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O trauma

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Interfuit

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A "Fotografia é o aparecimento do eu próprio como outro, uma dissociação artificiosa da consciência da identidade” (28) – esse é um dos temas fortemente benjaminianos na CC. Há muito debate em torno da eventual influência de Walter Benjamin sobre Barthes, em particular da "Pequena História da Fotografia"10 . Dispomos de evidências suficientes de que uma relação, mais complexa e decisiva que mera influência intelectual, existe entre os dois textos. Em meio aos materiais utilizados por Barthes na preparação da CC esteve um número especial da revista Nouvel Observateur, de novembro de 1977, em que uma tradução do ensaio de Benjamin foi publicada. O sinal indiscutível do impacto dessa revista sobre Barthes é que das 25 fotografias que ilustram a CC, seis vieram das páginas desse número da N.O. – dentre essas, quatro ilustravam o texto de Benjamin11 . Geofrey Batchen sugere que a estrutura da CC, em duas partes mais ou menos espelhadas, poderia ser oriunda da leitura da "Pequena História da Fotografia" que também tem duas partes – ainda que isso, a meu ver, seja pouco perceptível aos leitores contemporâneos, pois a divisão original foi suprimida nas edições posteriores. No centro do ensaio, assinalando sua partição, estaria o comentário de

10 Sabe-se que "A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica" esteve entre suas leituras no período, além de "Haxixe em Marselha" e "Crítica da Violência", que integravam a bibliografia do seminário sobre o Neutro, no Collège de France (BARTHES, 2005c). 11 É improvável que Barthes já tivesse lido a “Pequena História” em alemão ou na tradução francesa anterior que foi pouco difundida.

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Benjamin acerca do retrato de Karl Dauthendey e sua noiva, que viria a cometer suicídio. Nele, o filósofo irá procurar a centelha do acaso onde o futuro se aninhara – como se houvesse nessa fotografia um punctum a assinalar o futuro suicídio da esposa (BATCHEN, 2009b). Margaret Olin (2009), levando ainda mais adiante o argumento da influência silenciosa de um texto sobre outro, chegou a sugerir que a fotografia da mãe no jardim de inverno jamais existiu, tendo sido tomada emprestada da reflexão de Benjamin acerca do retrato de Kafka criança. Entre outros indícios, observa que o original alemão da "Pequena História da Fotografia" descreve o cenário do estúdio onde o pequeno Kafka é retratado como uma "estufa". Mas na versão francesa que está sobre a mesa de Barthes, o menino posa em um “jardim de inverno” (81). Para além dos aspectos estruturais e filológicos, é forçoso reconhecer que tanto para Benjamin como para Barthes, o ato de ser fotografado é uma passagem dolorosa a outro mundo. No caso de Benjamin, ao mundo adulto e da mercadoria, que a fotografia nos ensina a assimilar e a assemelhar-se (CADAVA, 1997, p. 106-115). Mas enquanto o materialismo antropológico de Benjamin faz com que sua ênfase recaia sobre os objetos, Barthes, provavelmente em função da duradoura influência de Sartre sobre ele, enfatiza a dimensão intersubjetiva da experiência. Mas é também como um prisioneiro que ele se sente: "A Foto-retrato é um campo de forças fechado" (29). Apesar de se tratar de um adulto posando e não mais de uma criança (como Benjamin ou Kafka), a sensação de “pesadelo” – o pesadelo de tornarse outro, de deixar de ser si próprio – é o mesmo. O debate usual em torno da presença de Benjamin na CCignora, a meu ver, um aspecto crucial do problema: a ausência de referências ao primeiro no ensaio. Mas se nos preocupamos menos com o debate conceitual e prestarmos atenção aos encontros – afinal, como observei anteriormente, a narrativa da CC, sua dramaturgia, de fato, é pontuada e impulsionada por eles –, uma incongruência fundamental salta aos olhos. No Diário do Luto, o encontro com a foto da

mãe no jardim de inverno ocorre no verão de 1978, em junho, em resposta às preces em Saint-Sulpice. Na CC, no entanto, Barthes dá a entender que encontrou essa foto bem antes, no primeiro novembro após a morte da mãe – no outono de 1977, portanto. Ainda que a CC mimetize estilisticamente um diário, é mais provável que as datas no Diário do Luto, que não foi escrito para ser publicado, sejam mais acuradas. Partindo dessa premissa, aquilo que Barthes de fato encontra em novembro de 1977 é a revista Nouvel Observateur que contém o texto de Benjamin cujo argumento central é a natureza premonitória das fotografias – como se não fosse suficiente, a “Pequena História” foi publicada, nessa tradução, sob o título de “Os Analfabetos do Futuro”12 . Minha hipótese, portanto, é que o encontro da foto do jardim do inverno, em junho de 1978, é uma confirmação do caráter traumático e premonitório da fotografia que experimentara em novembro de 1977: "Está morto, ele vai morrer" – escreve diante do retrato do jovem Lewis Paine, condenado à morte (134). Afinal, se todos vamos morrer – e, no entanto, preferimos esquecer essa fatalidade do destino – optamos por viver como “analfabetos do futuro". O encontro com a edição da Nouvel Observateuré substituído (ou encoberto) pelo encontro do retrato da mãe no jardim de inverno na narrativa da CC.

12 Em fins de 1977, Barthes concede uma entrevista a Angelo Schwarz e afirma que conhece "poucos grandes textos de qualidade intelectual sobre a fotografia", acrescentando que há o texto de Walter Benjamin "que é bom porque é premonitório" (BARTHES, 1981, p. 338). É usual supor que ele se referia a "A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", mas, dada a ocasião da conversa (publicada apenas em 1980), é lícito especular que tinha acabado de ler os "Analfabetos do futuro".

Tradução francesa da “Pequena História da Fotografia” em edição especial da Nouvel Observateur, novembro/1977.

Que motivo – consciente ou inconsciente – teria o autor para inverter cronologia dos encontros?13 Não é difícil perceber nessa troca de datas a forma do a posteriori, tal como pensado por Freud14. De fato, a mãe Barthes morre em 25/10. Em alguns dias, é enterrada na província onde ficava a residência de verão da família. Cerca de duas semanas depois, publica-se a edição especial da revista. E logo que a abre, ilustrando o ensaio de Benjamin, está o corpo de Lewis Payne, o belo quase-assassino de um político americano. Seu punctum: “ele vai morrer” ("isto seráe isto foi)” (135) – o “condenado” acorrentado ao próprio “cadáver”, afinal. Logo a seguir, no texto da CC, a imagem

13 Há outras divergências nos relatos além dessa, que claramente sugerem que a versão da CCé uma elaboração posterior. No Diário do Lutoas fotos antigas da mãe são reviradas ao lado do irmão, na CC, Barthes está sempre só – conforme sua opinião de que a apreciação das fotografias é um ato solitário, em contraposição ao cinema; no Diário, a descoberta da fotografia do Jardim de Inverno ocorre em uma tarde de verão, em CC, numa noite de inverno, ambiência bem mais propícia ao luto e à melancolia. 14 Há várias formulações na CC que remetem, de algum modo, a esse regime temporal, como quando define o punctumcomo um "suplemento" que se acrescenta à foto “e que, no entanto, já lá está” (82) ou quando escreve, depois do encontro da fotografia do jardim de inverno: "O que eu inicialmente notara, de modo isento, sob pretexto de um método, isto é, que toda fotografia é de certo modo conatural a seu referente, voltei a descobri-lo, como que pela primeira vez, devo dizê-lo, arrastado pela verdade da imagem." (108). Ou seja, algo retorna, como pela primeira vez, recobrindo de sentido o que antes não havia sido notado ou fora apenas percebido com indiferença. Para uma discussão da forma do a posteriori, ver, por exemplo, GONDAR, 1995 (p. 45-59).

da mãe, cujo encontro havia sido descrito poucas páginas antes, retorna: "digo para mim mesmo: ela vai morrer". Essa experiência é imediatamente remetida a Winnicott – o psicanalista das crianças traumatizadas pela separação dos pais durante a Batalha da Inglaterra –, cujo paciente estremece "peranteuma catástrofe que já aconteceu" (135). Toda fotografia, escreve Barthes, "é esta catástrofe". Mas ainda há aqui, na minha proposição, demasiada racionalização. Em novembro de 1977, ele está em meio à busca pelo corpusde seu futuro livro da fotografia, mas o que encontra na revista recém-publicada é o corpo de Lewis Payne. O escritor está com 62 anos e receia que os corpos jovens que tanto ama não o desejem mais – terá de se conformar com os michês. Esse mergulho selvagem, tátil, envolvente, no corpo da fotografia é subitamente interrompido pelo luto que permanece separado do trabalho e do desejo. Não sabemos se Barthes chorou nesse dia ou se foi a uma sauna depois de jantar com Julia Kristeva e Philippe Sollers. Porém, vários meses depois, o reencontro do corpo materno, ainda criança, no jardim de inverno, encobre a impropriedade do desejo (e do trabalho): não foi o retrato do jovem Lewis Payne que encontrou em novembro, mas o de sua mãe, que agora retorna para protegê-lo. Por intermédio desse segundo encontro, que toma o lugar do primeiro na CC, a temporalidade traumática da fotografia, a catástrofe que é toda fotografia, pode ser finalmente narrada. Pode tornar-se livro e monumento.

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