5 minute read

O phi

Next Article
Puncta

Puncta

No frontispício desse livro relido acrescento um signo: Ф – a letra grega phi. Nos rascunhos da CC, Barthes a usava para abreviar Fotografia (LEBRAVE, 2002). Essa também é a letra inicial de Filosofia, sugerindo um parentesco significante entre ambas, o que não é pouca coisa pois Barthes afirma em uma entrevista: "minha luta é sempre lutar pelo significante, por sua suntuosidade erótica, por sua pulsão, por sua libertação" (BARTHES, 2005b, p. 167). Não pretendo com isso corroborar a sugestão irônica que a ontologia de Bazin e a fenomenologia de Barthes pretenderam tornar o pensamento da fotografia "um ramo da metafísica filosófica" (MAYNARD, 1997, p. 13), pois a luta pelo significante também é a luta pelo sopro, pela fonação, pela “presença do corpo na língua”. A consoante phi– o Fdo alfabeto latino –é aquela que está mais próxima do puro sopro (a fonética a descreve como "bilabial fricativa surda") – o ar que atravessa os lábios sem fazer qualquer outro ruído que não o da própria passagem. Barthes nos convida a participar de um jogo perigoso, pois se Ф representa um som, sem ser esse som, mantém igualmente uma relação complexa com a Fotografia que deveria abreviar, pois representa, em termos estritamente geométricos, a proporção áurea. Isto é, a razão de proporção que Pitágoras descobriu ser o princípio fundamental da harmonia e da beleza, cujo símbolo homenageia Fídias, o arquiteto do Partenão, que também se escrevia com Ф. Todo fotógrafo aprende em suas primeiras lições de composição a "regra dos

terços", isto é, a buscar pelas seções áureas que tornariam seus enquadramentos mais belos. A letra Ф, portanto, duplica e complica: numa face, é puro sopro, materialidade corpórea; na outra, a razão de ouro, todo o peso da cultura ocidental. À dupla face de Ф corresponde a natureza dupla da fotografia na CC: de um lado, punctum, o inominável, o puro significante, o bruto, o corpo; do outro, studium, a convenção, a arte, a civilização. Mas há um terceiro aspecto de Ф que, na falta de melhor nome, poderíamos chamar gráfico ou icônico2. Pois Ф é uma unidade repartida em dois hemisférios distintos mas inseparáveis. A linha que os limita é tanto a cesura (isso que divide, que fragmenta, a incisão, mas também a pausa, o trauma, o desejo, isso que rompe o contínuo, que interrompe a história) como a sutura (isso que cirze, que emenda, que mantém unido, a constituição imaginária do sujeito, a linguagem, o saber). Em Φ, lemos o sinal gráfico de todas as oposições – falsas oposições, pois não podem subsistir uma sem a outra – que a CCdesdobra: vida/morte; dentro/fora; passado/presente e, claro, mãe/filho. Então, eis o que é preciso admitir, desde o início: CCnão é propriamente um livro sobre Fotografia, mas um livro sobre o Ф das fotografias. Ao final do volume lemos que foi escrito entre 15/04 e 03/06 de 1979. Uma encomenda do Cahiers du Cinéma, cujos primeiras notas remontam a 1976, à qual vem associar-se o projeto de erguer um monumento à mãe, falecida em fevereiro de 1977 – algo que perdurasse enquanto a notoriedade do filho resistisse ao tempo. Lançado em 25/01/1980, não foi objeto de muitas entrevistas ou maiores explicações, pois Barthes seria atropelado um mês depois, dando início a uma lenta agonia que durou outro mês. Sabemos que a CC guarda coerência e retoma várias das formulações anteriores de Barthes acerca da fotografia, mas não vamos nos dedicar a esse tipo de exegese. Convém apenas de relembrar que a fotografia representava para ele um "fato antropológico 'mate' (como o dito xeque), ao mesmo tempo absolutamente novo e definitivamente inultrapassável"

Advertisement

2 Afinal Φ também indica, para os fotógrafos, o valor do diâmetro de filtros e lentes.

(BARTHES, 1984, p. 36). Enquanto o cinema guardaria continuidade com as artes dramáticas e da ficção, a fotografia, mesmo sendo um capítulo na extensa linhagem da história das imagens, seria uma ruptura radical. Apesar de ter sido inventada no mesmo século que a História, enquanto essa é "uma memória fabricada segundo receitas positivas, um puro discurso intelectual que abole o Tempo mítico”, “a Fotografia é um testemunho seguro, mas fugaz, de modo que tudo, hoje, prepara nossa espécie para esta impotência: em breve já não poder conceber, afetiva e simbolicamente, a duração" (132)3 . Ф é a expressão dessa radicalidade que a própria estrutura do livro reflete. Há quem sustente que seus 48 capítulos foram escritos em 48 dias, mas trata-se de um mito com circulação apenas no Brasil. A ideia de que Barthes teria criado um dispositivo de escrita, submetendo-se a ele disciplinadamente, como um rito a serviço do luto, é fascinante mas, como veremos adiante, há razões de sobra para descartarmos essa crença4. Emulando um tratado escolástico, a rigorosa simetria do livro divide o ensaio em duas partes de 24 capítulos. Porém, se privilegiamos a narrativa da CC, percebemos que sua estrutura não se compõe apenas de duas metades, mas de quatro quartos, cada um com 12 capítulos. No primeiro quarto, o capítulo 1 começa com Barthes descrevendo seu espanto diante de “uma fotografia do irmão mais novo de Napoleão”: ele via “os olhos que viram o imperador” (15). É no âmbito desse quarto que se formulam studium e punctum. Na seção 13, que inicia o quarto seguinte, não é Barthes quem se espanta com uma fotografia, mas “o primeiro homem a ver a primeira fotografia” (51). A seção 25, que inaugura o terceiro quarto é aquela em que o autor encontra a fotografia da mãe no jardim de inverno (imagem que apenas ele vê). Essa parte conclui no capítulo 36, com a constatação de que a fotografia divide a História, de que ela é uma

3 Todas as referências a páginas em que o autor não é direta ou indiretamente indicado são relativas a BARTHES, 1989. 4 A origem dessa proposição no Brasil é provavelmente SAMAIN 1998, tendo sido reproduzida por vários de seus ex-alunos na UNICAMP como ENTLER, 2006 e FONTANARI, 2015. Extravasou os muros da academia e também ocorre em textos publicados em revistas de arte e cultura, como PIRES, 2010.

“emanação do real passado”. Sua “força verificativa” não seria o objeto, mas o tempo (125). Finalmente, no último quarto, que inicia no capítulo 37, a fotografia do jardim de inverno retorna, agora sobre a mesa de trabalho: “Estou sozinho diante dela, com ela. O círculo está fechado, não há saída” (127). Quatro encontros com a fotografia; em todos eles algo é mantido invisível (o imperador, o homem comum, a mãe, o autor) – quatro encontros para que o círculo de Ф se feche e seja finalmente possível escrever o livro (ou impossível deixar de escrevê-lo, pois “não há saída”).

This article is from: