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Puncta
A noção de Studium, que se contrapõe ao Punctum, é introduzida primeiro. Tem caráter cultural, é da ordem da intenção, do contrato entre criadores e consumidores. Depende da educação (45-48). O Punctum é algo que interfere, quebrando o ritmo desse investimento. Barthes fala em escansão, como no versejar poético, mas deve igualmente pensar no verso bíblico salmodiado ou nas primeiras notações do canto gregoriano, cujos ritmos e entoações são marcados por pontos, dos quais as gramáticas modernas herdaram seus sinais de pontuação. É como uma ferida, uma picada. A formulação oculta uma provocação evidente: punctumé tanto o “ponto”, a marca, como o ponto de vista, o ponto de fuga; tanto o “orifício” ou mancha, o acaso que fere, como o diafragma que permite a passagem das imagens para o interior câmera escura, isso que faz conviver, no mesmo dispositivo, o racional e o irracional.
Ao enumerar os sentidos da palavra punctum, Barthes segue a sequência de significados propostos por um dicionário latim-francês popular em seu tempo de estudante. Mas depois de reproduzir as primeiras, salta algumas acepções correntes, inclusive "voto" e "ponto de equilíbrio" (como em uma balança) e convoca a décima e última: "lance de dados"15. Curiosamente, deixa de mencionar puncutm temporis, o momento, o instante, que ainda sobrevive em português
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15 "... punctum é também picada, pequeno orifício, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados" (BARTHES, 1989, p. 47).
em expressões como a hora "em ponto”. Não é uma acepção insignificante, pois é a mais rica em abonações do verbete, entre essas, uma retirada das Epístolas Moraisde Sêneca: “Punctum est, quod vivimus, et adhunc puncto minus”16 (GAFFIOT, 1934). A morte estava lá, inscrita na instantaneidade do punctum, ameaçando o narrador desde o primeiro momento, tocaiada na língua morta em que Barthes foi buscá-lo. O studiumreconcilia a fotografia com a sociedade. Fornece álibis para o fotógrafo, justificativas que lhe autorizam manipular algo tão perigoso. Esses álibis se confundem com as “funções” sociais da fotografia: “informar, representar, surpreender, dar significação, provocar desejo” (48-49). Se um punctumé uma espécie de subversivo, de sabotador da mensagem fotográfica, o ensino de fotografia, tal como praticado nas escolas da publicidade, de jornalismo, ou de artes, teria por objetivo blindar a imagem contra a perturbação do punctum. O resultado dessa blindagem é uma “fotografia unária”. (64) O termo é tomado emprestado da gramática gerativa, formulada por Noam Chomsky na década de 1950. As transformações unárias são aquela em que a unidade do sentido é preservada, preservando-se a informação. A fotografia unáriaseria aquela que “transforma” enfaticamente a realidade sem fazê-la “vacilar”. Além do fotojornalismo e da publicidade, dos quais se exige unariedade para comunicar com eficiência suas mensagens: a fotografia pornográfica também seria unária– pois ela é como uma vitrine que exibe uma única joia (65). Entre as várias acepções de punctum, Barthes introduz uma que os antigos romanos desconheciam: “objeto parcial” (69). Especialmente difundido por Melanie Klein, o conceito psicanalítico remete a algo que se torna, parcialmente ou de modo intermediário, objeto da pulsão. Tanto vale para os fetichistas, para os cultuadores de partes do corpo, como para alguém, por exemplo, que deseja casar-se para ter filhos. Os objetos parciais, por excelência, são o seio e o pênis. Na clínica, a entrada na vida adulta corresponde à passagem de objetos parciais para objetos totais; mas alguns teóricos consideram que os
16 “É num momento que vivemos, e até mais breve que um momento."
sujeitos continuando fantasiando e fantasmando objetos parciais a vida toda. Por isso, Barthes nos diz, talvez brincando, que fornecer exemplos de punctaé “entregar-se” (67). Em “O Terceiro sentido”, Barthes (1984) observara as "unhas compridas de Goering". Era, então, de um antepassado do punctum que se tratava, o "sentido obtuso" (53). Na CC, mencionam-se as unhas grandes nos retratos do século XIX e as unhas sujas de Tristan Tzara em uma foto de Kertész. Talvez Barthes tivesse, de fato, um não sei quê por unhas grandes e sujas, em particular as masculinas. Na foto de Andy Warhol, por Duane Michals, “o punctumnão é o gesto, é a matéria um tanto repelente das unhas espatuladas, simultaneamente moles e descarnadas” (73). Entregou-se? Deixou escapar um fetiche singular? Ou brinca conosco, aludindo à conhecida provocação de Sócrates de que não há uma ideia para as unhas sujas? Uma vez que a sujeira debaixo das unhas não participa do mundo das essências, tendo sido banida do eidosplatônico, o eidosfotográfico, restabeleceria sua cidadania, ainda que fugaz, na forma do punctum, do inominável. No Theatrum Philosophicum, de 1970, Foucault (1980) já havia dado a senha:
Converter o platonismo (trabalho responsável) é incliná-lo a ter mais piedade pelo real, pelo mundo e pelo tempo. Subverter o platonismo é tomá-lo desde o cume (distância vertical da ironia) e retomá-lo na sua origem. Perverter o platonismo é apurá-lo até ao último detalhe, é baixar (de acordo com a gravitação própria do humor) até a um cabelo, à sujeira debaixo de uma unha que não merecem a honra de uma ideia (40, tradução modificada).
Mas, ao remeter as unhas repelentes de Andy Warhol a Platão e Foucault, já começo a convertê-las em studium. O punctum, enquanto tal, o tal do punctum, é apenas "uma fulguração” (74) – expressão que parece ter saído do vocabulário benjaminiano, assim como "detonador" (75) e "estrelinha na trama do texto" (75). Não é algo necessariamente notado à primeira vista: é um satori(o termo japonês para a iluminação budista), a “passagem de um vazio”. Se demorasse um pouco mais, deixaria de ser punctum, poderia ser analisado. Mas como resistir ao studium? Há o esparadrapo no dedo da
garota, a gola Danton no menino. Barthes confessa: “Sou um selvagem, uma criança – ou um maníaco; ponho de lado todo o saber; toda a cultura, abstenho-me se ser herdeiro de um outro olhar” (77).
Lewis Hine. Idiot Children in an Institution, New Jersey, 1924.
Não foram poucos os esforços que procuraram converter CC em método. Há dezenas de textos na Internet, em todas as línguas, que se propõem a aplicar studiume punctuma esse ou aquele corpus em particular. Raramente leio algo desse jaez que verdadeiramente me interesse. Tudo me parece uma certa dilaceração do corpo a serviço do corpus, porque, ao contrário do studium, o punctumnão ensina nada. Mas pode interromper, sacudir e permitir uma re-visão estudiosa dos materiais17. Derrida (2001) insiste que, a despeito da irredutibilidade do punctum, ele é, desde o início, duplo, pois aponta simultaneamente para si próprio e para mim (39). Sugere que há três maneiras de caracterizar a relação entre punctume studium: "suplementar" (é acrescentado, mas já estava lá); "rítmica" (pois a fotografia pretende sempre interiorizar, capturar, isso que escapa e que resiste à apropriação); e "assombração", isto é, nem a vida, nem a morte,
17 Para um exercício de apropriação do punctum, como estranhamento, interrupção, sintoma – aplicado à análise fílmica a partir da noção barthesiana de fotograma ver LISSOVSKY, 2014, p. 57-71.
mas, tomando do vocabulário de Levinas (2001), sem citá-lo, o “sombreamento” de uma pela outra" (Derrida, 2001, p. 41). A distinção entre studiume punctumseria apenas um simulacro de distinção, cujo antagonismo se dissolve para "complicar e reformular não apenas a oposição entre singularidade e predicabilidade, contingência e repetição, detalhe e totalidade, mas também entre intencionalidade e não-intencionalidade (CADAVA; CORTÉSROCCA, 2006, p. 13). No entanto, uma observação crucial é feia por Cadava e Cortés-Rocca (2006): Barthes identifica os punctapor meio de “associações e deslocamentos que evocam sua história, seus afetos, e sua inscrição na linguagem, na cultura, na rede familiar.”: “Se esse detalhe em particular lhe comove, se ele registra essa ferida em particular, é porque essa ferida já está nele, em algum lugar na sua história, ainda que deslocado, cifrado e de maneira ilegível" (15). Enquanto caça-punctum, Barthes – criança ou selvagem – não pode abrir mão da memória. A gola Danton – qual Danton? O guilhotinado? Um menino de cabeça tão pequena e gola tão grande. Não demora muito e vão cortá-la. Não devia haver criança francesa que não temesse por seu pescoço. E não adiantava explicar que a Revolução Francesa foi há muito tempo e ninguém vai decapitar o seu pintinho. A cabeça desse menino até encolheu de tanto “terror”. Tudo isso, para mim, está na gola ou no nome da gola? O que seria dessa gola sem esse nome? Derrida havia sugerido que a melhor maneira de pensar a relação entre as noções de studiume punctum seria a forma musical do "contraponto". Barthes chegou a anunciá-los como temas de uma sonata clássica, que como sabe bem, tem três movimentos, o terceiro representando a síntese dialética dos anteriores: studium, punctume ... A palinódia, anunciada na final da primeira parte do livro, interrompe a sonata antes que o terceiro movimento seja introduzido. O contraponto, de fato, é tudo que lhe resta, como nas formas simétricas, espelhadas e retrógradas da Arte da Fuga, de Bach – a última obra de gênio do compositor, antes que seus filhos inventassem a sonata clássica.