivíduo não seja frequentador das festas, é muito provável que a existência destas tenha chegado ao seu conhecimento por meio do anúncio de carro de som ou de comercial na televisão. As primeiras aparelhagens que surgiram em Belém, entre os anos 1940 e 1950, consistiam em um projetor de som, também conhecido como “boca de ferro”, ligado a um ou dois toca-discos. A “Sonoro’s Gajará” foi a primeira aparelhagem da capital paraense. Segundo dados da Divisão de Polícia Administrativa da Polícia Civil do Pará, somente na Região Metropolitana de Belém, atualmente, existem mais de 800 aparelhagens. As festas de aparelhagem viraram

ícones da cultura urbana do Pará. Dessa forma, o comunicólogo Hans Cleyton Passos de Souza escolheu esse tipo de evento como objeto de estudo para sua dissertação O arrasta povo do Pará: A experiência comunicativa e estética nas festas da aparelhagem Super Pop. O trabalho foi defendido no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM/ILC), com orientação do professor Fábio Fonseca de Castro. A aparelhagem Super Pop foi fundada entre os anos de 1986 e 1987, pelo empresário Elias Carvalho, com o nome de Big Som Progresso. Hoje, a aparelhagem Super Pop Live, dependendo do período, realiza em média 15 shows por mês. Janeiro e fevereiro são os meses em que a aparelhagem menos faz apresentações. Isso se dá por ser a época de chuva na região. A partir

do carnaval, o número de apresentações aumenta. Os meses mais requisitados são junho (em razão da quadra junina) e julho (graças às férias escolares). “Para desenvolver a pesquisa e compreender esse momento festivo, utilizei um aporte teórico que vem tanto da Sociologia quanto da Antropologia. Em contato com as pessoas durante esse momento de relação social, comecei a observar quais elementos se repetiam no decorrer das festas. Essas características partilhadas pelas pessoas do evento foram o que eu chamei de tipificação, um conceito que corresponde a elementos sociais que são partilhados por grupos de pessoas”, explica o pesquisador. O objetivo da pesquisa foi analisar quais elementos eram tipificados nos frequentadores da aparelhagem Super Pop live.


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Carisma e tecnologia são essenciais nas festas Em busca da compreensão das tipificações presentes no momento festivo, Hans Passos analisou quatro festas de aparelhagem; três realizadas pelo Super Pop Live (Areião do Outeiro, Festa do Botequim, Festa do Pará Clube) e uma pelo Ouro Preto Marcantes. Segundo a pesquisa, o primeiro aspecto em comum entre as festas da aparelhagem Super Pop Live foi a importância do papel do DJ. Na criação da primeira aparelhagem, os DJs da época eram conhecidos como ‘controlistas’ e sua função era apenas operar o equipamento sonoro. Quem desempenhava o papel de “dar voz” ao sonoro era o locutor. De acordo com Wal-

mir Melo, ex-DJ entrevistado pelo pesquisador, o locutor, “na maioria das vezes, era o personagem mais conhecido da aparelhagem. Era o animador da festa”. Atualmente, o carisma do DJ e a sua forma de interação com o público fazem parte das estratégias de a aparelhagem se manter relevante no cenário das festas em Belém. Alguns DJs possuem seus próprios fãs clubes. “Durante a festa da aparelhagem Ouro Preto Marcantes, conversei com alguns participantes e pude observar que grande parte dos presentes não ia pela afinidade com os DJs ou pela aparelhagem, mas para curtir

as músicas, diferentemente do público do Super Pop”, comenta Hans Passos. Não há como separar as festas de aparelhagem da tecnologia. Os eventos fazem o uso de luzes, telas de LED, efeitos pirotécnicos e amplificadores de som de alta capacidade. “Um dos DJs entrevistados afirmou que as pessoas consideram muito a tecnologia. Quanto mais a aparelhagem usa esses elementos, maior a probabilidade de manter-se no topo. Quando ela para de investir nesse aspecto, começa a ficar ‘batida’, ou seja, repetitiva”, explica o comunicólogo. Os proprietários das aparelhagens compreendem o que o público deseja e ficam

atentos a qualquer adição que se possa fazer para continuar agradando, muitas vezes baseados no cenário nacional e internacional. O exagero é algo muito presente. Isso se reflete no uso da tecnologia pelas aparelhagens e até na forma como os frequentadores se apresentam nas festas. “É possível observar que os participantes gostam de ostentar roupas de marca, com as logomarcas em destaque. O corte de cabelo mais comum é o chamado degradê ou undercut. Além disso, eles tendem a escolher cores mais extravagantes e chamativas para suas roupas e para o tom dos cabelos”, descreve o autor do estudo.

Repertório conta com tecnobrega, forró, funk e pop O consumo de bebidas alcoólicas também é uma tipificação. “Observei que muitos participantes buscavam se inserir no contexto da festa pelo consumo de bebida. Se o grupo estava bebendo cerveja, quanto mais baldes à mesa, mais ‘inserida’ a pessoa ou o grupo pareceria estar”, afirma Hans Passos. Entre os anos de 1930 e 1960, o merengue caribenho teve grande influência no gosto

musical paraense, pois as rádios do Caribe possuíam melhor sinal na capital do estado do que as rádios brasileiras. Atualmente, as festas de aparelhagem ainda são influenciadas por outros gêneros musicais. É possível comprovar essas influências observando a tematização das festas. A presença do tecnobrega é indispensável, porém canções famosas de forró, funk e pop internacional também estão presentes.

“As festas de aparelhagens assim como os bailes funks configuram-se como uma indústria de entretenimento musical, fazendo com que a periferia não seja associada apenas à violência e pobreza, mas também a um lugar que produz música, cinema etc. Um sujeito que possui instrumentos básicos de edição e captação de áudio e/ou vídeo pode se tornar um produtor musical”, afirma Hans Passos.

É importante dar vis i b i l i d a d e p a ra a s a pa relhagens como elemento cultural e como patrimônio da região amazônica. O pesquisador defende, ainda, a análise das festas baseada em elementos teóricos e metodológicos, e não apenas de maneira empírica. É importante estudar de que forma o elemento, construído intersubjetivamente nas festas, se apresenta.

Confira algumas curiosidades sobre as aparelhagens •

A denominação “aparelhagem” passou a ser utilizada em meados dos anos 1970, com a modernização dos equipamentos utilizados na estrutura. Em alguns locais, o termo “equipe de som” também chegou a ser utilizado. O divisor de águas entre os sonoros e as aparelhagens foi a chegada do transistor, pois esse dispositivo possuía baixo custo de manutenção, e a qualidade sonora não era comprometida

ao longo do tempo. A partir de então, as aparelhagens passaram a participar de uma “corrida tecnológica”, buscando cada vez mais recursos. •

O Super Pop já possuiu várias denominações: Pop som - O Águia de Fogo, Pop Som - 1, 2, 3 e 4, Super Pop - O Peso do Som, Super Pop - O Águia de Fogo, O Águia de Fogo Super Pop - O Arrasta Povo. Atualmente é denominado Super Pop Live.

O nome “Águia de Fogo” veio de um seriado televisivo norte-americano da década de 1980, o qual contava com um helicóptero chamado Águia de Fogo, que participava de várias missões de espionagem.

Durante a pesquisa de campo, o pesquisador pôde acompanhar o processo de montagem da estrutura física da aparelhagem Super Pop, que, dependendo da configuração selecionada pelo contratante, requer de 3 a 8 horas de montagem.


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Entrevista

Aldemir Branco

Identificação, controle e prevenção Em que a pesquisa com HIV pode auxiliar o combate à covid   Walter Pinto

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ós-graduado em Genética e Biologia Molecular, o professor Aldemir Branco de Oliveira Filho, do Instituto de Estudos Costeiros, do Campus Bragança da UFPA, desenvolve pesquisa em saúde coletiva, com ênfase em epidemiologia. Recentemente, ele realizou pós-doutorado sobre a prevalência do HIV em pessoas usuárias de drogas ilícitas no Pará e no Amapá. Baseado na sua experiência com o estudo do vírus transmissor do HIV, ele indica pontos em comum nos caminhos trilhados pela ciência na produção de conhecimento sobre esse vírus, o novo corona e o vírus influenza, que ceifou milhares de vítimas na pandemia de 1918.

O novo coronavírus Há diversos vírus pertencentes ao grupo do coronavírus. Eles podem fornecer algumas pistas sobre o comportamento dessa nova forma de corona à ciência, mas o SARS-CoV-2 é um vírus novo. Assim como qualquer novo vírus que surge na natureza, é necessário tempo para a aquisição de informações seguras e aplicáveis para identificação, controle e prevenção. Nos últimos meses, um esforço coletivo está sendo feito para obter informações seguras que possibilitem reduzir a transmissão do SARS-CoV-2, cuidar de forma eficiente dos infectados e prevenir novas infecções. Nesse sentido, o isolamento social e as medidas de proteção individual são as melhores estratégias para conter a dis-

persão da doença e evitar um colapso dos serviços de saúde.

A resposta da ciência O tempo necessário para termos informações consistentes sobre um medicamento seguro e uma vacina eficaz contra o novo coronavírus é uma incógnita. Entretanto destaco que muitos cientistas estão realizando procedimentos para indicar resoluções que possam ser empregadas com sucesso nessa nova pandemia. Apesar de serem vírus distintos, podemos fazer uma analogia com a infecção pelo HIV. Atualmente, já podemos realizar ações precisas direcionadas para prevenir a infecção pelo HIV, dispomos de diversos testes laboratoriais para diagnosticar e monitorar esse retrovírus e podemos utilizar inúmeros

medicamentos no tratamento, os quais têm possibilitado uma melhora significativa na expectativa e na qualidade de vida dos infectados. Porém, até o momento, ainda não foi descoberta uma vacina eficaz contra ele. Desde a década de 1980, diversos governos e empresas têm investido em educação, ciência e tecnologia, mas ainda há lacunas a serem preenchidas. Por exemplo, o desenvolvimento de uma vacina leva em consideração a biologia do agente, altos padrões de exigência de qualidade e protocolos éticos em todas as suas fases. Equalizar todas essas “variáveis” não é fácil, especialmente no curto período de tempo. Entretanto essa equação já foi solucionada para diversos agentes infecciosos e podemos manter a ILUSTRAÇÃO PRISCILA SANTOS


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esperança de que novas vacinas serão desenvolvidas, inclusive para o SARS-CoV-2 e para o HIV. Atualmente, diversos grupos de pesquisadores, oriundos de muitos países que investiram em educação, ciência e tecnologia, estão se unindo na avaliação de moléculas, medicamentos e de outros produtos que possam ser utilizados com sucesso na pandemia do SARS-CoV-2, assim como para o desenvolvimento de uma vacina eficaz para imunizar a população contra esse vírus. A ciência, associada à solidariedade e à boa vontade, é capaz de modificar o cenário da pandemia atual, ajudando na recuperação dos infectados e protegendo quem ainda não foi infectado pelo SARS-CoV-2.

a identificação laboratorial das infecções. Por exemplo, os mesmos protocolos para o isolamento de RNA viral e a transcrição de RNA para cDNA podem ser utilizados, assim como a confirmação ou o descarte das infecções pelo HIV, SARS-CoV-2 e H1N1 poderão ser feitos por reação em cadeia pela polimerase em tempo real, respeitando as especificações de cada vírus, como temperaturas para cada etapa do experimento e oligonucleotídeos específicos para cada genoma. Em suma, essas observações são algumas semelhanças que podem ser destacadas nesses três vírus pandêmicos.

Covid, HIV e influenza: identidades

No Brasil, a epidemia de HIV/AIDS é classificada como estável em nível nacional, com uma prevalência em torno de 0,6%. No entanto essa prevalência pode variar de acordo com a região geográfica e, principalmente, com a vulnerabilidade socioeconômica e comportamental. No estudo sobre HIV em pessoas usuárias de drogas ilícitas (PUD) nos estados do Pará e Amapá, acessei 1.753 participantes em 42 municípios, a maioria deles de pequeno e médio porte. Foram detectadas elevadas prevalências de infecção pelo HIV (15,2%) e de coinfecções HBV-HIV (17,3%), HCV-HIV (12,4%) e HBV-HCV-HIV (5,3%). Entre os fatores socioeconômicos e comportamentais associados à infecção pelo HIV, estão: reduzido nível educacional, idade avançada (a partir de 40 anos), uso de crack e de drogas injetáveis, uso prolongado de drogas ilícitas, sexo desprotegido (anal e/ou vaginal), elevado número de parceiros sexuais e troca de sexo por dinheiro ou drogas. Formas puras e recombinantes do HIV foram detectadas e aproximadamente 1/4 dos infectados apresentava pelo menos uma mutação de resistência aos medicamentos

É possível fazer relações entre HIV, SARS-CoV-2 e outro vírus pandêmico. O uso de preservativo (masculino ou feminino) é uma das medidas de prevenção à infecção pelo HIV mais difundidas nas últimas décadas. Porém, por inúmeros motivos, ainda há pessoas no mundo que praticam sexo desprotegido e se arriscam a adquirir o HIV. De forma semelhante, o isolamento social, a higienização de mãos e o uso de equipamentos de proteção individual são medidas de prevenção à infecção pelo SARS-CoV-2. Porém, por alguns motivos, ainda há brasileiros que não executam essas medidas e incentivam outros a não se prevenirem também. Numa perspectiva histórica, o isolamento social também reduziu o número de infectados e de mortes ocasionadas pela gripe espanhola (infecção pela influenza, vírus H1N1) no início do século XX. Muitas pessoas que não realizaram o isolamento foram infectadas e morreram, especialmente durante a segunda onda da dispersão viral. Outra semelhança entre os três vírus é o caminho para

HIV: quadro no Pará e Amapá

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utilizados em protocolos de tratamento. Além disso, nenhuma das PUD tinha ciência do estado de portadora do HIV e de outros vírus até participar da pesquisa e, consequentemente, nenhuma delas estava em tratamento antiviral. Em suma, este estudo forneceu informações iniciais sobre a epidemiologia da infecção pelo HIV na Amazônia, com implicações que indicam a necessidade urgente de estratégias para controle, prevenção e tratamento. A falta dessas ações pode estar contribuindo para a dispersão de cepas do HIV resistentes aos protocolos atuais de tratamento.

HIV e drogas ilícitas O uso de drogas ilícitas pode estar associado à dispersão de diversos patógenos na Amazônia, haja vista aumentar a ocorrência de comportamentos que facilitam a aquisição e a transmissão deles, como sexo desprotegido, uso compartilhado de meios para consumo de drogas, troca de sexo por dinheiro ou drogas, múltiplos parceiros sexuais. Tal cenário pode ser modificado consideravelmente por meio da oferta de serviços públicos e eficientes para atendimento das PUD nos municípios de porte médio e pequeno na Amazônia, como Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e Outras Drogas, Centro de Testagem e Aconselhamento e Centro para Tratamento da Dependência Química. Nesses locais, as PUD poderiam ser atendidas e tratadas em relação à dependência química, receberiam orientações e ferramentas para a preservação de infecções sexualmente transmissíveis, realizariam testes para identificar a presença de patógenos, como HIV, HBV, HCV e Treponema pallidum. Assim, esses serviços poderiam monitorar e tratar com qualidade o público-alvo e, por consequência, oferecer melhor expectativa e qualidade de vida para essas pessoas.

ACERVO PESSOAL

Aldemir Branco é professor do Instituto de Estudos Costeiros (Campus Bragança/UFPA) e desenvolve pesquisa em saúde coletiva.


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Música Engenharia

Rural e urbano, legítimo e estilizado Desde o século XIX, o carimbó continua se reinventando   Gabriel Mansur

O

s gêneros musicais são uma expressão artística que compõe a história de um povo. São parte importante da cultura local e carregam um passado que explica sua origem. Samba, sertanejo, forró e frevo são exemplos de gêneros que carregam essa ancestralidade e constituem a cultura de suas regiões. Na Amazônia, o carimbó é um dos gêneros que se destacam. Em 2014, o carimbó recebeu o título de Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil. Porém já existem registros sobre o gênero desde o século XIX. Com marcas de origem africana, o carimbó é caracterizado pelo batuque, tendo como um dos instrumentos

o curimbó, que deu origem ao seu nome. Com o objetivo de compreender como os artistas do carimbó pensavam a musicalidade, o historiador Edilson Mateus Costa da Silva apresentou a tese A invenção do carimbó: música popular, folclore e produção fonográfica (século XX), orientada pelo professor Antonio Maurício Dias da Costa e defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPHIST/IFCH). “A maioria dos trabalhos toma o carimbó com base no olhar dos folcloristas, assim como se debruça, quase exclusivamente, sobre as fontes orais, esquecendo a vasta produção musical que existe a partir dos anos de 1970”, explica o pesquisador. No início da sua pesquisa, Edilson Mateus da Silva faz um apa-

nhado histórico sobre o carimbó. Mencionado pela primeira vez no século XIX, o gênero foi perseguido e viveu na clandestinidade até os anos 1940. O carimbó era visto como algo que “destoava da civilização”, pois era repleto de batuques e festejos. Diferentemente das músicas da época, que seguiam o padrão clássico europeu, o ritmo chegou a ser compreendido como “perturbação ao sossego público”. No fim da década de 1930 até 1940, o ritmo ganhou ares folclóricos. Passou a ser aceito pela intelectualidade como parte da “essência” da Amazônia. Com o fomento à criação de uma identidade nacional nos anos 1950/1960, o carimbó foi incorporado em projetos políticos e educacionais e foi celebrado como exemplo da riqueza da cultura popular brasileira.

Gravações começam em 1970, com Mestre Verequete Em 1970, o carimbó passa a ser gravado e comercializado. Em 1971, o primeiro álbum foi lançado sob o nome “O Legítimo Carimbó”. Seu autor: Augusto Gomes Rodrigues, o Mestre Verequete. Em 1973, é popularizado sob a autoria de outro grande nome do gênero, Pinduca, que lança seu primeiro disco: “Carimbó e Sirimbó do Pinduca”. O carimbó levanta debates entre folcloristas, intelectuais e artistas. Existe uma discussão sobre a diferença entre o carimbó “legítimo” e o “estilizado”, sendo o legítimo feito com os instrumentos tradicionais; e o estilizado, incorporando arranjos eletrônicos. “Uma das questões centrais da pesquisa foi desconstruir essa noção recorrente de que há uma oposição entre ‘legítimo’ e ‘estilizado’. Esse pensamento coloca, de um lado, os artistas ‘de raiz’/ ‘pau e corda’, representados por Verequete e

Lucindo; e de outro lado, os ‘estilizados’, representados por Pinduca e demais artistas”, ressalta Edilson Mateus da Silva. O historiador explica que esta é uma visão estereotipada, em que o carimbozeiro tradicional teria ficado parado no tempo, “ou seja, para tocar carimbó ‘legítimo’, seria necessário remontar o modelo da época da colônia, vestir-se como no passado e usar instrumentos não eletrônicos”. De acordo com o pesquisador, é preciso entender que o homem do interior, o tocador de carimbó, também tem acesso à tecnologia e aos instrumentos eletrônicos. “Quando, nos anos de 1970, eles incorporam guitarras aos arranjos, estavam reproduzindo elementos que pertenciam ao cotidiano do ‘caboclo’ amazônico naquele momento”, afirma o pesquisador.

Com base nessa discussão, Edilson Mateus faz uma linha do tempo sob a perspectiva da produção fonográfica do carimbó. Começa em 1971, quando Verequete lança seu primeiro álbum. Verequete nasceu em Bragança, morou nos municípios de Ourém e de Capanema. Aos 14 anos, veio para Belém e passou a viver no distrito de Icoaraci, onde teve os primeiros contatos com o carimbó. A infância no interior foi importante para as suas composições assim como a influência de seu pai, o músico Antônio José Rodrigues, compositor de carimbó e de outras manifestações folclóricas. As composições ligadas à vida no interior e o fato de tocar apenas com os instrumentos “tradicionais” fizeram com que o mestre fosse considerado um represente do carimbó legítimo. Verequete tocava com o Grupo Uirapuru.


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Pinduca inovou ao trazer arranjos eletrônicos Pinduca, outro grande representante do carimbó, lançou seu primeiro álbum em 1973. Chamou atenção por trazer elementos diferentes, como arranjos eletrônicos. Sua música não foi bem recebida por alguns críticos e folcloristas, que entendiam essa expressão do carimbó como “deturpada”. Segundo Edilson Mateus Costa da Silva, Pinduca colaborou em grande medida para a popularização do carimbó. “Os seus primeiros discos tiveram um grande impacto no mercado fonográfico, também foram responsáveis pela ‘invenção’ do carimbó como o entendemos hoje: folclórico e representante da regionalidade. Os inúmeros debates em defesa do carimbó no âmbito musical, mercadológico, educacional (tornando-se conteúdo escolar), econômico (com a

exploração do turismo) foram forjados nas polêmicas e no sucesso da sua obra”, esclarece Edilson Mateus. Muitos outros carimbozeiros contribuíram para a construção do carimbó que conhecemos. Um deles, Mestre Lucindo, era organizador de grupos de carimbó e promovia expressões consideradas folclóricas. Seu primeiro conjunto de carimbó chamou-se Flor da Cidade. Em 1974, gravou um LP que é considerado pioneiro. A partir de 1970, a produção fonográfica do carimbó foi amplamente marcada pelo modelo das composições de Mestre Lucindo. De acordo com o historiador, há uma tentativa de “manter as raízes” do carimbó por parte de alguns críticos musicais. “Ficou ‘patenteado’ que o carimbó era rural, já que, para ser folclórico, um

gênero não poderia ser ‘moderno’ ou mesmo ‘urbano’. Eles criaram um estereótipo que enquadrava o carimbó em um modelo específico que se expressava como ‘legítimo’, levando os artistas a se enquadrarem nesse modelo”, revela. “A valorização do carimbó e de seus artistas deve ocorrer por ele ser um elemento que colabora para nossa identidade regional. O gênero vai se modificar e incorporar outras referências, outros instrumentos, além de se associar a outros gêneros, como já vem ocorrendo. E não parece que essa aproximação com os instrumentos eletrônicos seja capaz de deturpá-lo, ao contrário, deverá proporcionar outros processos criativos, como podemos observar artistas mais jovens, recentemente gravando carimbó”, conclui Edilson Mateus da Silva.

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Bragança

Camarão, tucupi e jambu em conserva Pesquisa propõe uso da tecnologia para promover a economia local   Flávia Rocha

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biopirataria consiste não apenas no contrabando da fauna e da flora de um determinado lugar, mas também na apropriação e monopolização dos conhecimentos de populações tradicionais no que se refere ao uso dos recursos naturais. O Brasil é um dos países com maior ocorrência de biopirataria, em razão da sua grande biodiversidade. Esse processo ocorreu com o açaí e o cupuaçu, que foram primeiramente patenteados pelo Japão. A maneira mais eficiente de reduzir a biopirataria é pela exploração dos recursos

amazônicos, incentivando a ciência e tecnologia como ferramentas para o desenvolvimento regional. Dessa forma, o engenheiro de pesca Keber Santos Costa Junior elaborou a dissertação Aproveitamento da biodiversidade e cultura alimentar amazônica: produção de conserva de camarão-da-amazônia ao molho de tucupi e jambu. O objetivo da pesquisa foi associar tecnologia e conhecimento científico à cultura alimentar da região, visando a um trabalho que pudesse ser aplicado facilmente na região do nordeste paraense, promovendo, assim, o desenvolvimento socioeconômico

regional. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Biologia Ambiental (PPBA/Campus Bragança), com orientação das professoras Cristiana Ramalho Maciel e Marileide Moraes Alves. “A dissertação foi uma forma de continuar o estudo iniciado no meu Trabalho de Conclusão de Curso, no qual foram produzidas conservas de peixes ao molho de tucupi e jambu. Para a dissertação, empregamos a tecnologia de enlatamento, para estender o tempo de vida útil de um produto, e utilizamos o camarão-da-amazônia no lugar do peixe”, revela o pesquisador.

Análise sensorial é etapa essencial da pesquisa

Desafio é criar um produto de acordo com as normas vigentes, sem grandes alterações no sabor.

O método utilizado foi a apertização, popularmente conhecida como enlatamento. Tal processo visa à esterilização industrial de produtos hermeticamente fechados com a variação brusca de temperatura. “Utilizamos quatro tratamentos no total: três deles (T1, T2 e T3) continham diferentes tempos de exposição ao calor - 15, 20 e 25 minutos, respectivamente. No último tratamento (T4), realizamos

a conserva de camarão com casca, com 15 minutos de exposição”, explica o engenheiro. Uma etapa essencial para o estudo foi a análise sensorial. Esse método científico é usado para evocar, medir, analisar e interpretar reações às características dos produtos (que podem ser do gênero alimentício, farmacológico, cosmético, entre outros) em relação aos sentidos (visão, olfato, paladar, tato

e audição). É um método crucial para diversas áreas. “Neste trabalho, a situação sensorial é ainda mais delicada, pois o produto é vinculado diretamente ao tacacá, prato que faz parte da cultura alimentar amazônica. O processo técnico e industrial associado à legislação vigente (Anvisa), que deve ser seguida obrigatoriamente e rigorosamente, ocasiona mudanças sensoriais significativas no produto, podendo gerar certa estranheza no consumidor. Por esse motivo, este trabalho buscou afastar a visão de ‘conserva de tacacá’ e exaltar ‘conserva de camarão ao molho de tucupi e jambu’”, explica Keber Santos. Outras análises foram realizadas para averiguar a qualidade e a segurança alimentar do produto final, tais como: centesimal, microbiológica, colorimétrica, de Nitrogênio de Bases Nitrogenadas Voláteis Totais (N-BVT), de textura, de potencial hidrogeniônico, de rendimento e perda de peso por cocção. As análises físico-químicas e microbiológicas foram realizadas ao longo de 12 meses para confirmar seu tempo de prateleira e o sucesso do processo produtivo.


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Processo pode ser adotado por indústrias artesanais Por meio das análises microbiológicas, é possível observar que as conservas não apresentaram desenvolvimento de colônias bacterianas, confirmando a seguridade do produto após 12 meses da produção, mesmo para o tratamento com casca. Esse resultado expôs a eficiência do processo de produção. Em relação às análises sensoriais e de N-BVT, ficou exposta a inviabilidade da utilização do camarão com casca para a conserva, pois esse produto apresenta níveis de N-BVT superiores aos níveis permitidos pela legislação. Além disso, esse produto teve maior rejeição em relação aos demais tratamentos. “Outro fator relevante da análise sensorial da conserva de camarão é que não há, no mercado nacional, outro produto semelhante que possa ser comparado

com o produzido neste trabalho, o que faz os provadores lembrarem imediatamente do produto tradicional, promovendo, assim, maior rejeição”, explica Keber Santos. Os melhores valores foram obtidos pelos tempos de exposição de 15 e 20 minutos, tendo ótimos resultados para os atributos “aceitação global” e “sabor”. As demais análises realizadas resultaram em dados semelhantes aos já existentes na literatura. O resultado mais surpreendente foi referente à alteração do pH do molho de tucupi ao longo dos 12 meses, o qual aumentou gradativamente e deve ser avaliado em experimentos posteriores. Entre os residentes, os recursos extrativistas são utilizados, principalmente, para a subsistência e para atender às demandas do co-

mércio regional, como a produção da farinha de mandioca. O camarão-da-amazônia, o tucupi e o jambu são exemplos clássicos de insumos da culinária do povo da Amazônia, fazendo parte da cultura local. “Este trabalho buscou viabilizar o uso de recursos abundantes na região, por meio de processos técnico-industriais. Assim, esses recursos podem ser explorados economicamente por indústrias artesanais da região, incentivando o desenvolvimento local com o uso de tecnologias e o aproveitamento econômico da biodiversidade. Desse modo, auxiliaremos a preservação do patrimônio cultural e biológico amazônico. Acredito que o projeto tem muito potencial e, com algumas melhorias, poderemos obter um produto com melhor aceitação”, finaliza Keber Santos.

Confira algumas características desses alimentos

Tucupi

Jambu

Camarão-da-amazônia

O processo de prensagem e trituração das raízes da mandioca para a produção da farinha produz um resíduo líquido, denominado manipueira. Ele pode ser descartado ou transformado em tucupi.

Esta planta é bem conhecida no cenário gastronômico paraense, porém seus possíveis usos não param por aí. O espilantol é uma substância que possui propriedades anestésicas, presente em diversas plantas tropicais e subtropicais, entre elas o jambu. Elas são conhecidas como toothache plants ou plantas da dor de dente. Além disso, apresenta-se como um alimento alternativo para pessoas com anemia, em virtude da sua composição rica em íons de ferro.

Este camarão é encontrado em praticamente toda a região tropical e subtropical da América do Sul, em todos os países, exceto no Chile. Vive em variados ambientes, desde lagos e represas até várzeas e rios com correnteza. Sua composição química é de elevado valor nutricional. É fonte de proteínas de qualidade e ácidos graxos poli-insaturados da família do ômega-3, que são benéficos para a saúde humana.

O tucupi apresenta um alto teor de cianeto, que é altamente tóxico para a saúde humana, por isso são necessários 3 a 7 dias de cozimento para ser usado na culinária, sem risco de intoxicação.

Fonte: Costa Júnior, 2020.


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Amazônia

Epidemias, estatísticas e mortalidade O que a História tem a dizer sobre velhos e novos cenários?   Daniel Souza Barroso, especial para o Beira do Rio

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Arthur Vianna e Clio, a musa da História, contam os mortos.

o início de 2020, uma expressão voltou ao centro das discussões no Brasil e no exterior. Prática tão conhecida quanto pouco vivenciada no imaginário de um mundo cada vez mais globalizado, a quarentena, hoje, remete à ideia de distanciamento social, apresentada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por autoridades sanitárias de diversos países como uma das únicas práticas preventivas realmente eficazes contra a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), caracterizada como pandemia pela OMS, em 11 de março deste ano. A ideia de distanciamento social pegou muitos de surpresa, senão os historiadores da Medicina. Alison Bashford, professora da Universidade de New South Wales, em Sidney, Austrália, e especialista em

História da Quarentena, lembra que o distanciamento social tem sido uma prática quase imutável ao longo dos séculos: uma resposta a doenças transmissíveis que parece familiar a todos, embora distante do nosso cotidiano há algumas décadas. Uma resposta que, lembra-nos Bashford, parece não moderna e antiliberal, com efeitos diversos na vida econômica e material, e frequentemente associada ao abuso do poder estatal. Diferentemente da quarentena, as práticas de contagem de enfermos e de mortos mudaram bastante no decorrer do tempo. A preocupação com a estatística constituiu uma peça fundamental de uma nova arte de governar que se estabeleceu na Europa do século XVIII. Como nos ensina Michel Foucault, a nascente “governamentalidade” era pautada na necessidade de conhecer quem eram as pessoas que geravam riquezas, pagavam impostos, constituíam a força de trabalho e poderiam ser

convocadas para a guerra pelo Estado. Em outras palavras, era preciso conhecer a população para governar, sendo a estatística um meio privilegiado para esse fim. Na Antiguidade, os egípcios e, principalmente, os romanos viam nas contagens populacionais um instrumento de administração e justiça. Embora tenha se tornado menos usual durante grande parte da Idade Média, a prática de recensear voltou a ganhar importância a partir do século XV. Do primeiro Catasto de Florença, de 1427, às Descripciones de los Pueblos de España, ordenadas por Felipe II, em 1574, várias foram as experiências de contagem populacional feitas na Europa, no contexto de transição da Baixa Idade Média para a Modernidade. Tratava-se, no entanto, de experiências esparsas no tempo, incompletas no espaço, que ainda não atendiam aos mesmos propósitos da “governamentalidade”.


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A subnotificação e o uso político sempre ocorreram Essa nova arte de governar, da qual nos fala Foucault, levou os estados nacionais europeus a produzirem, de maneira sistemática, diversos tipos de estatísticas – exercício censitário que perdurou nos séculos seguintes, nos quatro cantos do mundo, mesmo após as independências das antigas colônias da Europa. A vasta historiografia existente acerca das estatísticas demográficas, em geral,

e das estatísticas de mortalidade, em particular, lança luz para dois grandes problemas na produção e no emprego governamental dessas estatísticas “modernas”, assim como na sua utilização por historiadores contemporâneos: em primeiro lugar, um evidente e constante problema de subnotificação; em segundo, os diferentes usos políticos feitos dessas estatísticas, tanto no passado quanto no presente. Já no contexto amazô-

nico, em 1906, Arthur Vianna publicou o clássico As Epidemias no Pará. Leitura obrigatória para todos aqueles que, mesmo hoje, se aventuram em estudar a história da saúde e das doenças na Amazônia. A obra percorre diversas “epidemias que flagelaram o Pará, desde o seu início até então”. Fruto de pesquisas correlatas desenvolvidas por Vianna, anos antes, quando elaborava um estudo sobre a história da Santa Casa de

Misericórdia de Belém, o livro tem nas estatísticas, ainda que “muito reduzidas”, um dos seus alicerces fundamentais. Varíola, febre amarela, cólera e outras “moléstias” tiveram as suas estatísticas de mortalidade compiladas por Arthur Vianna, intercaladas pelos juízos de valor característicos da época sobre o perfil dos enfermos e dos mortos, as causas das doenças e as medidas profiláticas tomadas pelas autoridades públicas.

Em 1850, a cólera fez vítimas na capital e no interior A epidemia de cólera, que grassou na província em 1850, pode nos servir de fio condutor para a discussão de alguns dos problemas relativos às taxas de mortalidade no passado da Amazônia. Àquela altura, Belém era uma cidade de cerca de 20 mil habitantes. De maio de 1855 a fevereiro de 1856, entre 6 e 7 mil pessoas foram contaminadas pela doença; dessas, 1.052 faleceram. À primeira vista, a r g u m e n t a Vi a n n a , e s s e s dados podem indicar um “número diminuto de mortos em proporção ao número elevadíssimo de afetados”

– realidade, em parte, distante da encontrada nos interiores pelos quais a epidemia se alastrou. Cametá, por exemplo, somou 5 mil contaminados e 1.336 mortos até outubro de 1855, com uma população inferior à da capital. As estatísticas, baseadas em dados oficiais e nos registros feitos em 1855, pelo então presidente da Comissão de Higiene Pública do Pará, Dr. Francisco da Silva Castro, apresentam uma série de inconsistências. Segundo o próprio Arthur Vianna: “tomando por base o número de 8 mil atacados [em Belém], aliás

muito inferior ao verdadeiro, obteremos o coeficiente de 5,3 para a mortalidade. Dado esse em completo desacordo com o de outras localidades”. Além da expressiva subnotificação de casos de contágio e de óbito – seja por falhas de registro, seja por dificuldades na caracterização das doenças –, os apontamentos de Arthur Vianna são sugestivos dos usos políticos das estatísticas por autoridades provinciais. O intelectual destaca que Silva Castro, ao contrário de notórios epidemiologistas do período, como o francês Adrien Proust, associava a maior dissemina-

ção da cólera a “condições somáticas”, indicando que “a moléstia buscava, de preferência, os índios, os pretos e os mestiços nos quais se apresentava sob as formas mais graves, atacando menos os brancos e neles se exibindo benignamente na maioria dos casos”. Afora o presidente da província, Ângelo Custódio, e outras duas centenas de pessoas brancas da capital, a cólera vitimaria, sobretudo, as camadas menos abastadas da população da cidade, as quais tanto Silva Castro quanto Vianna praticamente culpavam pelas condições insalubres de sobrevivência.

Obra revela experiências longe dos discursos oficiais Em estudo revisionista sobre essa epidemia, Jane Beltrão, hoje professora titular da UFPA, avançou na compreensão do imbricado processo que marcou o flagelo da cólera em Belém, compreendendo as diferentes dimensões sociais e cognitivas dos vários sujeitos históricos nele envolvidos. Para além dos dados oficiais e das histórias dos médicos alopatas, que desconsideravam os saberes tradicionais

das “gentes” da Amazônia, Beltrão deu voz àqueles que viam na cólera um reflexo das desigualdades e das injustiças sociais que os acometiam desde muito antes da epidemia. Desse modo, a autora demonstrou como as experiências que marcaram a epidemia na Belém oitocentista estiveram longe de se limitarem aos discursos das autoridades e da Medicina formal, muitas vezes contrastando-os.

Sobre a pandemia da covid-19, contexto marcado por profundas transformações na vida social e econômica de todos, não seria ilógico questionarmos: o que a História tem a dizer? As epidemias do passado, assim como as do presente, mudam as nossas rotinas, as formas de convivência e as maneiras de ver o mundo. Não são, porém, apenas essas as semelhanças entre ontem e hoje. As discussões acerca

das contagens de enfermos e de mortos, os usos políticos da epidemia/pandemia pelas autoridades públicas, os embates em torno das medidas profiláticas e a estigmatização dos doentes... tudo permanece. Se é certo que, após um custo sempre incalculável de vidas humanas, a pandemia do novo coronavírus vai passar, nunca é tarde para fazermos outro questionamento: qual futuro nós queremos como sociedade?


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Resenha Roteiros, potencialidades e descasos   Walter Pinto

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lemento de permanência nas cidades, o patrimônio público, quando preservado, perdura no tempo e no espaço, tornando-se uma herança para os moradores, ao alcance dos olhos e da memória coletiva. Mesmo o patrimônio particular, como uma antiga residência familiar, ao longo do tempo, extrapola a condição familiar para alcançar um patamar coletivo. Torna-se um marco que fala da história do lugar, dos seus moradores e das pessoas da cidade que passam por ela, admiram suas linhas e animam o coração ao vê-la ali, no mesmo lugar, como uma testemunha que se impôs ao tempo. Dessas teias de memórias coletivas e individuais, reveste-se o livro Geografia, patrimônio & turismo na Amazônia brasileira – Projeto roteiro geo-turístico em Belém do Pará, que assinala um “marco na atividade extensionista da universidade pública”, como diz Hugo Hage Serra, dou-

tor em Geografia e professor da Unifesspa, na apresentação da obra. É o resultado do Projeto de extensão “Roteiros geo-turísticos em Belém do Pará”, desenvolvido pelo Grupo de Estudos em Geografia do Turismo - GGEOTUR/UFPA e editado pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Pará. Ao formular o projeto, o GGEOTUR pensou numa atividade que aliasse saberes acadêmicos e populares. Geografia e História, como ciências específicas e afins, são os suportes para os estudos da educação patrimonial que embasa os 13 textos contidos no livro, organizado pelos geógrafos Maria Goretti da Costa Tavares e Hugo Hage Serra, e pelo historiador Agenor Sarraf Pacheco. Dentro de uma perspectiva interdisciplinar, que passa também pela Museologia e pela Antropologia, professores e estudantes relatam as suas experiências por roteiros que enfocam patrimônios turísticos em Belém – especificamente em bairros como Cidade Velha, Umarizal, Nazaré e Reduto –, em REPRODUÇÃO Cametá e no Marajó. São memórias que surgem por meio de fotografias, experiências e relatos. Até o ano de 2017, o GGEOTUR organizou nove roteiros em Belém, que visam a contribuir com o fortalecimento do “pertencimento ao lugar”, fundamental para a formação da cidadania local. O relato de Felipe Azevedo e Márcio Amaral trata da criação de novos territórios para além daqueles determinados pelo poder na formação histórica do núcleo inicial de Belém. Apesar do planejamento territorial, outros sujeitos, até como forma de resistência, reinventaram fronteiras expandindo territórios alternativos.

O relato de Alessandra Lobato e Débora Serra sobre o turismo na Cidade Velha faz uma observação inquietante para uma cidade com mais de 400 anos: a atividade turística no bairro mais histórico de Belém concentra-se principalmente no Complexo Feliz Lusitânea, deixando de fora espaços importantes na formação da cidade. Luana Oliveira e Magaly Caldas relatam a experiência de um roteiro centrado na Belle Époque em Belém, concebido segundo uma perspectiva histórica espacial, especificamente no bairro Campina. Caminhando para o Reduto, Charles Paes Silva ressalta as mudanças ocorridas no antigo bairro cujas funções o identificavam como bairro industrial, identidade, hoje, não valorizada pelos administradores públicos e pela própria sociedade civil. Silva relata os passos para a efetivação de um roteiro geo-turístico, destacando pelo menos 16 atrações potencialmente relevantes para o turismo histórico-cultural da área. Um levantamento realizado por Vivian Larissa e Daniela Pantoja constatou a inexistência de política para a educação patrimonial sobre a área formada pelo eixo da Avenida Nazaré, que serviu de expansão histórica ao limite da segunda légua patrimonial no tempo da economia gomífera. Atravessando a Baía do Guajará e enveredando por águas marajoaras, Cleber Castro chegou a Ponta de Pedras, de onde narrou as experiências no roteiro concebido para aquela cidade, na qual buscou integrar a cultura à atividade turística para além do que é “preparado” para o turista. De Cametá, vem o relato de Karoline Santos, Valdeci Cabral e José Cordovil sobre a contribuição do Projeto Roteiro Geo-Turístico para a formação acadêmica dos alunos envolvidos com a experiência. Geografia, patrimônio & turismo na Amazônia Brasileira traz, ainda, outras contribuições para a formulação de uma política pública na área do turismo que leve em consideração o espaço e o tempo. Serviço: Geografia, patrimônio & turismo na Amazônia brasileira – Projeto Roteiro Geo-turístico em Belém do Pará. Org. Maria Goretti da Costa Tavares, Hugo Hage Serra e Agenor Sarraf Pacheco. Edição: PROEX-UFPA, 2019. 296 páginas. À venda na Livraria da UFPA.


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