Possibilidades da câmera obscura

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Possibili dades da Câmera Obscura

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Possibili dades da Câmera Obscura Organização: Ana Angélica Costa

Realização

1ª edição

Patrocínio


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apresentação

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OfÍcio de viver

Angela Magalhães e Nadja Peregrino

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regina alvarez

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Espera

Paula Biazus e Rafael Johann

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A Câmera Escura na Fotografia Brasileira Contemporânea

Antonio Fatorelli e Victa de Carvalho

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Câmera-Luz

Paula Trope

72 [in]VERSÕES NA PAISAGEM: INTERVENÇÕES URBANAS COM CÂMERAS ESCURAs

Dirceu Maués

84

janelas, imagem de abertura e etéreos

Ana Angélica Costa

94

meu mundo teu

Alexandre Sequeira

108

A Caixa Mágica

Inaê Coutinho

118

cidade invertida

Ricardo Hantzschel

á

r

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126

PINHOLEANDO (ou MOTTAI-NAI) Potência e possibilidades pedagógicas dos fazeres

Miguel Chikaoka

144

Amazonas: imagem de um mundo mítico

Maria di Andrea Hagge

154

mão na lata: Imagens e NarrativaS

Tatiana Altberg e Mão na Lata

172

pequena etnografia visual sobre zonas de contato

Ana Luiza de Abreu

192 RETRATOS DO INDIZÍVEL – A EPOPEIA FOTOGRÁFICA DE LUIZ ALBERTO GUIMARÃES

Pedro Afonso Vasquez

206

Panoramas Imaginários

Monica Mansur

218

imanências

Angela Rolim

226

Câmera Catacumba – Doze imagens do outro lado

Jochen Dietrich

236

De dentro para fora. De fora para dentro

Tiago Rivaldo

248 Orifício, Fantasma, Retorno: Pinhole. Arte Contemporânea

Roberto Corrêa dos Santos

256

biografias


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apresentação

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azer uso da fotografia no século XXI é, ao mesmo tempo, fácil e arriscado. Fácil pelo alto desenvolvimento da produção de imagens técnicas, pelo automatismo das câmeras e pela grande diversidade de campos discursivos que a fotografia possibilita. Produzir imagens após a invenção da Kodak nos anos 1950, a disseminação das câmeras automáticas na década de 70 e dos smartphones com câmeras nos últimos cinco anos tornou-se uma atividade quase banal. Arriscado porque fotografamos com tal velocidade que não temos tempo de ver – nem o que estamos fotografando nem as imagens feitas. Assim, produzir imagens que de alguma forma provoquem algum tipo de reflexão sobre a experiência contemporânea não é tarefa simples. Apesar das inovações e revoluções tecnológicas pelas quais o mundo passou nas últimas décadas, é possível observar que para alguns artistas e educadores as metodologias mais arcaicas encerram em si um romantismo saudoso e um fascínio pelas imperfeições captadas por aparelhos antigos e precários. Não chega a surpreender a constatação de que nos aplicativos tecnológicos os filtros mais procurados sejam precisamente os que reproduzem ou aproximam as imagens das técnicas do passado. Recentes projetos, financiados por meio de crowdfunding – financiamento colaborativo por meio do qual as pessoas físicas podem escolher contribuir para a realização de um projeto (ONDU Pinhole Cameras, The Pop-Up Pinhole Project, Viddy, Lumu – Bringing Light Meter to 21st Century, Pinhole Printed – a 3D printed pinhole camera, entre tantos outros) –, demonstram o forte interesse pela fotografia feita com câmeras pinhole e pela conjugação de equipamentos tecnológicos e precários para a obtenção de fotografias com estética e modo de fazer diverso do das câmeras de smartphones aos quais estamos mais acostumados. Há que se destacar, ainda, o sucesso da Lomografia entre jovens, que pouco contato tiveram com a fotografia analógica em sua formação. Para além do efeito estético, artistas e educadores que escolhem trabalhar com os mais simples aparelhos produtores de imagens (a câmera pinhole (1) e a câmera obscura, por exemplo) parecem indicar um desejo de reconexão com o material, o originário, ou a necessidade de produzir um aparelho específico, que gere imagens não padronizadas. O princípio da câmera obscura é o fenômeno óptico responsável pela formação da imagem no interior de todos os dispositivos produtores de imagens, seja uma câmera analógica, digital ou mesmo um smartphone. Qualquer lugar ou recipiente totalmente escuro no qual a luz atinja o interior por um pequeno orifício é capaz de formar uma imagem. As características do ambiente e da superfície em que a luz é projetada influencia diretamente as características da imagem, ampliando o leque de possibilidades – materiais e conceituais – a se considerar em um projeto fotográfico com câmeras artesanais.

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Sob a perspectiva pedagógica, a vivência com a câmera pinhole descondiciona o olhar e tanto permite a criação de formas diferentes de construção da imagem quanto desmistifica e torna claros seus elementos formadores. A câmera pinhole retoma, portanto, um vínculo com o fazer, tão presente na arte moderna, que volta não apenas como um fazer manual, mas também maquínico. Problematiza o “ato fotográfico”, o ato da “tomada” da imagem fotográfica, acentuando seu caráter performático. Com o aumento do tempo de impressão da imagem no filme, as fotografias feitas com câmeras pinhole enfatizam o processo de impressão fotoquímico, chamando a atenção sobre algo que passa despercebido na fotografia vernacular: o que acontece durante o tempo de exposição do filme à luz, no momento em que a imagem é impressa. Possibilidades da Câmera Obscura surge da necessidade percebida pelo Projeto Subsolo, produtora cultural que atua no campo das artes visuais, de reunir e difundir para um público mais amplo ensaios e reflexões de diferentes profissionais dedicados ao ensino e à pesquisa de imagens feitas com câmeras pinhole. Assim, este livro nasce com a ambição de se tornar uma referência para artistas, pesquisadores, educadores, estudantes e interessados em conhecer mais a fundo ou, ainda, trabalhar com o fenômeno da câmera obscura e a produção de câmeras artesanais. O projeto de publicação teve como ponto de partida uma busca aprofundada por textos, práticas artísticas e pedagógicas que mencionam, utilizam fotografias feitas com câmeras artesanais ou desenvolvem os princípios ópticos de formação da imagem por meio do fenômeno da câmera obscura. Existem diversos grupos e artistas atuando a partir de questões relevantes acerca da formação da imagem com câmeras pinhole cujo trabalho fica restrito a um pequeno circuito. Nesse sentido, Possibilidades da Câmera Obscura traz à tona a riqueza e a diversidade de práticas contemporâneas de uso do princípio da formação da imagem fotográfica e suas implicações na arte, estética e educação. Simultâneo ao esforço de reunir pesquisas e projetos artísticos em andamento ou já realizados, foi solicitado a alguns autores dos campos da história da fotografia, comunicação e estética a produção de ensaios originais sobre o assunto. O Projeto Subsolo acredita que este conjunto contribuirá para o aprofundamento da reflexão sobre o papel da imagem na arte e na vida contemporânea, assim como para novas possibilidades pedagógicas, artísticas e conceituais da construção de aparelhos produtores de imagens. Foi surpreendente descobrir a confluência de questões conceituais em trabalhos de diferentes artistas ao lidar com câmeras pinhole ou com a câmera obscura, assim como a diversidade de resultados. É possível concluir que a opção por câmeras artesanais sem lentes, ou o fenômeno da câmera obscura, vem motivada pelo interesse em construções mais “manuais” da fotografia; pela possibilidade de desvendar o interior da caixa preta (2) a fim de subverter

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o programa das câmeras fabricadas em série e industrialmente; pela vontade de investigar o processo de obtenção da fotografia ou da formação da imagem em suas múltiplas possibilidades; e pela potencialidade dessas técnicas estabelecerem diálogos entre indivíduos. Pois, uma forte característica do uso de câmeras pinhole é permitir que o fotógrafo interfira nos processos de construção da câmera e da imagem resultante, permitindo à fotografia adquirir, hoje, sentidos diversos daqueles contemporâneos ao momento da sua invenção e constituir um profícuo território de pesquisa para artistas e educadores. Por meio desta publicação, o Projeto Subsolo apresenta diferentes maneiras de atuar e pensar a partir de imagens produzidas com câmeras pinhole e câmeras obscuras. Porém, ainda existe um amplo universo de pesquisas e experimentos a explorar, tornando este livro, assim esperamos, um ponto de partida para novas reflexões e publicações acerca do tema. Agradecemos a todos os autores que participam desta obra coletiva, contribuindo com textos e ensaios visuais; a Monica Mansur, Tatiana Altberg e Luciana Guimarães Dantas pela preciosa ajuda em diferentes momentos da elaboração do livro; a Janaina Garcia pelo acompanhamento e inúmeras sugestões; à Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro e à FUNARTE através, respectivamente, do Programa de Fomento à Cultura Carioca e do XIII Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia - pelos patrocínios, sem os quais a publicação não seria possível.

Ana Angélica Costa / Projeto Subsolo Rio de Janeiro, primavera de 2014

Notas 1. A denominação pinhole vem do inglês e significa “buraco da agulha”, termo atualmente mais utilizado para caracterizar este tipo de câmera, ao lado de fotografia estenopeica, utilizado nos países de língua francesa (sténopé) e espanhola (fotografia estenopeica). Também chamada de câmera de orifício ou câmera de latinha nos países de língua portuguesa, a pinhole é uma câmera fotográfica sem lentes objetivas, na qual um pequeno furo de agulha, de aproximadamente 4 mm de diâmetro, feito em papel laminado, substitui o diafragma de uma câmera convencional. O obturador, mecanismo disparado no momento do “clic”, responsável por permitir a entrada de luz no interior da câmera, é geralmente substituído por um pedaço de fita isolante. 2. Conceito elaborado por Vilém Flusser, em seu livro Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

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OfÍcio de viver Angela Magalhães e Nadja Peregrino

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surgimento da fotografia ocorreu quando o espírito positivista imperava sobre o mundo moderno. Ante os vertiginosos avanços científicos em curso no século XIX, saltava aos olhos da humanidade o inestimável valor da fotografia para a memória e para a configuração do mundo social, político e cultural. Basta lembrar as centenas de pavilhões da primeira Exposição Universal, (1) realizada no Palácio de Cristal em Londres (1851), em que a fotografia, um dos maiores símbolos da modernidade, era vivamente aclamada pelo público como estrela de primeira grandeza. A profusão de fotos ali exibidas era um indicativo preciso da pluralidade e vastidão do mundo. Em meio à aceleração do tempo, à facilidade crescente de deslocamento e à revolução das comunicações, as sociedades industriais emergentes impulsionam o crescimento das metrópoles. Num mundo mutante, em progresso, a fotografia espelhava o espírito de uma nova era causando um verdadeiro terremoto no campo da representação. Quase que por magia, uma máquina óptica, que utiliza processos químicos, consegue captar, plagiar e reproduzir de forma instantânea a heterogeneidade da experiência humana. Nesse quadro, a técnica utilizada marca radicalmente uma nova relação entre o homem e a máquina. De imediato, pode-se ver que a gênese mecânica da fotografia ilustra de maneira notável a passagem decisiva do único para o múltiplo, criando novos códigos imagéticos antes impensáveis. A emergência desses parâmetros visuais pavimentou o caminho de inúmeras pesquisas. Para além da reprodução do visível, temos, como exemplo, as cronofotografias do inglês Eadweard Muybridge (1830-1904) e do francês Étienne-Jules Marey (18301904), cujas imagens sequenciadas possibilitaram a análise visual pioneira do fluxo do movimento humano e da locomoção animal. Assim, a reinvenção dos processos mecânicos abre caminho para o desenvolvimento da indústria cinematográfica, bem como

para o surgimento de outros padrões de representação adotados pelas vanguardas artísticas cubista e futurista, na primeira década do século XX. Na civilização industrial instaura-se, então, a revolução das pesquisas estéticas com a expansão das formas de representação, em que o instante congelado impulsiona o diálogo entre a fotografia e as ciências da observação para criar um novo protocolo científico. Há, portanto, uma significativa mudança de foco. A engenhosidade humana, com sua inegável potência criativa, agencia articulações mais complexas em trabalhos artísticos posteriores. Na verdade, mais que projetar uma imagem no mundo, os artistas desmontam a realidade para nela reencontrar uma tessitura maleável, elástica, dobrável de onde o informe emerge em plenitude. A adoção de um ponto de vista mais ampliado é posta em questão e torna-se inseparável do imaginário, como bem diz o teórico de cinema, escritor e professor francês Jacques Aumont (1942). Tanto há uma gramática de símbolos pelos quais as coisas são representadas como fenômenos visíveis, como somos fabricantes e portadores de distintas versões do mundo. Em outras palavras, há uma ambiguidade que sustenta, por exemplo, a obra Les Demoiselles d’Avignon (1907) de Pablo Picasso (1881-1973), na qual as figuras femininas fragmentadas aparecem desfiguradas por formas angulares absorvidas das artes africanas e da Oceania. O artista age como se quisesse triturar as interpretações clássicas da figuração corpórea, mostrando que a narrativa visual não cabe mais em padrões aparentemente estabelecidos ou em análises instituídas. Diversos aspectos dessa discussão estão presentes no percurso artístico da fotógrafa e arte-educadora Regina Alvarez (1948-2007). A manifesta vontade de transgressão sobressai quando mistura o tecnológico ao fazer artesanal das câmaras pinhole e aos processos alternativos de impressão, experiências que acabam por alargar as fronteiras da visualidade. (2) Afinal, trata-se de

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uma trajetória profissional das mais peculiares na fotografia brasileira, o que necessariamente nos obriga a rever as influências sofridas em seu percurso formativo e o legado que deixou para gerações futuras, que, como veremos mais adiante, adotam alguns procedimentos formais utilizados pela artista. Impõe-se, portanto, aqui, um breve sobrevoo pelos capítulos fundadores da história da fotografia mundial e pelos arquivos institucionais brasileiros, que, somados aos depoimentos colhidos, poderão alargar o conhecimento sobre sua vasta contribuição. É de bom tom lembrar, antes de avançar, o mérito da exposição e do catálogo concebidos por Denise Cathilina, em parceria com Janaina Garcia e Ana Angélica Costa, apresentados no Parque Lage (2011) – uma homenagem póstuma dedicada à artista, reunindo parte significativa de seu acervo. (3) Faz-se, também, necessário nesse percurso relembrar os momentos vividos por nós na organização de eventos. Muitos deles propiciaram a difusão mais plena dos projetos de arte-educação de Regina Alvarez, já que nossos caminhos se cruzam no final dos anos 1970, no limiar da criação da Fundação Nacional de Arte (Funarte). Antes de Alvarez, pelo menos no Brasil, faltava colocar em prática, de modo mais efetivo, um programa que pudesse conjugar os artefatos artesanais com as regras bem definidas do mundo pós-industrial. Daí a importância capital da artista que apresenta naquele momento alternativas poéticas bem diferentes daquelas oferecidas pela fotografia documental, que se instalara com vigor no país. Cabe lembrar que nos anos 1980, a fotografia direta reinava tout court pelo território brasileiro. De um lado, havia uma geração de fotógrafos profissionais, em sua maioria atrelada aos grandes jornais e revistas do país. Outros tantos abraçavam a fotografia em preto e branco, na intersecção entre a tradição documental e a estética moderna, uma refletindo a outra num laborioso espectro de apuro estético. E havia, ainda, os que exploravam a foto-

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linguagem como um caminho possível para ampliar os horizontes conceituais da fotografia. (4) Entretanto, serão os experimentos de Regina Alvarez, desenvolvidos em sua formação no exterior, que irão introduzir a pinhole como uma nova vertente de sintaxe para a fotografia brasileira. Nesse contexto, o Núcleo de Fotografia da Funarte (1979) – embrião do futuro Instituto Nacional de Fotografia (1984-2000) – cumpria o seu papel de apoiar e difundir as atividades fotográficas e, na primeira hora, acolhia a exposição Fotografia sem Câmara, de Alvarez (1981), criando um circuito de oficinas pelo país. (5) Era o momento em que a fotografia começava a se firmar como prima-dona da arte contemporânea. Recém chegada da Inglaterra, Regina voltaria a frequentar o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, onde

já funcionava a Galeria de Fotografia da Funarte, espaço pioneiro consagrado aos eventos da área. Lá, um pequeno grupo de jovens idealistas, liderado pelo fotógrafo Zeka Araújo, organizava palestras, workshops e diversas exposições históricas, individuais e coletivas, estas últimas produzidas em grande parte por convocatória de portfólios. Aos olhos de hoje, aquele conjunto de ações pode ser considerado a célula mater do bem-sucedido projeto cultural de implantação de uma política nacional para a fotografia, no âmbito da esfera pública federal. E, não por acaso, aquelas mostras coletivas (Nossa Gente, Antonio Teixeira, Lazer, Classe Média Brasileira) podem ser vistas como um inventário visual comprometido com os valores e tradições da identidade do país. (6)

Coluna do jornal O Globo (RJ), Frederico Morais, 4 de março de 1981

2ª Semana de Fotografia, realizada pela Fundação Cultural de Curitiba (FCC), 1992. Praça Osório, centro de Curitiba. Foto de Alberto Mello Viana. Primeira fila: Mario Espinosa, Helio Solha, Fernanda Castro, Walter Firmo, Alberto Melo Viana, Zeca Linhares, João Urban, Ana Cristina Castro, Milton Guran, Orlando Azevedo, (desconhecido), Rubens Fernandes e Emidio Luisi. Fila do meio: Lucia Camargo, Marcos Santilli, REGINA ALVAREZ, Juvenal Pereira, Isabel Amado, Joaquim Paiva, Vilma Slomp, Paulo Klein. Sentados no chão: Angela Magalhães, Fausto Chermont, Nadja Peregrino e Aristides Alves.

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No entanto, o portfólio da artista chamava atenção pelo sopro de vitalidade, contrapondo-se à tão incensada gênese mecânica da fotografia. Sua imersão nos estudos sobre os processos alternativos de produção e impressão de imagens, na Birmingham School of Art (Inglaterra, 1975-1977), descortinou um campo investigativo que vinha se delineando desde o início dos anos 70, em sua formação na Escola Nacional de Belas Artes (RJ) e em suas atividades como arte-educadora na Escolinha de Artes do Brasil (RJ). Seu crescente interesse pela fotografia sem câmara (pinhole) fez com que Alvarez a adotasse como um projeto prioritário de inclusão visual de crianças, jovens e adultos. As fotografias produzidas através da câmara pinhole apontavam tanto para a explosão do plano de perspectiva renascentista, quanto para um fenômeno óptico, tortuoso e incerto, que reforçavam um novo campo de pesquisa. Por outro lado, desde o início de seus estudos, o espírito experimentalista e libertário de Alvarez a impelia a interferir na “película do filme, desenhando em sua superfície, descolorindo, queimando ou criando transparências a serem projetadas a partir de embalagens de papel celofane”. (7) Nas palavras da artista: “Quando iniciei minha atividade fotográfica (...) a sofisticação das modernas máquinas havia criado o mito técnico que afastava os pretendentes à arte fotográfica, diante do enigma da máquina”. (8) A construção das câmaras artesanais por professores e alunos, feitas a partir da utilização de suportes distintos, tais como caixas de sapato, latas de Band-aid e de leite em pó – material de baixo custo – tornou possível desmistificar os aparatos fotográficos tradicionais. Com isso ressaltou-se a vertente lúdica do registro da imagem, o que nos remete à experiência do cientista italiano Giovanni della Porta (1558), que chamou amigos para assistirem à aparição de uma imagem projetada no interior de uma gigantesca câmara escura. Postos no interior da câmara, os convidados ficaram em pânico ao ver a imagem

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um pequeno catálogo. Ao contemplar suas fotos, vemos ecoar o pensamento de Walter Benjamin quando diz que a natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar – o que pode ser visto nas múltiplas anamorfoses que evidenciam as diferenças de percepção de um prédio ou mesmo de um carro e suas respectivas representações. As formas circulares, convexas, deslocadas no espaço, funcionam como uma espécie de interpelação crítica sobre a natureza do fenômeno visual. Por outro lado, a artista evidencia um despojamento que funciona como estimulante diálogo entre a esfera de atuação do artista e do artesão. Da feitura das máquinas pinhole, na qual tamanhos de orifício diferenciados permitem uma passagem ínfima de luz, nascem figurações precárias, luminosas, provisórias – envoltas por um halo enigmático do claro-escuro da fotografia em preto e branco e, por vezes, colorida.

Vista da exposição Regina Alvarez: experiência fotossensível. No primeiro plano: vitrine com câmeras utilizadas pela artista. EAV Pargue Lage, 2011.

Capa do catálogo, Funarte, 1981

invertida, o que motivou o cientista a ser conduzido ao Tribunal Papal sob acusação de bruxaria. Na verdade, o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) já havia descrito o fenômeno ao observar a imagem de um eclipse solar projetada através dos furos de uma peneira. E, por fim, foi o aperfeiçoamento da câmara escura que possibilitou o anúncio da invenção da fotografia, na França, em 1839. Como já dito, a Funarte acolheu o trabalho de Alvarez e, com o apoio da Kodak Brasileira, imprimiu

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A colheita da artista Um olhar mais matizado pode ser lançado sobre a trajetória de Regina Alvarez. A própria produção da artista, por mais importante que tenha sido seu papel formador, permanece afastada de uma discussão que permita estabelecer pontos de contato com uma mitologia pessoal – algo constitutivo do seu fazer fotográfico e inscrita, de alguma forma, num íntimo diálogo com a sua obra. É por essa via que podemos entender os pequenos gestos, mais sugeridos do que mostrados, que se apoiam com naturalidade nos arquétipos femininos em imagens um tanto atípicas. Dessa forma, abstrações formais ganham um corpo sociopolítico e são defendidas por uma artista que procurava atuar no limite do que Vilém Flusser (1920-1991, filósofo tcheco, naturalizado brasileiro) denomina de jogo contra o aparelho. Com efeito, se abordadas do ponto de vista da produção, suas fotos se colocam no polo oposto do progresso tecnológico, e devemos lembrar que a pinhole põe em jogo um certo desassossego, nada confortável, como forma de um imaginário artístico mais liberto e heteróclito. O que está em xeque, ao final, é uma figuração transgressora que desafia a geometria da representação. Mas isso não é tudo. Transferida para uma dimensão mais pessoal, a linguagem poética se torna discurso de uma dimensão existencial. Por isso mesmo, a presença da natureza é uma característica que mostra a proximidade estética com a alma da artista. Seu lastro pode ser sentido na pequena foto-história em preto e branco, na qual pequenos textos se misturam às imagens da própria fotógrafa, tornando ainda mais verdadeiro o envolvimento do eu artístico com uma vertente espiritual. How do I respond to this piece of earth? Pergunta Alvarez numa das legendas das fotos que integram a sequência sobre o tema. Deste modo, a natureza humana e a natureza da paisagem estão próximas, porém, num campo de indagação. O caráter efême-

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ro e transitório se reflete, talvez, num sentimento de passagem, de alguém que vagueia para encontrar um caminho difícil de ser trilhado em meio ao emaranhado de galhos. Mais do que tema ou cenário, a natureza marca o pertencimento associado a uma visão mais holística do mundo. Prova disso são as palavras da artista Eu abro meus braços para abraçar a luz do sol, como se quisesse expressar um modus vivendi desdobrado em outras crenças pessoais. Para ela a natureza nunca foi um fim em si mesmo, mas algo que a vida põe em movimento. Daí surge o interesse em coletar folhas, galhos, entre outros elementos, para inseri-los tanto em seus fotogramas com viragem de anilina quanto na superfície dos cromos projetados em eventos, como na Mostra de Audiovisuais da Funarte. (9) Acrescente-se, ainda, outra aproximação possível da artista com o mistério da vida que emana do enigma do visível. Por esse viés aflora a influência da Dra. Nise da Silveira, fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente, onde Alvarez atuou como fotógrafa, de 1974 a 1983. E não menos desprezível é a sua aproximação com o universo simbólico e fi-

losófico do psiquiatra Carl Jung (Suíça, 1875-1961) e do filósofo e poeta Gaston Bachelard (França, 1884-1962). Desse amálgama de vivências e estudos abstrai do conceito de imaginação criadora (Gaston Bachelard) “a possibilidade de imaginar não apenas o que existe, o que é real, mas o exercício de uma imaginação autônoma, poética, capaz de simbolizar e transportar para além do visível”. (10) Instigada por essa viagem, Alvarez refaz, esteticamente, o trajeto experimental empreendido por renomados artistas do passado. Do inglês William Henry Fox Talbot (1800-1877), por exemplo, temos referências em livros de fotografia dos primeiros exemplos de “desenhos fotogênicos” ou “fotogramas botânicos” (1839), de flores e folhas, que uniam a espécime com a ilustração tanto no sentido literal como figurado. Autênticas provas do modelo real, essas imagens se prestavam à publicação e à difusão. E foi uma das compatriotas de Talbot, Anna Atkins (1799-1871) – conhecida por ser uma das raras mulheres com formação científica em sua época –, que obteve êxito na publicação das plantas da Grã-Bretanha, ilustradas por um centena de foto-

gramas. (11) Aliás, entre 1843 e 1854, exemplares do British Algae: cyanotype impressions – uma das primeiras obras científicas com impressões em cianotipia – traziam centenas de ilustrações fotográficas, antecedendo a impressão do consagrado livro The Pencil of Nature (1844). (12) As preocupações de Alvarez também estão bastante próximas do debate travado, internacionalmente, pelo movimento pictorialista que, a partir da década de 1890, questiona os mecanismos da fotografia tradicional com o intuito de dar corpo a uma fotografia híbrida, como articulação exponencial da aliança entre a máquina e a fatura manual. Produziam-se assim interferências sobre a cópia com o uso de pincéis, raspadeiras, entre outras estratégias, para reverter a natureza mecânica do processo fotográfico. É nesse contexto que surge o trabalho do inglês George Davison (1854-1930), abo-

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lindo, em suas experiências, o uso de lentes na máquina fotográfica. Sua obra mais conhecida, Campo de Cebolas, premiada pela Real Sociedade das Artes em Londres (1890), foi realizada com uma câmara pinhole, proporcionando à fotografia a atmosfera impressionista tão almejada pelos fotógrafos pictorialistas. O que torna aquelas imagens tão preciosas é uma configuração estética enevoada, impregnada pela admirável nostalgia de beleza. (13)

Mais do que semelhanças formais, que todavia existem neste percurso histórico, existe uma relação simbólica entre certas imagens produzidas e a vida íntima da artista, amiúde marcada por fatos não esgotados apenas por uma definição. Mas se fosse possível apontar uma chave de leitura, poderíamos dizer que a poética de Alvarez é mediada pela importância da natureza feminina. Daí a necessidade de nomear, destacar, reiterar a gravidez na sequência de imagens da série Transmutações: Maternidade (1988); de isolar o seu próprio corpo como objeto de contemplação mediante um cuidadoso arranjo formal inscrito numa fotografia em cianótipo e goma bicromatada. O mesmo pode ser dito das imagens em negativo e positivo do seu filho Fabian, em que Alvarez utiliza o mesmo processo para dar conta de uma história que lhe é cara. Cada fotografia encontra sua forma num sentido mais recôndito. Como diz o filósofo ítalo-brasileiro Lorenzo Mammi (1957), “a foto desvela e isso diz respeito não somente ao objeto, mas também ao envolvimento do sujeito no ato da visão”. (14)

Regina Alvarez, autoretrato, cianotipia

Fabian Alvarez Welton, da série Transmutações: Maternidade, goma bicromatada

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Uma rede de intercâmbio A influência de Regina Alvarez é marcante e segue rumos inesperados. O desejo de repassar suas experiências estéticas foi determinante pelo que se conhece dos efeitos de sua trajetória na obra de diversos artistas brasileiros. Mais do que fincar sua produção inovadora em território nacional, Alvarez foi uma divulgadora incansável da técnica pinhole, disseminada através de aulas e workshops ministrados em diversas capitais brasileiras, a grande maioria realizada sob o patrocínio da Funarte. (15) Só assim podemos entender a importância da fotografia sem câmara e dos processos alternativos na formação de fotógrafos, arte-educadores e pesquisadores como Miguel Chikaoka, Paula Trope e Denise Cathilina, para mencionar apenas alguns, que atestam em depoimentos a importância de Regina Alvarez em determinados momentos de seus percursos. Não é de admirar que o fotógrafo Miguel Chikaoka (SP, 1950) tenha adotado a pinhole como uma ferramenta das mais importantes no projeto educacional da Associação Fotoativa, em Belém (PA). A partir do contato pessoal com Alvarez, em 1982, Chikaoka, até então adepto da câmara fotográfica tradicional, tomou consciência da pinhole como um formidável instrumento de saber. Educador nato, dos mais prestigiados no Brasil, ao assimilar esta prática, pôde vivenciar plenamente o caráter lúdico das câmaras artesanais, as quais o fizeram adotar práticas mais periféricas. Naquele momento não tínhamos a situação que temos hoje, em que qualquer pessoa pode ter uma câmara (...). A pinhole é um momento mágico para colocar muitas questões sobre o contexto atual, porque com ela a qualidade da imagem se dá a partir de um furo muito pequeno que exige uma concentração (...). Vivemos num momento em que ninguém tem a oportunidade de pensar criticamente. Nas oficinas que realizo a metade do tempo emprego esse plano do artesanal, não por saudosismo (...) mas porque lá você pode discutir muita coisa do processo fotográfico. (16)

Oficinas de pinhole no sul do Brasil, anos 1980

Aterro do Flamengo, experiência com a câmara escura gigante, 1981

Chikaoka não deixa de ter razão. Suas proverbiais palavras a respeito da pinhole tiveram ressonância em diversos eventos fotográficos. No Foto em cena, promovido no Rio de Janeiro, no final dos anos 1990, por exemplo, Tatiana Altberg (RJ, 1974, fotógrafa, designer e educadora) pôde conhecer a pinhole em uma oficina ministrada por Chikaoka. Atenta à realidade social e encantada desde a primeira hora com o conhecimento recebido, Altberg partiu para criar o grupo Mão na Lata, implantado na comunidade da Favela da Maré (2004, RJ). De lá para cá foram desenvolvidas diversas oficinas e projetos, inclusive na área editorial. Dentre eles, destacamos a publicação de Cada dia meu pensamento é diferente, em que jovens de 11 a 17 anos trabalharam com contos do escritor Machado de Assis (RJ, 1839-1908) e saíram pela cidade em busca de um Rio de Janeiro presente na obra do autor.

Miguel Chikaoka, mini-pinhole, Belém/PA

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Existe uma circulação pequena desses alunos pela cidade como um todo. O percurso cotidiano deles é em grande parte na Maré. A gente foi pra esse Rio de Janeiro do século XIX e foi um choque para eles. Ao mesmo tempo, ficaram muito impressionados com a conservação das coisas, ao ver como é difícil preservar essa memória. O meu interesse desde o início foi de tentar aproximar as pessoas de si mesmo e do outro. A fotografia e a escrita têm mesmo esse poder de conectar quem faz uso delas com sua subjetividade, ou subjetividades, (...) revela no sujeito e para o sujeito suas formas de ver e estar no mundo, um ponto de vista, um lugar de onde reverbera a voz. E isso é potência pura em se tratando de processos de autoconhecimento. (17)

Tempos antes, porém, Paula Trope (RJ, 1962) recebeu a influência direta de Regina Alvarez, em meados dos anos 1980, nos cursos que Alvarez ministrava na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ). (18) Em seu depoimento, Trope conta:

Mão na Lata - Bruna Kely Barbosa, pinhole.

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Fiquei encantada com as possibilidades de experimentação despertadas por esses processos, e a partir daí não parei mais de pesquisar, construir (e desconstruir) meus aparelhos de trabalho (e de jogo), das primeiras câmeras-lata às câmeras adulteradas de cinema e vídeo e às recentes câmeras escuras gigantes, nomeadas por mim de “Câmeras-Luz”. Regina era uma pessoa generosa e amorosa (...) e uma artista extremamente intuitiva (...) e nos tornamos muito próximas.

Estas vivências são indissociáveis do percurso criativo de Paula Trope. Na década de 1990 a artista produz, por exemplo, um trabalho com meninos de rua em que a perspectiva política aflora. Seu objetivo foi trazer à tona uma identidade diferente daquela dos personagens que vagueiam pela cidade, sem conseguir encontrar o seu lugar no mundo. Por conta disso, a pinhole utilizada (duas latas devidamente adaptadas como câmara escura) suplanta

a representação para se plasmar em torno de uma fotografia compartilhada. Não somente Trope fotografava os meninos, que viviam nos arredores de sua casa no Rio de Janeiro, como os convidava para criar com a pinhole as suas próprias fotografias, uma ação em que o diálogo e os princípios de sociabilidade estão em pauta. Fica patente nas fotos – Muller aos 8 anos, guardador de carros; e o dinheiro (1993/1994) – que a “infância roubada” por um sistema econômico cruel é um problema social perene em nosso país. Já na série Traslados, Brasil Cuba (1996/1998), o universo infantil é explorado de forma lúdica e simbólica. Um diálogo entre crianças dos dois países é travado através das fotografias produzidas e trocadas entre elas com o intermédio da artista. Trata-se, portanto, de uma opção clara pela exploração de significados simbólicos que extrapolam tanto o tema enfocado quanto uma fotografia estetizada e esvaziada de sentido.

Paula Trope Futebol. Rocinha, Rio de Janeiro, 1997 Los Peloteros. La Lisa, Havana, 1997 Série Traslados, Brasil - Cuba, 1996-1998 Fotografia com câmera de orifício Díptico: 100 x 100 cm cada

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Diversos artistas se cruzam no decorrer desses multifacetados percursos. É o caso das fotógrafas Ana Angélica, Janaina e Roberta – sócias do Projeto Subsolo, fundado em 2003 – que passam a adotar a técnica pinhole a partir do curso ministrado na UERJ por Paula Trope. O relato de Ana Angélica (SP, 1974) é esclarecedor: Conhecemos a Regina por meio de uma amiga em comum, Angela Couto, jornalista, moradora de Santa Teresa, que nos alugou a primeira sede (...) do ateliê que viria a se transformar no Projeto Subsolo. Inicialmente, o ateliê era apenas um lugar para produzirmos e discutirmos fotografia, com um pequeno espaço para laboratório. Logo sentimos a necessidade de trabalhar com as comunidades do entorno, uma vez que Santa Teresa é cercada por favelas, e foi aí que chegamos à técnica pinhole: na época, uma forma barata e com grande potencial pedagógico para a compreensão de questões básicas sobre a formação da imagem e a fotografia. A Angela conseguiu marcar uma

visita à Regina, que nos recebeu muito generosamente, mostrando toda a sua produção, embora já estivesse bastante debilitada pela doença. Neste mesmo momento, a Paula Trope iniciava um curso na UERJ sobre pinhole (eu era estudante de Educação Artística com habilitação em História da Arte lá) e resolvemos frequentá-lo (...). E foi a partir deste curso com a Paula Trope que começamos a promover cursos e oficinas de pinhole.

O sentido desse relato reforça a ligação da pinhole com os projetos de inclusão social no intuito de superar as desigualdades sociais presentes em todo o país. Desse ponto de vista, se tomarmos como exemplo as favelas que cercam o bairro de Santa Teresa, enfocadas pelas fotógrafas, não é exagero afirmar que esses aglomerados urbanos podem ser vistos como a melhor tradução de uma hidra contemporânea – um “bicho de sete cabeças” que se espraia com voracidade pelas grandes cidades brasileiras. Configuram-se por suas ruelas labirín-

ticas, emolduradas por uma arquitetura caótica e incerta, traduzida em improvisados barracos de madeira e casas de tijolos construídos pelas massas comunitárias. Por sua vez, num voo solo, Ana Angélica realiza ao longo dos últimos dez anos a série Janelas a partir do uso de uma câmara pinhole cilíndrica, que fotografa num raio de 360º. Trata-se de um formato panorâmico, que comporta quatro imagens de 90º, no qual a artista relaciona “o interior arquitetônico e a paisagem – seja ela um muro, uma parede, uma janela, um campo, uma árvore, um jardim, um quintal – de diferentes moradias”. Desta forma, o ensaio funciona como uma espécie de coleção em aberto para construir uma relação dialética passível de se desdobrar ao infinito. (19) Muitos artistas contemporâneos utilizam desde a técnica pinhole até processos alternativos com um alto grau de experimentação. (20) Embora o espectro seja muito maior do que se imagina,

nomeamos aqui alguns artistas que se situam na tênue fronteira de uma fotografia expandida. Do paulistano Kenji Ota (1952), por exemplo, sobressaem as naturezas-mortas vislumbradas em composições rigorosas e caracterizadas por grande intensidade poética. Processos primitivos – goma bicromatada, bromóleo, cianótipo ou, para sermos mais precisas, imagens impressas em papéis artesanais de algodão – evidenciam uma nostálgica beleza que o leva de volta às origens da fotografia e à ampliação das possibilidades da fotografia atual. Já o paraense Dirceu Maués (1968), num dos seus inúmeros trabalhos, dirige sua câmara pinhole para retratar o mercado popular Ver-o-Peso – um marco arquitetônico dos mais importantes da cidade de Belém. Utilizando dezenas de caixas de fósforo, Maués produziu mais de 900 fotografias, distanciando-se de qualquer realidade previsível, consciente de que a arte é uma maneira de estar aberto ao imaginário. Aqui, também, o determi-

Ana Angélica – Janelas: Criciúma, fotografia pinhole colorida, 2003

Kenji Ota, cianotipia, 1998

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nante é a duração do tempo do movimento que os objetos fazem no espaço. Um momento de devaneio, como bem lembra Bachelard em sua poética do espaço. Ou, ainda, de acordo com Flusser, que defende a necessidade de enganar o aparelho a partir de alterações nos programas já previstos para dar lugar às imagens visionárias. Por último, destacamos o ensaio Cidades sobre expostas, do físico e fotógrafo Luiz Alberto Guimarães (RJ, 1949), que apresenta sob a forma de antigos cartões de paisagem (carte-cabinet) uma série de imagens de edifícios – tomados do chão e em seus piores ângulos, as paredes cegas – utilizando pinholes de diferentes formatos. Como ele diz: “Transformo-os assim em verdadeiros animais pós-

Luiz Alberto Guimarães – Cidades sobre expostas (ou sobrecidades expostas), Projeto Paisagens Perdidas, pinholes de diferentes formatos, 2014

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-históricos, que à semelhança de seus antepassados pré-históricos, nos filmes de catástrofe, invadem as cidades, destruindo-as e aterrorizando seus habitantes”. Na verdade, Guimarães nos põe diante de coisas em vias de desaparecimento, tanto quanto o venezuelano Alexander Apóstol (1969) que fotografa, com câmaras convencionais, as habitações em Caracas como se fossem antigas fortalezas da era medieval. Ambos aludem à precária condição humana nas grandes capitais, cuja situação social e política desestabilizadora funciona, em seu sentido metafórico, como um beco sem saída de nossa morada. Algo, portanto, que nos põe diante do jogo da vida, à deriva, impossível como a pinhole de ser ajustada à racionalidade das regras fixas.

Dirceu Maués – frames do vídeo “... feito poeira ao vento...”, realizado no mercado popular Ver-o-Peso, Belém, PA, 2008

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NOTAS 1. No período inaugural de 1850 a 1860, as exposições universais na França e na Grã-Bretanha sinalizam não só o desejo burguês de sofisticar o gosto artístico do público mas, também, a rivalidade das potências imperiais na disputa por uma supremacia científica e comercial. Nesse particular, a fotografia usufrui da valorização dos diversos movimentos estéticos, alinhando-se às suas respectivas configurações. 2. Pinhole – termo inglês, no qual pin é agulha e hole, buraco – é uma câmara fotográfica feita de maneira artesanal (caixas de papelão, de madeira, latas de tamanhos variados etc.), sem lentes, espelhos ou outro componente óptico. Um pequeno furo de agulha de diâmetros distintos ocupa o lugar do diafragma de uma câmara convencional e deixa a luz entrar no container escuro para formar uma imagem invertida da cena exterior, a qual reúne inúmeras características, entre elas a pouca nitidez da fotografia. Essa imagem pode ser fixada no papel fotográfico de impressão, que se torna um negativo, ou na emulsão do filme celuloide preto e branco ou colorido, devendo ser calculado o tempo de exposição (que pode ser de minutos ou até horas). Conhecido como Câmara Obscura, esse dispositivo foi adotado por Leonardo da Vinci e outros artistas desde antes do Renascimento, sendo o predecessor direto da câmara fotográfica. A técnica pinhole tem sido muito utilizada em atividades artísticas e pedagógicas por ser capaz de apresentar de forma lúdica e experimental uma volta aos princípios básicos de formação e fixação da imagem fotográfica. 3. O acervo de Regina Alvarez está sob a guarda de seu filho, o fotógrafo-designer Fabian Alvarez, e compreende mais de uma centena de ampliações e negativos. Alguns originais fotográficos tiveram a consultoria de conservação de Sandra Baruki (Centro de Conservação e Preservação Fotográfica da Funarte), por ocasião da mostra Regina Alvarez: experiência fotossensível, uma homenagem póstuma organizada no Parque Lage, em 2011, por Denise Cathilina, Ana Angélica Costa e Janaina Garcia. 4. Nos anos 1960, a fotografia brasileira começa a adquirir novas nuanças que apontam, entre outras coisas, para o uso recorrente de imagens fotográficas dentro das mais diversas e variadas interpretações. Muitos autores propõem uma nova ordem conceitual para a fotografia, fundindo real e imaginário numa mesma superfície. Por meio das revistas especializadas

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de fotografia – em especial a Íris e a Fotóptica – o tema será abordado ressaltando-se as possibilidades exploratórias da fotografia como suporte fixador de ideia ou enquanto fotoimaginação/ideação. 5. Mostra de fotografia 9 – catálogo da exposição Fotografia sem Câmara, realizada na Galeria de Fotografia da Funarte (26 de agosto a 25 de setembro de 1981), pela equipe composta por Zeka Araújo, Angela Magalhães, Elizabeth Carvalho, Nadja Peregrino e Solange Garcia de Zuñiga. Localizada inicialmente no prédio do Museu Nacional de Belas Artes (rua Araújo Porto Alegre 80, RJ), a galeria foi transferida no início dos anos 1990 para o mezanino do prédio do Palácio da Cultura – Gustavo Capanema (situado na esquina das ruas Araújo Porto Alegre com Graça Aranha, centro, RJ). Vale dizer, ainda, que Regina Alvarez ingressou na Funarte em 1987, atuando num primeiro momento no setor de acabamento do Centro de Preservação e Conservação. 6. Nossa Gente (coletiva de 68 fotógrafos, 1979); Antonio Teixeira (retrospectiva póstuma patrocinada pelo Jornal do Brasil sobre o fotógrafo, 1979); Lazer (coletiva de 52 fotógrafos, 1979); Classe Média Brasileira (coletiva de 39 fotógrafos, 1980). 7. Catálogo Regina Alvarez: experiência fotossensível, p. 8 (mostra no Parque Lage, 2011, RJ). 8. Texto de Regina Alvarez para o catálogo Mostra de Fotografia 9 – Fotografia sem Câmara, 1981, p. 3 (patrocínio Kodak Brasileira). 9. 6º Mostra de Audiovisuais (Galeria de Fotografia da Funarte, 1983). Regina Alvarez apresenta a projeção de slides “Uma experiência alternativa em fotografia”, 25m. Ficha técnica: Produção e edição: Regina Alvarez. Sinopse: Mostra a trajetória de uma experiência de seis anos com o processo de fotografia sem câmara. Desde as primeiras imagens feitas na Inglaterra, em 1976, até os trabalhos feitos no Brasil, em 1982. 10. Catálogo Regina Alvarez: experiência fotossensível, p. 38 (mostra no Parque Lage, 2011, RJ). 11. Fotograma – cópia fotográfica obtida sem câmara mediante a interposição de um objeto entre o papel sensível e a fonte luminosa. O próprio objeto em contato com o papel fotossensível fica impresso como uma espécie de radiografia, uma maneira elementar de se produzir fotografias. O nome foi dado pelo inglês

William Henry Fox Talbot a partir do desenvolvimento desse método entre 1834 e 1838. Já no início do século XX (1920-30), o fotograma foi bastante utilizado pelos fotógrafos Christian Schad (Alemanha, 1894-1982), Man Ray (EUA, 1890-1976) e László Moholy-Nagy (Hungria, 1895-1946). Com o nome rebatizado para schadografia ou rayograma, as composições ficaram mais complexas pela utilização de várias fontes de luz. 12. Em 1843, Willian Henry Fox Talbot inaugurou a primeira loja de impressão fotográfica em escala comercial. No ano seguinte, publica The Pencil of Nature, o primeiro livro ilustrado fotograficamente, no qual estão incluídas as imagens de esculturas e desenhos, e vistas de Oxford e Paris. Em 1854, foi aclamado como o inventor do processo negativo-positivo. 13. Ver Fotoclubismo no Brasil – o legado da sociedade fluminense de fotografia, de Angela Magalhães e Nadja Fonseca Peregrino, Ed. Senac, 2012. As autoras transitam pelos primórdios do amadorismo na fotografia quando floresce uma pedagogia fotográfica intensamente fundamentada em uma formação técnica e artística. 14. Ver O que resta – arte e crítica de arte, de Lorenzo Mammì, Companhia das Letras, 2012. 15. Entre as instituições que apoiaram eventos com a artista, destacam-se a Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura (CE); Fundação Escola do Trabalho (Lajes-SC); Centro Josué de Castro (Olinda-PE); Sociedade de Estudos de Cultura Negra do Brasil (BA). Além disso, a Funarte promoveu a itinerância da exposição Fotografia sem Câmara por diversas capitais do país, entre elas Mato Grosso (1982, Biblioteca Central da Fundação Universidade de MT), Brasília (1983, Biblioteca Central da UNB) e Belém do Pará (SECULT, 1982/83). 16. Miguel Chikaoka foi o artista convidado da terceira edição do Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia. A entrevista publicada no catálogo Memórias da imagem (Diário do Pará, 2012) teve como mediadores o professor e fotógrafo Mariano Klautau Filho (PA, 1964), curador do projeto, e Joaquim Marçal (RJ, 1957), historiador da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 17. O resultado do trabalho foi publicado no livro Cada dia meu pensamento é diferente (Nau Editora, 2003) e a exposição homônima teve lugar no Museu de Arte do Rio (MAR). Depoimento de Tatiana Altberg às autoras deste artigo, em maio de 2014.

18. Paula Trope atuou como professora e coordenadora do Núcleo de Imagem Técnica da Escola de Artes Visuais (EAV), do Parque Lage (RJ). Durante alguns anos (entre 1985 e 1994), Paula organizou e promoveu na EAV os cursos de Alvarez com pinhole e processos alternativos de produção de imagens, tais como fotogramas ao sol, slides artesanais, entre outros, que foram fundamentais para a abertura de caminhos para a fotografia. Sua influência se faz notar nas gerações de artistas que surgiram e que hoje lidam com essa disseminada técnica e meio de linguagem artística. O depoimento de Paula Trope foi concedido às autoras deste texto em abril de 2014. 19. “O experimento-pinhole”, Ana Angélica Costa, revista Concinnitas 13, p. 16-27. 20. A repercussão do uso da pinhole no Brasil pode ser atestada em eventos como “Pinholeday no Planalto”, que em sua quinta edição (2010) promoveu palestras e oficinas voltadas para os filhos de catadores de material reciclável do Distrito Federal (www.fotolata. com.br). No site Worldwide Pinhole Photography Day 2014, diversos países comemoram a data no último domingo do mês de abril. Ali estão registrados eventos em Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, entre outros locais.

Nossos agradecimentos aos artistas pelos depoimentos aqui reunidos. A Fabian Alvarez e Joelma Neris Ismael (Centro de Documentação da Funarte) pelo empréstimo de material impresso e fotografias.

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regina

Imagens gentilmente cedidas por Fabian Alvarez e selecionadas por Ana Angélica Costa a partir da exposição Regina Alvarez: experiência fotossensível, realizada pelo Projeto Subsolo, com curadoria de Denise Cathilina na Escola de Arte Visuais do Parque Lage entre junho e julho de 2011.

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alvarez

Fotografia realizada com câmara artesanal com alunos no ateliê de Regina Alvarez, Santa Teresa (descrição da artista) Fotografia pinhole em positivo 9,5 x 17,5 cm / 1990

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Carnaval Fotografias pinhole em positivo 8 x 5,5 cm (cada) / Sem data Fotografia pinhole em negativo 16 x 23,5 cm / Sem data

Sem tĂ­tulo Fachada da residĂŞncia da artista, Santa Teresa, Rio de Janeiro. Fotografia pinhole em negativo 15,5 x 12 cm / Sem data

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Parque Lage Fotografias pinhole em negativo e positivo 8 x 15 cm / Sem data

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Parque Lage Fotografia pinhole em negativo 16 x 24 cm / Sem data

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Sem título Fotografia pinhole em negativo 16 x 23,5 cm / Sem data

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Fotografia com câmara estereoscópica realizada na Vista Alegre, Santa Teresa (descrição da artista) Fotografia pinhole em negativo e positivo 8,5 x 24 cm (cada) / 1981​

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E s p e r a Paula Biazus e Rafael Johann

Fotografar como forma de falar de si, de narrar, de contar uma história, de saber de vidas. Assim como a crença do poeta Mario Quintana, “(...) eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão (...)”*, essas fotografias são a confissão de uma espera, de um amor, de uma vida. Quantas surpresas podemos ter em uma espera, em uma fotografia, em uma vida! Em tempos de imagens digitais, uma fotografia que também exige uma espera de outro tempo se apresenta. Fotografias construídas a partir de uma lata transformada em câmera, imagens que se moldam artesanalmente pelo aparato fotográfico, através do buraco de agulha. E essas imagens exigem uma espera para que se faça, para que se narre, para que se viva, e também trazem uma expectativa, uma emoção, um transcorrer do tempo. Traz a imagem onírica que nos lembra da esperança de viver mesmo que nada aconteça como esperamos. Prova de uma vida, prova de amor! Somente essas imagens permanecem.

* Quintana, Mario. Da preguiça como método de trabalho. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

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É

A Câmera Escura na Fotografia Brasileira Contemporânea Antonio Fatorelli e Victa de Carvalho

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expressiva a presença de trabalhos que retomam o dispositivo da câmera escura na produção fotográfica brasileira mais recente. A utilização de câmeras pinhole, a projeção de imagens em caixas pretas ou mesmo a instalação de câmeras escuras em museus e galerias de arte vêm se tornando práticas recorrentes para diversos artistas como Dirceu Maués, Ana Angélica, Paula Trope, Alexandre Sequeira, entre outros. Cabe indagar como a recuperação deste dispositivo pode contribuir para um pensamento sobre a fotografia na contemporaneidade. Que questões históricas, visuais e subjetivas estão em jogo quando a câmera escura volta à cena como grande produtora de diferença no contexto da fotografia digital? Trata-se de um desejo de nostalgia ou de uma releitura? Estamos diante da sobrevivência do código naturalista nos dias de hoje ou, no extremo oposto, vivenciando a implementação do modelo abstrato anunciado pelos entusiastas da cultura digital? O desdobramento dessas questões demanda uma reflexão inicial sobre o que singulariza a fotografia contemporânea. Para isso, é preciso, em um primeiro momento, retomar o contexto do surgimento das teorias que apostaram na novidade dos processos digitais como instauradores do paradigma atual, de modo a considerar como as tecnologias digitais redimensionam e ao mesmo tempo problematizam a teoria e a prática fotográfica na atualidade. Em um segundo momento, será preciso questionar a própria história da fotografia moderna e as teorias amplamente difundidas ao longo do século XX, com o intuito de discutir a suposta continuidade entre o modelo da câmera escura e a fotografia. Referimo-nos, particularmente, à necessidade de uma revisão das narrativas frequentemente disseminadas nos livros de história da fotografia que condicionam, a partir de uma compreensão bastante específica do modelo da câmera escura, a criação de uma subjetividade e de uma visualidade fotográfica moderna ao formato hegemônico da fotografia pura e direta.

Nosso propósito inicial é o de atualizar o debate em torno da retomada da câmera escura na fotografia brasileira contemporânea a partir das considerações de Jonathan Crary sobre a descontinuidade entre o modelo da câmera escura e o surgimento da fotografia. Importa, neste particular, observar que a produção fotográfica moderna não se confunde com as idealizações normativas de um sujeito fotográfico descorporificado e de uma imagem transparente do mundo, como preconizado nas principais teorias da fotografia. De modo radicalmente distinto, consideramos que o corpo desempenha um papel decisivo, tanto nas experiências fotográficas modernas, quanto nas experiências fotográficas contemporâneas. Uma vez revisadas essas teorias e práticas, talvez seja possível recontar a história da fotografia sem incorrer nos mitos binários – realismo e experimentação – definidores de uma lógica de ruptura que marcou a revolução visual modernista. Se, hoje, a fotografia revisita a sua história e as suas técnicas não é, sem dúvida, para reafirmar o discurso oitocentista da transparência da câmera escura, nem para transgredir os modelos estéticos inaugurados pela fotografia modernista, mas para confrontar e fazer resistência aos novos discursos da cultura digital que, mais uma vez, ancoram suas teorias nos pressupostos da ruptura e da descorporificação. Se a modernidade inaugurou os híbridos como construções marginais de um projeto normativo, a contemporaneidade, lugar por excelência dos híbridos no contexto da cultura digital, tem a chance de revogar essa segmentação entre imagens puras e impuras. A câmera escura configura-se, nessa perspectiva, como um dispositivo privilegiado, capaz de problematizar a fotografia desde o seu advento.

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Fotografia contemporânea e cultura digital Surpreende observar a maneira pela qual as transformações processadas atualmente no interior da prática fotográfica deslocam a natureza e o destino das imagens, ao mesmo tempo que reordenam os modos pelos quais acessamos os formatos históricos de produção imagética. É o conjunto da prática fotográfica que se encontra redimensionado pelo olhar atual, desde as experimentações com os suportes materiais, predominante no período anterior à estandardização generalizada dos procedimentos e dos equipamentos fotográficos – com destaque para as práticas intervencionistas que singularizaram os pictorialistas no século XIX –, e as experimentações com a fotografia das vanguardas históricas. Nessas conjunturas anteriores, as intervenções manuais, as duplas exposições e o diálogo com outras formas de expressão – como o teatro, as artes plásticas e o cinema –, o jogo ambíguo com a intertextualidade e as práticas híbridas, guardavam um sentido de confrontação, por semelhança ou por disparidade. Não obstante, após a consolidação da estética pura e direta defendida pela agenda modernista, e segundo uma outra lógica, a atual recorrência aos procedimentos intervencionistas e às práticas miscigenadas dialogam diretamente com as propriedades do digital, seja pelo modo como o código numérico uniformiza os diferentes formatos imagéticos, seja pela persistência de um sentimento de retomada do passado, motivado pela irremediável distância histórica daqueles que foram os balizadores da produção imagética analógica. As recentes recorrências aos processos históricos de impressão, a disseminação da Lomografia, a retomada da fotografia pinhole, a construção de câmeras escuras, a celebração de formatos supostamente inocentes ou aparentemente espontâneos, outrora imunes aos artifícios e às manipulações tecnológicas, como, por outro lado, a disseminação

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de uma prática fotográfica compulsiva, em que a distância temporal entre a criação, a edição e a circulação da imagem é cada vez mais compacta, são alguns dos sintomas da condição contemporânea da imagem. De diferentes maneiras, mobilizando estratégias diversas de assimilação, de dissimulação ou de afastamento explícito relativamente ao cânone moderno, essas práticas recentes colocam em questão os lugares tradicionalmente ocupados pela fotografia, tanto do ponto de vista dos pressupostos internos ao meio, quanto nas relações que estabelece com os territórios da arte, do cinema, da literatura e do teatro. Com efeito, a disseminação da cultura digital afeta o conjunto da produção cultural contemporânea, redimensionando os papéis historicamente atribuídos a cada forma de expressão, ao mesmo tempo que reconfigura os territórios próprios e as zonas de sobreposição entre as diferentes linguagens. Lev Manovich (1996) percebeu esse momento de transição entre a cultura analógica e a cultura digital desde o ponto de vista de uma lógica paradoxal, uma condição na qual o digital produz uma dinâmica de assimilação de algumas das propriedades da codificação analógica, ao mesmo tempo em que instaura, simultaneamente, uma outra lógica, fundamentada nas suas singularidades processuais. Por um lado, o digital incorpora, emula e mimetiza o modo tradicional de codificação das imagens herdado da perspectiva, reproduzindo algumas das figuras clássicas da representação visual, em especial o realismo e o ilusionismo das imagens tecnológicas figurativas criadas por projeção. Por sua vez, e de modo radicalmente distinto, a imagem digital engendra as suas próprias condições de existência, dependendo unicamente de operações algorítmicas, por meio de procedimentos de modelização ou de simulação. No primeiro movimento, o digital assimila o analógico, de modo a incorporar, de forma negociada, os valores historicamente associados às imagens de natureza fotoquímica. Na outra dinâmica, propriamente inaugural, o digital exibe a sua face singular, entrevendo outras relações entre a imagem e o mundo visível, entre a imagem e o observador e entre as próprias imagens. É a partir

desse duplo desígnio da produção imagética digital contemporânea, do ponto de vista dessa persistente lógica paradoxal, instituída entre o compromisso com as formas históricas e a irrupção de uma nova entidade, que buscaremos enfrentar os desafios colocados pelas recentes práticas fotográficas artesanais. As tecnologias da figuração automática, que contaram com a fotografia como o seu primeiro protótipo, materializaram a promessa de uma analogia mecânica entre imagem e mundo, uma analogia de natureza perceptiva, fundamentada na possibilidade da imagem reproduzir algumas das propriedades ópticas recorrentes na visão ordinária dos objetos e estados do mundo. Um conjunto de normas de codificação, que pressupõe a existência de um estado natural anterior do mundo, sobre o qual a imagem vem se acrescentar na condição de imagem motivada, necessariamente depende dos existenciais materiais prévios. Esse modo constitutivo pressupõe uma dimensão fenomenológica, na qual encontram-se confrontados o mundo exterior e o fotógrafo munido dos seus mediadores técnicos. Tal precedência do mundo objetivo não inibiu o surgimento, em diferentes circunstâncias, da fotografia ficcional, mas indica que a ocorrência do ficcional delineia-se na dependência da presença de um referente. De fato, a fotografia não se furtou a representar o universo onírico, as fantasias do autor, ou a dimensão invisível da realidade, e constituem provas dessas proposições diferentes iniciativas e agendas presentes desde o seu advento, do primeiro tableux em que Hippolyte Bayard simulou a própria morte por afogamento como, também, a fotografia espiritual, extensamente difundida no século XIX. Uma genealogia que inclui a iconografia pictorialista, a fotografia realista de Oscar Rejlander e seus seguidores, além das montagens fotográficas, das sobreposições e dos deslocamentos de pontos de vista recorrentes nos trabalhos das vanguardas históricas. Uma iconografia de tal forma extensa que inclui, além desses movimentos deliberadamente concernentes aos jogos de linguagem, o próprio movimento purista vanguardeado por Alfred Stieglitz, edificado sob o signo da noção de inefável, que encontrou nos ensaios de nuvens do

próprio Stieglitz e nas abstrações de Edward Weston os seus primeiros contornos. Tais tendências e movimentos marcantes na história da fotografia não abdicaram dos objetos e fenômenos do mundo, nem tampouco renunciaram às instâncias fenomenológicas da experiência. Pelo contrário, extraíram dessas relações existenciais o suplemento das suas imagens, seus enigmas e suas potências. Com efeito, a incidência dessas estratégias visuais de natureza ficcional, onírica, fabular, espiritual ou visionária é de tal ordem na história da fotografia criativa que chegam a destacar-se como o ponto de inflexão sobre o qual gravitam esses projetos visuais. No interior desses agenciamentos, a analogia visual produzida pela imagem fotográfica tem o sentido preciso de apontar para uma condição do mundo e, ao mesmo tempo, marcar uma defasagem relativamente a qualquer instância anterior à imagem, em uma dinâmica particular, inaugurada pelas imagens mecânicas de captura automática, que a diferenciam das tradicionais retomadas e referências realistas reivindicadas pelas formas visuais artesanais. O encantamento singular despertado pela fotografia advém dessa dinâmica que coloca em circulação os signos da analogia, confrontando o pôr-se em causa da percepção visual, os existenciais materiais e as imagens fotográficas elas mesmas. As tentativas, no campo teórico, de dar conta desse particular fascínio provocado pela imagem fotográfica parecem destinadas ao fracasso relativo. Talvez em decorrência da própria irredutibilidade da imagem, já antevista e inscrita no espírito da antiga formulação modernista do inefável, uma noção que aponta para o estado ou a qualidade do visual que não se deixa representar, para a instância propriamente irrepresentável da arte, destinada, por definição, a furtar-se às estratégias de controle do pensamento dog-

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mático, essencialmente reativo. A imagem é sempre um outro, resultado de um deslocamento constitutivo, inerente ao seu processo de criação, irredutível à condição de cópia de uma realidade preexistente, ou de duplicata da experiência da visão. Mas o que propriamente se torna problema e se coloca como desafio é a percepção do modo peculiar pelo qual a imagem fotográfica difere do objeto e da imagem percebida, mantendo algumas das suas propriedades e ao mesmo tempo constituindo-se como imagem original, apontando para as múltiplas dobras do visível, ou para o mundo invisível presente além ou aquém do visível. Essa dupla condição de aderência e de diferenciação distingue a operação de representação instaurada pela fotografia daquelas proporcionadas por outras formas de expressão visual, como a pintura, o desenho, a caricatura ou a imagem de síntese. Nessa direção, pressupondo que a materialidade da mídia comporta diferenciações no modo de existência das imagens e dos seus potenciais de mobilização sensorial, importa perceber, de modo pontual e peculiar, as modulações dessas variáveis no caso específico da fotografia. Uma problemática particularmente relevante nesse momento marcado pelas migrações das imagens. Em todas as pontas desse vasto território de espelhamentos e de opacidades, prevalecem regimes de verdade, fundados em discursos, convenções culturais e projeções de natureza subjetiva. A proposição utópica, que acompanhou parte significativa da produção fotográfica desde o seu advento, incide sobre a demanda de verdade das fotografias, em especial da produção fotográfica documental e fotojornalística, fortemente fundamentadas na suposição de que representam o mundo de modo automático, não mediado e imparcial. Uma utopia que parece definitivamente superada nesse momento de transição, uma vez estabelecidos os distanciamentos históricos e conceituais que possibilitaram relativizar essas antigas crenças. Uma perspectiva crítica facultada, em boa medida, pela natureza do

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código digital, artificial e manifestamente construído. Porém, uma vez reveladas as inconsistências das demandas de verdade e de autenticidade da fotografia analógica, agora universalmente reconhecida pelos seus tradicionais apologistas, vemos surgir, ao que parece de modo substitutivo, uma nova utopia envolvendo a produção imagética digital. A alegação de que o código digital implica em uma ruptura radical com o código e com a cultura analógicas sustenta-se no argumento da singularidade material e infraestrutural da codificação numérica, na suposição de que o digital institui-se segundo o princípio autoconstitutivo, dispensando as relações projetivas que historicamente estabeleceram os liames entre as imagens fotoquímicas e os objetos e fenômenos do mundo. Uma nova utopia que se projeta sobre o universo das imagens e da cultura digital, desdobrando o antigo mito verista em uma renovada utopia, agora fundamentada na ideia de emancipação das propriedades sensoriais da experiência. Segundo esse paradigma, a imagem numérica, constituída por fluxos informacionais, simulada ou modelizada, apresenta-se definitivamente liberta das contingências de um estar no mundo, corpo entre outros corpos, justamente os balizadores que presidiram a produção imagética analógica. E, desse modo, finalmente emancipada dos vínculos indiciais que ligavam a imagem a uma experiência no mundo, sobre os quais se fundamentaram as antigas utopias realistas. É por isso que essa nova quimera institui – e de modo a inibir, uma vez mais, o enfrentamento com a imagem-foto na sua singularidade – o mito da emancipação, segundo o qual estaria facultado ao fotógrafo digital, finalmente, compartilhar a liberdade criativa experimentada pelo pintor abstrato. Curiosa emancipação, surgida no momento preciso em que a simulação eletrônica desloca as antigas formas de simulação subsidiadas unicamente pela imaginação. Em consideração à dinâmica entre a percepção visual, os existenciais materiais e as imagens que singulariza a prática fotográfica, essas duas formulações utópicas impõem-se pelo critério da

exclusão. Na primeira versão, pela reiterada omissão dos determinantes tecnológicos e simbólicos responsáveis pela mediação entre as aparências do mundo e a imagem; na segunda versão, pela supressão dos próprios existenciais materiais, pressupondo o estabelecimento de uma relação direta entre a imagem mental e a imagem fotográfica. Pode-se depreender, de modo cruzado, uma lógica complementar perpassando essas duas utopias, cada uma incidindo sobre o ponto cego, impossível de ser apreendido pela outra. De certo, a imagem fotográfica não pode ser concebida como cópia ou duplicação do referente, ao mesmo tempo que não se confunde com a imagem mental. Ou, manifesto de outro modo, as fotografias não nos confrontam diretamente com a realidade do mundo, com os outros objetos e formas materiais, nem tampouco com a realidade psíquica ou imaginária do autor. Podem, e o fazem habitualmente, reportar a uma e a outra, entretanto de modo mediado, uma vez contemplados os termos elididos pelas formulações utópicas. Cumpre observar, igualmente, que a simulação informática não cancela a relação entre a imagem e o objeto. Antes, e de modo inverso, ela expande esses termos relacionais, agora não mais instituídos em relação à “conformação física do objeto” mas aos seus “parâmetros funcionais” (Weissberg, 119). Essa dinâmica peculiar de virtualização facultada pela simulação informática proporciona a visualização de certas propriedades internas do objeto, indiferentes à sua aparência, ainda que diferentes procedimentos de modelização tendam a restituir, por fim, a sua face visualmente reconhecível. Mas importa destacar, na operação de virtualização numérica, a manutenção e mesmo a intensificação dos nexos entre a imagem e o objeto, em total desacordo com as proposições emancipatórias. Cabe indagar-se, no caso particular da representação fotográfica, sobre os laços de dependência entre imagem e mundo. Muitos fotógrafos criaram suas imagens no quarto escuro do laboratório fotográfico, explorando a natureza química do pro-

cesso analógico, distantes das ruas e das relações mundanas. Foi o caso de Man Ray, László Moholy-Nagy e Christian Schad, que exploraram as possibilidades do fotograma, ou ainda, recentemente, dos quimiogramas realizados por Pierre Cordier, ou pelas séries Recriação e Derivação, realizadas por José Oiticica Filho nos anos 1950. Contudo, apesar de significativas no âmbito da linguagem fotográfica, essas experiências não se confundem com a fotografia, e podemos dizer que o nosso investimento habitual na imagem fotoquímica seria de natureza bem diversa se conhecêssemos apenas esse repertório de imagens criadas exclusivamente a partir de procedimentos químicos laboratoriais. Convém igualmente, e de modo complementar, circunscrever a maneira pela qual as imagens fotográficas são normalmente submetidas aos procedimentos de manipulação. Uma proposição especialmente relevante, uma vez considerado o papel crucial desempenhado pela analogia visual no modo singular de sedução e de engajamento produzido pela fotografia. Precisamente, a condição de apontar para um estado do mundo segundo os critérios da analogia perceptiva. Não obstante, ao invés de apresentar-se como cópia ou duplicata, a imagem fotográfica exibe uma defasagem relativamente às instâncias anteriores. Num certo sentido, ela institui-se segundo os seus próprios procedimentos técnicos, afirmando sua independência com relação a qualquer condição precedente ou exterior à sua criação e, nesse particular, podemos afirmar que a imagem instaura a sua própria realidade e afigura-se de modo autônomo. O fascínio exercido pela imagem fotográfica reside nesse lugar negociado entre a criação autônoma e a duplicação literal, sem jamais coincidir com esses dois termos extremos. Importa, portanto, considerar o território intermediário, de inúmeras nuanças e gradações, situado entre a abstração metafórica e a reprodução literal. Nossa convicção é a de que a fotografia analógica e a

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fotografia digital compartilham, igualmente, essa condição negociada, uma premissa que concebe o papel desempenhado pela fotografia digital em linha de continuidade com a fotografia tradicional. Comenta-se, frequentemente, as possibilidades proporcionadas pelo tratamento digital da imagem, ressaltando a facilidade e a instantaneidade obtidas pela intervenção nos elementos mínimos constitutivos da imagem, novos recursos que, indubitavelmente, tornaram os procedimentos de manipulação mais simples e ágeis. Todavia, deve-se acrescentar a esse argumento, a particularidade de que as intenções e o projeto estético que orientam tais manipulações encontram-se normalmente circunscritos a esse território de negociação, delimitado entre a aspiração de autonomia da imagem e a sua potência analógica. Após indagar se o digital aspira à condição da pintura, Tom Gunning chama a atenção, em um artigo seminal, para o fato de que os usuários do Photoshop pretendem transformar, muito mais do que criar, uma imagem. Sugerindo, nesse sentido, que “o poder da maioria das manipulações digitais de fotografias depende do nosso reconhecimento delas como ‘fotografias manipuladas’, da nossa consciência das camadas indexicais (ou, talvez melhor, do visualmente reconhecível) por detrás das manipulações” (Gunning, 2012: 8). Admitimos, portanto, a existência de um modo singular de sedução da imagem fotográfica, analógica ou digital, sustentado por relações mediadas entre a percepção visual, os objetos e fenômenos do mundo e a própria imagem. Decerto, a analogia desempenha um papel decisivo no interior dessa dinâmica de complementariedades e de afastamentos recíprocos entre a percepção, o mundo e a imagem, delimitando um amplo campo de possibilidades estéticas. O emprego dos procedimentos notadamente artesanais mobilizados pelas práticas pinhole e pelas câmeras escuras inserem-se, no atual contexto de suposta autonomia da imagem e de aparente pulverização dos suportes materiais, de modo pontual, marcando a inevitabilidade das relações presenciais e corpóreas engendradas pela fotografia desde o seu advento. Ao modo de um contraponto, essas práticas destacam e reforçam a natureza negociada da imagem fotográfica.

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O dispositivo da câmera escura revisitado A retomada do dispositivo da câmera escura nos trabalhos fotográficos mais recentes implica tanto na reabertura de um diálogo direto com a visualidade e a subjetividade modernas, tal qual consideradas no contexto do nascimento da fotografia, quanto na reavaliação das teorias que se propõem a anunciar as especificidades da cultura digital. Se essa retomada do dispositivo da câmera escura é hoje parte substancial das proposições fotográficas contemporâneas, ela não se confunde, em nenhuma circunstância, com a ratificação dos modelos de transparência e de transcendência caros à filosofia renascentista. Tampouco, essa reutilização do dispositivo confirma as hipóteses de abstração e de descorporificação da imagem e do observador, como frequentemente advogadas pelos entusiastas da cultura digital. Cumpre, de outro modo, perceber o emprego da câmera escura na fotografia contemporânea como um momento privilegiado onde se verifica, na atualidade, um debate decisivo sobre a imagem, o corpo e a tecnologia. É notório que as propostas imagéticas atuais estabeleçam uma forte relação com as tecnologias. No entanto, reafirmamos a importância de um exame crítico dos papéis desempenhados por essas mediações, sob o risco de entendermos tanto a modernidade quanto a contemporaneidade unicamente a partir das determinações tecnológicas, de natureza analógica ou digital. É preciso considerar que as condições de formação do observador moderno e do observador contemporâneo encontram-se atravessadas por questões científicas e filosóficas, que colocam na ordem do dia a reflexão sobre a visualidade e a subjetividade. Até o século XIX, acreditava-se que o modelo de visão humana era análogo e dotado dos mesmos pressupostos atribuídos à câmera escura, exemplarmente considerada como o dispositivo imagéti-

co que definia a posição interiorizada e descorporificada do observador em relação ao mundo exterior. Esse modelo clássico de subjetividade encontrou na câmera escura uma metáfora para a constituição de um sujeito racional, que atribui ao conhecimento o privilégio da verdade. A modernidade, por sua vez, caracteriza-se pela afirmação do corpo como instrumento essencial para a compreensão da realidade, em flagrante ruptura com o antigo modelo de visão racional e estática, tipificado pela câmera escura. Para Jonathan Crary, o dispositivo da câmera escura deixa de ser o dispositivo modelo, que representa uma subjetividade e uma visualidade clássicas – natural, imparcial, descorporificada, verdadeira –, para desenhar, na modernidade, o papel de um dispositivo de opacidade, que obscurece a visão verdadeira do mundo. “Nos textos de Marx, Bergson e Freud, entre outros, o dispositivo que um século antes havia sido considerado o lugar da verdade torna-se um modelo para procedimentos e forças que ocultam, invertem e obscurecem essa mesma verdade” (Crary, 2012: 35-36). Observa-se, desse modo, que o mesmo dispositivo pode desempenhar diferentes papéis em vista das singularidades de cada episteme. A ruptura promovida pelo que se denominou “modernização da percepção” (Crary, 2012), sob o fundo das substanciais transformações processadas no âmbito social, científico e filosófico, terminou por constituir um novo sujeito observador, caracterizado pela incerteza, singularmente capacitado para o múltiplo e para a percepção do movimento. Ao libertar a câmera escura da lógica evolutiva condicionada pelo determinismo tecnológico, Jonathan Crary liberta também a fotografia do risco de ser compreendida de modo dogmático, como uma tecnologia inalterável, irremediavelmente associada às funções objetivas inicialmente desempenhadas, na época clássica, pelo seu dispositivo. Para o autor, a fotografia moderna insere-se em uma outra lógica de representação e de observação – absolutamente diferente daquela disseminada pelo mo-

delo da câmera escura oitocentista –, em que são decisivas as diferenciações entre as condições de percepção e cognição do observador e o modo de funcionamento do aparelho, como também os novos circuitos de difusão das imagens. A câmera escura apresenta-se, na atualidade, como uma tecnologia imagética enraizada de tal modo na presença corporal, nas formações híbridas e no tempo multivetorial que é capaz de promover a revisão das convicções habitualmente associadas à fotografia, no duplo sentido de subverter o modo como a câmera escura foi mobilizada no século XVIII e de problematizar um discurso corrente sobre a cultura digital, fundamentado na pulverização dos suportes físicos da imagem e na perda da experiência corporal. Portanto, como um dispositivo anacrônico, capaz de desempenhar funções variáveis em diferentes conjunturas, que coloca simultaneamente em perspectiva os regimes pré e pós-fotográficos. Ao reforçar as relações entre a imagem e o mundo, os procedimentos da câmera escura confrontam-se abertamente com a intenção de transparência, preponderante no regime clássico, ao mesmo tempo que se distanciam das concepções de natureza abstrata, frequentemente associadas às tecnologias digitais. De modo radicalmente diverso, a confirmação do vínculo indicial, sancionada pela câmera escura, designa uma modalidade de experiência estética processada na presença dos objetos e fenômenos do mundo, em vista de um observador mais plástico e maleável, e de um corpo produtor de diferenças, decisivamente implicado no processo de produção da imagem.

Referências AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. CRARY, J. Técnicas do observador. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. GUNNING, Tom. Qual a intenção de um índice? Ou, falsificando fotografias. Em Revista ECO-PÓS, v. 15, n. 1, 2012. MANOVICH, Lev. The paradoxes of digital photography. In: Photography after photography: memory and representation in the digital age. Amsterdam: Overseas Publishers, 1996. WEISSBERG, Jean-Louis. Real e virtual. In: PARENTE, André (org.). Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

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Câmera-Luz Paula Trope

Minhas câmeras e eu e Câmera na Rua, 1993 Série Câmeras na Rua, 1993 Fotografia com câmera de orifício Impressão digital Díptico, 130 x 101 cm e 48 x 60 cm

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ver e brincar, mirar e se admirar

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ma sensação de surpresa, um sutil maravilhamento com o aparecer e o desdobrar das imagens se faz presente de forma marcante na experiência da Câmera-Luz. Esse singelo movimento de admirar-se diante das imagens que surgem no interior da câmara escura construída por Paula Trope parece trazer consigo uma indagação sobre o que vemos e, de forma mais ampla, sobre o que constitui o ato de ver. É conhecido, há pelo menos 2000 anos, o fato de que a luz, quando passa através de uma pequena abertura para dentro de um espaço escuro, projeta ali uma imagem invertida do ambiente externo. Mas é nos séculos XVII e XVIII, na Europa, que a câmara escura – enquanto artefato técnico construído com o objetivo de produzir este efeito – torna-se amplamente difundida, estando então ligada tanto a práticas científicas e artísticas como a formas de diversão popular. (1) Um primeiro questionamento que pode surgir diante da instalação de Paula Trope é se, em meio à multiplicidade de imagens que nos rodeiam e às tantas formas de visualizá-las e de interagir com elas (dos celulares aos simuladores, jogos imersivos etc.), podemos ainda nos surpreender com imagens produzidas através de uma técnica tão antiga. Isso não apenas parece possível, como talvez o intervalo temporal que nos separa da câmara escura seja, na realidade, aquilo que a torna capaz de produzir uma diferença, de causar um estranhamento entre nós. Mas seria um tanto ingênuo supor que esta diferença deriva unicamente das qualidades técnicas do aparelho, independente dos processos artísticos a que este se encontra vinculado. Ao colocar a questão “o que significa ser contemporâneo?”, o filósofo Giorgio Agamben traz algumas considerações que podem nos ajudar a pensar o modo como esse anacronismo da câmara escura entra na composição da Câmera-Luz. De

saída, Agamben rejeita a visão do senso comum segundo a qual “contemporâneo” é aquele que se encontra plenamente inserido em sua época. Seguindo a trilha de Nietzsche, o autor propõe que ser contemporâneo envolve sempre um certo grau de dissociação em relação ao próprio tempo, que torna justamente possível apreendê-lo com alguma distância. Isso não significa, no entanto, assumir a atitude nostálgica de alguém que se aparta do presente para refugiar-se imaginariamente em um outro tempo. A “contemporaneidade” é “uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias (...)” (2). Nesse sentido, não é meramente por pertencer a outro período histórico que uma câmara escura ou qualquer outro objeto técnico será capaz de trazer questões que nos façam repensar o presente. Se a Câmera-Luz interroga a nossa experiência sensível é porque nela, a câmara escura, em seu anacronismo, encontra-se impregnada por operações artísticas que a vinculam à condição contemporânea. A proposta da Câmera-Luz dialoga com todo um campo de pesquisas artísticas contemporâneas que se apropriam de artefatos arcaicos, tais como a câmara escura ou a Tavolleta de Bruneleschi, intervindo sobre a sua estrutura, alterando-os ou cruzando-os com tecnologias atuais. (3) Nessas pesquisas, os processos técnicos se misturam a questões de diversas esferas (estética, política, subjetiva etc.) para produzir dispositivos que atuam diretamente sobre as condições da percepção, suscitando variações na experiência sensível. (4) Anne Marie Duguet observa que parte dessa produção consiste em instalações que expõem “o próprio processo de produção da imagem”, fazendo “ver de outra maneira” ou “ver o ver”. (5) A experimentação com as tecnologias tem um papel importante no percurso artístico de Paula Trope e se desenvolve tanto através de um processo de desmontagem e alteração de aparelhos convencionais de fotografia, cinema e vídeo, como pela construção

Câmera-Bobina, MAM-RJ, 2010 Joana Csekö, Pat Kilgore, Cristiana Miranda e as filhas Maíra e Alice no interior da Câmera-Bobina. Série Câmera-Luz, 2010 (em processo) Câmera-escura móvel Estrutura de madeira, revestimento de madeira, MDF e pintura 3 m de altura, 3 m de diâmetro Fotografia de documentação de Paula Trope

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de câmeras artesanais de diferentes dimensões e formatos. E toda essa investigação encontra-se estreitamente ligada a uma necessidade de questionar a condição estética e política das imagens. No projeto Câmera-Luz, assim como em outros trabalhos da artista, tais como as séries Estado de Exceção (1994) e Miragens (1994-1996), a pesquisa se volta para a paisagem e envolve um desejo de expandir o olhar e as fronteiras do visível. Nas fotografias da série Miragens, por exemplo, produzidas com uma câmera de orifício, nos deparamos com paisagens marinhas que parecem romper os limites do quadro, ampliando-se em todas as direções. Em Câmera-Luz, (6) observamos uma paisagem de dentro de uma grande câmara escura (2,80m de altura por 3m de diâmetro) de formato cilíndrico, semelhante ao das câmeras pinhole feitas com latas, utilizadas pela artista em diversos trabalhos. A paisagem surge invertida, em três diferentes visões que, juntas, recobrem os seus 360º. As vistas são produzidas a partir dos três orifícios existentes na câmera, cada um deles dispondo de três níveis distintos de abertura para a entrada da luz. Como cada imagem ocupa aproximadamente 160º, se dois ou três dos orifícios são abertos ao mesmo tempo, ocorrem zonas de sobreposição. Toda a experiência com a instalação supõe uma atividade por parte do observador, que precisa efetivamente abrir os orifícios e definir os níveis de luminosidade para que as imagens apareçam. Embora o trabalho possibilite um estreito contato com os mecanismos de uma câmara escura, a sua proposta não se reduz a uma simples demonstração do funcionamento deste objeto técnico. A experiência da Câmera-Luz concerne muito mais àquilo que Anne Marie Duguet nomeou como “ver diferente” ou “ver o ver”, possibilidades que, na instalação, envolvem uma sensação de surpresa com as imagens. Em alguma medida, essa sensação está, certamente, ligada ao fato de que o aparecer das imagens se dá através de um mecanismo simples e

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antigo. Não é raro ver crianças e também adultos levantando hipóteses sobre o tipo de equipamento usado para captar e transmitir as imagens, até descobrirem, com espanto, o princípio de funcionamento da câmera. Mas é principalmente em meio a toda a proposta de experimentação aberta pelo trabalho que esse fascínio com as imagens tem lugar. A interação com o trabalho se faz por um movimento exploratório, como uma brincadeira com as imagens, que podem aparecer individualmente ou mescladas às outras (dependendo do número de orifícios abertos), e podem ser mais ou menos nítidas (dependendo do grau de abertura escolhido). Essa brincadeira envolve ainda uma experiência com o corpo – mover-se entre as imagens, misturar-se a elas. Em outros projetos de Paula Trope, essa dimensão lúdica tem lugar no momento de realização dos trabalhos. É o caso das séries Os Meninos (19931994) e Sem Simpatia – Os Meninos do Morrinho (2004-2005), nas quais o processo de produção das imagens envolve uma espécie de jogo entre a artista e as crianças e jovens fotografados, que desloca os papéis tradicionalmente atribuídos ao fotógrafo e ao retratado. Na Câmera-Luz, o jogo se dá na relação do observador com o trabalho e acontece como um processo de contínuo tateamento. A surpresa com o aparecer das imagens surge como parte dessa experimentação com a câmera. Não se trata, assim, de uma admiração como aquela que se tem em relação a algo distante ou inacessível. A magia que envolve as imagens é aquela que emerge em meio ao que nos é próximo, em meio a uma brincadeira com a qual estamos envolvidos. E essa mágica não diz respeito apenas ao que se vê, mas também ao próprio ato de ver, que foi tomado por uma sensação de descoberta, por uma perplexidade. Tendo em vista o papel decisivo desempenhado pela câmara escura para o pensamento sobre a percepção visual em outras épocas, é importante di-

ferenciar esse movimento de lançar um olhar sobre o ato de ver que encontramos na instalação daquilo que já representou a câmara escura em outros momentos, sobretudo no período clássico. (7) A câmara escura teve um papel tão decisivo para diversas concepções filosóficas e científicas dominantes entre o final do século XVI e o final do século XVIII, que o historiador Jonathan Crary considerou este conjunto de teorias como parte de uma mesma perspectiva, denominada como “modelo da câmara escura”. (8) O modo como este modelo concebia o processo da visão supunha uma nítida separação entre sujeito e mundo exterior. Tal como uma câmara escura é capaz de produzir num espaço apartado do mundo uma imagem que lhe corresponde, o sujeito seria também capaz de uma percepção isolada e individualizada, mas, ao mesmo tempo, em conformidade com o mundo físico. E embora sendo uma experiência individual, a percepção era compreendida, segundo essa perspectiva, como uma operação desvinculada dos processos corporais. (9) A distância temporal que separa a câmara escura clássica da instalação de Paula Trope e os diferentes contextos socioculturais aos quais estas se ligam, por si só, já as colocam como dispositivos claramente distintos. Mas levantar algumas diferenças entre essas duas experiências pode nos ajudar a pôr em evidência alguns aspectos importantes da Câmera-Luz. (10) Tanto por sua constituição material como no que se refere ao seu funcionamento, a Câmera-Luz se opõe à noção de uma percepção verdadeira e objetiva do mundo que, na câmara escura clássica, estava associada à existência de um ponto de vista único e fixo. A instalação não apenas inclui pontos de vista diversos, que podem ser inclusive mesclados, como também, por seu formato circular, inviabiliza a demarcação precisa de um plano de projeção. A cor branca que recobre todo o espaço amplia ainda mais essa indefinição do plano de projeção, favorecendo a expansão das imagens em todas as direções, incluindo o chão e o teto. O próprio movimento

do observador, sugerido pelo trabalho, supõe pontos de vista múltiplos e moventes. Essa questão do movimento nos coloca diante de outro aspecto importante pelo qual a Câmera-Luz se diferencia radicalmente da câmara escura clássica – o papel do corpo na percepção. Circular entre as imagens, fazendo do corpo uma superfície de projeção, e intervir diretamente no funcionamento da câmera são aspectos intrínsecos à experiência do trabalho. Assim, quando dizemos que a instalação traz uma possibilidade de pensar, de pôr em questão o ato de ver, não é no sentido de retirar do trabalho uma metáfora da visão, como se deu na época clássica com a câmara escura. É na experiência com a Câmera-Luz, e não através de uma representação a que teríamos acesso por meio dela, que a visão se abre como um campo de investigação. Por fim, um último ponto a destacar diz respeito à relação entre dentro e fora, entre o mundo e a sua imagem projetada na câmera. O que está em jogo na Câmera-Luz não é a perfeita correspondência entre imagem e exterior que na câmara escura clássica era tomada como indicação de uma conformidade entre o observador e os objetos do mundo, entre a percepção e as leis físicas. Uma série de decisões do trabalho, tais como o formato circular, os múltiplos orifícios e o uso da cor branca, indicam claramente que a reprodução fidedigna da paisagem externa não foi um objetivo perseguido. A instalação propõe, certamente, um diálogo com o ambiente externo. A Câmera-Luz é uma máquina de ver. Mas a paisagem que experimentamos na instalação tem uma densidade distinta daquela que vimos logo antes de entrar na câmera. A paisagem surge invertida e projetada sobre um espaço curvo, que lhe imprime um movimento de expansão. E, ao passarmos da visão de fora à de dentro da Câmera-Luz, há, ainda, uma alteração na experiência temporal. Entrar num espaço escuro, “silenciar” o olhar, acostumar-se à situação de pouca luminosidade para, então, vislumbrar uma imagem invertida do que

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está lá fora – tudo isso envolve uma desaceleração, um ritmo temporal mais calmo, que destoa do tempo do acontecer instantâneo e simultâneo, tão próprio à condição contemporânea e às diversas tecnologias atuais de produção e difusão de imagens. Mas o aspecto que nos parece mais importante nesse outro olhar sobre a paisagem lançado pelo trabalho é o fato de que esta se faz ver junto com o aparecer das imagens e como parte de uma relação lúdica com elas. Observar a paisagem é, ao mesmo tempo, ver surgirem as imagens, brincar com elas, misturá-las e misturar-se a elas. E, nesse processo, não só o que se vê, mas a própria visão é atravessada por uma sensação de descoberta. O que é mesmo ver? Esta questão fica em aberto à medida que, na experiência da Câmera-Luz, tornam-se imprecisos os limites entre observar e surpreender-se, entre ver e maravilhar-se. Luciana Guimarães Dantas

notas 1. Os múltiplos formatos e papéis assumidos pela câmara escura em diferentes contextos históricos e, sobretudo, o modo como esta se inseriu em toda uma rede de saberes relacionados à visão, foram amplamente discutidos pelo historiador Jonathan Crary, em seu livro Técnicas do Observador, do qual retiramos estas informações (2012, p. 34-35). 2. Giorgio Agamben desenvolve essas ideias no ensaio O que é o contemporâneo (2013, p. 59). 3. Em seu texto “Dispositivos” (2009), Anne Marie Duguet demarca esse campo de trabalhos contemporâneos, levantando uma série de obras que se constroem a partir de uma intervenção sobre tecnologias antigas. 4. O termo “dispositivo” tem sido usado em sentidos diversos nos campos da arte e do cinema. O modo como o empregamos está em acordo com a produção teórica de autores tais como Anne Marie Duguet, Andre Parente e Philippe Dubois, entre outros. Em “A forma cinema: variações e rupturas”, André Parente descreve

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o “dispositivo” como “um tipo de criação que rechaça a redução da arte a um objeto, com o intuito de melhor considerar a relação entre seus elementos, entre os quais, muitas vezes, está o próprio espectador. A experiência da obra pelo espectador constitui o ponto central da obra. Nela, o espectador se vê vendo, e a obra é um processo, pois sua percepção se efetua na duração de um percurso” (2009, p. 40). 5. Anne Marie Duguet discute essas questões no texto “Dispositivos” (2009, p. 56-57) 6. O projeto Câmera-Luz começou a ser desenvolvido em 2010, quando Paula Trope construiu uma grande câmera móvel na cidade de Londrina. Desde então, passou por diferentes lugares, experimentando formatos diversos e integrando-se também a outro trabalho da artista – o projeto Relicários. Neste texto, nos concentramos sobre a versão apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (2010) e no Museu de Arte do Rio (2013). 7. O termo “clássico” é empregado tal como aparece nos estudos de Michel Foucault e é adotado por Jonathan Crary para se referir a práticas e teorias da visão entre 1700 e 1889, que ainda se mantiveram parcialmente no século XIX. Ver, a esse respeito, o livro de Crary, Suspensões da Percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna (2013, p. 34). 8. Ver o livro Técnicas do observador (2012), de Jonathan Crary, que é a referência para todas as informações sobre a câmara escura clássica trazidas ao longo deste texto. 9. O corpo só passa a ser considerado importante para a experiência visual na primeira metade do século XIX (1810-1840), como resultado de uma série de pesquisas científicas e de diversos outros processos. Surgem então os “modelos de visão subjetiva” que, se opondo à perspectiva clássica, concebem a visão, assim como os outros sentidos, como estreitamente vinculada à estrutura fisiológica e ao funcionamento corporal. Ver o livro de Jonathan Crary, Técnicas do observador (2012). 10. Agradeço a Victa de Carvalho pelas conversas sobre esse paralelo entre a Câmera-Luz e a câmara escura clássica, que me ajudaram a desenvolvê-lo.

Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. _____. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013. DUGUET, Anne Marie. Dispositivos. In: MACIEL, K. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra capa, 2009. PARENTE, Andre. A forma cinema: variações e rupturas. In: MACIEL, K. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

Mutação, 1994 Série Miragens, 1994-1996 Fotografia com câmera de orifício Impressão analógica, moldura de aço 154 x 154 x 7 cm

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Paula Trope com a colaboração de Jeferson e Nem Jeferson e Nem e S/ título (a águia), 1994 Série Os meninos, 1993-1994 Fotografia com câmera de orifício Impressão analógica Díptico, 155 x 101 cm e 50 x 50 cm

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Estado de Exceção, 1994/2008 Série de 32 solarizações Fotografia p/b com câmera de orifício Solarização Impressão analógica 50 x 50 cm

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Paula Trope com a colaboração de Renato Dias Figueiredo, Marcos Vinicius Clemente Ferreira, Luciano de Almeida e José Carlos da Silva Pereira Renato Dias Figueiredo (Naldão), Marcos Vinicius Clemente Ferreira (Negão), Luciano de Almeida e José Carlos da Silva Pereira (Júnior), aos 22, 16, 18 e 21 anos Bandidos do Borel e da Formiga na reunião! Morrinho Reunião no Morro do Salgueiro. Morrinho Carro. Morro do Turano. Morrinho Os Braços. Morro dos Prazeres. Morrinho. 2005 Políptico da série Sem Simpatia – Os meninos do Morrinho, 2004-2005 Fotografia com câmera de orifício Impressão analógica 160 x 126 cm / 50 x 121 cm / 57 x 108 cm / 52 x 117 cm / 49 x 122 cm

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Câmera-Tenda, Chapada dos Guimarães, 2012 Vista externa da câmera / João Batista Brandão Albernaz no interior da Câmera-Tenda Série Câmera-Luz, 2010 – em processo Câmera-escura desmontável Estrutura de ferro, lona black-out 3 m de altura, 3 m de diâmetro Fotografias de documentação de Paula Trope

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Câmera-Bobina Marcelo Henrique no interior da Câmera-Bobina / Vista externa da câmera. Museu de Arte do Rio, 2013 Vista externa da câmera / Ana Angélica Costa, Daniel Biulchi e a filha Luiza no interior da Câmera-Bobina. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2010 Série Câmera-Luz, 2010 - em processo Câmera-escura móvel Estrutura de madeira, revestimento de madeira, MDF e pintura 3 m de altura, 3 m de diâmetro Fotografias de documentação, na ordem: Paula Trope, Fabian Alvarez, Joana Csekö e Paula Trope

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Câmera-Caracol, CCBB-Brasília, 2014 Público saindo da câmera / Vista externa da câmera / Interior da Câmera-Caracol Série Câmera-Luz, 2010 – em processo Câmera-escura giratória Estrutura de ferro e madeira, revestimento de madeira, MDF e pintura 3 m de altura, 6,40 m de diâmetro Fotografias de documentação de Fabian Alvarez

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[ i n ] VERS Õ ES NA PAISAGEM: INTERVENÇÕES URBANAS COM C ÂMERAS ES C URAS Dirceu Maués

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eu trabalho sempre esteve relacionado ao dispositivo fotográfico e à paisagem urbana; sempre buscou, na subversão do dispositivo fotográfico, fazer uma crítica aos discursos consumistas que vêm sempre colados às tecnologias emergentes, transpondo assim horizontes da própria linguagem fotográfica em direção a zonas híbridas e de fronteiras com outras linguagens, como o vídeo, o cinema e a pintura/desenho. Ao mesmo tempo, apresenta sempre como tema uma paisagem em construção, utilizando também dispositivos tecnológicos de pós-produção da imagem, no sentido de invenção da paisagem na cena contemporânea, a que se refere Anne Cauquelin: A virada – tecnológica –, longe de destruir o “valor paisagem”, ajuda, inversamente, a demonstrar seu estatuto: com efeito a tecnologia evidencia a artificialidade de sua constituição como paisagem. (Cauquelin, 2007)

Em um lugar qualquer – Outeiro (videoinstalação, seis canais em semicírculo, 2009) é um bom exemplo desse tipo de trabalho mencionado acima: aposta na reconstrução da paisagem por meio de imagens captadas por dispositivos ópticos precários: 170 câmeras construídas a partir de pequenas caixas de fósforos. As animações de mais de cinco mil fotogramas produzidos por essas câmeras, divididas em seis telas de TVs, posicionadas lado a lado, formam uma visão panorâmica da praia de Outeiro, localizada próximo a Belém do Pará. Aqui temos os conceitos high-tech e low-tech atuando juntos na conformação de uma outra experiência da paisagem. Um potencializa o outro e o trabalho só existe enquanto resultado de um diálogo formativo entre os dois conceitos, no processo poético de sua construção. As imagens precárias produzidas pelas câmeras artesanais se somam à estrutura da instalação construída com telas de TVs posicionadas lado a lado para reconstruir a paisagem da praia em outra configuração: um panorama da praia, em 360 graus, impreciso e instável.

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Em Em um lugar qualquer – Outeiro, a fotografia vai ao cinema... mas já é outro cinema. Não apenas pela forma em que é apresentada (instalação), mas porque aqui também já estamos a falar de uma fotografia outra: a fotografia com o tempo distendido, lento e preguiçoso (no bom sentido) da fotografia pinhole, onde todos os fantasmas aparecem. Vultos que surgem e se desmancham no ar feito poeira ao vento. A imagem se apresenta com todo seu ruído e despretensão em relação ao paradigma da super definição. A tomada totalmente manual das fotos, em um sistema que o corpo se torna praticamente parte dos mecanismos da câmera, também corrobora para que tenhamos uma imagem em movimento aos saltos, sem nenhuma estabilidade e altamente nervosa. Em Extremo Horizonte – trabalho mais recente, produzido a partir de 2011 e ainda em desenvolvimento, temos novamente a hibridização entre fotografia e cinema. No entanto, agora a fotografia vai ao cinema de maneira retroativa. Vai encontrá-lo em seus primórdios, em uma de suas primeiras configurações: o panorama – que, segundo Jacques Aumont, era pintura e cinema: Ao mesmo tempo, por seu dispositivo, o panorama já é espetáculo e quase cinema – sem considerar o movimento. A imagem aí é sempre imensa, afoga-se nela. (...) Fabricado como pintura, o panorama é destinado a ser visto como cinema. (Aumont, 2004)

Extremo Horizonte é uma série de fotografias panorâmicas da cidade, tomadas com câmeras artesanais pinhole. A câmera faz uma varredura do horizonte sob o controle da imprecisão e da intuição contidas nos movimentos das mãos do fotógrafo, que gira filme e move câmera, ao mesmo tempo – ora em sincronia, ora em dessincronia –, enquanto a imagem penetra pelo pequeno orifício para ir sensibilizando o filme no interior do dispositivo precário.

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Extremo Horizonte - série de fotografias panorâmicas tomadas com câmeras artesanais pinhole Texturas, sombras e cores surgem em uma imagem quase sem fim, tão extensa quanto se queira, até o limite do tamanho do filme. Uma cidade outra: paisagem que não é mais paisagem como recorte, é somente horizonte: vasto horizonte (quase) sem fim. Essa cidade é inventada por um artifício, por uma subversão do dispositivo fotográfico, através de operações táticas de uso desse dispositivo, o qual prescinde de muitos controles e tecnologias mais atuais normalmente presentes em uma câmera industrial. Mas, ao mesmo tempo, na fase final de produção da imagem, as tecnologias mais emergentes dos softwares e escâneres se agregam e são necessários para dar suporte e materialização a essa imagem. Tecnologias se somam: novamente os conceitos high-tech e low-tech se ligam para a produção e invenção de uma outra paisagem.

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Câmera escura como forma de intervenção urbana Através da fotografia pinhole, da construção de câmeras artesanais, fui progressivamente penetrando para dentro do aparelho fotográfico, para dentro da “caixa preta” que Vilém Flusser dizia ser inacessível: (…) o fotógrafo domina o input e o output da caixa: sabe com que alimentá-la e como fazer para que ela cuspa fotografias. Domina o aparelho, sem, no entanto, saber o que se passa no interior da caixa. Pelo domínio do input e do output, o fotógrafo domina o aparelho, mas pela ignorância dos processos no interior da caixa, é por ele dominado. (Flusser, 2002: 15)

Desconstruir o aparelho, simplificando-o, retirando todas suas superficialidades, seus programas e funções de controle, para encontrar sua forma mais básica e fundamental: a câmera escura em sua essência, sem botão disparador, sem visor, sem mecanismos. Simplificar o aparelho e compreender mais profundamente seu processo, multiplicando suas possibilidades conceituais de criação. Quanto mais simples sua estrutura, mais complexas suas possibilidades de uso. Neste momento em que a câmera se abre e revela seu mecanismo mágico, expondo toda sua simplicidade, ela deixa de fotografar, de capturar, de fixar as imagens projetadas em seu interior, para apenas desvelá-las em sua própria efemeridade. Num deslocamento de mão dupla: quanto mais mergulho para dentro do dispositivo, do aparelho fotográfico – simplificando estruturalmente seu funcionamento –, mais me desloco para um “fora” da fotografia, para um lugar de fronteira com outras linguagens: experimento uma outra relação com a imagem.

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Nesse deslocamento em direção ao interior do aparelho e respectivo afastamento de um núcleo mais documental da fotografia, fui me aproximando de um viés mais experimental, em conexão com outras linguagens: principalmente o cinema, o vídeo, a pintura e o desenho. Buscando sempre a imagem “precária”, em torno de uma poética do “erro” e do acaso, o trabalho chega agora em uma fase em que a imagem além de precária se torna efêmera: procuro investigar as relações da fotografia com a intervenção urbana. A fotografia como instrumento de intervenção na cidade. Delimito assim, nesse momento, um recorte mais preciso para a pesquisa poética: intervenções urbanas através da inserção de câmeras escuras em locais de fluxo na cidade. Trabalhar com a magia e o encantamento que as imagens efêmeras projetadas no interior das câmeras escuras provocam nos transeuntes. Começo a transitar por um campo mais relacional, com provocações e intervenções no espaço urbano. Espero discutir a paisagem a partir dessas inserções, onde a câmera deixa de ser apenas um dispositivo de captação e produção da imagem para se transformar em elemento relacional: efêmeras imagens projetadas no interior da câmera. O olhar do fotógrafo aponta múltiplos recortes na paisagem urbana, invertendo a imagem-mundo e encontrando par noutro olhar – aquele olhar distraído dos transeuntes menos apressados em meio à correria do cotidiano na cidade.

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Táticas e usos Milan Kundera, nas primeiras páginas de seu romance A lentidão, fala sobre as mudanças que a velocidade do mundo moderno, com sua revolução técnica, produziu no comportamento das pessoas. Dirigindo pelas estradas do interior da França, observa pelo retrovisor um motorista que aguarda impacientemente a oportunidade de ultrapassá-lo. A velocidade é uma forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem (…). Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora de jogo.

No momento do voo nos desligamos do passado e do futuro, não temos medo de nada: somos pura velocidade incorpórea e imaterial. Ao contrário, quem corre a pé sente, sempre, a própria presença e o peso de seu corpo, tendo plena consciência de si mesmo, de suas dores, de sua vida. Aonde foram parar o prazer da lentidão – se pergunta Kundera – e todos que gostavam de flanar, os vagabundos que dormiam sob as estrelas, as paisagens campestres, os prados, as clareiras e a própria natureza? Então Kundera nos fala de outro tempo, em que a lentidão e o balanço da viagem, em uma carruagem, criavam toda uma atmosfera de sensualidade entre os corpos viajantes, e a partir daí tem início a narrativa de seu romance. Lembrei dessa passagem de Kundera para pensar nas intervenções que pretendo fazer na cidade. Que olhar perdido na velocidade do mundo, o meu olhar encontrará? Que olhar distraído ainda percebe seu próprio mundo em volta nos pormenores de um simples caminhar? Provavelmente não será um olhar concentrado na tela de um smartphone ou o olhar ocupado com o trânsito travado das grandes metrópoles. Experimentei algumas inserções de câmeras escuras em lugares dentro do próprio campus universitário: a galeria do curso, a porta de entrada do

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prédio do departamento de artes, o restaurante universitário e algumas árvores próximas a passagens de pedestres. Essas inserções se aproximam, de alguma forma, da noção de site specific, pois propõem um diálogo com a paisagem local. Cada trabalho faz um recorte, ou recortes, específico dessa paisagem. Utilizei dois tipos de câmeras: grandes caixas cúbicas de papelão (23 cm x 48 cm x 52 cm) e pequenas caixas cilíndricas, também de papelão (7 cm de diâmetro). Todas muito rústicas. Algumas foram instaladas em vidros, lugares de passagem, entradas de prédios públicos; outras, na rua, em forquilhas de árvores. Observei algumas delas de longe, curioso em ver a quem atingiriam e de que forma. Vi um pouco de tudo: desde a total indiferença e desconhecimento da presença do objeto (câmera escura) interferindo na paisagem, passando por algo como um dar de ombros a esse contato – alguns expressavam uma certa curiosidade e nada mais, e outros, apenas um certo estranhamento com relação à experiência de ver a imagem invertida dentro da caixa –, e por fim, muitos se encantavam com esse mundo colorido, invertido e de ponta-cabeça, dentro de uma caixa, pre-

cária e tosca, feita de papelão. Abandonei algumas dessas câmeras nesses lugares. Dias depois, poucas haviam sido danificadas, ou tiveram suas lentes (pequenas lupas) furtadas. Mas quero me deter um pouco mais sobre esse encantamento com a imagem mágica que se projeta no interior da câmera: a imagem intrigante que vemos invertida dentro de uma simples, tosca e rústica caixa de papelão. O sentimento primeiro de surpresa parece estar relacionado à nossa crença nos aparelhos tecnológicos como dispositivos altamente complexos, provocando, assim, uma certa incredulidade com processos tecnológicos simples. Neste sentido, o mero fato de vivenciar a experiência da câmera escura num encontro ao acaso na cidade provoca nesse expectador-transeunte um certo deslocamento. O horizonte visto de ponta-cabeça parece indicar que o mundo pode ser observado de um ponto de vista radicalmente inverso. Mas apenas para quem se detém nessa imagem poética, para quem está aberto a esse deslocamento: a inversão da paisagem opera a inversão de um ponto de vista sobre o tecnológico. O salto para o além, para o desconhecido, para um outro mundo a que se refere Anne Cauquelin: A imagem do horizonte está, assim, ligada a um “além” da representação, um “fora” ou transbordamento da realidade das coisas como elas são. (Cauquelin, 2010)

A intervenção, por outro lado, desloca o próprio conceito de fotografia como ato fotográfico. Nesse sentido, a fotografia como ato não se completa, não se fecha na produção de uma imagem-objeto com objetivo de ser apresentada em um espaço expositivo para ser vista. A imagem é efêmera, um

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recorte preciso da paisagem determinado pelo olhar do fotógrafo: imagem-devir, imagem desejante; imagem que surge no interior da câmera escura, do aparelho fotográfico que não fotografa, apenas mostra, apresenta um recorte do olhar: imagem que faz uma ponte entre o olhar do fotógrafo e esse expectador ao acaso que caminha sem rumo pela cidade. Imagem efêmera em duplo sentido: por um lado, se nada se move internamente, é semelhante a uma fotografia impressa; por outro, se prestarmos bastante atenção perceberemos seus movimentos internos. Aí, então, a imagem transborda para o vídeo, para o cinema. Materialmente, não é uma coisa nem outra, apenas puro desejo – sem memória – de se fixar sobre um suporte sensível. Puro desejo que alimentou os sonhos de todos os pioneiros da fotografia no século XIX e que agora alimenta nossos próprios encantamentos com relação à efemeridade e ilusão dessa imagem.

Conclusão Uma caixa de papelão, uma lupa, um papel vegetal: magia! Simples magia de deslocamento, de expectativa, ou da falta de qualquer expectativa. Um encontro íntimo, uma singularidade: essa imagem mágica que se projeta no interior da caixa. “E é tão colorida! Parece uma TV invertida”, ouvi alguém falar. Nesse mundo tão saturado de imagens produzidas por aparelhos tecnológicos cada vez mais sofisticados, essa imagem nos transporta para outro tempo, um horizonte reverso: o tempo de Niépce e Daguerre, de Hercule Florence, de Fox Talbot, de todos os precursores da fotografia que juntos “ardiam em desejos”, usando uma expressão de Daguerre, pela fixação da mágica imagem que se projetava no interior da câmera escura. Em tempos tecnológicos em que a imagem mais do que se fixou materialmente sobre o papel fotográfico, transbordou e materializou-se também para um mundo virtual de segunda ordem, a experiência da câmera escura perfaz um caminho de volta, em direção à imaterialidade, ao desejo que precedia a imagem fotográfica como a conhecemos – ou a conhecíamos alguns anos atrás. Invertida paisagem... um mundo dentro de uma caixa: o mundo de ponta-cabeça. Desejos ardem em imagens. Desejos de fixar desejos em desejos inversos, em mundos paralelos: efêmera imagem.

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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996.

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J a n e l a s , Imagens de A b e r t u r a e Etéreos Ana Angélica Costa

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o longo dos mais de dez anos que venho trabalhando com câmeras pinhole, estive às voltas com alguns questionamentos: Qual a pertinência de produzir imagens na contemporaneidade com aparelhos precários para além do seu “efeito estético”? Por que a “estética precária” causa um fascínio tão grande em pessoas que utilizam câmeras digitais ou celulares para fotografar? Como a percepção e a subjetividade foram modificadas pelo convívio cada dia mais intenso com aparelhos tecnológicos de produção, reprodução e veiculação de imagens? Como se dá a produção e recepção dessas imagens? E qual a diferença entre a nossa experiência em relação a essas imagens e a experiência do público das primeiras fotografias ao admirar as primeiras imagens obtidas por este meio? Por que, após quase um século de luta com o tempo para que a fotografia atingisse o instantâneo, o retorno à fotografia de longas exposições? Por que, em meio à virtualidade em que vivemos, nossas relações com o mundo e com as imagens, a opção por trabalhar a materialidade da fotografia, a construção de uma imagem analógica? Venho, ao longo dos anos, buscando alguns caminhos para pensar essas questões. Como este livro nasceu, de alguma forma, ligado a questionamentos relacionados a minha produção artística, sinto que devo apresentar aqui um pouco do meu percurso, que tem muito em comum com o de outros artistas que se interessam pela pesquisa e produção de câmeras obscuras e pinhole e de imagens produzidas com elas. Um breve relato, mas que demonstra a fluidez e facilidade de troca de tipo de equipamento entre uma série e outra que o trabalho com câmeras pinhole permite. Iniciei minha pesquisa artística com câmeras pinhole na série Janelas, na qual utilizei uma câmera cilíndrica que fotografa um raio de 360º, dividido em quatro imagens, uma a cada 90º. O filme era colocado no centro do compartimento na forma de um círculo, acompanhando o formato da câmera.

Transformada a partir de uma lata de metal, a câmera foi construída dessa forma com o objetivo de fotografar a relação entre o interior arquitetônico e a paisagem – seja ela um muro, uma parede, uma janela, um campo, uma árvore, um jardim, um quintal – de diferentes moradias. Posicionada na janela de um determinado cômodo da casa, cada um dos seus furos aponta: para o interior do cômodo, para o parapeito da janela, para o exterior – a paisagem – e para o outro lado do parapeito da janela. Assim, numa mesma imagem, é possível obter as quatro vistas diferentes, cada uma se fundindo um pouco com a que a segue. Ao longo de mais de cinco anos, produzi imagens de diferentes ambientes, relacionando o interior arquitetônico com a paisagem vista através da janela, evidenciando a passagem entre o interior e o exterior, onde se está e para onde se olha, de diferentes moradias que frequentei entre 2002 e 2008. Em 2005, o Projeto Subsolo foi convidado a apresentar um trabalho em um espaço muito pequeno dentro de uma exposição coletiva. Nessa ocasião elaboramos o Imagem de Abertura, uma imagem feita em pinhole, durante a abertura da exposição. A proposta era: posicionaríamos uma câmera, que ficaria com seu obturador aberto durante todo o evento de abertura da exposição. No momento da abertura, quando se dá a situação social, com a presença de outros artistas, críticos, curadores, visitantes em geral, não existiria nada a expor: é neste momento que a foto estaria se fazendo. O Imagem de Abertura foi pensado inicialmente como uma contraposição ao instantâneo, mais especificamente ao “instante decisivo” bressoniano. Um não-registro de um acontecimento que não se identifica na imagem. Uma imagem que tudo capta, mas pouco revela além da arquitetura imóvel de onde é feita. Da segunda vez que propusemos realizar uma imagem de abertura, a imagem não se fixou no filme fotográfico. Após passar pelo processamento químico, o material fotossensível revelou-se qua-

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se inteiramente preto, velado, com apenas uma mancha na parte superior. Mesmo com os testes feitos anteriormente à tomada definitiva, a tão esperada imagem não se formou, não apareceu na superfície sensível do filme. Apesar de sabermos estar sujeitas a esse tipo de acontecimento, não esperávamos tal resultado. A fotografia, enquanto intrinsecamente ligada ao ato – fotográfico – que a realiza, é sempre o produto desse ato. A fotografia é sempre o resultado do processo de impressão da luz no filme, o que nem sempre fica claro para o observador da imagem resultante. O processo encontra-se impresso na imagem. Mas, e quando não temos imagem? Ao optar por expor o filme, mesmo velado (o resultado de um erro), no espaço a que lhe havia sido destinado, sua superfície negra refletia o espaço que deveria ter sido fotografado. E o público, ao observar a película, via o reflexo do que havia se recusado a transformar-se em imagem fixa. O filme velado, espelho negro de onde se encontra, passa a refletir todo o ambiente, qualquer ambiente em que se instala. Paralelo ao Imagem de Abertura, realizado coletivamente pelo Projeto Subsolo, desenvolvi Duração, uma série de fotografias feitas a partir da escolha de determinadas ações cotidianas em função do tempo de exposição necessário para imprimir a imagem no filme e do tipo de ação envolvida. A ideia era que o tempo de captação da imagem

durasse exatamente o tempo da ação que estava sendo fotografada: a câmera era posicionada em um local com vista privilegiada e a ação deveria se desenvolver naturalmente, com as movimentações necessárias para realizá-la. Foi uma tentativa de registrar as mudanças realizadas ao longo do tempo de forma a transformá-las em traços visíveis na imagem fotográfica; tentativa de retratar a fluidez dos corpos e ações em oposição aos objetos arquitetônicos que permaneciam fixos e bem visíveis. O contraste entre nitidez e velamento, entre o que permanecia fixo e em movimento e entre o que era excessivamente claro ou escuro passaram a me interessar cada vez mais. Já na série Etéreos voltei-me para o tempo de exposição do filme à luz no momento de feitura da imagem: esses tempos foram definidos de forma a conseguir uma imagem no limite do visível: quase clara ou escura demais para dela obter uma apreensão do que era dado a ver. Trabalhei com o filme diapositivo a fim de atingir na imagem fotográfica o resultado exato do tempo de exposição do filme à luz. Durante cerca de duas semanas atípicas no mês de janeiro, realizei experiências nas areias da praia de Ipanema, Rio de Janeiro, em tempo nublado ou

chuvoso, que resultaram nas imagens que seguem nas páginas 92 e 93. No decorrer da pesquisa visual, comecei a utilizar cada vez mais o filme diapositivo. Primeiro, por uma limitação comercial, depois por descobrir a potência do que chamei de “imagem-luz” e sua adequação à proposição de inserção do erro no processo de obtenção de fotografias, tornando minhas imagens cada vez mais performáticas e processuais. A beleza do erro e a potência do vazio parecem existir mais claramente dentro de uma proposta de mostragem do processo. Formulação infinita, o sempre em aberto do trabalho: a imagem que pretendi buscar durante esta caminhada envolveram ações frente aos acasos possibilitados pelo vazio,

pela potência do filme virgem. Essa impressão direta, sujeita a acidentes no seu percurso, pareceu-me particular e instigante frente aos processos e situações que procurava tornar imagem: modos de viver, de produzir, de ocupar, de articular, de ver.

NOTA 1. O Projeto Subsolo, hoje uma empresa de produção cultural, realizou alguns trabalhos como coletivo de arte (Janaina Garcia, Roberta Macedo e eu, sócias fundadoras) entre 2003 e 2007.

Janelas: Londres 2 fotografia pinhole colorida impressa em papel de algodão 0,50 x 2,00 m 2002 Janelas: Paris 3 fotografia pinhole colorida impressa em papel de algodão 0,50 x 2,00 m 2002

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Câmera utilizada na série Imagem de Abertura Câmera de madeira e suporte de ferro 150 x 14,5 x 11 cm 2003-2007 Imagem de Abertura #2 Fotografia pinhole colorida impressa em papel fotográfico 12,5 x 10 cm 2005 Imagem de Abertura #7a Fotografia pinhole feita em filme diapositivo colorido 12,5 x 10 cm 2007

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Duração 1: Almoço Fotografia pinhole colorida impressa em papel de algodão 1,00 x 2,00 m 2004 Duração 3: Espera Fotografia pinhole colorida impressa em papel de algodão 1,00 x 1,00 m 2004 Duração 5: Banho Fotografia pinhole colorida impressa em papel de algodão 1,00 x 1,00 m 2004

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EtĂŠreos #1 Fotografia pinhole colorida feita com filme diapositivo 60 x 90 cm 2008-2014 EtĂŠreos #5 Fotografia pinhole colorida feita com filme diapositivo 60 x 90cm 2008-2014

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Um mundo partilhado

Meu mundo teu Alexandre Sequeira

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No ano de 2007, lancei-me na aventura de, junto com dois adolescentes que jamais haviam se encontrado antes, trocar impressões sobre suas realidades tão distintas a partir de cartas e fotografias. Utilizando procedimentos de registro fotográfico com câmeras artesanais de um e dois orifícios, conduzi ao longo do ano encontros fotográficos com Tayana Wanzeler, moradora do bairro do Guamá – na periferia de Belém –, e Jefferson Oliveira, morador da ilha do Combu – uma dentre as inúmeras ilhas que compõe um vasto cinturão de mata nativa que circunda a capital do estado do Pará. Minhas motivações se pautavam pela crença de que processos interativos dessa natureza são responsáveis pela configuração do que chamamos mundo e referendam a linguagem (considerando-a como uma ampla gama de interações) como o campo onde esses diagramas de realidade se materializam. A mescla de diferentes pontos de vista apresentados por meus dois companheiros de trabalho resultou em uma série de imagens que confundem diferenças e semelhanças num todo que aponta para novas significações adquiridas a partir desse encontro. Crescemos numa rede de conversações, participando com quem convivemos de uma contínua transformação consensual que, apesar de nos parecer espontaneamente natural, nos forma e transforma na medida em que revela nossas configurações de mundo. Como a estrutura de um jogo – jogo de sentidos – jogo de palavras. A função do jogo, de maneira geral, pode ser definida por dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa. Estas duas funções podem também, por vezes, confundir-se de tal modo que o jogo passa a “representar” uma luta, ou, então, se torna uma luta para melhor representação de alguma coisa. Percebemos nesses aspectos uma estreita relação entre o jogo

e a representação. O termo alemão spielen significa ao mesmo tempo jogar e representar, tal como em inglês to play e em francês jouer, reforçando a afirmação de Leo Frobenius (1933, apud Huizinga, 2001: 44) de que o jogo serve explicitamente para representar. Segundo ele, a humanidade ao jogar representa a ordem da natureza tal como ela está impressa em sua consciência. Tais afirmações apontam para semelhanças entre a estrutura do jogo e a de processos de criação artística. Em suas formas mais complexas, o jogo está saturado de ritmo e de harmonia, que são os mais nobres dons da percepção estética de que o homem dispõe. São muitos e bem íntimos os laços que unem o jogo e os processos de criação. Guiado por essas evidências, considerei a utilização de aparatos artesanais de captura de imagem como o caminho mais profícuo de aproximação entre minhas intenções conceituais e possíveis resultados práticos. Meu estímulo aumentava quanto mais percebia como a singularidade do mundo de cada um de meus parceiros, sua inesgotável curiosidade juvenil e o incontestável bem estar em seu viver poderiam se constituir em ingredientes suficientemente capazes de converter nosso encontro em um campo de intensas e transformadoras contaminações. Bastava para tanto criar uma estrutura capaz de envolver meus parceiros em uma investigação de suas realidades de maneira lúdica e informal. Uma estrutura que, como num jogo, considerasse o valor de erros e acertos, avanços e recuos. Que os envolvesse lentamente num mundo de representação e simbolização de seus mundos – jogo de imagens – jogo de palavras. Nesse sentido, a opção pela utilização de equipamentos fotográficos artesanais foi absolutamente determinante. Sabia que tinha ali um elemento mágico. Um instrumento que trazia o espírito curioso e investigativo de toda criança para dentro de nosso jogo. Quem de nós quando pequeno não se deleitou com a construção de al-

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gum invento: um pequeno barraco nos fundos do quintal; um carrinho de rolamento, ou até mesmo a construção de uma pipa. Seria a investigação e a compreensão do funcionamento dessa engenhoca que conduziria meus novos amigos de aventura à representação de seus mundos. Na verdade, tal engenhoca traz inúmeros outros pontos favoráveis à condução de nosso jogo. Uma máquina artesanal com sua estrutura de máquina cega (sem o visor para o enquadramento prévio do objeto a ser fotografado) acaba se convertendo em um indutor à socialização da experiência. Não é mais apenas uma pessoa que, olhando pelo visor, decide e conduz o ato fotográfico. Em torno da máquina mais de um pode analisar e trocar impressões sobre as relações entre o assunto a ser abordado e o ângulo escolhido. Tal mecanismo passa a ser o ponto central de onde o grupo gravita, tendo a imagem por ele produzida como o elemento de atração. Além disso, ela sempre reserva “surpresas” de processo – “surpresas” estas que guardam sempre uma relação com a estrutura do jogo. O resultado por ela produzido – com suas deformações e alterações de luminosidade e cor – descola a imagem do dado real, convidando a quem dela partilha a trilhar um caminho de valorização da imagem em si e de todas as camadas simbólicas que dela possam surgir. A passagem da paisagem para dentro de nossa caixinha de surpresas é o que produz a sua metamorfose em imagem. Refeita em luminosidade etérea e radiante, a paisagem se torna visagem. Diferente da máquina fotográfica industrial que congela o foco sobre o objeto feito presa, nossa invenção pede um tempo maior para perceber as coisas do mundo. Segundo Duarte (2005), o olhar da pinhole é o olhar inaugural da infância, vendo o mundo sem saber ainda que nome dar às coisas. Um olhar que espia sem ser visto, sem fazer alarido, sem perturbar a cena. Cabia a mim, na condição de mediador, encontrar provocações que animassem esse jogo, que estimulassem a troca e a mescla de informa-

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ções, materializando visualmente essa rede de afeto que se construía a partir de então. As atividades iniciais foram marcadas por toda a magia e surpresa comuns a quem se depara pela primeira vez com uma imagem produzida a partir de máquinas pouco convencionais. Inicialmente utilizei a máquina feita de embalagem plástica de filme fotográfico. Os objetivos até então eram familiarizar meus companheiros com a relação entre tempo de exposição e situação de luz, e com os procedimentos de revelação no laboratório. Nesses primeiros encontros, propus a cada um que escrevesse um pequeno bilhete ao companheiro de aprendizados fotográficos, dividindo com ele as surpresas, os questionamentos. Para minha satisfação, a proposta foi aceita de pronto. O próximo passo foi buscar possibilidades de intensificar a contaminação mútua dessas duas realidades. Isso foi possível com a construção de uma máquina com dois furos, permitindo que Jefferson fizesse seus registros por um dos furos e Tayana pelo outro. Passamos a experimentar diferentes distâncias dos furos e o ajuste dos tempos de exposição, até encontrar a melhor conformação. Os resultados apontavam para outras variantes nesse procedimento. As laterais das imagens captadas deveriam ter áreas claras e escuras para que a fusão realmente acontecesse. As experiências avançaram na intenção de estabelecer um diálogo visual entre as realidades de Jefferson e de Tayana, provocando neles uma inevitável comparação entre seus mundos. Tayana se enchia de dúvidas e questionamentos sobre a vida que Jefferson levava na ilha Combu e vice-versa. Esta relação se tornava mais clara nas cartas trocadas entre os dois. Cabe esclarecer que combinamos como regra de nosso “jogo” que as perguntas de cada carta recebida poderiam servir como indutoras de ensaios fotográficos produzidos em nossos encontros semanais. Era curioso perceber como as cartas promoviam a conexão entre duas formas de expressão – a verbal e a visual. A

percepção instigada por esse diálogo estimulava a criação, na medida em que mesclava imaginação e acaso numa dinâmica que, ora produzia uma imagem que tinha seu ponto de partida num elemento textual, ora definia um texto que perseguia a tradução de uma imagem. Devo confessar que, ao iniciar o projeto, uma das dúvidas que me acompanhava era como meus parceiros adolescentes – ambos oriundos de escolas públicas – reagiriam à ideia de ter que escrever cartas. Sabia da dificuldade que educadores enfrentam hoje em seduzir jovens para a prática da escrita. Em nossos primeiros encontros, percebi o encanto e o fascínio com que Jefferson e Tayana construíam a máquina fotográfica artesanal, e a quase indiferença com que tratavam o bloco de papel que eu os oferecia no afã de relatarem ao seu amigo distante seus avanços nos exercícios fotográficos. Sabia que estava diante de um desafio e que, talvez, tivesse que alterar meus planos iniciais no decorrer do processo. Esta talvez tenha sido minha grande surpresa. A única carta que tive de solicitar para ambos foi a primeira. A partir de então uma conexão se formou e o comum era, ao final de cada encontro, ser surpreendido por uma mão que me entregava um envelope contendo uma carta para ser levada ao amigo de aventuras fotográficas – inicialmente com um teor de apresentação, mas logo dando lugar a demonstrações explícitas de carinho e intimidade. Ao todo, foram quase 30 cartas trocadas entre Tayana e Jefferson ao longo do ano.

O ENCONTRO Depois de um ano de contato por cartas e imagens, Jefferson e Tayana se conheceram pessoalmente no dia 28 de novembro de 2007. O encontro aconteceu no Espaço Cultural Casa das 11 Janelas – local definido para acontecer a nossa exposição. Nesta tarde, Jefferson e Tayana deram entrevista

para imprensa sobre o trabalho desenvolvido, conheceram a sala onde seus trabalhos seriam expostos e aproveitaram para conversar e se conhecer um pouco mais. Claro que o primeiro encontro foi marcado por uma certa timidez, compreensível por se tratar de duas pessoas que já haviam trocado muitas impressões sobre si e sobre o outro através de cartas. Mas logo a timidez deu lugar à descontração, fazendo com que novos assuntos, agora tratados pessoalmente, animassem o encontro.

A EXPOSIÇÃO A exposição com os resultados de nosso convívio foi aberta ao público no dia 7 de dezembro de 2007. O título proposto para a mostra foi “MEU MUNDO TEU”, fragmento de uma frase escrita por Jefferson para Tayana que, a meu ver, sintetizava as intenções que nos uniram ao longo do ano. Tal escolha foi recebida com surpresa e entusiasmo por Jefferson ao reconhecer sua caligrafia nos impressos de divulgação da exposição. A mostra foi composta por 18 imagens fotográficas, duas vitrines contendo as cartas escritas por Jefferson e Tayana (dispostas de modo a não expor o seu conteúdo). Ambientando a exposição, oito caixas de som amplificavam a voz de Tayana e Jefferson lendo pequenos trechos das cartas que um enviou ao outro. O som captado em qualidade digital era reproduzido de forma randômica e aleatória, remetendo ao diálogo que animou o convívio entre os adolescentes. Nos dias que antecederam a abertura da exposição, tive encontros com as famílias de meus parceiros para discutirmos sobre questões referentes aos direitos de imagem, uma vez que todas as fotografias a serem expostas eram de autoria de Jefferson e Tayana – mesmo que realizadas sob minha orientação. Enfatizei a importância de garantir essa autoria aos dois por meio de um documento que norteasse, entre outras questões, a venda das obras garantin-

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do que, neste caso, o valor fosse revertido para sua educação. Materializamos essas intenções por meio de um contrato devidamente assinado pelos pais e reconhecido em cartório. Para nossa satisfação, as imagens de Jefferson e Tayana já circularam por várias cidades brasileiras, assim como por outros países. A comercialização de algumas dessas imagens garantiram, até então, a aquisição de duas novas máquinas fotográficas para Jefferson (que se apaixonou pela fotografia) e um violão, uma caixa amplificadora e um computador para Tayana.

Avaliar o que isso tudo significou para mim, Jefferson e Tayana, seria talvez prematuro. Espero que tal experiência seja lembrada por nós como momentos em que, movidos por intenso prazer, devoramos o mundo através de um minúsculo furo, e que essa experiência sirva de referência para futuras escolhas e decisões importantes em nossas vidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo de 12 meses, Jefferson, Tayana e eu mergulhamos em uma aventura de recortar e colar fragmentos de nossas realidades, confundindo cada vez mais os limites entre nossos mundos. Digo nós, porque seria impossível manter-me imune a essa força, uma vez que estava completamente envolvido em sua proposição. Permitimo-nos contaminar e ser contaminado pelo olhar do outro em experimentações que confundiam conhecimentos técnicos específicos de fotografia e questões subjetivas como a representação do que compreendíamos por realidade. Percebi maravilhado que as formas simbólicas que se apresentavam – o sonho de nossas realidades como porto-seguro – provinham, elas próprias, de formas simbólicas estabelecidas ao longo da vida, as quais, dobradas no interior de cada imagem que surgia, davam suporte à sua estrutura. Dobra onde se juntam, ponta com ponta, a natureza e sua figuração. Essa dobra de sombra, essa lenta ascensão de uma forma, a qual jamais poderíamos pensar que não fosse dada desde o início como realidade. Desfazer essa dobra, estender o tecido amarfanhado, decompor os elementos que, à beira dessa floresta de símbolos, formam as possibilidades de edificação do que chamamos real foram questões que nos conduziram ao longo desse ano de trabalho e criação.

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REFERÊNCIAS CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. Martins Fontes: São Paulo, 2007. DUARTE, Cristóvão Fernandes. O instante descongelado. Polichinelo. Revista literária. Vol. 3. Belém: M.M.& Lima, 2005. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2001. MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: UFMG, 2002. ______. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 2005. ______. Amar e brincar. Fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena, 2006. SALLES, Cecília de Almeida. Redes da criação. Construção da obra de arte. Horizonte: São Paulo, 2006. SAMAIN, Etienne (Org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 2005.

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A Caixa Mágica Inaê Coutinho

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uando construí, com a minha primeira turma de alunos, câmeras fotográficas feitas de sucata, me lancei a um território praticamente desconhecido. Até então, só tinha feito uma imagem em 1987, sob orientação do professor particular que minha mãe financiou depois de muita negociação, e mal me lembrava do equipamento. A imagem me fascinou por anos, mesmo com as manchas brancas que dificultavam sua perfeita visualização: pilhas de engradados com garrafas de Coca-Cola vazias apareciam logo depois do balcão de metal em primeiro plano, onde a lata cilíndrica estava apoiada, tampa apontada para a cena da estação de trem, fundo carregado com papel fotográfico brilhante. Uma exposição, era tudo o que eu tinha para registrar a vista do bar do Seu Mané, opção à cantina e ponto de encontro da turma do colegial. A imagem ainda está entre meus pertences (desconfio que fiz a cópia positiva com o negativo ainda úmido, o que explica as manchas brancas). Foi lá também que fiz meu primeiro filme cromo (o tesouro 120mm do meu arquivo) numa Rolleiflex emprestada. Com essa experiência na memória, descobri junto com os alunos o que era ou não possível fazer com uma latinha de leite. É que em 1993 as referências bibliográficas não podiam ser encontradas tão facilmente, não havia faculdades de fotografia e esse tipo de experiência não se desfrutava em qualquer lugar. Minha aventura foi acompanhada pela professora de licenciatura da Faculdade de Educação da UNICAMP, e rendeu participações em congressos, sempre com tom novidadeiro. Atualmente, as referências, receitas e fórmulas estão a dois cliques, sendo acessadas por qualquer computador, e, felizmente, não falta quem as use – é o que os encontros da Rede de Produtores Culturais em Fotografia do Brasil revelam: há uma forte corrente de atuação de gestores e professores dos mais diversos segmentos apostando no poder das caixas pretas como ferramenta de educação visual no Brasil.

Convidada a escrever este texto, o desafio é não chover no molhado. Discorrer sobre a experiência desses 21 anos de prática de ensino com as “caixas mágicas” é tarefa tão privilegiada quanto a experiência em si, e para evitar o desperdício de tempo do leitor especializado, resolvi relatar alguns exemplos vividos de perto, seja como professora, aluna ou coordenadora pedagógica no ensino da fotografia. Mapeando estas atividades não há pretensão alguma no sentido de categorizar definitivamente os usos da pinhole (mesmo porque isso não seria possível), mas, sim, a vontade de pensar estas práticas, e, com sorte, criar pontos de contato com outros realizadores, parceiros deste ofício tão desafiador quanto gratificante que é o de ensinar fotografia no Brasil. Vivemos hoje naquele mundo ao qual o fotógrafo e também professor Moholy-Nagy se referiu, em 1929, ao dizer que “os analfabetos do futuro serão os que não sabem fotografar”. Acostumados com a mediação do mundo pela imagem, é intrigante notar como a construção de uma câmera obscura ainda empolga e mobiliza. Como disse uma aluna, recentemente, na Escola Nova Lourenço Castanho, depois de passar a aula indiferente a cada etapa de construção de uma câmera obscura: “não acredito que estou achando o máximo esta câmera!”. Estudante de escola particular de alto nível na cidade de São Paulo, Isabella, 16 anos, viajada e frequentadora de museus no exterior, usa seu iPad e seu iPhone com a desenvoltura de sua geração, e por isso mesmo se surpreendeu com o próprio encantamento diante das caixas de papel que quase contra vontade construiu. Se este encantamento ainda arrebata, não é de surpreender que esta atividade seja o carro-chefe na elaboração de cursos e vivências com fotografia mundo afora. A descoberta da formação da imagem deslumbra exatamente como no passado deslumbrou Alhazen, Mo Ti, Aristóteles e Gemma Frisius. A meu ver, o encanto se dá pela visualização da cena

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em tempo real, ao vivo e a cores, e pela aparente simplicidade técnica que nossos olhos contemporâneos identificam. O fotógrafo com formação em Engenharia e ares de xamã Miguel Chikaoka sabe bem dessa magia, a qual confere toques de sustentabilidade e conexão com a natureza ao furar com espinhos amazônicos as folhas de alumínio das câmeras de seus alunos, fazendo desse momento quase um ritual. O projeto Cidade Invertida, outro exemplo, se constituiu inicialmente a partir da experiência, pra lá de mobilizadora, que o trailer-câmera-laboratório oferece. Pelo seu tamanho, o trailer possibilita aos participantes entrar dentro da câmera obscura e ver sua própria cidade invertida e espelhada, o que já é suficiente para deslumbrar. Procurar o foco movendo a grande tela e observar a troca dos orifícios (um maior que o outro) ainda ensina sobre os efeitos de profundidade de campo que cada um deles confere à imagem. Assim, proporcionar a experiência com câmeras obscuras tem sido o primeiro caminho para mobilizar o interesse dos alunos pelos meandros da linguagem e da técnica fotográficas (e a separação aqui é puramente didática). Da experiência da câmera obscura para a câmera de orifício dá-se o pulo, a invenção da fotografia, e nos vemos levando os alunos a refazer o percurso de desenvolvimento técnico e poético que motivou tantos outros, como Talbot, Bayard, Niépce, e o felizardo Daguerre. O registro permanente da imagem projetada embola os campos da ciência e das artes visuais – e vê-se aqui que as distinções desses campos de conhecimento são meras demandas acadêmicas (devo frisar, portanto, ser este o motivo da falta de paciência que me toma diante dessa distinção um tanto quanto iluminista). A materialização da imagem do mundo em forma negativa causa surpresa e espanto em tempos em que a regra da experiência cotidiana é mediada pelo instantâneo digital. Por isso mesmo a visuali-

zação da imagem do mundo duplamente invertida é um momento potencialmente rico, uma vez que oferece a compreensão de um modo de pensar a imagem por negativação (estrutura de raciocínio vital em técnicas como a gravura, a impressão offset e mesmo a escultura). Pensar o negativo como meio para se chegar à imagem positiva mobiliza um conhecimento fundamental nessas áreas ligadas à produção e impressão de imagens, fotográficas ou não. Porque, ao produzir essas câmeras, além de compreender seu funcionamento, funda-se pelo fazer o campo do pensamento plástico (defendido por Pierre Francastel), que, mais do que know-how, expressa uma maneira de pensar. Mas vamos aos fazeres concretos, percorrendo suas etapas: depois de construída a câmera de orifício – ou câmera estenopeica –, as questões que podem ser desenvolvidas parecem girar em torno dos seguintes aspectos: a) Enquadramento: já que a câmera não possui visor, como saber o que a câmera está “vendo”, o que vai sair na imagem? Esta pré-visualização pode ser instigada por meio da compreensão dos caminhos que os raios luminosos percorrem para entrar na câmera, e onde exatamente eles chegam. Conceitos como ângulo de entrada e a característica linear de deslocamento da luz podem ser apresentados e instigados nesta etapa. b) Ângulo de visão: na câmera, o ângulo é derivado do posicionamento do papel em relação ao orifício de entrada da luz: se é paralelo e a distância é curta, a câmera funciona de maneira semelhante a uma lente normal; se é paralelo e a distância é longa, o resultado equivale ao de uma teleobjetiva, com campo de visão reduzido. Já, se o papel está em curva, o resultado é similar ao de uma grande angular. Neste último caso o campo de visão pode chegar a ser limitado pelo alcance da entrada de luz, formando uma margem de papel virgem em torno da imagem; esta, por sua vez, determinada pelas bordas do furo: o resultado é

uma vinheta equivalente ao que vemos numa lente olho de peixe. Costumo propor fotografias da mesma cena com duas câmeras diferentes, para que os diversos campos de visão sejam registrados e comparados. Nestas imagens, feitas pela turma de 8ª série do Colégio Israelita Chaim Naim Bialik, a proposta era fotografar o mesmo assunto de pontos de vistas muito próximos, em dupla, com duas pinholes e uma analógica automática. A comparação entre as imagens finais foi assunto de um relatório reflexivo sobre a atividade, que incluiu também uma imagem de referência antiga do mesmo assunto. (1) Claro que o controle para evitar as tremidas das câmeras é o maior desafio para essa faixa etária, daí os resultados duplicados da fachada do prédio do Banco do Brasil.

Imagem referência para os alunos, que buscaram no centro da cidade o prédio do então Banco de São Paulo, aqui fotografado por Hildegard Rosenthal em 1940.

Acima, vista da fachada do prédio feita com lata de molho de tomate, e abaixo, com lata de biscoito.

Os dois fotógrafos momentos antes da revelação.

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Podemos observar ainda os efeitos nos resultados obtidos por outra dupla diante da Igreja da Sé:

c) O tamanho do orifício e a quantidade de raios luminosos que entram por ele: o stenopo grego pode ser facilmente comparado à nossa pupila ou ao diafragma das câmeras industriais, com exercícios práticos e demonstração de funcionamento desses equipamentos. A perda de potência luminosa conforme aumento da distância percorrida é uma característica do comportamento da luz que pede explicação.

d) A profundidade de campo, que em geral é bem grande e se estende a todos os planos (visto que uma agulha de costura n° 10 equivale a uma abertura f 64) é outro fator a se explorar. Se tudo vai sair em foco, até o que está bem pertinho, vale a pena estimular o uso do primeiro plano, como tão bem orienta a equipe do projeto Cidade Invertida.

Imagem positiva pinhole do aluno Francisco Sérgio do projeto Cidade Invertida em parceria com o FIC Cultura. (2)

Acima, imagens feitas com lata de leite. Ao lado, imagem de analógica automática do Renato e do Tiago, e a dupla posando com suas câmeras antes de fotografar.

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Câmeras pinhole alinhadas produzidas por alunos do projeto Cidade Invertida (autor da foto: Ricardo Hantzschel). Negativos pinhole secando no varal, entre eles o produzido pelo aluno Francisco Sérgio.

e) O tempo de exposição, variável resultante dos aspectos anteriores, me parece o fator de maior “risco” para o sucesso da empreitada. A longa exposição necessária demanda câmera fixa e atua no campo temporal, dando concretude ao ato fotográfico, dilatando-o pelos ponteiros do relógio ou pela contagem de minutos-jacarés e araras – hoje, o sempre presente celular baniu essa dimensão “animal” da contagem, uma pena. Todas essas experiências precisam, no entanto, do know-how do professor para sugerir os tempos de acordo com a luz ambiente e demandam planejamento da atividade por parte dos alunos. Essa característica permite algumas brincadeiras:

_ a primeira é tentar ficar imóvel num autorretrato de aparência quase fantasmagórica, dependendo da imobilidade do modelo-estátua: muito interessante para trabalhar questões corporais, auto-observação e consciência corporal. _ a segunda é usar a longa-exposição como elemento de linguagem, em busca desses rastros de movimento, e mais uma vez os movimentos corporais – humanos ou não – entram como elemento ativo num percurso que pode ser uma dança para a câmera. _ uma terceira alternativa, ainda com a câmera parada, é fazer uso dos fracionamentos que esse tempo dilatado permite, e as múltiplas exposições podem ser um motivo a mais para soltar a criatividade. (3) No entanto, esta atividade requer um planejamento detalhado, como se vê na documentação abaixo e nas imagens resultantes.

Pinhole grande-angular em lata de leite feita por alunos em 1998.

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Projeto de execução de captação com pinholes com alteração da pose e do lugar do modelo, do trio Emílio, Maurício e Daniel, alunos da 8ª série da turma de 1997. O desenho com linha do tempo localizando tanto o momento de abertura e fechamento das câmeras 1 e 2 quanto o movimento do modelo nos momentos a e b. A imagem resultante que deu certo: Emílio diante de si mesmo.

f) Quanto ao processo químico, pressupõe-se o domínio desta etapa – o que costumo concretizar fazendo fotogramas, atividade que possibilita o aprendizado de procedimentos básicos de laboratório PB. Uso negativos em papel nas pinholes justamente pela possibilidade de imersão no laboratório PB – não me parece cristão privar os alunos da experiência de ver uma imagem fotográfica aparecer pouco a pouco em meio às ondas sutis da primeira bandeja. Lembrete fundamental é colocar a emulsão do papel para cima na hora de revelar. A transversalidade temática da imagem fotográfica permite inúmeros usos da câmera pinhole, e quando se pode fazer proveito disso os resultados podem ser ainda mais interessantes, principalmente em tempos de valorização da interdisciplinaridade no ensino formal. O prazer de ensinar fotografia parece um prolongamento da nossa experiência feliz de estudante: daí ter começado este texto falando da minha experiência como aluna, tão comum a qualquer iniciado, mas que evoca um retorno fundamental quando se ensina – não é bonito ver que o que nos motivou ainda motiva?

Alunos do Colégio Bialik, turma de 1997, no laboratório fotográfico PB.

Notas 1. Este curso de fotografia, realizado dentro da disciplina de Artes, foi apresentado em 2000 no Congresso A Comunidade Discutindo a Educação – 2º Encontro da Rede Judaica de Educação sob título Projeto Olhar São Paulo. Compreendeu dois semestres de execução em 1999, e, entre outras atividades, destacamos a visita à exposição Hildegard Rosenthal no Instituto Moreira Salles em São Paulo, que foi sensibilizadora para todo o desenvolvimento posterior. 2. Alunos participantes do Projeto FIC Cultura para AES Eletropaulo, Casa de Cultura e Cidadania da Unidade Osasco, 2010. 3. Como se observa nas imagens do alunos do Colégio Israelita Chaim Bialik, turma da 8ª série de 1997.

Referências Francastel, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1993. Moholy-Nagy, László. Painting Photography Film. 1925. Trans. Janet Seligman. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1973.

Outro resultado divertido obtido com procedimento semelhante.

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c i d a d e i n v e r t i d a Ricardo Hantzschel

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luz passou pelo pequeno orifício e a água entrou de cabeça para baixo na Igreja de Praia Seca – RJ. O milagre da formação da imagem aconteceu em janeiro de 2014, quando o Cidade Invertida transformou a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, padroeira dos salineiros, em uma câmara obscura. Os fiéis incrédulos viram a familiar imagem da Laguna de Araruama e suas salinas projetadas em uma tela instalada na nave. Céu azul embaixo, sal branco no topo: a imagem invertida fascinou, gerou dúvidas e perguntas. A partir da desestabilização da paisagem familiar das salinas, iniciamos uma oficina do Cidade Invertida sobre a formação da imagem, aplicada na construção de um objeto óptico, a “luneta obscura” portátil, que permitiu que os participantes levassem o olhar do mundo revirado para qualquer outro lugar. Um mundo revirado tem muita novidade para oferecer, entusiasmar e deslumbrar. Do deslumbramento, vem a reflexão. Mais do que educar o olhar ou explicar a formação da imagem, a câmara obscura reapresenta o mundo e incita o sujeito a reconquistar o lugar que habita. Esse é o trabalho do Cidade Invertida, um grupo de fotógrafos e educadores pelo qual já passaram

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mais de 15 integrantes, desde a sua fundação em 2006, e percorreu cerca de 19 mil km, ministrando mais de 130 cursos e oficinas em 35 cidades dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Nosso simpático trailer, que funciona como câmara obscura e laboratório de revelação preto e branco, já é uma tradição em eventos fotográficos. Estivemos em seis edições do Festival Internacional Paraty em Foco, estreamos em 2013 no Foto Espanha e na 4º Mostra São Paulo, e, em 2014, participamos do Foto em Pauta, em Tiradentes. A equipe atual, que coordeno, é composta por Maurício Sapata, Mariane Lima e Anna Clara Hokama. Assim, conduzimos em paralelo dois tipos de atuação. A primeira é a investigação de câmeras e suportes artesanais, aliada a uma pesquisa que traça um percurso histórico pela fotografia, desde a imagem óptica pré-fotográfica, até a sua fixação nos mais diferentes suportes sensíveis. Na era da fotografia digital, trabalhamos na preservação do legado das técnicas históricas desenvolvidas pelos precursores da fotografia. Nossa segunda linha de atuação é sociocultural, e visa a desmistificação da fotografia nas oficinas que organizamos em ONGs, escolas, fábricas de cultura, unidades do SESC, movimentos comunitários e museus. O mote desmistificador é a pergunta: como é estar dentro de uma câmera fotográfica no momento da aparição da imagem? Depois de exploradas as questões físicas sobre a luz, partimos para a fase de conscientização das pessoas sobre os discursos contidos nas imagens, os quais muitas vezes assimilamos sem questionar.

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A imagem é uma forma de comunicação tão forte que sensibiliza a ponto de abrir-nos para conteúdos captados instantaneamente e assimilados sem crítica. Podemos dizer que o Cidade Invertida alcança um objetivo político quando instrumentaliza nossos olhos com recursos para criar as próprias imagens e receber de forma crítica as imagens que fazem parte de nosso cotidiano. Os participantes de nossas oficinas têm a chance de abandonar a posição de receptores passivos e se tornarem proprietários da própria visualidade e inventores de novas imagens, que contemplam seu repertório visual, com seus lugares, sua cultura a partir de suas próprias escolhas. Se sou eu um emissor de imagens, preciso saber o que quero comunicar, seja um universo fantasioso, seja um imaginário próprio. Os estereótipos estéticos e a falsa noção de “fotografia tecnicamente correta” são problematizados pela singularidade da imagem gerada através de técnicas artesanais – não há duas câmeras de orifício (pinhole) iguais, o que motiva o novo fotógrafo a explorar a singularidade de sua subjetividade.

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Cada câmera constrói um universo que só ela é capaz de gerar. Cada fotógrafo explora este universo de forma única. Aqui, a imagem é metaforicamente invertida, colocando os modelos de ponta-cabeça: o céu de clichês cai para o chão, como na imagem de Praia Seca, e o participante pode apanhá-los e ressignificá-los, usando as mãos para construir, revelar, emulsionar materiais sensíveis à luz, editar seus enquadramentos, compor sua linguagem, dar vazão à sua imaginação. A imagem nunca é ingênua, e conhecer como ela se forma potencializa a experiência do observador. Uma importante mudança de rumo no projeto, a partir de 2009, foi o redirecionamento das ações com foco nos educadores, visando a multiplicação dos conteúdos pesquisados e desenvolvidos pela equipe e a valorização de práticas sustentáveis com materiais simples, baratos e de fácil replicação. Dessa forma, nossa atuação cresceu, atingindo indiretamente um número significativo de novos olhares. O uso da imagem como meio de transmissão de ideias, discursos, valores estéticos e/ou éticos é extremamente eficiente e seu

uso extensivo pela publicidade, por exemplo, não deixa dúvidas de sua eficácia. O objetivo do Cidade Invertida é despertar o gosto pelo apreender através de um conteúdo que crie fascínio e reflexão, apresentado de forma lúdica. A ideia é inverter a mão de direção habitual entre professor e aluno, fazendo com que o segundo passe a buscar os porquês das coisas, tornando-se, assim, parceiro no aprendizado. Para facilitar o acesso dos educadores às nossas estratégias educacionais, disponibilizamos parte das pesquisas de materiais e conteúdos didáticos em nosso site www.cidadeinvertida.com.br, a fim de viabilizar a multiplicação de nossos aparatos ópticos como forma de apoio à educação. Os desafios atuais do projeto se concentram na manutenção de uma equipe de educadores treinados, a continuidade das pesquisas sobre fotografia artesanal (câmeras e suportes) e a obtenção de patrocínio para que a formação de agentes multiplicadores seja uma constante. Quanto mais pessoas souberem ver, mais a imagem será genuinamente uma ferramenta de construção de conhecimento do mundo.

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P IN H OLEANDO (ou MOTTAI-NAI): Potência e possibilidades pedagógicas dos fazeres

(…) todavia, uma vez que a atenção do homem se dirige na maioria das vezes para os objetos e suas ações, a dívida que se tem para com a luz não é amplamente reconhecida. Rudolf Arnheim Arte e percepção visual – uma psicologia da visão criadora

Miguel Chikaoka

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m 1977, quando descobri na prática da fotografia uma via para exercitar e expressar minhas inquietações filosóficas não fazia ideia do lugar para onde essa escolha poderia me conduzir. Na época, estudava na França, cursava o doutorado em Engenharia Elétrica pela Escola Superior de Engenharia de Nancy e essa descoberta mudou o rumo da minha vida. Os primeiros passos desse exercício foram impulsionados por uma experiência coletiva muito intensa e rica, no Photo Club de Monbois-Boudonville, complexo residencial universitário onde morei. O calor da acolhida e a generosidade dos colegas foram fundamentais para acender a paixão pelos meandros do processo fotográfico. O aconchego do laboratório tornou mais ameno meu primeiro inverno na Europa. Nos anos seguintes, ainda na contramão do compromisso acadêmico, fui seduzido pelos temas tratados por autores que tive a felicidade de ler. Não foram muitos, mas a combinação de reflexões propostas por David Cooper, Ronald Laing, Raoul Vaneigem, Paulo Freire e Augusto Boal somadas ao processo de aprendizado e prática cotidiana da fotografia foi suficiente para selar a decisão de abandonar de vez a engenharia. De volta ao Brasil, no início de 1980, outra decisão: mudar do estado de São Paulo – onde nasci e morei até rumar para a França – para uma outra

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região com o propósito de conhecer o meu país por outro ângulo. Sem um destino predeterminado entreguei-me à sorte, cheguei a Belém do Pará, onde comecei a trabalhar como fotógrafo independente e continuei exercitando o aprendizado. Em meio ao envolvimento com os movimentos políticos e culturais, fui convidado por um coletivo de arte-educadores para ministrar o primeiro curso de iniciação à fotografia. A proposta era sensibilizar o público para a “arte fotográfica”. Comecei, intuitivamente, mesclando o repertório de pensamentos que absorvi nas leituras com uma visão panorâmica do meu processo de aprendizado, e desenhei um percurso tendo como norte facilitar o entendimento da fotografia a partir do reconhecimento da luz como matriz do processo. Ou seja, entender que, não importa a marca, modelo e tamanho da câmera, o princípio da formação e captura da imagem se processam pela e com a natureza da luz, chamando atenção para o que acontece no nosso olho. Ou seja, sugerir que a prática da fotografia, como soma e congelamento de um lapso de tempo e de um campo da nossa visão, real ou imaginário, poderia representar o exercício do nosso olhar, do nosso pensamento e, portanto, a expressão do nosso estado de ser, estar ou pensar. De todo modo, nas minhas incursões como facilitador, os exercícios eram realizados com uso de câmeras convencionais, possuindo dispositivos de leitura e controles de luz mais ou menos sofisticados.

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PINHOLE Em 1983, durante uma itinerância promovida pelo então Núcleo de Fotografia da Funarte, a pesquisadora e educadora Regina Alvarez passou alguns dias em Belém para ministrar a oficina “Fotografia sem câmera”, na qual apresentou a técnica da fotografia pinhole e dos fotogramas. Não participei diretamente da oficina, mas tive a felicidade de conhecê-la pessoalmente e trocar algumas ideias sobre o potencial pedagógico dessas técnicas. Assimilei-as com alguns multiplicadores e adotei-as como uma peça chave nas oficinas que ministro. Esse aporte abriu novos horizontes para as atividades de ensino-aprendizado que eu vinha trabalhando. Explorar a gênese do processo como potencializadora da construção do conhecimento crítico sobre o mesmo passa a ser a busca.

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Na IV Semana Nacional de Fotografia realizada, em Belém, pelo Instituto Nacional da Fotografia, em 1984, tive a oportunidade de trabalhar com Rino Marconi e Cláudio Feijó numa oficina denominada “Vivendo as imagens”. As trocas de experiências e reflexões sobre as imagens rompem fronteiras e produzem um deslocamento da minha atenção para além das que resultam da projeção dos raios luminosos no interior dos dispositivos ópticos. Com isso, passo a tratar a imagem como fenômeno que se constitui através da experiência de todos os nossos sentidos e não somente da visão. Passo então a utilizar dinâmicas mobilizadoras e desmobilizadoras dos sentidos como recurso para ativar e exercitar campos cerebrais e provocar discussões sobre o que seria o nosso “mundo das imagens”.

Sigo caminhando com essas combinações e, ainda em 1984, durante o Seminário Nacional de Ensino de Fotografia no Brasil – realizado em Campinas pelo Instituto Nacional da Fotografia da Funarte em parceria com o Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas –, reencontro com Rino Marconi que nos brinda com a construção de uma câmera obscura. Até então, meu conhecimento sobre o assunto era teórico, baseado no estudo da física, da história e da experiência com a câmera pinhole. Enfiar a cabeça numa caixa de papelão e ver a imagem projetada através de um furinho foi incrível. Naturalmente, como não poderia deixar de ser, acabei incorporando mais esse “momento pré-fotográfico” nos meus percursos. Afinal, era o que faltava para propiciar aos que enveredam pelos caminhos da fotografia pinhole uma apropriação mais potente das leituras que se oferecem nas abordagens do processo da luz-imagem. Com a “descoberta” dessas potências passei a refletir mais profundamente sobre as possibilidades pedagógicas do processo como um todo. Resolvi organizar percursos partindo da premissa de que “os fazeres” são ativadores de experiências sensoriais. Como consequência, a partir do final dos anos 1980, acrescentei a construção, passo a passo, de um modelo/formato de câmera obscura com uma folha de papel cartão. Inicialmente, para transformar a matéria-prima, ou seja, o papel cartão, em uma caixa, segui o que considerava “normal”: uso de régua para medir, lápis para traçar linhas de dobras e cortes, tesoura ou estilete para cortar etc. Esse processo, aparentemente simples, criava zonas de tensão no ambiente porque nem todos tinham intimidade ou domínio do uso dessas ferramentas. De tal forma, muitas caixas não saíam

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na medida projetada, exigindo muita atenção e ajuda para correções a fim de evitar frustrações. Apesar do “final feliz”, com todos surpresos e satisfeitos em experimentar a formação de imagens nas suas câmeras, restava-me um sentimento de insatisfação pelo grau de atenção e volume de intervenções exigidos nesse passo a passo. O Origami, arte de dobrar o papel com as mãos, foi a inspiração para substituir as ferramentas pelas mãos. No redesenho desse percurso, mantive apenas um pedaço de madeira como ferramenta auxiliar para marcação das dobras, sobretudo no lugar dos recortes. Com isso, além de eliminar as zonas de tensão, percebi a importância de agregar e valorizar o corpo como lugar de possibilidades. A partir desse evento, resolvi procurar nos desafios de não se ter o “necessário para fazer”, a inspiração para encontrar percursos alternativos potencializadores dos processos. Neste exercício acabei assimilando uma metáfora de um ensinamento zen no qual o discípulo deve “exercitar o desenho de um círculo zen por mil vezes pois de outra forma ele não estaria preparado para desenhar o resto do seu universo”. Ou seja, ver e explorar em cada repetição algo mais profundo que não uma mera repetição de um gesto.

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O silêncio Uma outra experiência marcante se deu através do silêncio. Em 2007, no Encontro de Inclusão Visual do FotoRio, tive a oportunidade de trabalhar numa roda constituída por ouvintes e não ouvintes, participantes do projeto Fotolibras. Sem conhecimento da linguagem dos sinais, fiz o passo a passo demonstrando apenas de forma mais incisiva os movimentos com as mãos ao mesmo tempo em que explicava os procedimentos aos ouvintes. O que mais surpreendeu nessa experiência foi a precisão e rapidez com que os não ouvintes conseguiam acompanhar cada passo, enquanto muitos “ouvintes” pediam para repetir, mais de uma vez, a explicação sobre cada movimento demonstrado. Foi assim que comecei a questionar o fluxo de informações e a nossa capacidade de emitir, receber e processá-lo de forma a constituir-se em conhecimento. Resolvi, então, experimentar a comunicação silenciosa com qualquer público, servindo-me apenas de gestos e movimentos do corpo como meio de orientar a construção de dispositivos como câmeras obscuras e câmeras pinhole. Afinal, pensei, se a luz é essencial para a experiência com esses dispositivos, nada mais oportuno do que esta apropriação: trabalhar o fluxo de informações através das ondas luminosas no lugar das ondas sonoras. Deslocar a atenção dos ouvidos para os olhos. O resultado foi simplesmente impressionante.

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MOTTAI-NAI Neste momento acabo reavivando as lembranças da minha infância, de onde aflora a palavra mottai-nai, expressão exaustivamente utilizada no meu cotidiano familiar. A palavra resulta da união de dois termos: mottai [勿 体], de origem budista, refere-se à característica sagrada das entidades materiais, que pode ser entendida como essência, alma, substância; e nai [無 い] que representa a forma negativa da língua japonesa, denotando ausência, inexistência. Logo, mottai-nai expressa a negação desses laços, um conceito atemporal que induz à reflexão sobre o desperdício da nossa relação com tudo que povoa o universo. Trata-se de uma expressão penosa, de tristeza, que denota a negação do vínculo entre todas as coisas. O uso diário na minha casa era para indicar o desperdício de materiais, tempo ou qualquer outro recurso. Nesse curto-circuito de experiências e referências comecei a pensar mais sobre o que de essencial poderia estar contido nas abordagens que ve-

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nho trabalhando. Fixo o olhar sobre a experiência da pinhole, mais precisamente sobre o instante-lugar onde “nasce” a imagem. Imagino dois ambientes iluminados e, entre eles, uma parede fina e opaca. Nessa situação, os raios de luz refletidos pelas cenas-objetos de cada um dos ambientes não passam por essa parede. Bastaria produzir um pequeno orifício para que cada um dos raios de luz refletidos pela cena de um ambiente, cuja trajetória encontre esse orifício, atravesse para o ambiente oposto e, da mesma forma, desse ambiente para o primeiro. Milhares de raios atravessando o minúsculo orifício de forma absolutamente precisa e organizada, formando imagens. De um lado e de outro. É o princípio da pinhole, aqui em dose dupla. Para os nossos olhos, a projeção da imagem do ambiente oposto só é visível quando a luz do ambiente onde estivermos for apagada. Para visualizar a imagem desse ambiente no outro basta trocar de lado e reproduzir a situação. Para mim, mesmo sabendo que isso é possível devido à natureza dual da luz, a constatação dessa simultaneidade é algo incrível e instigante.

Ainda no campo da matéria, penso ordens de grandeza não menos espetaculares da luz, como propagação autossuficiente, trajetória em linha reta, frequência e velocidade. Trezentos mil quilômetros por segundo, para mim, é sinônimo de instantaneidade e espaço-distância. Dar uma volta completa na Terra em menos de dois décimos de segundos ou ver, a olho nu, distâncias astronômicas, intangíveis, quando penso em deslocamento físico para alcançar estrelas. Olhar para o céu numa noite estrelada e ver, a olho nu, milhares de estrelas que se encontram a anos luz significa concretamente que posso experimentar, pelo menos pelo sentido da visão, uma dimensão cósmica. Somando a essa ordem de grandeza o fato de que a luz, em todas as culturas, representa mais do que a matéria (o culto e a importância dada à luz têm uma herança mística, religiosa, filosófica e hermética), penso o quanto dessa potência eu estaria desperdiçando nos processos em que busco provocar e facilitar o entendimento do princípio da formação e captura da imagem.

Com esse pensamento, venho repertoriando a construção de vivências com abordagens que buscam explorar a potência pedagógica dos processos para além de uma iniciação ou formação na área da fotografia. Numa sociedade que produz tantos desperdícios, acho fundamental integrar possibilidades educativas transdisciplinares inerentes a uma abordagem transversal desses processos. Nos últimos anos, venho compartilhando experiências com educadores para uma apropriação desse olhar na perspectiva de construir percursos educativos com maior aproveitamento dos recursos mais próximos, partindo do próprio corpo sensível e valorizando a potência pedagógica dos fazeres. Sobretudo os fazeres que nos levem a exercitar e pensar sobre a nossa essência vital. Acredito que, mesmo sem um rigor científico, como gostaria, venho trabalhando atualmente com uma visão aberta para o exercício do pensamento complexo de Edgar Morin, e nela busco inspiração para trabalhar alternativas que permitam relacio-

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nar, a cada passo do processo, as diferentes percepções de qualquer assunto, a fim de problematizá-lo para além de um conhecimento específico. Trilho aqui a ideia de que os processos de construção do conhecimento são baseados no sistema de comunicação entre o cérebro e o mundo, por meio dos sentidos. Diante das infinitas possibilidades, a escolha da “porta de entrada”, aquela para se abrir e buscar conexões nessa teia, é norteada pelo desejo de “dar sentido aos sentidos”. A cada conexão outras dimensões se estabelecem e, consequentemente, a percepção para novas possibilidades é aguçada à medida que as conexões evoluem. Como exemplo das dinâmicas que decorrem desse olhar, cito aqui uma vivência que gosto de propor para grupos de pessoas com quem compartilho experiências e busco refletir sobre a origem e os significados do mundo das imagens. São vivências que podem variar de acordo com o público/contexto e guardam em si múltiplas possibilidades de leituras, interpretações, conexões e desdobramentos. O material que utilizo: pedaços de tecido para vendar os olhos, sementes guardadas num saco, pedaço de papel para desenho e lápis preto. Uma variante seria utilizar no lugar do papel de desenho o papel fotográfico, no lugar do lápis um pincel fino e alguns mililitros de revelador de papel devidamente preparado, banho interruptor, fixador e água. O exercício começa com as pessoas do grupo constituindo pares. Muitos jogos e brincadeiras podem ser aplicados para que isso se produza de forma incidental. Caso alguém tenha algum trauma em vendar os olhos, ela é convidada a ficar como observadora e comentar o processo. Convido cada

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par a escolher um local confortável e sentar, uma pessoa de frente para a outra, de forma que possam se tocar. Entrego os panos aos participantes e convido-os a vendarem os olhos e se darem as mãos, tocarem, relaxarem, conversarem e combinarem o momento em que se sintam preparados para receber uma semente. Nesse momento o par se manifesta levantando uma das mãos. Levo o saco com sementes – que podem ser de uma ou várias espécies – até a dupla e ajudo uma das pessoas a escolher e pegar uma única semente. A partir desse momento convido a dupla a experimentar a semente escolhida. O tamanho, a forma, o peso, a textura e as sensações que ela provoca em cada um. Durante o exercício as duplas podem conversar livremente sobre essa experiência. Quando se sentir “satisfeita”, a dupla sinaliza levantando a

mão com a semente. Vou até eles, recolho a semente e coloco-a novamente no saco. Depois disso peço que, cada um a seu tempo, retirem e devolvam-me as vendas. Concluída essa parte, proponho que o grupo se reúna, sentado em círculo, e entrego a cada um dos participantes um pedaço de papel e um lápis e lanço uma primeira pergunta: o que a semente representa para você? Um minuto para cada um anotar a ou as respostas no papel. Esgotado o tempo, peço que cada um leia, em voz alta, as anotações. Em seguida, lanço uma segunda pergunta: o que é preciso para que a semente tenha um futuro? Peço que anotem a resposta junto à anterior. Quando todos tiverem concluído, peço novamente que cada um leia para o grupo e, se for de interesse, abrimos para o debate. Sigo para a terceira etapa: sob condições favoráveis, a semente que você tocou de olhos vendados irá germinar, transformar-se. Imagine e desenhe, a partir do que você sentiu, como será essa semente no futuro. Ao final peço que os desenhos sejam colocados, lado a lado, no centro da roda e abrimos para as falas.

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Quando reflito sobre o que estaria em jogo nesses percursos percebo que eles se conectam também com aquilo que guardo entre minhas anotações, seja a partir do que li, vi ou ouvi, seja em palestras ou na rua. No caso das sementes, por exemplo, acabo vendo uma tradução dessa experiência no artigo “Sabor do saber: o sexto sentido” escrito pelo educador Rubem Alves, e publicado em sua coluna no caderno Sinapse, da Folha de São Paulo: Os cinco sentidos são, a um tempo, seres da ‘caixa de ferramentas’ e seres da ‘caixa de brinquedos’. Como ferramentas os sentidos nos fazem conhecer o mundo. Mas há um sexto sentido dotado de propriedades mágicas, um sentido que nos permite fazer amor com coisas que não existem... Esse sentido se chama ‘pensamento’. Digo que o pensamento é um sentido mágico porque ele tem o poder de chamar à existência coisas que não existem e de tratar as coisas que existem como se não existissem. E é dele que surge a grandeza dos seres humanos. O pensamento nos dá asas, ele nos transforma em pássaros!

Concluo que a dinâmica das sementes é para mim um jogo, uma metáfora que conecta o instante-lugar onde “nasce” a imagem-pensamento por meio da educação (do) sensível, conforme o que trata João Francisco Duarte Jr. na obra O sentido dos sentidos – a educação (do) sensível, cuja leitura

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foi um presente da amiga e pesquisadora Val Lima, que escolheu estudar as minhas incursões no campo da educação. Semente é sinônimo de latência, ideia, continuidade, futuro, vida... Sementes somos todos. E educar é cuidar das sementes, da planta que germina e segue crescendo. É seguir crescendo e ter de onde partir, sem medo de ser feliz. O educador é um filtro, uma baliza, um vento que sopra, um fogo que se acende e que se apaga para que a experiência da escuridão se produza, é um orvalho, a chuva e a tempestade. O lugar do furo da agulha, ou do espinho, foi um lugar de inspiração para pensar o todo a partir de um ponto. Ponto de convergência dos raios de luz. Onde aprendi que menos pode ser mais. Que posso exercitar o que inspira o pensamento de uma música da banda Titãs: uma coisa de cada vez, tudo ao mesmo tempo agora. Sim, porque a potência desse processo está na luz. Essa luz que se espalha e nos leva a dimensões que podemos imaginar, mas só podemos experimentar fisicamente com alguns dos nossos sentidos, como o da visão. Estar com a luz e aprender com ela é estar de acordo com as leis do universo. Luz-fogo, elemento vital que tem seus pares, como a água, a terra e o ar. Penso que a educação do presente, se quisermos um futuro, precisa de um realinhamento com a potência pedagógica desses elementos.

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Urublues O painel Urublues foi criado a partir de um convite para o Memorial dos Povos de Belém do Pará como um painel-mosaico, de 5 x 2,56 m, constituído por 8 mil foto-pixeis (imagens do complexo Mercado-Feira do Ver-o-Peso, capturadas em papel fotográfico 4 x 4 cm, utilizando câmera pinhole feita com tubo de filme – 3,5 cm de diâmetro por 4,5 cm de altura). O projeto teve a participação de 121 pessoas (trabalhadores e frequentadores do Ver-o-Peso e seus familiares, estudantes, profissionais liberais, fotógrafos, artistas, crianças e jovens assistidos por projetos e programas socioeducativos) em oficinas e jornadas de fotografia pinhole realizadas de junho a setembro de 2004, no complexo Mercado-Feira do Ver-o-Peso.

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Amazonas: imagem de um mundo mítico Maria di Andrea Hagge

Amazônia: a fecundação da arte na vida

Foi em um território mítico, para os lados da bacia amazônica, ponto de encontro da população ribeirinha e da exuberante floresta, que Maria di Andrea Hagge conta que redescobriu as raízes do lugar onde nasceu: “Um exercício de saudade do Amazonas, imagens de um território líquido. Expressam o que senti no reencontro com esse labirinto de rio e selva – uma experiência emocional única.” Entretanto, a moldura do real parece não bastar ao diálogo visual que Hagge empreende com a Amazônia. Com a câmara pinhole, aproxima-se do mistério da vida que emana do enigma do visível. Assim, suas fotos em preto e branco apontam, tanto para a fotografia como um rastro daqueles amazonenses que vivem às margens do rio, quanto para um fenômeno óptico tortuoso e incerto, à deriva, deslocado das categorias fixas da representação do visível. Há uma significativa mudança de foco. Não somente pelas questões estéticas presentes nas imagens, como também pelo que a artista expressa de sua mitologia pessoal – algo que se inscreve no seu fazer fotográfico e se constitui no cerne do seu maravilhamento pela região.

Angela Magalhães e Nadja Fonsêca Peregrino Curadoras e pesquisadoras associadas de fotografia

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mão na lata Imagens e N a r r at i va s Tatiana Altberg e Mão na Lata

Há cerca de dez anos iniciei um trabalho de educação usando a fotografia pinhole e a literatura com crianças e jovens na Maré (1). Por ocasião de uma exposição feita com as fotografias da segunda turma, o projeto ganhou o nome de Mão na Lata, escolhido pelos próprios alunos em referência a suas câmeras feitas com latas. Desde então venho aprendendo que as relações de troca que envolvem o processo pedagógico são tão potentes para a transformação daqueles que encontro como de mim mesma. Gostaria de compartilhar um pouco desses caminhos nas páginas que se seguem.

As imagens que apresentamos aqui fazem parte do livro Cada dia meu pensamento é diferente, publicado em 2013. As que estão acompanhadas por texto fazem parte da série Da Minha Janela, realizada em 2012 em homenagem à primeira fotografia feita por Joseph Nicéphore Niépce, que fotografou a vista de sua janela em uma exposição que durou 8 horas. Essas fotografias também são parte integrante do livro Cada dia meu pensamento é diferente.

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Mão na Lata propõe um espaço investigativo, de criação coletiva, que usa a fotografia e o texto para construir narrativas autobiográficas e ficcionais, em busca do autoconhecimento e das possibilidades de escritas de si. Um espaço de trocas de experiência, convivência e compartilhamento de mundos. A fotografia sempre funcionou, para mim, como um pretexto para o encontro. Sempre usei a câmera fotográfica como um instrumento de aproximação. Ao longo de meu percurso como fotógrafa, percebi que voltar meu olhar para o outro era também uma forma de me aproximar de mim mesma. Comecei a realizar o trabalho com educação pela imagem, acreditando que a fotografia poderia ser também para outras pessoas um potente dispositivo de reflexão, de autorreflexão. Que poderia, como outros processos de aprendizagem, potencializar ou reconfigurar o modo como a pessoa se reconhece como sujeito e a sua maneira de observar e de se relacionar não só com a sua própria vida mas com o mundo. Iniciei o trabalho de oficinas de fotografia e construção de narrativas na Maré, no Rio de Janeiro, em 2003, em parceria com a Redes da Maré, (2) casa de nosso projeto até hoje. Quando cheguei à Maré para dar aulas de fotografia, eu não tinha experiência com práticas pedagógicas. A elaboração dos processos se deu de forma muito intuitiva. O diálogo entre fotografia e literatura sempre esteve presente em meus trabalhos. Quando iniciei as oficinas para crianças e adolescentes, antes mesmo de propor exercícios propriamente fotográficos, me pareceu interessante começar com atividades que envolviam o diálogo entre texto e imagem. O autorretrato foi o primeiro exercício fotográfico proposto. Apontar a câmera para si próprio é algo que os jovens já fazem com muita naturalidade. O desafio foi tornar o autorretrato um processo de reflexão do aluno sobre si, fruto de uma intenção. É preciso prestar atenção no entorno e pensar antes de gerar uma imagem. No caso do pinhole,

com o qual trabalhamos, a reflexão se faz ainda mais necessária. Às vezes peço que escrevam sobre as qualidades de que gostam em si, e sobre as que não gostam. Dessa forma, os alunos precisam fazer uma reflexão a respeito de si mesmos. Geralmente, a simples enumeração das características gera uma animada conversa e muitas perguntas. Qual imagem seria capaz de transmitir algo a seu respeito? Alguma parte do corpo poderia ser representativa de uma qualidade? Alguém poderia representá-lo? A mãe? Um irmão? O cachorro? Um texto? Quais são os objetos, os lugares que falam a nosso respeito? Para isso, eles têm que pensar em coisas e pessoas importantes em suas vidas, aguçar a sua capacidade sensível e prestar atenção ao que acontece fora e dentro de si. Aos poucos fui entendendo e tentando mostrar, por meio de exercícios, que o autorretrato sempre terá uma natureza intersubjetiva, cambiante, que não temos identidade fixa, que somos feitos de muitas vozes, de fora e de dentro de nós. O que sabemos e o que vemos de nós mesmos está e sempre estará impregnado de alteridade, do olhar do outro. Com o entendimento do autorretrato expandido, podemos criar um rico universo de diferentes significados sobre nós mesmos. Dessa maneira, muitos elementos distintos podem fazer parte de um autorretrato: a casa, os amigos, a família ou um estado de espírito, um poema, uma paisagem. Ainda nas primeiras turmas, percebi a dificuldade dos alunos em definir o que queriam mostrar com as suas imagens. A partir disso comecei a propor exercícios muito simples com pares de oposição, como, por exemplo, cheio/vazio, escuro/claro, aberto/fechado. Fazendo associações e relações entre as palavras e imagens possíveis, as crianças iam à rua tentar encontrar as fotografias, como em um jogo. Com o tempo, as palavras deram lugar às frases, as frases às histórias, sempre aprofundando a investigação das possibilidades de relação entre texto e imagem. Para a construção das histórias, às

Fotos de Jonas Willami Ferreira e Augusto Araújo

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vezes as fotos serviam de ponto de partida, como em “Aliens x Azedos”, criada a partir da iniciativa dos alunos Renato Rosa, Felipe Oliveira, Deyvid Ferreira e Fagner França, (3) que construíram uma narrativa feita de autorretratos. E em outros momentos, a história era elaborada para depois buscarmos imagens que dialogassem com a narrativa, ou, como no livro Mão na Lata e Berro D’água, (4) partíamos de uma obra literária de outro autor para criar imagens. Em 2006, ainda com o mesmo grupo de adolescentes que começou as oficinas em 2004, parte dos quais autores de “Aliens x Azedos”, realizamos nosso primeiro ensaio publicado, chamado Mão na Lata e Berro D’água. (5) O livro foi editado pela Nova Fronteira e lançado no mesmo ano, na Flip em Paraty. O trabalho foi feito a partir do romance A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água, de Jorge Amado. Durante três meses nos debruçamos sobre o universo de Quincas. Nosso projeto de estudo foi a Bahia, o autor, o mundo lúdico de Quincas, as aproximações e afastamentos com nossos mundos. Viajamos para Salvador, por uma semana, com um roteiro baseado nos lugares citados por Jorge Amado. Percorremos os caminhos de Quincas. Tentamos imaginar, em cada lugar, como seria o ponto de vista do personagem. Cada bêbado que cruzava o nosso caminho era apontado pelos meninos que diziam: “Tati, olha lá o Quincas!”. Seus quatro amigos, volta e meia, apareciam diante de nós. Entramos, todos, no universo delirante do nosso personagem andando pelas ruas da Bahia. Entre novembro de 2011 e janeiro de 2013, realizamos nosso segundo ensaio publicado em livro, já com outro grupo de adolescentes. Do primeiro grupo só continua conosco Fagner França, atuando como professor. Cada dia meu pensamento é diferente, (6) título do livro, é um fragmento de um dos textos produzidos pelos alunos que ressalta a qualidade cambiante do pensamento reflexivo conquistado pelos alunos aos poucos, por meio de um prolongado processo de criação. A ideia do pen-

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samento que se modifica a cada dia nos lembra a frase do escritor Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa”. Machado foi nosso ponto de partida e guia ao longo da construção do livro. Diferente da experiência com Jorge Amado, em que trabalhamos com uma única história, optamos por um contato mais transversal com o universo de Machado de Assis, para nos familiarizarmos com seu estilo singular, sua relação com a geografia do Rio de Janeiro e sua insistência na impossibilidade de definir o que quer que seja por meio de um único ponto de vista. A ironia e o humor apurados do autor foram características fundamentais para conquistar o novo grupo de adolescentes dos 12 aos 18 anos (7) e nos ajudar a vencer o desafio de leitura apresentado por uma obra escrita em uma época tão diferente da nossa. Os conflitos éticos, os dilemas morais e a crítica mordaz encontrados nos contos de Machado nos serviram para discutir muitos aspectos da experiência humana, fazendo com que os alunos fossem percebendo que toda pessoa é, em alguma medida, personagem e autora de sua própria história, passível de ser traduzida em texto e em imagem. Percorremos lugares do Rio de Janeiro mencionados nos contos ou relacionados com a vida de Machado, como o morro do Livramento, onde o escritor nasceu. Em seguida, passamos às paisagens da Maré, com as fotografias dos lugares por onde os alunos transitam no seu cotidiano, a intimidade dos espaços de convívio, suas escolas e seus lares. A ideia era também transpor o olhar observador característico de Machado para a vida na Maré. Desde o lançamento do livro, na Casa França Brasil, em 2013, temos participado de rodas de conversa sobre o processo de sua construção, em livrarias e centros culturais, além de exposições das fotos. É interessante observar como a cada nova oportunidade de expor seus processos de criação, e com distanciamento no tempo, os jovens

autores vão elaborando com mais profundidade a experiência que vivenciaram durante o ano de 2012. A construção de narrativas, fotográficas ou literárias, autobiográficas ou ficcionais, foi se tornando, assim, a base do nosso trabalho. Por meio da fotografia, os jovens vão aos poucos se aproximando da escrita e da leitura de um modo divertido, ativo. Aos poucos vão abrindo espaços para o campo do imaginário, do devaneio, da viagem. Esses espaços geralmente são ainda muito férteis na criança, porém, na maior parte dos adolescentes que tenho encontrado, a capacidade de simbolizar, a disponibilidade para imaginar, a curiosidade, já se apresentam em grande parte diminuída. Em parte, creio que isso se deve aos anos de educação utilitária, calcada na reprodução de conteúdos em vez da potencialização da capacidade perceptiva, que tende a padronizar os desejos, as identidades, erradicando a curiosidade e limitando a faculdade imaginativa. Esses espaços internos criados por atividades como a leitura, a escrita e a fotografia contribuem para que os participantes aos poucos agucem sua sensibilidade, seu espírito crítico, enunciando suas próprias palavras, suas próprias imagens e percebendo que são capazes de ser autores de sua própria vida. Cito a antropóloga Michèle Petit: (8) “Ler é conhecer a experiência de homens e mulheres, daqui ou de outros lugares, de nossa época ou de épocas passadas, transcrita em palavras que podem nos ensinar muito sobre nós mesmos, sobre certas regiões de nós mesmos que ainda não havíamos explorado, ou não havíamos conseguido expressar. Ao longo das páginas, experimentamos em nós, a um só tempo, a verdade mais subjetiva, mais íntima, e a humanidade compartilhada. E esses textos (...) representam uma abertura para círculos mais amplos, que se estendem para além do parentesco, da localidade, da etnicidade.” Acho que essa fala sobre a leitura, em alguma medida, pode ser ampliada

para a fotografia, não só no que diz respeito à sua fruição, mas também no que constitui a busca de muitos fotógrafos.

O olho pensante – as potências pedagógicas do pinhole Comecei a trabalhar com o pinhole, em um primeiro momento, devido a uma contingência operacional. Não tínhamos recursos para investir em equipamentos e filmes – em uma época em que a fotografia digital estava engatinhando no Brasil – e havia na instituição, por conta de uma doação, um lote de papéis fotográficos vencidos. De toda forma, me pareceu fazer sentido começar com a confecção de câmeras pinhole. O pinhole, técnica artesanal, sintetiza as noções essenciais para a escrita com a luz de que se constitui a fotografia. Um orifício, uma câmara vedada e uma superfície sensível. A potência pedagógica dessa técnica ficou evidente logo em minhas primeiras experiências com os alunos na Maré. Pouco a pouco fui encontrando formas de trabalhá-la, para que não fosse apenas um instrumental inicial ou simplesmente uma técnica, para se tornar a linguagem ou o fundamento mesmo de nosso trabalho. Essa potência pedagógica decorre de algumas características constitutivas do pinhole: a construção manual do dispositivo fotográfico, a relação com o tempo de exposição, a quantidade de imagens por saída fotográfica, a ausência de visor na câmera, a ausência de lentes e relação direta com a luz, a revelação da própria foto, a distorção nas proporções da imagem e sua aproximação de uma estética onírica, a possibilidade de relacionar épocas muito distintas do desenvolvimento tecnológico, entre outras. A construção manual do dispositivo fotográfico é um ato subversivo, eu diria. Nos tempos em que vivemos, com aparelhos digitais estruturalmente cada vez mais complexos, porém, com funcionamento cada vez mais simples e facilmente reduzidos a um click, fazer

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a sua própria câmera é como burlar a “automaticidade do aparelho”. É de certa forma, como propõe Vilém Flusser, (9) “transcender o totalitarismo robotizante dos aparelhos”. A câmera pinhole, que construímos com latas, é simples estrutural e até funcionalmente, porém, todas as operações que agencia, em conjunto, podem ser de grande complexidade, pois, a partir do momento em que começamos a pensar na produção das imagens, entramos no território dos conceitos. Talvez seja importante mencionar o uso do preto e branco, que, embora não seja uma exclusividade do pinhole, é um modo direto de abordar e traduzir conceitos. Trata-se não só de um recurso expressivo, mas também pedagógico. O preto e branco abstrai as outras cores e a forma como vemos, o que nos permite trabalhar noções simbólicas. Flusser diz que as fotografias em preto e branco “revelam a beleza do pensamento conceitual abstrato”. Vivemos tão intensamente uma realidade cada vez mais automatizada que uma pergunta recorrente ao apresentar uma lata transformada em câmera é: “Mas onde aperto o botão?”. A construção da própria câmera também ajuda na desmistificação da “caixa preta” que são os aparelhos fotográficos. Os alunos passam a saber como é o interior de uma câmera fotográfica e que, para que a imagem se forme, são necessárias operações físicas, químicas e ópticas, sem com isso perder a magia e o mistério inerentes ao processo. Quando nos sentamos para construir a câmera, a partir de latas que iriam para o lixo, além de ressignificarmos o objeto, recuperamos o tempo da conversa de roda em volta de uma atividade manual coletiva. Nesse momento surgem histórias, uns brincam com os outros, competem para ver quem faz a câmera mais bonita. O tempo vai sendo tecido lentamente e esquecemos um pouco da correria do cotidiano. As novas tecnologias da imagem e da comunicação nos fazem experimentar o tempo como nunca antes na história. A sensação generalizada de aceleração, de que as horas de um dia não são sufi-

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cientes para tudo que se tem a realizar são aflições comuns das novas velocidades a que estamos submetidos na contemporaneidade. O tempo expandido, artesanal, da fotografia pinhole nos oferece um importante contraponto pedagógico e existencial. Retoma uma possibilidade de contemplação, escuta e silêncio, cada vez mais raros. O tempo de exposição das câmeras à luz pode durar minutos, horas. O jovem acostumado com a tecnologia digital instantânea tem que fazer um grande esforço inicial para adaptar-se aos longos tempos de exposição. O ato fotográfico aqui não se dá por meio de instantâneos, tempos cada vez mais curtos conquistados pela tecnologia das câmeras com lentes. Pelo contrário, o ato se constitui em “duração fotográfica”, como nos primórdios da fotografia. A imagem não “congela” no click, mas dura segundos, minutos, formando-se aos poucos com a passagem de luz pelo furinho. É necessário contar o tempo e esperar. Muitas vezes, grande parte da “cena” que se passou diante da câmera desaparece na fotografia final. Uma rua movimentada pode resultar em uma rua vazia dependendo do tempo de exposição. Esse tempo de exposição, além de trabalhar a espera, também aguça a percepção, já que para saber por quanto tempo se deve deixar o orifício aberto é fundamental observar a luz, suas nuances e delicadezas. Sempre digo a quem está se familiarizando com o pinhole que para ouvir a música silenciosa que acontece dentro da lata-câmera, precisamos estar com olhos, ouvidos e mente muito atentos. E sobretudo ter muita paciência, entrar em um outro tempo-ritmo. Trabalhar a desaceleração e concentração, o que se faz necessário para todos nós. E especialmente para as novas gerações, muito dispersas e impacientes, pois já nasceram na cultura digital e lidam com máquinas em que há muitas janelas abertas ao mesmo tempo. Cada câmera feita a partir da lata só pode conter um papel fotográfico. Portanto, o aluno só pode fazer uma imagem por saída fotográfica. É preciso prestar

atenção no entorno e pensar antes de escolher o que fotografar, o que gera um aguçamento da percepção e maior consciência na escolha. Com a câmera feita a partir da lata, não se pode fotografar centenas de imagens para ver, editar e deletar imediatamente. A falta de visor cria a necessidade de se familiarizar aos poucos com o ângulo de visão da câmera, o que entra e o que não entra no enquadramento. Isso se dá em um exercício de erro e acerto, em que a cabeça é cortada onde não devia, ou o corpo sai inteiro quando só o rosto deveria ser enquadrado. Essa ausência possibilita um jogo de imaginação, exige um exercício de construção da foto na cabeça antes e durante o ato fotográfico, como se fora um ato fotográfico cego e vidente ao mesmo tempo. É necessário fazer o exercício de conexão com o que está à nossa volta, com a duração do momento fotográfico, com o presente. E sobretudo lidar com as possibilidades do acaso, que na maior parte das vezes nos trazem ricas surpresas. Dessa forma podemos trabalhar com as crianças e jovens o não planejado, a mudança da rota, a busca do sentido a partir do que nos é oferecido e que não foi exatamente imaginado. Ao mesmo tempo, a cada nova tentativa, os incentivamos a buscar essa conexão entre o seu “modo de ver” e o “olho da lata”. Jonas Willami, um aluno muito espirituoso, um dia disse que ele tinha uma ligação tão grande e especial com sua câmera quanto os seres da civilização Na’vi do filme Avatar, que conectavam suas longas tranças ao corpo de seus dragões para comungarem do mesmo caminho, como se um fosse a extensão do outro, ao dizer isso grudou seu cabelo na câmera. A ausência de uma lente possibilita a entrada da luz diretamente pelo orifício da câmera. A luz é inscrita na superfície sensível do papel sem mediação. O que está fora e iluminado pelo sol é como que tragado pelo pequenino buraco negro e passa a habitar o interior da câmera. Uma espécie de “tesouro aprisionado” (10) que só será “libertado” ao passar pela revelação, também feita pelo aluno. Um pro-

cedimento mágico e alquímico que nos transporta para tempos imemoriais. Ruan Torquato, um dos participantes, uma vez declarou: “Eu sinto que com a fotografia pinhole a gente se coloca mais na foto do que com a digital”, e Larisse Paiva completou: “Quando a gente se fotografa com a latinha é como se sentíssemos nosso corpo entrando pelo furo de agulha e se transformando em imagem dentro dela”. Os participantes das oficinas aprendem todos os passos da revelação das fotos no laboratório fotográfico. Aproveitamos esse processo para trabalhar questões relacionadas à química e à matemática; alguns jovens encontram dificuldade em fazer contas muito simples. Exercitamos o raciocínio matemático ao ensiná-los as proporções da diluição das químicas. Ao manipular as bacias com as químicas – revelador, interruptor e fixador – há o entendimento do tempo necessário para cada reação. O domínio dessas operações é muito importante para que a criança se aproprie de todo o processo e vá desenvolvendo sua autoconfiança. Talvez seja lugar-comum falar da empolgação que impera no laboratório. Alguns alunos ficam tão animados que literalmente pulam ao ver a imagem começando a aparecer no revelador pela primeira vez. Presenciar esse encantamento é muito emocionante, um processo que é tão mágico para mim quanto para eles. As imagens produzidas com a câmera pinhole carregam em si algo de onírico, algo que parece ir além do real. Suas proporções distorcidas e textura nos lembram as imagens de nossos sonhos e criam assim uma espécie de descolamento do referente imediato. Essa não mimetização da realidade provoca um certo estranhamento que possibilita discussões sobre formas de ver, sobre a existência ou não do que chamamos de “real” e como cada um se relaciona com isso. Em se tratando dos autorretratos, também é um grande exercício de desapego da imagem que cada um tem de si. Em um primeiro momento, o susto

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com as distorções nas feições é grande, mas com o tempo os alunos vão aprendendo a tirar partido dela de forma a enriquecer suas narrativas. As características artesanais que remetem aos primórdios da fotografia, associadas ao uso de processos digitais, como o escaneamento para positivação em programa de edição de imagem para seu tratamento, relacionam épocas muito distintas do desenvolvimento da fotografia. Esses agenciamentos múltiplos caracterizam o pinhole como um procedimento absolutamente contemporâneo e ao mesmo tempo nos permitem trazer a história da fotografia de forma viva para o presente. Paradoxalmente, todas as características que enumerei podem ser vistas como limitações técnicas, próprias do pinhole. Mas enxergamos nessas “limitações” justamente a potência dessa forma de criar imagens. Com certeza, os recursos metodológicos são igualmente potentes com a fotografia convencional com lentes, digital ou analógica. Porém, o pinhole é um processo encantador que nos permite, além de trabalhar todas as questões próprias da imagem e da construção do olhar, exercitar a desaceleração e a experimentação de outros paradigmas temporais e estéticos de forma extremamente lúdica. Assim, trabalhar com o pinhole hoje, sem dúvida, além de ser uma escolha estética, tem uma dimensão política, que vai na contramão da velocidade, do consumismo e automatismo.

Caminhos, colaborações e confluências: A cidade como território compartilhado Ao longo desses dez anos de trabalho, participamos de uma série de exposições, oficinas, seminários e publicações. Semeamos o pinhole dentro e fora da Maré, junto a muitos parceiros como o Instituto Moreira Salles, (11) Observatório de Favelas, Biblioteca Parque da Rocinha/C4, Casa Daros, Editora NAU, Editora Nova Fronteira, Projeto Sub-

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solo, Cidade Invertida, Flip, Secretaria de Cultura do Estado e do Município do Rio de Janeiro, Petrobras, entre outros. Realizamos a publicação dos livros anteriormente citados, Mão na Lata e Berro D’água e Cada dia meu pensamento é diferente, (12) além de produzirmos documentários, que acompanham a criação dos livros. Fizemos também um site para que as pessoas possam acompanhar o projeto. (13) Diversas matérias sobre nosso trabalho foram publicadas, dentre as quais uma no site do jornal New York Times. Tivemos imagens dos jovens autores do último livro adquiridas para o acervo permanente do Museu de Arte do Rio – MAR, e expostas durante a comemoração do primeiro ano do museu, em 2014. Entre tantas outras realizações. As publicações, o site, as exposições e todas as formas de veiculação da produção feita pelos participantes do Mão na Lata na Maré têm sido fundamentais na desmistificação da ideia negativa que, às vezes, os próprios jovens têm sobre si e suas comunidades, alvos frequentes de julgamentos extremamente pejorativos e redutores. Por outro lado, a circulação do trabalho para além da própria Maré, também ajuda na desconstrução dos estereótipos atrelados a esses territórios, e ao imaginário, muitas vezes comum, de que as favelas são lugares constituídos apenas por ausências. Em 2014, com a possibilidade de continuidade do projeto, por meio de novo apoio, abrimos uma turma de pinhole para crianças, entre 7 e 12 anos, tendo Fagner França como professor. Além da nova turma, estamos dando continuidade ao trabalho com os jovens autores do último livro. A ideia é manter e aprofundar o trabalho já iniciado. Nessa etapa, usaremos a fotografia em suportes digitais e câmeras com lentes, porém, sem perder o foco na criação de narrativas, autobiográficas e ficcionais. Os alunos estão tendo aulas de roteiro e de animação para a construção de curtas-metragens feitos em stop-motion com a técnica pixilation, dos quais serão autores e atores.

O trabalho colaborativo e continuado realizado pelo Mão na Lata funciona como uma espécie de caleidoscópio de espelhos em permanente processo de elaboração e rearranjo no qual cada integrante se vê refletido. Para além do sentido das imagens e narrativas criadas por nós, há muitos outros que se desdobram nas várias camadas de experiência compartilhada, fruto de uma convivência criadora que valoriza a produção de cada integrante do grupo. A colaboração então é vertida em uma potente autorreflexão capaz não só de alargar as percepções que temos de nós mesmos, uns dos outros e do mundo ao nosso redor, como de expandir de um modo vital nossos territórios existenciais. Gostaríamos que a cidade fosse feita de muito mais intercâmbios como esses, em que os saberes entre pessoas de lugares diferentes são compartilhados positivamente para reforçar a potência de cada um e de todos nós.

3. Fagner França está conosco desde 2004. Integrou, como aluno, o primeiro grupo do Mão na Lata e foi um dos autores do livro Mão na Lata e Berro D’água. A partir de 2008, passou a atuar como monitor e, posteriormente, professor assistente das oficinas. Formado na Escola de Fotógrafos Populares do Programa Imagens do Povo, do Observatório de Favelas, hoje é professor, ministrando oficinas de pinhole para crianças dentro e fora do projeto, além de trabalhar como fotógrafo. 4. Mão na Lata e Berro D’água. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. Integrantes do primeiro grupo formado pelo Mão na Lata e autores do livro: Amanda Paiva, Angélica Paulo da Silva, Deyvid Ferreira, Fagner França, Felipe Oliveira de Lima, Renato Nascimento. 5. Realizamos um pequeno documentário que acompanha o processo de construção do livro e a viagem para a Bahia, acessível em: www.maonalata.com.br/detalhe/10998. 6. Em 2012, o Mão na Lata contou com a colaboração da escritora Luiza Leite, que orientou as oficinas de texto. Luiza é coeditora do livro Cada dia meu pensamento é diferente. 7. Trabalhamos propositalmente com um grupo de faixa etária variada, pois, além de ser mais enriquecedor, potencializa as trocas entre os integrantes que se encontram em momentos de vida muito distintos. Atualmente o grupo é composto de jovens entre 14 e 21 anos. 8. PETIT, Michèle. Os Jovens e a Leitura: Uma nova perspectiva. Trad. Celina Olga de Souza. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 94. 9. FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

Notas 1. A Maré é considerada um dos mais populosos conjuntos de favelas do Brasil, agregando mais de 132 mil habitantes e uma diversidade cultural riquíssima. Como grande parte das comunidades populares, a Maré sofre com a precariedade de serviços, a dificuldade de acesso à informação e aos aparelhos culturais e o estigma gerado pela violência. As ações organizadas pela sociedade civil têm importância fundamental na construção coletiva de condições para o pleno exercício da cidadania de seus moradores. 2. A Redes da Maré é uma instituição da sociedade civil que atua há 17 anos no conjunto de 16 favelas da Maré. Esta foi criada a partir de um longo processo de envolvimento dos seus fundadores com o movimento comunitário local e, também, com a cidade. Seu objetivo primeiro é a articulação de diferentes agentes sociais comprometidos com a transformação estrutural da Maré, através da produção de conhecimentos e ações relativas aos espaços populares, as quais interfiram na lógica de organização da cidade e combatam todas as formas de violência. Com essa estratégia de atuação, a instituição busca desenvolver projetos dentro de temáticas como educação, arte e cultura, comunicação, desenvolvimento territorial e segurança pública.

10. O filósofo chinês Mo-Ti em 500 a.C. descreve a formação de uma imagem invertida composta por raios de luz que atravessam um orifício em um quarto escuro. A este quarto ele dá o nome “quarto do tesouro preso”. 11. Em 2013, realizamos uma oficina com duração de três meses na Biblioteca Parque da Rocinha/C4, com a parceria do Instituto Moreira Salles. Na Rocinha, trabalhamos com contos de Clarice Lispector e seu resultado final, uma exposição intitulada “Se eu fosse eu”, pode ser visto em: http://www.blogdoims.com.br/ims/ se-eu-fosse-eu/ 12. Autores do livro Cada dia meu pensamento é diferente: Augusto Araújo, Bruna Kely Barbosa, Franciele Braga, Géssica Nunes, Jailton Nunes, Janaina Lopes, Jonas Willami Ferreira, Juliana de Oliveira, Larisse Paiva, Lucas Eduardo Mercês Da Costa, Nicole Cristina da Silva, Rafael Oliveira, Ruan Torquato, Vithor Rossi, Yasmin Lopes. 13. www.maonalata.com.br.

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Meus pais acordam, acendem a luz. Os passos fortes deles me incomodam e atrapalham o meu sono. Sem conseguir dormir, me levanto e vou direto pra minha janela. Da minha janela, eu fico horas e horas olhando o céu clareando e os pássaros voando. Escuto as galinhas fazendo cocó, as motos passam, vrm! vrm!, atrapalhando todo o silêncio. Às vezes escuto pessoas praticamente correndo porque estão apressadas para trabalhar, levar os filhos na escola e fofocar.

Da minha janela eu já vi e vi muito. Das coisas ruins não quero me lembrar. A janela é símbolo de liberdade porque dali você vê o sol da manhã, a lua e os fogos no fim do ano. Nunca vi muitas coisas boas. Vejo apenas pessoas me chamando (amigos, minha mãe, meu padrasto e meu amor, sem falar nos pombos que ficam fazendo sons esquisitos). Vejo também a brincadeira das crianças e as fofocas das moradoras e visitantes com o tom de voz bastante alto em horas inapropriadas, tipo quatro da manhã.

Jailton Nunes

Jonas Willami Ferreira

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Todos os dias antes de ir para a escola, eu dou uma olhada pela minha janela. O sol às vezes parece me cegar. Os vizinhos quase sempre brigam. Certo dia os vizinhos da frente jogaram as roupas na rua. A confusão durou da Malhação até o fim da novela das oito. O pessoal que estava por ali se juntou para separá-los. Apesar de todas as brigas, é bom viver aqui! Sempre que me lembro, ou quando me dá vontade, olho as pessoas na rua. A minha janela parece uma novela. Nunca sei qual vai ser o capítulo de amanhã.

Não sei bem o que vejo da minha janela, pois nunca olho por ela. Também não diria que é minha casa por não sentir como se fosse. Sinto que vim de outro lugar e fui parar lá de modo aleatório. Queria saber o tempo que isso vai durar. Espero logo que o meu lugar apareça, pois não gosto disso. Estou em um lugar emprestado. Rafael Oliveira

Juliana de Oliveira

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Fotos de Augusto AraĂşjo e Jailton Nunes

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Fotos de Juliana de Oliveira e Nicole Cristina da Silva

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P e q u e n a etnografia visual sobre zonas de c o n t a t o

Sobre viagens, pessoas-ambientes-fotografias

Por que é triste o olhar do verdadeiro viajante? Como ninguém, ele sabe que “o mundo começou sem o homem e se acabará sem ele”. Percebe que todos os mitos, estilos e linguagens são construções de sentido, sempre à beira do vazio. Sente que sua viagem não terá propriamente um retorno, sua exploração ficará sempre inconclusa. No entanto, entre a solidão que reproduz a máquina de uma cultura herdada e a tristeza desse caos caleidoscópio do mundo que se deixa entrever, ele prefere a segunda condição: a de navegante solitário, fiel apenas à própria narrativa, senhor de suas histórias e paisagens, aquém de todo pensamento e além de toda a sociedade (Lévi-Strauss, Tristes Trópicos).

Ana Luiza de Abreu, com a colaboração de Fabrício Cavalcanti Fotografias de Ana Luiza de Abreu, Fabrício Cavalcanti e Taisa Matos

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obre o ato de viajar, pode-se concluir, a partir da citação do “viajante radical e iluminado” Lévi-Strauss, a sua repulsa aos exploradores e suas viagens. O que o antropólogo questionava e se preocupava, em Tristes Trópicos, era com suas próprias razões e objetivos de suas viagens para o interior do Brasil. A repulsa a esse viajar pode ser em parte historicamente compreensível, ao recordarmos que os países das zonas tropicais, principalmente, foram, desde a colonização, alvo de viajantes estrangeiros, todos ansiosos por conhecer, explorar e provar da terra “estranha”. Os relatos destes viajantes povoaram o imaginário dos indivíduos que não se aventuravam, mas aguardavam as notícias vindas do Novo Mundo. Dessas representações surgiram iconografias e relatos verbais da vida nos trópicos, os quais escapavam totalmente à realidade. Mais tarde, a fotografia começou a ser utilizada para registrar, documentar e ilustrar realidades. Para cada século, configurou-se um tipo ideal de viajante: conquistador de terras e dizimador da população nativa, explorador de ouro e de pedras preciosas, catalogador da fauna e da flora, e aventureiros em busca de experiências excêntricas. No início do século XX, percebem-se as trajetórias de viajantes que almejavam conhecer, por meio dos estudos e das pesquisas, os hábitos, os costumes e os rituais de populações nativas. Os viajantes modernos já não estavam munidos de armas, mas de câmeras fotográficas, assistentes e cadernetas de campo, eram também chamados de etnógrafos, como Lévi-Strauss. Mas é ainda a etnografia (ou a antropologia) que atrai Lévi-Strauss, assim como ressalta Novaes (1999). Segundo ele mesmo, por uma afinidade entre as civilizações que ela estuda e seu próprio pensamento. Os estranhamentos e a possibilidade de novos olhares frente ao que lhe era desconhecido faz parte, assim, do ato de viajar. Afinal, mesmo os viajantes solitários deparam-se com realidades que não

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são as dele: são novos espaços geográficos, arquitetônicos e outras sociedades com organizações distintas que pode encontrar pelo caminho. Há, sempre, a possibilidade de interações e hibridizações culturais que surgem a partir dos contatos, dos encontros entre os que vêm de “fora”. A conexão intercultural, portanto, é inerente a ela, no momento em que se inaugura um espaço para que tais interações aconteçam. Existe por isso um lugar do encontro, chamado por Clifford (1997) de zona de contato. (1) Do universo das viagens científicas para o das etnográficas, e agora para o universo da fotografia, a maioria delas tinha interesse em registrar e representar culturas e ambientes. Por meio de narrativas visuais, era possível registrar e materializar momentos, lugares e pessoas em papel, lentes e em câmeras fotográficas. Em diálogo, portanto, com o tempo passado e presente, diferentes partes do mundo tornaram-se familiar após a fotografia, criando possíveis redes de conhecimento sobre o outro por meio de imagens e histórias. Os fotógrafos que partiam instigados para compreender outras realidades, são chamados também de fotógrafos viajantes. Como afirma Novaes (1999), as fotografias e as narrativas de viagem se equivalem, no sentido de que demonstram certa complacência com a percepção imediata das coisas, por serem ambas testemunhas de um tempo pretérito e irreversível. Esses fotógrafos cruzaram conhecimentos técnicos, em épocas distintas, com conhecimentos locais para registrarem cenas de localidades do mundo, seja pela câmera escura e processos arcaicos, pela tecnologia analógica ou digital, ao longo das décadas até os dias atuais. Diferentes nomes da fotografia trabalharam e ainda trabalham sob o signo da viagem, do deslocamento, da procura pela zona de contato, contribuindo para a construção de narrativas da sociedade frente às transformações políticas e econômicas. E, assim, a fotografia passa a participar e dialogar no universo da produção da informação visual, até

os dias atuais. Mas agora possuem uma diversidade grandiosa de componentes que complexificam essas relações e olhares, propondo um diálogo entre as linguagens audiovisuais, editoriais e multimídias. Nesse cenário de complexidades transmidiáticas – onde a fotografia encontra o vídeo, o vídeo subsidia a linguagem editorial, o texto narra uma fotografia e oferece o registro de uma dada realidade –, apresentaremos a experiência vivenciada pelos fotógrafos-educadores-viajantes ao redor do interior do Brasil. Sob o ponto de vista da educação a sustentabilidade, serão apresentadas reflexões sobre a experiência com a fotografia pinhole. Neste contexto, utilizar um meio de comunicação ou dispositivo técnico, mecânico e automático não serviria para promover uma integração necessária para atingir as intenções pedagógicas de diagnosticar e mapear os territórios. A pinhole desperta para o desafio da construção da câmera, de forma participativa, passando pelo domínio da técnica, escolha dos temas, até a revelação das imagens. Partimos de um imaginário para uma realidade, e assim propor novos meios e modos de participação na sociedade que cada um pertence, seja ela rural ou urbana. Este texto em formato de relato abordará, assim, descrições e reflexões mediadas pelos registros visuais, gerados entre os anos de 2006 e 2009, como parte do desenvolvimento de oficinas de fotografia em diferentes estados do Brasil. Por meio de viagens, as práticas em fotografia foram experimentadas por agricultores, jovens, professores e lideranças de comunidades rurais dos estados do Mato Grosso, Rondônia, Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais e Rio de Janeiro. As ações em fotografia cruzaram espaços rurais e urbanos, e propiciaram a criação de redes de informações socioambientais sobre os biomas amazônico, cerrado e mata atlântica. Contaram com o apoio, financiamento e parcerias dos setores público, privado e organizações da sociedade civil e do terceiro setor: universidade fe-

deral, secretarias estaduais e municipais de cultural e meio ambiente, órgãos ambientais federais e estaduais, ONGs, empresas de consultoria ambiental e do setor energético.

O olhar viajante e a construção dos trajetos Os trabalhos e oficinas relacionados ao universo de experimentações em fotografia, em especial com câmeras pinhole, estão muito presentes na zona urbana, em projetos relacionados ao reconhecimento da cidade, da construção de afetos por espaços nunca antes observados, bem como discussões sobre centro e periferia, entre outros pensamentos a respeito das narrativas visuais urbanas. Neste contexto sociocultural pode-se considerar que os participantes dessas oficinas, em sua maioria, já estão integrados às linguagens audiovisuais. Por outro lado, ao idealizar e desenvolver essas oficinas na zona rural, em regiões onde nem mesmo luz elétrica, água encanada, sinal de celular e internet são devidamente estruturados, pode-se afirmar que o sentido e o significado dessas atividades se modificam. Foi possível perceber que, nos ambientes rurais visitados, a linguagem predominante era a oral, por vezes a escrita. A linguagem e a representação construídas pelo fotográfico ainda eram pouco comuns, e, segundo eles, inéditas ou distantes do cotidiano. Vale reforçar que estamos tecendo relatos sobre atividades desenvolvidas entre 2006 e 2008, em comunidades e assentamentos rurais, pequenas cidades do interior dos estados do Mato Grosso, Rondônia, Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Por isso, o despertar e o sensibilizar sobre a prática também estiveram relacionados à manipulação da técnica e do aparato maquínico: compreensão dos conceitos técnicos e teóricos da câmera escura e a confecção das próprias câmeras, feitas a partir de latas de alumínio ou de potes de

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Alameda de buritis. Fotografia feita por um jovem aluno da escola Casa Branca para registrar uma nascente do entorno onde moravam. A água limpa no cerrado é escassa devido ao agronegócio, ao desmatamento e às queimadas. Cristalina, Goiás, 2008.

Lideranças do Assentamento participam da dinâmica “A câmera e o fotógrafo”, prática de percepção visual a partir do olhar do outro. Água Fria de Goiás, Goiás, 2007.

filme fotográfico. Além do acompanhamento da transformação de salas de aula, banheiros e cozinhas em pequenos laboratórios de revelação fotográfica. Assim, os participantes passavam da condição de espectador e público passivo às informações para a de observador e produtor de informação visual. Neste sentido, o ensino da fotografia com a utilização da câmera pinhole promove: _Uma desconstrução e redescoberta da realidade, pois a forma como a imagem artesanal apresenta o nosso entorno não é como o enxergamos; _Uma produção artesanal da imagem que proporciona maior tempo de experiência, em oposição à imagem industrial/convencional, que são produzidas em maior quantidade e em menos tempo. No contexto em que trabalhamos nesse projeto, não foi dada relevância à velocidade com que se produzia a imagem. A importância sempre foi o processo em si, a experiência vivenciada por meio da pinhole; _A construção artesanal tanto do dispositivo quanto da formação da imagem envolve um processo colaborativo, estreitando as relações entre os participantes com a troca de experiências e opiniões. Os desafios? Os objetivos? Realizar oficinas de fotografia, construir as câmeras pinhole, produzir imagens sobre as transformações das paisagens socioambientais, e refletir sobre o território e os entornos das comunidades. Tudo isso considerando as mudanças climáticas de cada região, as estruturas e logísticas disponíveis. Entre questionamentos sobre a prática e as realidades vivenciadas foram possíveis os encontros entre educadores, educandos, ambiente natural e modificado por meio do deslocamento e das viagens. O movimento dos educadores-fotógrafos para encontrar os participantes.

Acima, fotografia pinhole, feita pelo casal, de uma área desmatada e com lixo acumulado próximo ao assentamento onde moravam, com a intenção de “denúncia ambiental”. Água Fria de Goiás, Goiás, 2007.

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Os registros das transformações das paisagens Para narrar as viagens, caminharemos pelos biomas da mata atlântica, cerrado e amazônico, em diálogo com textos e imagens produzidas durante o desenvolvimento das atividades. Para cada bioma, traços ambientais, pessoas e questionamentos; para cada transformação da paisagem, diferentes impactos relacionados aos projetos de desenvolvimento do país. Para o embasamento teórico-metodológico das oficinas, foram realizadas pesquisas e leituras sobre as áreas de Comunicação Comunitária, Pesquisa-Ação, Educação e Comunicação, Filosofia e Fotografia, bem como Artes Visuais, tendo como referências os autores Paulo Freire, Jean Rouch, Vilém Flusser, Walter Benjamin, Boris Kossoy, dentre outros teóricos da área. As metodologias puderam inspirar, por isso, atividades complementares à produção fotográfica, as quais auxiliaram necessariamente a reflexão dos participantes sobre o processo em si. Afinal, as práticas de educação para a sustentabilidade não encerravam na produção das fotografias, mas sobretudo na inspiração e reflexão sobre a percepção do entorno. Como se tratavam de espaços rurais, urbano-periféricos que estavam sofrendo modificações, optou-se por realizar travessias e mapas mentais sobre o espaço em que viviam e conviviam, em oposição aos processos de transformações do ambiente. As travessias consistiram em um pequeno mapeamento prévio feito juntamente com os participantes, para que estes identificassem os locais de fragilidades e potencialidades do município. A pergunta geradora era: O que te toca no seu município? O que você gostaria que mudasse ou voltasse a ser como era antes? A partir dessas perguntas eram traçadas pequenas rotas em que todos seguiam caminhando a pé e conversando sobre a realidade local, além de refletir sobre a transformação da linguagem oral

para a visual. Junto às fotografias, foram gerados mapas com as informações fornecidas pelos participantes durante a travessia. Esses mapas eram traçados pelos participantes e sofriam interferências escritas e, ainda, de desenhos. Como se fosse uma chuva de ideias de várias ferramentas metodológicas, foram escolhidos os seguintes temas para auxiliar a produção fotográfica: ecologia política, memória, impacto ambiental, reconhecimento do território, estudos de percepção, materialização das oralidades a partir das fotografias pinhole. As oficinas trouxeram a possibilidade de dinamizar experiências individuais em espaços coletivos e, também, de instigar o envolvimento dos participantes no trabalho fotográfico em grupo. Destaca-se, aqui, o papel central da fotografia pinhole nos fanzines elaborados durante as oficinas de produção editorial livre, realizadas posteriormente. Pela convergência de mídias, a integração entre a pinhole e o fanzine subsidiou o sistema de redes de informações visuais e escritas, além dos relatos orais. Como os projetos versavam sobre a temática da educação, sustentabilidade e comunicação, foram pensadas e desenvolvidas estratégias e metodologias que motivassem os participantes a incluírem-se visual e socialmente, debaterem sobre cidadania, autonomia e senso crítico, por meio da concepção e construção de veículos de comunicação feitos por eles para questões e reflexões locais e regionais. Desta forma, a experimentação esteve presente, também, na elaboração de zines, os quais versaram sobre o desenvolvimento das temáticas inicialmente trabalhadas nas oficinas de fotografias. Assim, de forma contínua, os participantes ocuparam o espaço de amadurecimento da apreensão das técnicas, pela teoria e pela prática. A narrativa visual, portanto, ofereceu informações para a narrativa verbal construída pelo fanzine. Pelo trabalho com a fotografia, foi possível refletir e debater sobre os processos de transformação

da paisagem (modificações na arquitetura, êxodo rural e assoreamento de importantes rios), sobre o entorno e sobre a memória recente. Os relatos foram apresentados oralmente e, em seguida, eles inspiraram as fotografias em pinhole. Essas foram realizadas em diferentes espaços durante o momento da travessia, em que, juntos, cruzamos as histórias dos participantes pelas histórias contadas. Essas histórias e as fotografias inspiraram as produções de crônicas, poemas, histórias em quadrinhos e entrevistas com moradores da região onde trabalhamos. Toda essa produção editorial foi desenvolvida nas oficinas de fanzine, as quais aconteciam após quatro meses, aproximadamente, depois das oficinas de fotografia com câmera pinhole. Essas informações escritas foram fruto do trabalho dos alunos e professores por meio de pesquisa secundária e primária de dados. As fotografias produzidas nas oficinas com pinhole serviram, além de fonte de inspiração, como informações visuais ilustrativas nos fanzines. Assim, obtivemos os seguintes produtos: fotografias pinhole, produção editorial de diferentes gêneros, diferentes formatos de fanzines e exposições fotográficas em cada cidade sede das oficinas.

Grupo de jovens montando e colando as partes do zine em um dos assentamentos. Água Fria de Goiás, Goiás, 2007.

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As narrativas visuais da Mata Atlântica De forma itinerante, as oficinas de fotografia pinhole foram realizadas em escolas públicas municipais de Bom Jesus do Itabapoana, no interior do Rio de Janeiro, bem como em Dores do Rio Preto, interior do Espírito Santo. Ambos os municípios passaram por intensas transformações, de 2006 a 2008, em consequência da construção de pequenas centrais hidrelétricas no entorno. Fato que nos levou até lá para produzir informações visuais e compreender as mudanças na região, realizadas conjuntamente com participantes moradores. Quanto às câmeras pinhole construídas, havia dúvidas se as fotografias iriam realmente ser produzidas, dada a rusticidade do aparelho. E diante das incertezas e das surpresas os participantes experimentaram e produziram interessantes resultados. Por meio das travessias, nos arredores das comunidades rurais, os jovens participantes captaram cenas da praça, da TV comunitária, do rio, das montanhas degradadas por pastagens e das pessoas das comunidades. Pelo buraco da agulha transformaram a paisagem, antes colorida, em preto, branco e tons de cinza, uma tentativa de ressignificar o espaço público e o privado, lugares em que brincavam, estudavam e se divertiam. “Quando eu vi aquelas máquinas de latinhas, não imaginava que ia sair foto dali. Saiu e ficaram lindas”, comenta Elza, aluna da 7ª série. As oficinas geraram pequenas exposições com as imagens produzidas.

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Jovens aprendizes presenciando a descoberta da aparição da imagem no laboratório. O laboratório, para as oficinas, sempre foi o maior desafio, dadas as condições de infraestrutura local. Bom Jesus do Itabapoana, Rio de Janeiro, 2006. Crianças em saída de campo no formato de travessias cartográficas, com as câmeras pinhole para os registros. As crianças escolheram esta região por se tratar de uma área em que eles não podiam mais brincar, pois havia virado pasto para boi. Dores do Rio Preto, Espírito Santo, 2007.

Fotografia feita em uma área recentemente incendiada, prática comum durante o inverno no cerrado. Era julho, período das secas e queimadas. Como era um tema recorrente, e que deixava os participantes preocupados, foi desenhado para fotografarem. A pinhole do cavalo foi feita pelo dono do animal, uma das jovens lideranças do assentamento rural e estudante da Fazenda Casa Branca, Cristalina, Goiás, 2007.

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As narrativas visuais do cerrado No cerrado, as oficinas de fotografia pinhole foram realizadas em assentamentos rurais e em escolas públicas municipais e estaduais, e contaram com um público mais diversificado, desde jovens a lideranças comunitárias e agricultores. Se na Mata Atlântica os principais impactos estavam relacionados à construção de pequenas centrais hidrelétricas, bem como o avanço da pastagem para gado e o desmatamento, no cerrado os impactos socioambientais estavam diretamente relacionados às linhas de transmissão, hidrelétrica, queimadas, escassez de água pura e falta das chuvas sazonais. A identificação desses temas em questão aconteceu a partir de rodas de conversas, de pequenas etnografias da fala. Os temas foram discutidos para produzirem informações visuais, em formato de fotografia pinhole. Como um aparato de denúncia, os participantes perceberam na câmera “de latinha” um importante instrumento de mediação. Assim, foi atingido um dos objetivos das atividades: localizá-los na condição de protagonistas sociais nos processos que envolvem o ambiente em que vivem. Podemos destacar algumas reflexões dos participantes sobre a experiência com a pinhole: alguns se surpreenderam, no momento da revelação das imagens, com a dissonância entre a imagem que esperavam e a obtida. Muitos deles achavam que obteriam, com a pinhole, imagens que se aproximavam daquelas produzidas por câmeras convencionais, digitais ou analógicas. A expectativa na revelação da imagem proporcionou um momento oportuno para os educadores-fotógrafos relatarem sobre a experiência em produzir imagens, sejam elas quais fo-

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rem. Pois a experimentação, via câmera pinhole, traz à tona a possibilidade de aprendizado dos princípios fundamentais da fotografia, da formação da imagem e da relação com o objeto a ser fotografado. Foi abordado que a prática em pinhole é como se fosse um laboratório em movimento, em que há a chance de criar, errar e se sofisticar para adquirir os melhores enquadramentos e composições. Ainda que a distorção e a suberversão da imagem sejam consideradas esteticamente interessantes. Além da reação no momento da revelação, foi possível perceber também a forma como os participantes se relacionavam com a “câmera de latinha”, manuseando-a, na maioria dos casos, como se fosse uma câmera convencional e esperando um enquadramento bem próximo ao desta. Foi outro momento importante para os educadores, de modo a ressaltar as diferenças entre as práticas fotográficas existentes, e, ainda, reforçar os princípios fotográficos agregados à pinhole.

Duas das opções de cena e gênero mais comuns entre os participantes foram o autorretrato e a produção de retrato de pessoas próximas, como familiares e amigos íntimos. Ao observar essa prática, foi possível entender que a relação com a fotografia, mesmo através do processo experimental da pinhole, era social, familiar, afetiva. Afinal, vale lembrar que naquela região do interior do Brasil, quase ninguém tinha dispositivos móveis nem câmeras fotográficas. Era uma oportunidade de se ter um registro em preto e branco de pessoas queridas, num ambiente comum a elas. Paracatu, Minas Gerais, 2008. Estrutura dos currais da Fazenda Casa Branca. Os currais, com a chegada do assentamento, viraram também salas de aula. Após a ocupação da região pela hidrelétrica de Batalha, essas estruturas foram mapeadas para serem inundadas. Mais uma pinhole memória-tempo-espaço do invisível. Cristalina, Goiás, 2008.

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Fotografia pinhole feita para registrar queimadas criminosas em Davinópolis, Goiás, 2008. Fotografia pinhole feita para registrar trechos do Cerrado preservado em Davinópolis, Goiás, 2008.

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Pinhole de uma lagoa natural onde a maioria dos participantes costumava tomar banho e se divertir no entorno com a família nos finais de semana. Pontes e Lacerda, Mato Grosso, 2009. Pinhole de uma localidade onde os participantes moravam e estudavam. Vilhena, Rondônia, 2009.

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As narrativas visuais da Amazônia “Eu gostaria de fotografar o rio que atravessava a cidade, onde costumava pescar quando criança. Mas ele não existe mais, só na lembrança ou quando for recontar uma história.” Esse foi o relato de um dos professores participantes da oficina na Amazônia sobre a mudança climática e ambiental no lugar onde vivem. Esse traço da história oral foi endossado por outros participantes que vivenciaram e sentiram a mesma coisa ao observarem a cena a ser fotografada. Nesse contexto, só foi possível olharmos o ambiente para fotografar. E a partir dos relatos, foram registradas essa e outras histórias pela fotografia pinhole. Como mencionado anteriormente, o tempo concedido pela pinhole juntamente com a metodologia dos mapas mentais e da travessia trazem à tona lembranças e percepções sobre o ambiente em transformação. Isso aconteceu em Jauru, no Mato Grosso, município conhecido regionalmente pelo processo de ocupação violenta na década de 1970 e

pelos conflitos pela terra, entre índios e migrantes, e posteriormente entre posseiros e grileiros. E, ainda, pelo desmatamento para a abertura de novas fronteiras para o agronegócio. Ao considerarmos a área de transição entre Cerrado e Amazônia, devemos apontar que, assim como Jauru, dezenas de municípios desta região possuem características de transformação e degradação dos espaços natural e socioeconômico. Ao longo da realização das oficinas de fotografia pinhole foi possível ouvir histórias sobre processos infelizes de desmatamento da floresta para a criação de pasto para gado, desertificação do solo, conflito com terras indígenas, migração sulista, tráfico de madeiras nativas. Pelo fato das questões sociambientais e as discussões sobre o tema terem sido o ponto alto das oficinas na Amazônia – bioma severamente modificado ao longo dos últimos anos –, pode-se considerar que a pinhole, ali, teve o papel de coadjuvante, prevalecendo os relatos orais.

Grupo de participantes da oficina de pinhole em ação – registro fotográfico em uma das carvoarias desativadas em Comodoro, Mato Grosso, 2009. Saída de campo. A escolha dos locais para a visita foi feita pelos participantes. Vista da região de floresta amazônica preservada. Pontes e Lacerda, Mato Grosso, 2009.

Pinhole dos buritis e de uma lagoa natural, próximo à escola dos participantes, em Comodoro, Mato Grosso, 2009. Pinhole da fazenda de cacau abandonada, produzida a partir de discussões em torno da memória agroambiental local. Um convite à reflexão sobre a ideia de sustentabilidade. Pontes e Lacerda, Mato Grosso, 2009.

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Conclusão Assim, como em uma tênue linha do tempo, pode-se considerar que as reflexões para este texto-relato propiciaram a criação de uma pequena narrativa sobre as histórias dessas experiências em fotografia, comunicação e educação para a sustentabilidade. Por meio do ensino e da produção de informação pela câmera escura, ao longo de sete anos, tem-se, aqui, um dossiê imagético e caleidoscópico sobre as experiências vivenciadas por grupos diversos em territórios brasileiros em transformação. Para nós, educadores-fotógrafos, só foi possível acessar essas narrativas e encontrar a diversidade socioambiental e cultural porque tínhamos um importante instrumento de mediação, a câmera fotográfica. Por meio desse aparato, fragmentos da realidade foram registrados em paralelo aos relatos orais de pequenas histórias sobre pessoas e ambientes. Antes, durante ou depois da captação das imagens. Muitos desses ambientes foram modificados ou desapareceram, seja pela inundação de comunidades, ocasionado por uma hidrelétrica, seja pela remoção de casas ou partes de matas por causa de linhas de transmissão, como também pelos processos de desmatamento e queimadas, os quais podem ter motivado a migração de famílias ou comunidades, em busca de novos lugares férteis para viver e plantar. Mesmo que seja complexo afirmar que os únicos registros dos diferentes lugares percorridos pelos educadores-fotógrafos e pelos educandos-fotógrafos sejam fotografias pinhole, podemos considerar que, para todos nós que participamos desses processos, as fotografias são, sim, as melhores, mais elegantes e sofisticadas lembranças, registros, presentes compartilhados.

Podemos concluir que há certa virtuosidade na socialização de conhecimentos pela fotografia pinhole, e isso faz com que o domínio da técnica seja somente o início de resultados alcançados, fruto da relação entre a tecnologia e o conhecimento/saber local/problemas ambientais locais. Elas são os produtos finais materializados nos papéis fotográficos, mas os processos, como bem afirmava Paulo Freire, estão guardados numa lembrança indizível, não palpável e não volátil. Pela linguagem transmidiática, a fotografia pinhole ficou também registrada nos diferentes zines confeccionados de forma participativa e colaborativa, como informações visuais e ilustrativas. Estes zines foram distribuídos em rede para mais de 30 cidades do interior do Brasil, além da produção e realização de aproximadamente 15 exposições itinerantes com as fotografias pinhole, nos municípios e comunidades onde as oficinas foram realizadas. Somado a isso, mais de 180 jovens, professores e demais integrantes das comunidades se aproximaram da experiência de escrever com a luz, de criar cenas fotográficas e registrá-las pelas “surpreendentes câmeras de latinhas”. [...] todo retrato de outra pessoa é um ‘autorretrato’ do fotógrafo (Dorothea Lange). [...] ao promover a autodescoberta por meio da câmera – as fotos de paisagens são, na verdade, paisagens interiores de quem fotografa (Minor White).

Trechos extraídos do livro Sobre Fotografia (Susan Sontag).

“Gostei, pois foi uma forma divertida e ‘moderna’ (diferente) de aprendermos como, de uma forma simples, resgatar e registrar nossa história.” (Aluna da escola Casa Branca, Cristalina, Goiás, 2007). A escola Casa Branca e todo o seu entorno, visível nesta fotografia de registro, não existem mais. Ela foi uma das estruturas onde realizamos as oficinas, e depois foi inundada por uma hidrelétrica construída na região.

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Notas

REFERÊNCIAS

1. A ação cultural, a configuração e a reconfiguração de identidades se realizam nas zonas de contato, seguindo as fronteiras interculturais (uma vez controladas e transgressoras) de nações, povos, lugares. A permanência e a pureza se afirmam – criativa e violentamente – contra forças históricas de movimento e contaminação (Clifford, 1997: 18). Ver também Mary Louise Pratt e sua percepção sobre zona de contato. Para ela, as zonas de contato são “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação.”

CLIFFORD, James. Itinerarios transculturales. Barcelona: Gedisa, 1997.

2. A circulação dos fotógrafos pelo mundo também possibilitou que seus trabalhos passassem a ter veiculação nos jornais diários. Como uma de suas funções, as fotos foram incorporadas ao texto jornalístico, compondo a narrativa. Revistas de sociologia também começaram a publicar e discutir a fotografia, embora de uma forma mais acadêmica, levando em consideração o campo da pesquisa. E assim como outras áreas posteriormente.

KIESLING, Scott e PAULSTON, Christina. Intercultural Discourse and Communication. The essencial readings. Oxford: Blackwell Publishing, 2005. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. PRATT, Mary Louise. Imperial eyes. Londres/Nova York: Routledge, 1992. SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

3. Mapa mental, ou mapa conceitual, é o nome dado para um tipo de diagrama, sistematizado pelo inglês Tony Buzan, voltado para a gestão de informações, para a compreensão e solução de problemas, na memorização e aprendizado, como ferramenta de brainstorming (tempestade de ideias) e no auxílio da gestão estratégica de uma empresa ou negócio. A partir desse conceito básico, trabalhamos os mapas para pensar o território em que viviam os participantes. 4. A etnografia da fala foi considerada por defendermos que a linguagem deve ser pensada e compreendida tendo como referência o seu uso e suas expressões, sabendo que ela carrega consigo expressões que transcedem o signficado. Pois ela pode indicar questões muito mais amplas das relações sociais e dos contextos produtores de tais relações, como, por exemplo, os gestos, as entonações de vozes e, também, formatos linguísticos utilizados em diferentes situações daquele que fala. Esse é um termo inicialmente desenvolvido pelo antropólgo Franz Boas (1974), um dos responsáveis pela discussão da linguagem na antropologia. Além dele, Bronislaw Malinowski (1978) argumentava que a linguagem significava a ação; e o seu uso tem um papel importante para a compreensão da realidade etnográfica.

Registro de exibições das fotografias pinhole produzidas. Mato Grosso, Goiás, Brasil, 2008-2009.

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RETRATOS DO INDIZÍVEL – A EPOPEIA FOTOGRÁFICA DE LUIZ ALBERTO GUIMARÃES Pedro Afonso Vasquez

depressão se abate sobre nós como um manto espesso que nos projeta naquilo que São João da Cruz admirável e acertadamente qualificou de “noite escura da alma”, o território do medo e da desesperança onde não brilha uma réstia de luz sequer e onde todos os sonhos se diluem, todas as certezas se esboroam e todas as crenças se tornam inúteis. Resta apenas o nada, enorme, infinito, avassalador, um oceano inconsútil de tristeza e terror em que a alma se afoga lenta e dolorosamente numa agonia contínua que parece não ter fim, a não ser aquele apressado pelas próprias mãos dos mais desesperados... Os ingleses denominam de black dog essa fera nefasta que salta sobre nós de surpresa, nos sujeitando com suas poderosas patas e lançando sobre nossos rostos seu bafo maligno e aniquilador. Terrível cão negro, certamente aparentado com o Cérbero tricéfalo, guardião da entrada do Hades. Quando caímos em suas garras, um dos caminhos da salvação reside naquilo que os americanos denominam de back to basics, o retorno à simplicidade regeneradora, por intermédio do descarte de tudo aquilo que é supérfluo, inútil, acessório. Foi o que fez Luiz Alberto Guimarães, destacado professor de física do Centro Educacional de Niterói, autor de livros (1) adotados em escolas do Brasil inteiro. Conforme relatou a jornalista Flávia Milhorance, que teve o mérito de ter sido a primeira a chamar a atenção para seu trabalho de autorretratos em pinhole: Luiz Alberto Guimarães não sabe ao certo como tudo começou. Lembra de uma vez quando se dirigia para dar uma palestra em Niterói, onde sempre morou. No caminho, a pé, o lugar antes familiar lhe pareceu totalmente estranho. Não sabia mais onde estava. “Era uma confusão mental”, conta. Começou a suar, e o coração acelerou de tal modo que ele deu meia volta. Logo estava aos prantos. Aquela não tinha sido a primeira vez. A verdade é que ali ele viu que tinha ultrapassado algum tipo de fronteira da mente, estava dentro de algum labirinto difícil de sair. (2)

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Assim, o professor que passara a vida inteira em sala de aula com completa desenvoltura e alegria absoluta, não se sentia mais capaz de enfrentar o auditório pernambucano cheio para aclamá-lo e nem sequer a sala de aula do CEN, tão querida e presente em sua vida quanto a sala de visitas de sua própria casa. A situação se deteriorou de tal forma que acontecimentos nefastos se sucederam em inevitável cascata – divórcio; aposentadoria antecipada; retorno à casa materna –, mas não convém esmiuçá-los porque isso representaria um desvio do que realmente interessa: a maneira surpreendente pela qual Luiz Alberto Guimarães utilizou a fotografia pinhole para exorcizar seus fantasmas e recompor a própria vida, produzindo neste processo um conjunto de autorretratos que se inscreve entre o que há de melhor no gênero no Brasil. Um trabalho brilhante, impressionante, visceral, pessoal e profundamente tocante, capaz de exercer um efeito transformador na vida do observador sensível, equivalente ao produzido na própria vida do autor. Num momento de prevalência da mesmice, em que a infinda repetição de fórmulas feitas e padrões consagrados anestesia o olhar, a viagem fotográfica de Luiz Alberto Guimarães em busca do eu profundo nos reconcilia com a fotografia e conosco mesmos. Em Retratos do indizível, a autorrepresentação foi motivada pela autoinvestigação, pela busca urgente de respostas à crise de ansiedade vivenciada pelo autor e, portanto, esta série se diferencia do trabalho de outros artistas plásticos que usaram a própria imagem como veículo para seus trabalhos, como Bené Fonteles, Hudinilson Júnior, Rosângela Rennó, Rochelle Costi e eu mesmo. Artistas que se colocaram em cena, porém de modo genérico e metafórico, como representantes de conceitos, sem, no entanto, expor as próprias entranhas, ainda que pudessem utilizar a nudez como instrumento de veiculação de ideias mais coletivas que propriamente individuais. Ao passo que Luiz Alberto Guimarães, ao iniciar seu trabalho, não tinha uma visão

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clara do seu propósito e nem mesmo daquilo que estava acontecendo com ele, da crise que colocava em xeque toda sua vida, pulverizando todas as bases sobre as quais se assentara sua existência até o momento da crise questionadora que o deixou, literalmente, sem chão: sem trabalho, sem o casamento longo e estável, sem residência, sem destino... Pois, como ele admitiu posteriormente: “movido por questões de natureza psíquica, realizei uma série enorme de autorretratos, nos quais o objetivo era o de fotografar aquilo que se passava comigo, que eu não conseguia compreender e muito menos expressar com palavras”. (3) Fica evidente, portanto, que Luiz Alberto Guimarães não estava pensando em fazer arte ou em produzir algo para impressionar nenhum tipo de observador externo e, sim, lutando para retomar as rédeas da própria vida, para renascer por intermédio de uma instintiva terapia fotográfica sem parâmetros definidos a priori, porém de eficácia comprovada, já que, felizmente, ele encontrou forças para superar – ou pelo menos controlar – o transtorno de ansiedade que envenenava seus dias. Retratos do indizível constitui, assim, uma espécie de arte terapia, espontânea e intuitiva, de formidável eficácia, pois não somente arrancou seu praticante do angustiante limbo em que se encontrava, restituindo-o à vida plena – novo casamento, nova casa, novas perspectivas profissionais –, como também nos legou um belíssimo, distinto e precioso corpus artístico, compreendendo muitas centenas de autorretratos de inegável valor estético e de perturbadora percuciência. Um trabalho único e veraz, a tal ponto que, depois de desenvolvê-lo de modo quase obsessivo entre fevereiro de 2007 e abril de 2008, cessou nesta última data, com a percepção do esgotamento da proposta e do fato de que produzir um único autorretrato em pinhole após fechado este ciclo seria uma impostura imperdoável. Uma saison en enfer que teve começo, meio e fim, e que, a exemplo da viagem de Dante pelas

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dimensões infernais, nos legou uma obra deslumbrante e perturbadora, diante da qual nenhum de nós pode permanecer indiferente. Assim como os destemidos fotógrafos da National Geographic arriscam suas vidas para nos trazer imagens únicas das regiões remotas e inacessíveis do mundo, Luiz Alberto Guimarães se aventurou em um território ainda mais perigoso para nos oferecer vislumbres do universo interior de todo ser humano, aquela região desconhecida e ameaçadora da qual nos empenhamos a vida inteira em nos desviar, mesmo sabendo que a vida só pode ser verdadeiramente compreendida depois de empreendida a travessia dessa região desértica, gelada e obscura.

UM POUCO DE TÉCNICA Para muitos a fotografia estenopeica ou pinhole ou buraco de agulha corresponderia ao grau zero de sofisticação técnica, já que seria uma especialidade anuladora da dimensão industrial da fotografia: a fabricação de câmaras e objetivas baseada em irrefutáveis normas científicas. Contudo, a fotografia é filha da ciência, notadamente da física e da química, de modo que não existe fotografia isenta de um saber técnico, nem mesmo a pinhole ou o fotograma, que seriam suas dimensões mais simples ou fundamentais. Em fotografia, a sintaxe nasce da técnica e é indissociável desta, de modo que considero oportuno abrir espaço aqui para um longo comentário de Luiz Alberto Guimarães, pois ninguém melhor do que o próprio artista seria capaz de evidenciar com idêntica clareza seu processo de trabalho. Não considero as máquinas artesanais cópias toscas das máquinas fotográficas industriais, mas sim aparelhos destinados a produzir imagens que o programa destas últimas não está habilitado a fornecer, ou que só poderiam ser obtidas através de manipulações digitais sofisticadas. Apesar de o nível de manipulação propiciado pelo Photoshop e outros produtos de software permi-

tir, em princípio, qualquer resultado (certamente, Flusser diria nos dias de hoje que, como máquina suprema, o computador tem seu universo de realizações muito próximo do infinito), essa possibilidade não substitui a aura – num sentido próximo ao que lhe dá Walter Benjamin – que envolve um instrumento artesanal único, e a magia de conseguir produzir, com caixas de papelão sem lentes, uma linguagem visual sofisticada e complexa (talvez eu deva dizer que uso máquinas artesanais para poder ver meus sonhos e pesadelos, deixando para os olhos a ilusão de ver o real...). Utilizo-as quase sempre para subverter os conceitos de tempo e espaço tão caros à forma fotografia. Por exemplo: se para os pioneiros da fotografia o longo tempo de exposição era um problema a ser resolvido, muitas vezes para mim ele se transforma em solução. Em um dos projetos que realizei, de autorretratos, esse tempo chegou a atingir 8 minutos. Em outro, no qual queria criar um estranhamento nas paisagens urbanas, fotografei vias importantes, em horário de grande movimento, e só pude obter o resultado desejado por conta de uma exposição da ordem de 2 minutos (esses dois trabalhos, bem como outros que serão citados, estão apresentados adiante). Pude assim ultrapassar os códigos da chamada caixa preta da fotografia, conseguindo produzir cenas provavelmente irrealizáveis com uma máquina convencional. (4)

É importante assinalar aqui que, embora tenha sido impulsionado por uma necessidade íntima e inadiável, Luiz Alberto Guimarães não tem nada de um amador ou um naïf do pinhole, sendo, ao contrário, profundo conhecedor da tradição brasileira do gênero, admirador confesso de precursores como Regina Alvarez, Miguel Chikaoka, Sebastião Barbosa, Paula Trope e Dirceu Maués. Cada qual dono de uma obra distinta e significativa neste campo, pois compreenderam antes de todos, ou mais do que todos, que o pinhole – apesar de ser uma técnica conhecida desde a década de 1850, graças aos esforços de Sir David Brewster – preserva até hoje seu caráter experimental, já que sua

natureza intrínseca contempla o acaso, o fortuito e o incontrolável como elementos constitutivos. De tal forma que subsiste sempre na fotografia pinhole um elemento de surpresa que preserva o frisson do fazer, assim como o prazer da descoberta ao se processar o material produzido. Fatores inexistentes no universo digital, com sua instantaneidade e sua impressionante sensibilidade, que tornam o digital praticamente infalível, mas também previsível. Uma espécie de fast-food fotográfico, no sentido em que oferece a certeza de um resultado fiável nas mais variadas circunstâncias, mas um resultado frágil em virtude dessa própria estabilidade. A fast-food é destituída de encantamento em virtude de sua previsibilidade, de nenhuma surpresa e de pouco sabor. Fala-se muito hoje da “experiência gastronômica” que seria proporcionada por cada um dos grandes chefs, deslumbrando os apreciadores da cozinha cordon bleu. Ao passo que no mundo da fast-food tal experiência não existe, sendo substituída pela reconfortante sensação proporcionada pelas certezas advindas do “mais do mesmo”, da mesma forma que as imagens produzidas pelos telefones celulares e as câmaras amadoras simples asseguram uma fiabilidade banal e niveladora. Em parte pelo fato de compartilharem os mesmos componentes ópticos e eletrônicos sob a ilusória diferença do design diferenciado de marcas concorrentes entre si. As imagens da série Retratos do indizível, desenvolvida no período compreendido entre fevereiro de 2007 e abril de 2008, têm a peculiaridade de unir a simplicidade espartana do pinhole com o mais avançado da tecnologia de base digital, construindo assim uma simbólica ponte entre o passado e o futuro, no presente momento em que vivemos um empolgante “renascimento da fotografia”, tal como o definiu Jean-Luc Monterosso (diretor da Maison Européenne de la Photographie). O processo utilizado por Luiz Alberto Guimarães foi assim descrito por ele:

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Por questões puramente práticas, iniciei utilizando papel fotográfico como película sensível, em vez do tradicional filme; hoje tenho importantes razões para mantê-lo (dentre elas, destaco a magia insuperável de ver a imagem surgir dentro da bandeja de revelador, no chão do boxe do meu banheiro, naquele ambiente inundado pelo vermelho. Bom demais!). Alguns me dizem que o negativo de filme dá mais definição à imagem, mas creio que isso é a última coisa que alguém que usa máquinas artesanais estará interessado... A partir daí, entra em cena a alta tecnologia. O negativo de papel é escaneado – tenho um bom scanner de mesa para isso – e tratado digitalmente no Photoshop OS. As ferramentas do software que mais utilizo são a inversão para positivo, ajustes básicos de nível e contraste, ampliação e, às vezes, muita, mas muita limpeza de marcas de poeira e dedos, quando elas ocorrem na manipulação necessária para cortar e colocar as tiras de papel dentro das máquinas, no escuro do banheiro, e não fazem parte da poética a ser alcançada. (5)

A ambiciosa fusão técnica operada por Luiz Alberto Guimarães foi absolutamente bem-sucedida, pois ele conseguiu aliar ao aspecto mágico e difuso dos negativos produzidos em pinhole as cópias positivas de irretocável limpidez de matriz digital, extraindo assim o melhor dos dois mundos numa comprovação irrefutável de que não existem limites nem obstáculos para o fotógrafo criativo desejoso de elaborar a fusão entre a fotografia clássica e a imagem digital. Seus autorretratos não têm nada de autolaudatórios, parecendo, ao contrário, retratos de espíritos ou entidades de uma dimensão situada além do mundo visível e que a câmara tivesse o poder de o consubstanciar diante dos olhos assombrados do observador. Assim, sua singela câmara pinhole transcenderia todas as limitações inerentes à própria singeleza para se assemelhar aos filmes infravermelhos, capazes de registrar radiações da luz invisíveis ao olho humano. Com a diferença que isso não se dá

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de forma automática, decorrente da própria construção do material fotossensível, mas em virtude da criatividade e do domínio técnico do fotógrafo, expressos na invulgar habilidade em tirar partido das deficiências e limitações do equipamento (câmara de papelão, sem lente) e do material fotossensível (papel fotográfico convencional) utilizados por ele. Deficiências presentes também no momento de processamento dos negativos, pois, vivendo provisoriamente na casa materna, após o fim do primeiro casamento, Luiz Alberto não dispunha de espaço para a instalação de um laboratório fotográfico espaçoso e corretamente equipado e ventilado, sendo obrigado a revelar os negativos de papel em bandejas colocadas no chão mesmo de seu quarto de dormir ou no box do banheiro, circunstâncias que tornavam o processamento mais complicado ainda, em virtude da desconfortável posição de cócoras que era forçado a adotar.

PASSANDO PELO BURACO DA AGULHA A dificuldade é amiga da arte, conforme comprovaram os artistas famélicos residentes no prédio batizado pelo poeta Max Jacob de Le Bateau-Lavoir, na Praça Émile Goudeau, em Paris. Ali, naquela antiga fábrica, insegura, suja, sem calefação, água corrente ou instalações sanitárias nos quartos, e que parecia sacolejar na tempestade como os barcos no Sena (daí o apelido), amadureceram os talentos de jovens pintores como Picasso, Modigliani, Juan Gris, Braque e Matisse, ou de poetas como Apollinaire, Cocteau e o próprio Max Jacob. Mesmo sem passar necessidades ou correr riscos na casa de sua mãe, Luiz Alberto Guimarães teve que se defrontar com as referidas dificuldades para o processamento dos negativos de papel, bem como outras, relativas à realização dos autorretratos propriamente ditos, pois, como posou nu em numerosas fotografias, teve que encontrar horários alternativos aos dos demais residentes

para realizar suas tomadas, mesmo porque isso não podia ser feito de forma rápida e improvisada já que o tempo de exposição médio requerido era da ordem de 8 minutos, conforme já foi dito. Em relação à nudez é interessante assinalar que foi uma opção que surgiu de modo espontâneo e instintivo, como se o fotógrafo – atravessando a crise depressiva que transtornou sua existência no período em pauta – procurasse se despir de todas as normas e convenções sociais que já não tinham mais nenhuma serventia em sua vida para retornar à nudez primordial do nascituro. E foi exatamente isso o que ocorreu: Luiz Alberto Guimarães renasceu após a realização de Retratos do indizível – começou a série como cientista e a finalizou como artista, como se houvesse realizado um verdadeiro rito de passagem entre a existência anterior dominada pelo lado esquerdo do cérebro (responsável pela visão lógica, analítica, ordenadora e científica do mundo) e uma nova vida regida pelo lado direito do cérebro (responsável pela intuição, a visualidade, a criatividade, a introspecção e a sensibilidade aos sentimentos dos outros). Tal afirmativa não tem nada da busca de um efeito fácil, sendo, ao contrário, a pura expressão da verdade: Luiz Alberto Guimarães é outro depois de sua viagem fotográfica de cura e autoconhecimento. Por um lado, nunca mais tirou um autorretrato sequer após abril de 2008 e, por outro, passou a desenvolver intensa atividade artística, comprovatória de que as reservas criativas represadas por anos de predomínio do pensamento racional e analítico passaram a jorrar em fluxo contínuo e poderoso de grande qualidade plástica. Equacionados os dilemas íntimos, Luiz Alberto Guimarães direcionou suas câmaras pinhole para o mundo externo, nas séries Paisagens mínimas (2009), focalizando a Baía de Guanabara a partir de Niterói, em panorâmicas oníricas que parecem evocar um inexistente tempo pretérito, e Paisagens perdidas (2013), inspirado no ensaio “A paisagem urbana”,

de Wim Wenders, em que ele inclui nas imagens as zonas periféricas que costumam ser descartadas pelas câmaras convencionais. Como desdobramento desta série, surgiram as Paisagens cacofônicas (série que trabalha com a superposição dissonante e ruidosa de planos), e Cidades sobre expostas, também conhecida como Sobre cidades expostas, série que focaliza os chamados “muros cegos” – as superfícies laterais – dos edifícios, com uma montagem retrô sobre os antigos cartões-suporte das cartes cabinet do século XIX. Assim, depois de explorar destemidamente a paisagem interior, Luiz Alberto Guimarães se aventura agora, com igual talento e criatividade, em uma viagem pelo mundo visível de indizível beleza.

Notas 1. A Editora Galera, dos autores, tem três títulos seus em catálogo (todos escritos em parceria com Marcelo Fonte Boa): Mecânica – Física Ensino Médio; Termologia e Óptica – Física Ensino Médio; Eletricidade e Ondas – Física Ensino Médio. 2. MILHORANCE, Flávia. “Sob longa (e difícil) exposição. Professor de física conta como conseguiu superar um transtorno de ansiedade com a produção de autorretratos”. Rio de Janeiro: O Globo, Caderno Saúde, 4 de agosto de 2013, p. 43. 3. GUIMARÃES, Luiz Alberto. Essas máquinas maravilhosas: Uma proposta de diálogo entre artesania e tecnologia, através das máquinas fotográficas pinhole, numa tentativa de reconciliação da ciência com a magia. Rio de Janeiro: Trabalho de conclusão do curso de Pós-graduação Latu Sensu Fotografia & Imagem, do Departamento de Artes da Universidade Candido Mendes, 2014, p. 31. 4. GUIMARÃES, op. cit., p. 22. 5. GUIMARÃES, op. cit., p. 30.

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Panoramas Monica Mansur

Imaginários Imagem mágica... Imagem (imaginação), paisagem pessoal e inventada, formada pela luz, pela memória, construção fisiológica e mental. Quando produzi uma fotografia com uma pinhole pela primeira vez, me senti como um navegante português ou espanhol, cortando os mares e chegando às costas virgens das Américas: uma “paisagem” nunca vista foi me trazida pela luz, capturada numa “caixa preta”, e esta impregnou uma superfície fotossensível e se descortinou – ou melhor, neste caso, revelou-se – imersa dentro da bacia no meu laboratório fotográfico. Gravura feita de luz... A partir deste momento, fui fisgada.

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eu pensamento não parou mais de perguntar, de responder, de alucinar, de descrever e de instigar infinitas prosas, versos, raciocínios, ao mesmo tempo em que eu continuava a construir, desmontar, inventar, perfurar e descobrir mil possibilidades de captura de imagens sem nenhuma mediação mecânica ou eletrônica. Até ali, eu vinha trabalhando com questões voltadas para a impossibilidade do real na representação, quando imagens não eram nada mais que um momento visual, uma “presentificação”, um estar presente, sem a referência da matéria: ou seja, imagens somente imagens. Meus objetos de estudo eram imagens resultantes daquilo que as máquinas e programas virtuais dos impulsos, ondas, ecos ou radiações traduziam quando o corpo humano é exposto a estes estímulos. Ou seja, eu trabalhava com imagens resultantes de exames da medicina diagnóstica. Com elas, montei instalações, construí objetos e produzi vídeos, na tentativa de seduzir visualmente o observador e criar gatilhos intelectuais. Como percebi que o mundo era refém de uma estética da repetição, do olhar fácil, do reconhecimento automático de um código visual comum e universal, do esvaziamento do significado imagético, da infinidade de estímulos recebidos pelo olho do ser humano e a consequente deterioração da capacidade de intelectualizar a imagem, fiz o espectador parar e pensar no poder da imagem como momento presente, único e original, mesmo sendo esse procedimento totalmente ineficaz para apresentar uma realidade única, verdadeira, original. Meu trabalho caminhava, então, cada vez mais, para a tentativa de apresentar essa determinância na construção de uma situação de arte na presença da qual o espectador fosse levado a se dar conta de que existe pensamento possível, ainda, na visualização de imagens – por meio de imagens que não fossem de apreensão, compreensão e decodificação imediatas.

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O material visual – “refotografias” de um referente inexistente, um corpo humano reinventado, qualquer, anônimo, inerte, desindividualizado – continha significado somente no momento artístico, deslocado da sua especificidade, mas ressignificado pelo poder da intenção do artista. Esta série de trabalhos eu batizei, agora vejo que não por acaso, de Paisagens Cristais (utilizei o adjetivo no sentido deleuziano), definindo a visão de um campo imagético que só existe no momento em que é visualizado por um espectador, como um todo (Gilles Deleuze cunhou o termo “imagem cristal” para falar de cinema, junto com “imagem em movimento” e “imagem tempo”). Quando passei a utilizar o instrumental do pinhole vislumbrei outra forma de discutir essa questão artística na produção de fotografias. A fotografia estenopeica reafirma e traz de volta a consciência da realização de um desejo de satisfação; um desejo não mais só do controle do sentido da visão como elemento predominante no processo de organização das experiências humanas (adquirido com o aparecimento da técnica fotográfica), mas de recuperação da memória e da experiência intelectual que na contemporaneidade se encontra imersa num processo social de constante produção e reprodução de imagens – processo este alienante de pensamento crítico sobre a mediação da realidade, ou mesmo da existência de realidade... “Fotografia”, por definição, é essencialmente a técnica de criação de imagens por meio de exposição luminosa, fixando essas imagens em uma superfície sensível. Significa “desenhar com luz e contraste”. É, como aponta Vilém Flusser, o “marco tecnológico” do começo de imensa e ampla revolução cultural no mundo humano, pois permite ao homem reorganizar sua imaginação sobre o planeta, partindo de simulações codificadas matematicamente que projetavam, sobre superfícies planas, representações de profundidade.

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Por “imagem” entendemos aquilo que imita pessoa ou coisa, semelhança, representação, impressão de um objeto no espírito/imaginação, representação na memória... Imaginação é, ainda seguindo Flusser, a “capacidade de fazer e decifrar imagens”. “Realidade” seria o ajuste que fazemos entre a imagem e a ideia da coisa, entre verdade e verossimilhança. A problemática da realidade é matéria presente em todas as ciências e, com singular importância, aparece nas ciências que têm como objeto de estudo o próprio homem; a antropologia cultural e todas as que nela estão implicadas (a filosofia, a psicologia, a semiologia e muitas outras), além das técnicas e das artes visuais. Significa, em uso comum, “tudo o que existe”. Em seu sentido mais livre, realidade inclui tudo o que é, seja ou não perceptível, acessível ou entendido pela ciência, filosofia ou qualquer outro sistema de análise. “Paisagem até onde a vista alcança”, a linha do horizonte é o parâmetro. Definitivamente relacionada com a visão, ela não pode ser determinada como única ou verdadeira, ou mesmo descrita como realidade. “Paisagem” é extensão de território que se abrange num lance de vista; panorama, vista. Natural ou urbana. Já que sempre encontrei no meu trabalho alguma referência à paisagem como conceito, percebi que passei a pensar nele com mais frequência ao analisar as minhas paisagens capturadas com diferentes câmeras pinhole. Em minha série Panoramas Imaginários, fotografias captadas por uma pinhole em filme 120, o negativo recebe por inteiro a imagem trazida pela luz, mediante várias exposições que acontecem durante o deambular do fotógrafo. As imagens não são panoramas verdadeiros, são as possibilidades imaginárias do olhar a passeio, são imagens cristais, imagens em si, não paisagens; são afirmações do significado de paisagem como imagem e como conceito. São o ir e vir, a sobreposição, a dupla exposição, a inclinação. São a construção

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de uma paisagem inexistente, inventada; impressões, imitações, ficção. São imagens de um tempo sobreposto, composto, paradoxal e recuperado, passeio num tempo indefinido, volta ao passado e imersão no futuro... Meus Panoramas Imaginários determinam o reconhecimento de uma eterna viagem fantástica – vou até onde não se pode ir, vejo o que não se pode ver... e mesmo que pudesse, não existe o que penso ver. Assim, a paisagem é um pretexto, uma metáfora, uma redundância, uma construção... um paradoxo... Encontrar na mágica a solução para o problema artístico, esta é uma das nossas funções. Ao descortinar a minha paisagem pessoal e única pelo buraco da agulha, descobri o segredo: na distância entre o olhar e a paisagem, nos acontecimentos fotográficos provocados neste espaço sem mediação, encontrei a verdadeira natureza da questão conceitual; a percepção da paisagem é o momento da luz carregando a imagem, imprimindo a superfície tal qual a retina, duplicando estereoscopicamente a marca deixada num rastro imperceptível, imóvel, atemporal, impregnado de memória, de passado, um indefinível presente, infinito futuro. As questões artísticas que transitam pelo meu trabalho, e que me interessam, são infinita e definitivamente apresentadas graças às condições próprias do meio (fotografia pinhole), em que o observador é levado à dúvida e, consequentemente, ao pensamento e ao questionamento. Não há sentido completo ou mesmo fechado – não há sentido nem único nem final. A experiência visual indescritível – uma cor é luz, seu nome é uma só palavra – pode ser encontrada na irregularidade das linhas, nas diferentes intensidades luminosas, nas perspectivas incompatíveis, nas proporções improváveis. Paisagem inventada e infinita, ela é construída pelo ir e vir, pelo passado/presente da presença da luz. As paisagens resultam em faixas de imagem que sugerem um horizonte não linear. O estudo da linearidade, ou da construção deste novo horizonte, ima-

ginário, é feito pelo movimento do olhar e do passear do fotógrafo. Neste flanar ecoa o caçador das narrativas, como um dos observadores da paisagem, juntamente com o espectador (o sujeito/fotógrafo dá lugar ao sujeito/observador/espectador. O fotógrafo abdica do lugar de sujeito e passa esse lugar para quem olha...). Minhas fotografias são a remontagem da imagem inventada captada pelo trajeto da luz e devolvida ao espectador de maneira cinemática: refazer a imagem, fazer um “repasseio”. Como a fotografia, em tese, contém um elemento narrativo, o movimento, o passeio e/ou caminho do olhar e o deambular do sujeito aparecem nas fotos, desta vez inventados pelo espectador; o trajeto da luz carregando o momento e as formas, esgueirando-se pelo buraco da agulha e desenhando a paisagem que se apresenta num instante único; invenção. Novamente, ficção. E como ficção não atesta a verdade, nunca o fez, cria uma imagem, inventa irrealidades, expande-se, e mesmo estática a imagem se movimenta. O sujeito/fotógrafo controla o caminho e a narrativa, embora sem muito planejamento, pois o tempo não existe no movimento não captado pelo buraco da agulha. O sujeito/fotógrafo controla a paisagem, na medida em que a constrói sem ser controlado pelas imagens. Daí a opção pelo pinhole. A fotografia digital tem seu lado controlador, a alta tecnologia obriga à perfeição. O pinhole capta a imagem inerte, o não movimento, um tipo de “para sempre”. Diferente do congelar do instante fotográfico, a câmera captura mais o exato que o instante, aquele instante que é mais longo, construído pela imagem captada e prolongado no movimento de ir e vir do fotógrafo/sujeito. Ao observar uma fotografia de Cartier Bresson, automaticamente forma-se uma historinha na mente do espectador. O que terá ocorrido antes e depois da tomada da foto aparece como um pop up, narração em palavras, palavras formando frases, frases encadeadas construindo sentido, literatura, ficção, rotei-

ro, sei lá... Minha intenção, porém, é estabelecer uma narrativa, sim, mas não formada pelas palavras e pelo sentido que elas poderiam construir. A ideia é que o próprio olhar contenha uma linguagem em si, como se fosse montada num alfabeto particular, abstrato, sem símbolos predeterminados ou significados passíveis de tradução, decodificação ou conceituação. Sem dúvida, um paradoxo: tentar aqui descrever em palavras algo que não poderia ser nem mesmo pensado (o pensamento é formado por palavras...), muito menos verbalizado, articulado dentro do conceito. Em minha fotografia capturada em câmera escura, através de um buraco de agulha, tudo a respeito da formação da imagem aparece no resultado final: a forma como a luz carrega a imagem para depositá-la na superfície fotossensível, sem intermediações ou correções, em processo análogo à forma como o olho recebe o corpo de informações visuais que irá se compor no cérebro e determinar um objeto imaginário. O olho vê a imagem pensada: mostro uma imagem que só existe na ficção do “olhar mental”. A possibilidade de as formas se repetirem numa mesma paisagem, de uma imagem ser feita de muitas, de várias fontes de luz, muitos sóis e luas emitirem seus raios, da linha do horizonte não ser horizontal, mas só imaginária, de todo o espaço estar em um mesmo alcance (foco): estas são as instâncias verbais impregnadas na minha paisagem. Porém, mais do que isso, ela é o convite para remontar a imagem, dissolver a luz, para possibilidades visuais impossíveis e infinitas. Numa fotografia capturada pela câmera pinhole, a captura da imagem faz do processo todo um fascinante mergulho no indescritível, no indizível, no invisível, na (provavelmente) mais pura aventura visual... viagem fantástica.

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imanĂŞncias Angela Rolim

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rrastar um encantamento através do obturador de uma câmera fabricada é o início de uma história que quase toma ares de miragem. Ele se encaixa na retina, na mente e fixa na película, junto com o pensamento. Sem ter a distância e o estranhamento de tanta coisa falada, a imagem registrada é construída com momentos, histórias e lembranças. Paisagens plácidas, amplas, mostram um isolamento sem contornos delineados. Aparecem como se juntassem brumas. É um momento de absorção. Um encontro de dois instantes: a captura de um instantâneo e a fabricação de uma permanência. Existe uma duração com riscos que emanam dessa permanência. E então, camadas de complexidades vão sendo acrescentadas e uma ligação indestrutível vai se formando. A captação da imagem sem a lente é muito mais desnuda. Favorece o acesso ao interior de uma sedução. A mesma sedução encontrada na paisagem real. Fugindo dos espaços pacientes e solitários, e misturando o imaginário, surge a imparcialidade das naturezas-mortas. Elas me parecem mais vulneráveis. Possuem ciclos efêmeros. Não são flagradas. É um trabalho de relacionamento.

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Não por acaso, frequentemente parece que passo de um lugar a outro, mas existe um itinerário, um labirinto de vasos comunicantes de onde tiro proveito estético da contiguidade dos espaços, dos ritmos, das transformações, dos cenários e de cada estrutura dessas galerias. Planos silenciosos, outros com murmúrios, que por vezes apresentam correspondências imprevisíveis, são estruturados também pelas cores. Como a luz, apresentam, de forma passiva ou ativa, seus modos singulares. Vilém Flusser, no ensaio Filosofia da Caixa Preta, mostra que “as cores penetram nossos olhos e nossa consciência sem serem percebidas, alcançando regiões subliminares, onde então funcionam. (...) cores são símbolos mágicos que se enquadram nos mitos.” Os intervalos, as formas de encadeamento, as interrogações e as suspeitas completam as variações da percepção e da participação produtiva.

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C â m e r a C ata c u m b a – Doze imagens do outro lado Jochen Dietrich

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maior parte do meu trabalho fotográfico é produzido usando máquinas do tipo pinhole. O interesse no uso desta maquinaria primitiva se baseia, em alguns dos meus projetos, nas qualidades estéticas das imagens produzidas dentro deste sistema, que por vários fatores são diferentes das da fotografia comum – profundidade do campo ilimitada, alternativas à construção geométrica da imagem, e a ligeira falta de definição e de detalhe, produzindo um certo “flow” impossível de se conseguir usando máquinas normais. Mas, apesar das qualidades estéticas destas imagens, estou mais interessado no processo do que nos resultados: o ato fotográfico (Dubois, 1989) é fundamentalmente alterado quando comparamos a fotografia comum com a pinhole, que, por esta razão (entre várias outras), deve ser entendida como sistema paralelo, e não primitivo, à fotografia com lentes. O que me interessa é o facto que qualquer espaço oco que seja fechado, mas não completamente, cria uma situação do tipo câmera obscura. A cidade está cheia dessas situações: as caixas das companhias telefônicas e de eletricidade, que têm uma abertura para uma chave; os medidores de água nas fachadas das casas em Portugal; os nós nas tábuas de madeira de um galpão; a superfície perfurada pela ferrugem em uma porta velha etc. Quem trabalhou algum tempo com fotografia pinhole sabe que, nestas situações, a luz não entra simplesmente como claridade, mas como imagem. As coisas nos observam através destes olhos. O projeto Stahlberg, de 2000, partiu desta ideia: uma mina de ferro na minha terra, já há décadas abandonada e ultimamente transformada em espaço musealizado, foi transformada em câmera obscura, para gravar as imagens que a terra vê. E, mais uma vez, em 2001, na série Medidas de Segurança, aproximadamente 50 autocolantes foram afixados, por mim, em cima de fachadas de prédios na cidade portuguesa de Leiria, para assinalar a existência de situações de tipo pinhole. O

texto no autocolante dizia: “Declaramos este espaço uma câmera obscura de vigilância, transformando o espaço público num espaço mais observado, mais contemplado, mais visto, mais visível, mais seguro”. Escreveu João dos Santos: Será esta tele vigilância pinhole um meio para garantir a tranquilidade? Sim e não. Recebendo as imagens torna-se mediadora entre a realidade como se apresenta (invertida e em espelho) e um hipotético receptor/distribuidor (o olho dos olhos), entretanto não se encontra no meio de nada, é um simulacro da sua existência, não tem nem meio nem fim, é simples começo (input) e não se vê. O espectador (que é cego a este fenómeno por definição) não sabe mas é ele o fim desta mediação invisível, tranquilize-se. Finalidade emprestada, pois a arquitectura só o é por sua causa, ou seja, as câmeras estão nas construções porque estas já lá estavam e formam imagens porque estas se deixam tornar forma. O sistema adoptado por Jochen Dietrich para estas séries assenta numa estrutura que admite sem reservas ser meio de observação por já o ser anteriormente. A pinhole desinteressada.

Falando do projeto Câmera Catacumba. Apesar da característica pictorialista desta série, já aqui, é também o processo que está conscientemente presente no trabalho. Foi realizado ao longo de uma viagem pelo centro e sul de Portugal, na semana anterior ao dia de Todos os Santos, em 2013. Utilizando uma simples construção de papelão, papel de alumínio e tecido preto, transformei ossários e catacumbas temporariamente sem uso em câmera obscura. A projeção das paisagens – não urbanas, pois o que se vê não é a polis, mas a necrópolis – para dentro da caverna retangular é gravada utilizando uma simples máquina digital. A máquina em time control é colocada dentro do espaço escuro. Não me vou debruçar sobre a força metafórica deste agencement tão simples e, ao mesmo tempo, tão rico. Não mexi em mais nada – dentro dos cubículos às vezes havia objetos: flores de papel, gar-

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rafas de lixívia, velas, placas partidas de mármore. Vestígios de vida e morte, e do business do culto da memória. E business havia muito, nos cemitérios portugueses nos dias antes de Todos os Santos. Os portugueses convivem com os seus antepassados; limpam os habitáculos deles, renovam os bordados e ramalhetes, polem os vidros, escovam as lápides. E entre tanto, fuma-se um cigarrinho, bate-se um papo, come-se uma merenda. Nunca antes vi tantos jazigos abertos, com os caixões à vista, à distância de um braço estendido, e vários em estado de decomposição. E nunca antes vi tanta gente nem minimamente preocupada com isso. Ao longo da viagem, só uma vez um vigilante me perguntou o que estava fazendo. De resto, passei despercebido, pois era somente mais um homem atarefado, no meio de um cemitério zumbindo de vitalidade.

Publicações do autor em língua portuguesa Cine-Teatros de Portugal. Textos em alemão e português de Daland Segler, José Manuel Fernandes e Jochen Dietrich. Leiria: Ed. Museu da Imagem, 1998. Câmera obscura. Convidando o mundo a falar. In: JOBIM E SOUZA, Solange (Org.). Mosaico – Subjetividade, imagem e construção de conhecimento. Rio de Janeiro: Ed. Rios ambiciosos, 2000. Câmera obscura. In: TESSLER et al. (Org.). Porto Arte, revista do Instituto de Artes da UFRGS, Porto Alegre, Brasil (1/2000). O Maquinista. Entrevista com J.D. In: TESSLER et al. (Org.). Porto Arte, revista do Instituto de Artes da UFRGS, Porto Alegre, Brasil (1/2000). Como caçar a luz usando armadilhas. Cinemacção: Luz. Catálogo geral da Bienal Cinemacção, ed. m|i|mo, Leiria 2001, p. 7-10. A oficina do Olhar – a abordagem histórico-cultural na construção de uma pedagogia dos museus. O exemplo do m|i|mo – Museu da Imagem em Movimento de Leiria, Portugal. Teias. Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Rio de Janeiro, no. 5, jan./ jun. 2002, p. 93-104. Vinho velho em pipas novas. Anotações sobre rupturas na história da mídia. Teias. Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Rio de Janeiro, no. 6, aug./dez. 2002, p. 78-87. Medidas de segurança. Catálogo, imagens Jochen Dietrich, texto João dos Santos, ed. Fotogaleria ImagoLucis, Porto, 2003. Viagens na terra deles. Catálogo, imagens e texto Jochen Dietrich, ed. Ateliê da Imagem, Rio de Janeiro, 2004. Janela com boas vistas. Sobre fotografia e educação. Florianópolis: Ed. Lucia Lenzi e UFSC, 2006, p. 243-265.

Câmera Catacumba, série de 12 fotografias de projeções pinhole, impressões ink-jet sobre papel, 60 x 40 cm, 2013

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De para De para Tiago Rivaldo

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dentro fora. fora dentro

á alguns anos um fotógrafo me perguntou quando tinha começado a minha relação com a Fotografia. Eu respondi, irônico, que assim que nasci: pronto! Meu pai me fotografou. O que não me dei conta na hora foi de que eu estava falando sobre como é a fotografia para mim até hoje: uma ferramenta para me colocar no mundo, para eu entender a mim mesmo e o meu entorno, um instrumento de entendimento do território para a construção da identidade. Mesmo tendo passado a infância vasculhando caixas com fotos de família, sempre à procura da minha própria imagem e atento a paisagens aprazíveis com declarações de saudade em cartões postais, nunca imaginei que teria relação profissional com a fotografia. Aos seis anos tive minha primeira câmera. Antes dos vinte, na faculdade de comunicação, atendi a um anúncio de estágio em um estúdio de fotografia de moda e publicidade. Ali, passei anos como assistente e aprendi muito. No entanto, não conseguia desenvolver um trabalho autoral, buscava maneiras de interferir no processo que me parecia demasiado asséptico, e que, além disso, colocava o fotógrafo distante de seu objeto, com a câmera sempre “entre”, como um limite a ser atravessado. Quando ingressei no curso de Artes Visuais comecei a riscar o negativo, velar as ampliações, desenhar nas fotografias. Tentava ser mais ativo no processo para que ele não fosse só uma escolha do olho, mas que o resto do meu corpo, minha mão em especial, estivesse mais presente. Foi a partir de uma oficina de Fotografia Pinhole, com Jochen Dietrich, que me vi mais próximo de uma prática que alimentasse essa inquietação. A partir dessa oficina formou-se o Clube da Lata, um coletivo que ajudei a criar, que não só pensava fotografia com câmeras de orifício sem lentes, mas também em maneiras de trazer o fenômeno da câmera obscura como instrumento poético. Com esta ferramenta consegui me ver utilizando a fotografia

de uma maneira que eu não estivesse só atrás da câmera, e de um outro jeito, que não aquele do recém-nascido, passei a estar na frente dela. A fotografia pinhole estimula a construção do próprio dispositivo e isso satisfazia a ação das minhas mãos no processo. Além disso, exige longas exposições do material sensível à luz, especialmente do modo que fazíamos utilizando papel fotográfico como negativo. Isso faz com que não se opere a câmera, ela precisa estar estática para que não se criem borrões na imagem. Assim fiz inúmeros autorretratos transformando a minha posição em relação à câmera e o meu olhar em relação à fotografia de modo geral. O novo procedimento me trazia questões em relação ao tempo, e eu me interessava em me dedicar mais ao espaço e ao modo como o meu corpo se relacionava com o espaço e com o tempo. Dessa maneira busquei produzir narrativas ficcionais em torno do meu cotidiano e para isso propunha colocar a câmera em movimento, quebrando a regra da estabilidade para um “bom” resultado. Somado a isso, as operações em torno das obtenções em pinhole eram em geral em espaços públicos, o que me fez perceber que aquilo gerava interesse nas pessoas em volta, que ficavam curiosas e provavelmente nunca veriam a imagem resultante daquela ação. Disso me veio a vontade de que essas ações fossem melhor elaboradas e não mais apenas em função de uma imagem. Passei, então – e nos projetos do Clube da Lata isso também foi pontuado –, a pensar objetos e lugares para essas ações que estimulassem a presença do outro, e que, de alguma maneira, proporcionassem para o outro um pouco da experiência que havia me levado até ali. Eu buscava ver a cidade de outra maneira, estar desorientado num ambiente que me era familiar e associar isso à possível desorientação que causaria nos outros ao me ver usando um objeto estranho de visão, uma máscara, uns óculos pouco usuais. Em outros momentos, as pessoas eram

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convidadas a entrar na câmera com a intenção de provocar-lhes alguma transformação no olhar, ou algo próximo ao que havia acontecido comigo, que encontrei nas possibilidades de ver no turvo, no invertido, de cabeça para baixo, alguma poesia que servisse para lidar com o mundo lá fora e com a vida de uma maneira geral. Quando mudei de Porto Alegre para o Rio de Janeiro fiz muito uso desses procedimentos para entender a cidade. Além de fotografar com pinhole me dedicava a observar a paisagem dentro da câmera. Para tanto criei alguns objetos, usando inclusive as caixas de papelão utilizadas na mudança. O Retrato e a Paisagem foram definitivamente assumidos nesse período como essenciais na condução do meu interesse nas relações entre identidade e território. Podemos dizer, então, que a câmera obscura para mim é uma ferramenta, um meio, que como outros tantos passíveis de serem utilizados para a arte é carregado de conteúdo, e acaba por fazer parte da construção de sentido do fim a que se propõe o seu uso. No meu caso, esse uso tem sido em função de entender quem sou eu, quem é você, o que é a arte e em que mundo estamos inseridos.

Sem título, 2003 27 câmeras em potes de filme 35 mm; 2 lâmpadas 17 W, bateria 12 V, fios e velcro Ação/performance, fotografia pinhole, livro 9 x 28 cm

Túneis, 2001 (in progress) Instalação, fotografia com câmera obscura – pinhole 18 peças, 30 x 30 cm (cada peça) Desenhos de luz captados com câmera pinhole em túneis do Rio de Janeiro. Em deslocamentos cotidianos abro a câmera cada vez que o carro passa por um dos muitos túneis da cidade, fechando-a ao sair.

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Grande Orlândia, 2003 São Cristóvão, Rio de Janeiro Curadoria Marcia X/Ricardo Ventura Na inauguração da mostra Grande Orlândia, afixei nas paredes de todos os espaços pequenas câmeras de orifício adaptadas em potes pretos de negativo 35 mm. Em seguida, visitei a exposição com uma pequena lâmpada acesa em cada mão. Além do registro de trabalhos dos outros artistas nas imagens resultantes em fotografia pinhole, também se veem tênues linhas de luz, rastros do movimento das minhas mãos. Do conjunto de fotos montei um pequeno livro, instalando-o numa das portas de entrada.

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Volante Rio-PoA-Rio, 2005 Fotografia com câmera obscura – pinhole Dimensões variáveis (30 fotos) Autorretratos obtidos com câmera pinhole durante uma viagem de ida e volta do Rio de Janeiro a Porto Alegre. A câmera presa ao volante do carro, em longas exposições, deforma a minha imagem com as curvas da estrada.

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Câmara Clara, Rio Negro, 2011 Loop de fotografias animadas em vídeo Durante as filmagens do documentário Margaret Mee e a Flor da Lua transformei meu quarto em câmera obscura. A paisagem em frente ao orifício da janela é projetada sobre meu corpo com o barco-hotel em movimento.

Retratopaisagem, 2012 Fotografia 150 x 100 cm Retrato realizado no interior de uma câmera obscura através da qual se projeta a paisagem sobre o meu corpo.

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Personal DJ – Baile da Mudança Ação colaborativa com Susana Guardado Intervenção urbana Caixas de papelão, música Intervenção na qual o público é convidado a dançar utilizando caixas de papelão posicionadas entre os pares. Estas caixas são preparadas para que em seu interior se projetem imagens em câmera obscura. O fenômeno só acontece neste objeto se duas pessoas o usarem, pois assim vedam as entradas de luz para que a projeção natural aconteça. Dessa maneira, cada pessoa vê a paisagem que está atrás de si projetada de cabeça para baixo sobre o rosto do outro e vice-versa.

Obscura Vestível nº 2, 2001-2012 Objeto, ação, fotografia, vídeo Dimensões variáveis Fotos: Elisa García Ação performática em que eu me desloco pelo calçadão de Copacabana com uma câmera obscura “vestível”. Em imagens invertidas e redimensionadas que se projetam em um anteparo no interior da câmera, experimento uma sensação de desorientação.

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Ilha do Presídio, 2013 Objeto, fotografia Trabalho realizado a convite da 9ª Bienal do Mercosul, durante uma expedição à Ilha do Presídio, a 12 Km de Porto Alegre, cidade onde a Bienal é sediada. Durante o percurso de barco até a ilha, ofereci óculos-câmeras para os visitantes observarem a ilha.

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O r i f íc i o , Fa n ta s m a , R e t o r n o : Pinhole. Arte Contemporânea Roberto Corrêa dos Santos

PINHOLE – trata-se não de resistência ao pre-

PINHOLE – contemporânea, em certo sentido

sente ou de amor ao passado; trata-se, bem ao avesso disso, de situar-se fora de alguma ideia de temporalidade a envolver senso de avanço ou atraso, ou de progresso. O mundo das tecnologias desde sempre deixou suas marcas de força: o óleo e o pigmento (a pintura!) emergiram, lá longe ou nem tão longe, como um susto, como um acontecimento, um corte na arte; pois mesmo assim, não se deu um passo adiante, irrupções: tecnologias são irrupções: e tendo o solo sido aberto por isso ou aquilo, já não se pode deixar de se alargarem (pois coisa/ corpo/ matéria/ domínio/ encontro) os procedimentos do olhar, e do ver, performances dos corpos e das máquinas-corpos que, em língua portuguesa, não se confundem.

convencional do vocábulo (do mesmo tempo que); contemporânea, em certo sentido do valor do termo no cerne da arte nesses dias a que denominamos de “o hoje”; contemporânea por, ainda margem e por razão de força-ativista no terreno dos feitos ditos de ponta, desmobilizar ideias clássico-modernas de evolução, continuidade, progresso; e mais, por atingir o mais do que contemporâneo esforço humano, o de poder mobilizar os ritmos, reduzir as marchas, ofertar outras disposições corpóreas de vivência: serena, simples, econômica, minimal – um dos fantasmas da arte.

PINHOLE – o aparecimento de algo qualquer na história dos entendimentos e dos fazeres cria sem dúvida a possibilidade de se retomar toda uma massa de valores já pacificados, estremecidos agora pela desconfiança recém-nascida e revirados pelas perspectivas emergentes porque poderão ser pensados e postos em confronto. Ao mesmo tempo que a coisa surgida, em seu estado de margem (a Pinhole consiste, lá e cá, nisso: margem, pois faz estremecer o antes de, o depois de, na vida das técnicas – não se cuida com tais termos, repita-se, de tempo, mas de posição, de posição no espaço), comporta o abalo de sensos e a ativação de olhos, por consistir em força revigorante e da ordem das aprendizagens, traz consigo – a coisa surgida – a conseguinte e “cultural” desordem (ou, melhor ainda, a dispersão) das ordens-do-hábito.

PINHOLE – diante de, lá, ao emergir, novas difi-

Como as coisas pareciam grandes vistas pelo orifício. Adquiriam volume, sombra, claridade: elas apareciam. Clarice Lispector

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culdades: tanto conceituais quanto operativas. Põe a Pinhole, lá e aqui, em estado de crise confiável e costumeiros modos de acolher a História da Arte, a História dos Artefatos, a História dos Objetos, a História dos Usos, a História do Olho. E uma dificuldade de nomeação: arte e tecnologia, como? Como, se desde sempre inseparáveis?

PINHOLE – entre valores recentes (valores do contemporâneo), a Pinhole dá-se, no campo dos estudos das imagens (as formações de, as densidades de, os efeitos de, as políticas de), na arte e dos estudos de práticas socioculturais como um todo, dá-se como uma espécie de cisão – nocional e metodológica – sobre a natureza quase unívoca com que vinha sendo tratada a existência formal das possibilidades dos recursos da ordem do digital: esses teriam operado a “morte” imediata das ações de constituição “analógica” (muito ainda a discutir acerca dessa noção); a Pinhole (sua existência matérica, operativa, epistemológica), ao contrário, não apenas singulariza uma possibilidade firme de intervenção, como também passa a ser, ao mesmo instante, em seu caráter contemporâneo, um objeto (uma materialidade a ser compreendida) ou mais do que; uma categoria (o sinal de um horizonte de abordagem) ou mais do que; e um valor (uma possibilidade de medida, hierarquia, reorganização) ou mais do que. Meios analógicos retornam – fantasmas – no rock e em mais e em mais e em mais.

PINHOLE – como objeto, em sua condição de coisa deslocada (condição que lhe dá grande potência), não se deixa circunscrever propriamente na cena daquilo que se permite aprisionar de modo ime-

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diático nas grades das tipologias; nela, na Pinhole, matém-se algo de algum segredo de vida: daí menos fácil descrevê-la (modos, maneiras e processos reguladores) do que as... máquinas..., máquina-de-“visão” de fabrico industrial: a combinatória de resultados da Pinhole, variáveis e inesperados e desconhecidos, confirma-lhe a qualidade de ser o que possivelmente é: fantasma, o pequeno assombro.

PINHOLE – em face de qualquer moeda em uso (a Pinhole, como objetos em geral, também é isso, moeda: gera trocas, produz, faz circular – vale-se do vigor do des/uso); em face de moedas que pareciam ter-se dissolvido e no entanto assomam, como assomam os vinis e os carvões e os pelos de marta (como, algum dia, e talvez já, os cassetes, os CDs, os mimeógrafos etc., e, quem sabe, as séries e séries de celulares levadas ao lixo); em face de, tendo-se a Pinhole à mão, deixando-a só, deixando-a operar solitariamente, tão logo se abrem seus tantos e tantos efeitos possíveis, tão logo, os embaraços quanto aos seus issos, issos seus, issos sobre a folha de seda, issos “imprecisos”, e sombras, alargamentos, “desperfeições”, os issos luminosos das manchas: arte, arte contemporânea.

PINHOLE – tão logo exposta e pensada como categoria, uma das possíveis estratégias para distender-se o raio da percepção da Pinhole, não há como não considerar haver ali a seta-do-sim-do-já, seta brotada justo da fertilidade e do susto de sua radicalíssima diferença: seta não-reativa, não-conservadora, seta que – no empenho derivado do poder de não-ser, do não-poder, não-poder-ser “sensacionalmente” “atual” – torna a Pinhole capaz de romper, o que significa mais do que rebelar-se, os tradicionais meios de avaliação cultural, meios marcados pela tendência imediata de familiarizar de algum modo o estranho (por vir de lá, o estranho resiste e põe-se a: fantasmar, e, assim, a assombrar e a escapulir); tenta-se familiarizar, oferecendo-se ao que for indecidível, conteúdos e sentidos preci-

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pitados e hierárquicos, e tal com base nas “virtudes” da descartagem de mercado.

PINHOLE – que se pesem, diz a Pinhole, os procedimentos vários de criar, afastando-se os pesadores da voraz vontade de reconhecer toldando as estranhezas que existem, abrem, voltam, abrem.

PINHOLE – todo fazer/saber consiste em atividade e paixão, e, claro, também, muitas vezes, em paralisia (não deixar que pare, please!); para impulsionar o fazer/saber, pondo-o a produzir o atrito da variedade, isso como um dos requisitos do exame das artes, afirme-se o diferir fora das ideias de oposição, complemento ou privilégio; o diferir (a Pinhole agita essa noção) não deve ser medido pela outra-coisa que não é aquela, e sim pela grande energia gerada nas variações do semelhante: o diferir faz-se pela tensão entre coisas e seres: sem que se estabeleçam relações de primariedade ou secundariedade, deve-se – abandonando-se a banal lógica binária do complemento, bem como a concepção de uma origem e de uma gênese em graus – assinalar em cada coisa o traço forte da coisa, ou seja, retirando a coisa (a coisa existindo e em estudo) de um paradigma já constituído de maneira tal que para ela própria, a coisa, possa tornar-se, antes e agora e depois, inaugurante: marcar assim o que ali, na coisa, assinala seu poder dar saltos, diferido, no campo das demais coisas.

PINHOLE – as artes visuais (nelas, a Pinhole como ato) são móveis, resultam de subjetividades distintas, de desejos complexos, realizam a capacidade de serem extremamente singulares e extremamente... históricas, arqueológicas, cartográficas; escolhas, apagamentos, ângulos, cenas, ordens, cortes, contornos compõem um corpo, máquinas o são, e norteiam-se por transitar por entre corpos, e expandem-se para além da questão dos tipos; formas e sentidos provindos da Pinhole fazem-se por intermédio de deslocamentos e de flu-

xos seus; nenhuma outra modalidade de captura e de produção de imagens pode reconquistar essa “natureza” de colheita e mostragem: as vigorosas artes, as que empenham a palavra e prometem e dizem sim a si mesmas, corroem como vírus as famílias das máquinas obedientes, e sua comunicação com as partes do “todo” é concreta: e silenciosa e belamente precária: tanto já disseram os clássicos sobre a “penúria” germinante!

PINHOLE – se houver empenho, diz a Pinhole, em dar ao que desliza a fatal argamassa da coerência, o sofrível valor da exatidão e do controle, a confiança em um parentesco fixo qualquer, afasta-se, quem da Pinhole se aproxima, do grácil risco que ensina a sabedoria do não-saber, do deixar-se, do ceder; as escritas de uma Pinhole são provavelmente um grande início a essas “lições” de acaso, de acaso em arte, de acaso em arte contemporânea.

PINHOLE – para se lidar com o sangue vivo dos fantasmas deve-se, diz a Pinhole, aceitar percorrer diferentes lógicas (entre elas, as dos sonhos, dos pesadelos, dos delírios, e as das esquizografias da luz), seguir liames, observar os jogos: o retorno (o eterno retorno), ah, ele, o retorno (o eterno retorno) sempre: indo e vindo, indo e vindo, indo e vindo.

PINHOLE – fantasmas e retornos – por orifícios – exercem-se por especiais processos pragmáticos: os que fazem entrar em intercâmbio construções cuja expressão formalizada evapora; Pinhole: para aqueles que desenvolvem o enérgico trabalho de ir dando às coisas sua aparência possível (aquela ali, a efetiva); a forma (e seu informe constituinte) nos retornos – fantasmas – com ares de um inseguro isso, um isso sendo feito, valendo-se do intuir o vão.

PINHOLE – efeitos dos efeitos dos retornos e dos fantasmas trazem à cena da cultura, essa inimiga da arte, a luta mansa com as modelagens existentes e repertoriadas; vê-se, com a Pinhole, a “guerra”

entre a estabilidade monumental dos arquivos e as traças, e também: os valores provenientes da crueldade salutar da invasão – fantasmática, claro – no coração dos sinais, dos códigos, dos programas.

PINHOLE – que mostrem nela, na Pinhole, os signos (discretos, econômicos) de sua selvageria em face das selvagerias das imagens que nesta época não cessam de proliferar, não como fantasmas mas como viralidades por vezes tóxicas: zumbis.

PINHOLE – ressemantizar a imagem, dar um pulo vindo de recuos estratégicos; explodir sua caracterização pública como pertencente ao início de.

PINHOLE – um saber, um saber-em-ato; uma das práticas das artes e das pesquisas em geral na ordem do contemporâneo; e quanto mais e mais as línguas (verbais e não verbais) se multiplicam, se espalham, se estendem, mais e mais cabe (e urge) tomar a si e ao entendimento os modos formadores dos sinais-de-vida-simples, traços que digam com maior clareza de que se fazem essas partículas completas que contam para seu existir somente com o que for da natureza do básico, como as moléculas (já enormes frente a átomos e outras recentes designações do mais-que-miúdo).

PINHOLE – e não se trata de voltar às tecnologias-de-começo na coleta e no desenho das imagens, nem sob qualquer hipótese se trata de saudosismo: menos ainda de elogio ingênuo à artesania.

PINHOLE – trata-se sim do manusear e do investigar aquilo que, por razões de seu construir-se matericamente com o pouco, se situa em estado-de-longa-permanência, aquilo que sempre está aqui, e que não fenece, pelo menos à maneira como fenecem as tecnologias-ditas-de-ponta: estas geram insites, vivas! e se fazem por elos – contudo, desaparecem seus artefatos: morrem de vez, e o esquecer deles se dá com rapidez espantosa.

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PINHOLE – imagens não definem da Pinhole a meta: imagens da Pinhole decorrem; o manuseio, o acompanhar as delícias do tosco contam; o cravar seu olho quase invisível: e deixar a Pinhole lá – entregue a seu jeito de ir “sem pedir maiores explicações”, lá, lá se faz o que vem do operar da autopoiésis.

PINHOLE – Manoel de Barros bem descreveria a Pinhole como poema; mais: como poesia; assim: O que se encontra em ninho de joão-ferreira: caco de vidro, garampos, retratos de formatura, servem demais para poesia

PINHOLE – pelo olhar, mundo e sujeito são coisas

PINHOLE – eis o impossível estar-vendo, o olhar a

– mecânicos ambos.

ser desprezado; eis apenas: a coisa “vista”, suas relações com a exterioridade mais rigorosa.

O que é bom para o lixo é bom para poesia

– a subjetividade é posta em ação: gasta-se: não é possível um agir continuado para o verbo ver, não se aguenta estar-vendo: isso em virtude de ver incluir, em seu próprio caráter, o quem-vê, quem-vê está carregado de desejos e de recordações.

Importante sobremaneira é a palavra repositório; a palavra repositório eu conheço bem: tem muitas repercussões como um algibe entupido de silêncio sabe a destroços As coisas jogadas fora têm grande importância – como um homem jogado fora

As coisas que não pretendem, como por exemplo: pedras que cheiram água, homens que atravessam períodos de árvore, se prestam para poesia

Aliás, é também objeto de poesia saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado como, por exemplo, o coração verde dos pássaros, serve para poesia

As coisas sem importância são bens de poesia

As coisas que os líquenes comem – sapatos, adjetivos – têm muita importância para os pulmões da poesia Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia Os loucos de água e estandarte servem demais O traste é ótimo O pobre-diabo é colosso Tudo que explique o alicate cremoso e o lodo das estrelas serve demais da conta Pessoas desimportantes dão pra poesia qualquer pessoa ou escada

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Tudo que explique a lagartixa de esteira e a laminação de sabiás é muito importante para a poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega ao poema, e as andorinhas de junho.

PINHOLE – chama a Pinhole para que se mirem dois processos de percepção, e, logo, cognitivos: ver/olhar; olhar, sempre mais plástico e mais externo – sua força estésica nasce de existências frente a frente, momentaneamente sem história, sem desejo, sem utopia ou lembrança; ver, por sua vez, pode ser imprevisto, sendo também, entretanto, um tomar conhecimento; ora, ver funciona como uma maneira de: deparar-se – ver sem que se espere ver; ora, faz-se fruto de uma i.n.t.e.n.c.i.o.n.a.l.i.d.a .d.e, de um gesto efetivo, deliberado: olhar também, igualmente e por vezes, assim é.

PINHOLE – no entanto, olhar não exerce a capacidade de acionar naquele que olha os mesmos sentidos que atuam naquele que vê: ver, na tradição da língua portuguesa, refere-se à… pessoa; olhar, nem tanto; o sujeito (gramatical), com seus sentidos e graus de presença ou ausência, faz-se o diferenciador; ver contém o traço + eu; olhar, o traço - eu.

PINHOLE – ver dispende grande carga de energia

PINHOLE – o ver é viciado; move-se ou para trás (infinitamente – a remissão à origem e seu fincamento em solo para sempre distante, a nos separar do ato e do hoje) ou para a frente (um dos diferidos modos de a origem orientar-nos); dirigir-nos a: ver depende tantas vezes do rever, está tantas vezes sob as leis do reconhecimento; logo, sob as leis das convenções.

PINHOLE – o visto jamais é visto; vê-se outro algo – o que se aprendeu a ver (isto, não na Pinhole); cola-se sobre a coisa vista a-coisa-outra-já-vista (isto, não na Pinhole); anula-se o novo de imediato (isto, não na Pinhole); ajusta-se a ele um saber dado, filho do Hábito, em débito com o lado triste da Memória, o da naturalizada obediência a esquemas fixos (isto, não na Pinhole). Falta ao ver, portanto, ignorância, desprendimento, disponibilidade – disponibilidade ativa, como a das paixões fortes, fantasmáticas: isto, na Pinhole; sim, na Pinhole.

PINHOLE – ninguém, nem mesmo um cão pode ver a coisa – o olho do homem é humano, demasiadamente humano; a coisa a ver-se ovo está para além do neutro, necessita do hemisfério das maquinarias de processos primários, brutos, mecânicos, automáticos (“só as máquinas veem o ovo”, Clarice Lispector).

PINHOLE – gera a Pinhole a delicadeza do “visto”; por essa razão, seu par talvez seja o mecânico guindaste: “o guindaste vê o ovo” (Clarice Lispector).

PINHOLE – desligue a máquina-Pinhole, tape-lhe o orifício, pense sobre, e toque sua absoluta, luminosa e estarrecedora cegueira norteante, avoque seu poder-fantasma; escreva sobre, imbua-se, ao examinar a Pinhole, de semelhante senso de arte de Mishima: um algo de visionário; imbua-se, ainda, de semelhante senso de arte de Jean Cocteau: um algo de bruxaria, como bem marcou Marguerite Yourcenar; Manoel, Marguerite, Clarice deram a seta, o norte aqui seguido – e agora paro; olho a Pinhole sobre a mesa: um presente teu, Ana, Ana Angélica: gratíssimo aos quatro pares no mundo.

PINHOLE – distintas, afirma a Pinhole, apresentam-se as sentenças do olhar, e o pensamento deve ser excluído – para que muito pura e polida possa ficar a coisa, a coisa que restar.

PINHOLE – o olho, menos preciso: pois dependente: um aparelho com alma que ainda necessita do corpo que o acione; não consegue o olho escapar ileso a um quem com todos os seus históricos e afetivos meios de subjetivizar e conhecer; jogue-se, então, fora esta máquina-olho; deixem sozinha a Pinhole, ela faz.

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biografias Alexandre Sequeira é artista plástico e fotógrafo. Mestre em Arte e Tecnologia pela UFMG e professor do Instituto de Ciências da Arte da UFPA. Desenvolve trabalhos que estabelecem relações entre fotografia e alteridade social, tendo participado de encontros de fotografia, seminários e exposições no Brasil e exterior, podendo-se destacar “Une certaine amazonie” em Paris, França; Bienal Internacional de Fotografia de Liège, Bélgica; Exposição no Centro Cultural Engramme em Quebec, Canadá; X Bienal de Havana, Cuba; Simpósio e exposição “Brush with Light”, na Universidade de Arte Mídia e Design de NewPort no Reino Unido; Festival Internacional de Fotografia de Pingyao, China; exposição “Gigante pela própria natureza” em Valência, Espanha; “Contemporary Brazilian Printing” em Nova York, EUA; “Segue-se ver o que quisesse” no Palácio das Artes em Belo Horizonte, Brasil; “Geração 00 – a nova fotografia brasileira; e Projeto Portfólio no Itaú Cultural em São Paulo, Brasil. Tem obras no acervo do Museu da UFPA, Espaço Cultural Casa das 11 Janelas; Coleção Pirelli/MASP, Museu de Arte do Rio (MAR) e Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul.

Ana Angélica Costa é artista visual, pesquisadora e produtora cultural, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Linha de Pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos, especialista em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, PUC-Rio, e graduada em Educação Artística com habilitação em História da Arte pela UERJ. Uma das fundadoras do Projeto Subsolo (www.projetosubsolo.com), produtora de arte com foco em fotografia e arte contemporânea, e responsável pela concepção, curadoria e realização de projetos como: Pesquisas Artísticas Presentes, selecionado nos editais Conexão Artes Visuais MinC/Funarte/Petrobrás 2007 e Edital de Apoio a

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Websites 2010 (wwww.pap.art.br); Fotografia e Pensamento Artístico Contemporâneo, na Caixa Cultural, entre outros. Possui ampla pesquisa em fotografias feitas com câmeras pinhole e experimentos com câmeras obscuras. Suas obras foram publicadas nos catálogos Rio Ateliê, Novos Talentos da Arte Brasileira, Prêmio Projéteis de Arte Contemporânea, entre outros. Possui obras na Coleção Joaquim Paiva, atualmente em comodato com o MAM-RJ. Desde 2003 desenvolve oficinas de fotografia e, em 2011, foi selecionada pelo Prêmio Interações Estéticas em Pontos de Cultura para desenvolver um projeto de ensino de fotografia no Solar Meninos de Luz, nas comunidades do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo. Em 2013 desenvolveu, dentro do Projeto Subsolo, a caixa Continente: Pinhole, primeira de uma série de caixas de conhecimento sobre assuntos relacionados à produção artística contemporânea e temas transversais. No mesmo ano, o Projeto Subsolo foi contemplado com o XIII Prêmio Marc Ferrez de Fotografia Funarte e com o Edital de Fomento de Artes Visuais da Prefeitura do Rio de Janeiro para desenvolver a publicação Possibilidades da câmera obscura.

Ana Luiza de Abreu é fotógrafa educadora e VJ. Mestre em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ-RJ, em 2008, e graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela UFV-MG, em 2005. Desenvolveu pesquisas de monografia e de mestrado nos estudos de fotografia e análise de discurso visual, voltados para as fotografias de Sebastião Salgado produzidas na América Latina e África. Desde 2002, atua na área sociocultural e ambiental como coordenadora e supervisora de projetos em processos experimentais em fotografia e em comunicação participativa direcionados para lideranças locais, associações de moradores e assentados rurais, pescadores artesanais, população indígena, professores e estudantes da rede pública, distribuídos em dife-

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rentes regiões do Brasil (Nordeste, Amazônia, Sudeste e Centro-Oeste). A atuação da profissional é multidisciplinar, com foco em pesquisa e produção de conteúdos para materiais didáticos, jornais, revistas e livros, bem como coordenação e realização de workshops em comunicação participativa, como Fotografia, Fotografia Pinhole, Vídeo Celular, Zines e Jornais-mural. As metodologias utilizadas se baseiam nas experiências de Paulo Freire e sua pesquisa-ação, assim como na antropologia compartilhada e etnografia visual de Jean-Rouch. Possui artigos publicados em anais de congressos, revistas especializadas em antropologia, fotografia e comportamento e crônicas. Expôs obras fotográficas no Museu do Folclore, Parque Lage e Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS). Atualmente, trabalha no Instituto Moreira Salles, na área de Coordenação de Pesquisa Ação Social e Educação.

Angela Magalhães é pesquisadora e curadora independente de fotografia. Tem graduação em Comunicação Social (UFRJ, 1980) e foi bolsista da Fulbright (Capes/International Center of Photography/Aperture Foundation-NY, 1988-89). No INFoto/Funarte (1979-2003), com Nadja Peregrino, coordenou as Semanas Nacionais de Fotografia (19821989) e diversas mostras fotográficas, entre elas, José Medeiros – 50 anos de fotografia (1987) e Cuba, Imagens da História, Raul Corrales (1987). Entre 1990 e 2003 dirigiu o setor e promoveu o I Encontro Nacional de Coordenadores de Eventos Fotográficos (1991) e o Prêmio Nacional de Fotografia (1995-1998). Atuou, também, em diversas comissões, como o Prêmio da Bienal Internacional de Fotografia de Curitiba (1996) e Tenth Annual Infinity Awards (ICP, NY, 1994). Em coparceria com Nadja, recebeu os prêmios Fundação Vitae (“Revista Realidade, 1966-1976: paradigma de um fotojornalismo moderno no Brasil”) e Rio Arte (“O Rio de Janeiro de José Medeiros”); e publicou os livros Fotografia no Brasil: um olhar das origens ao contemporâneo (MINC/Funarte, 2004) Mato Grosso – Território de imagens (2008) e Fotoclubismo no Brasil – o legado da Sociedade Fluminense de Fotografia (SENAC, 2012).

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Angela Rolim é natural do Rio de Janeiro. Estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, na Oficina de Gravura do MAM e no Ateliê da Imagem. Foi orientadora do curso de gravura do Parque Lage. Atualmente, dirige a oficina de gravura e fotografia pinhole Projeto Impresso, no Rio de Janeiro. Participou de diversas coletivas no Brasil e no Exterior, destacando-se as individuais: Villa Pignatelli em Nápolis, Itália; Mini Print de Cadaqués, Barcelona, Espanha; Casa de Cultura Laura Alvim e Mostra de Gravura UniRio, ambas no Rio de Janeiro, Brasil. Obras em Acervo: Museu Nacional Belas Artes, RJ; Taller Galeria Fort, Espanha; Bienal d’Arte d’Alcoi, Espanha; Coleção Mônica e George Kornis, Villa Pignatelli, Itália; Casa de Cultura Laura Alvim, RJ; Escola de Artes Visuais do Parque Lage, RJ.

Antonio Fatorelli é professor associado da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do PPGCOM-ECO/UFRJ, pesquisador do Núcleo N-Imagem (ECO/ UFRJ) e coordenador do Seminário Temático Cinema como arte, e vice-versa, da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. Possui doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-doutorado pela Princeton University. Publicou recentemente os livros Limiares da imagem – tecnologia e estética na cultura contemporânea, em parceria com Fernanda Bruno; O que se vê, o que é visto – uma experiência transcinemas, em parceria com Katia Maciel; e Fotografia contemporânea – entre o cinema, o vídeo e as novas mídias. É coordenador do projeto Midiateca da ECO/UFRJ, financiado pela Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro.

Cidade Invertida é um grupo formado por fotógrafos e educadores que elabora projetos culturais relacionados à fotografia. Para o desenvolvimento de suas atividades conta com um trailer que opera como laboratório fotográfico, imprimindo ao projeto um caráter itinerante. Com cerca de 20.000 Km percorridos desde 2006, o projeto rece-

beu prêmios e incentivos federais, estaduais e municipais, que lhe possibilitou expandir suas pesquisas e áreas de atuação, participando de eventos como a Virada Cultural, Festivais de Fotografia (Paraty, Tiradentes, Olinda), Unidades do sistema S (SESC, SENAC), Movimentos Comunitários na periferia de São Paulo, Fábricas de Cultura, entre outros, em que pessoas de todas as idades participaram de ações de formação desenvolvendo seu olhar fotográfico.

Dirceu Maués nasceu em Belém e, atualmente, vive e trabalha em Brasília. Graduado em Artes Plásticas pela UnB (2012), é mestrando do programa de Pós-Graduação na mesma instituição. Atuou como fotógrafo dos principais jornais impressos em Belém-PA de 1997 a 2008. Em 2003, iniciou trabalho autoral nas áreas da fotografia, cinema e vídeo, o qual tem como base pesquisas com a construção de câmeras artesanais e utilização de aparelhos precários. Em 2009, foi artista residente na Künstlerhaus Bethanien, Berlim, pelo Rumos Itaú Cultural, e contemplado com a Bolsa Funarte de estímulo à criação artística 2008/2009. Realizou exposições individuais em Berlim, Montevidéu, Katowice (Polônia), São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba e Belém. Em 2012 foi artista residente na WBK Vrije Academie, em Haia/Holanda, resultado de uma premiação no 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil. Seus trabalhos fazem parte das coleções Pirelli-Masp, FNAC, Videobrasil, MAC-PR (Museu de Arte Contemporânea, Paraná), MARP-SP (Museu de Arte de Ribeirão Preto, São Paulo), MEP-PA (Museu do Estado do Pará), Coleção Joaquim Paiva e Coleção Rubens Fernandes Jr. Prêmios e bolsas: Prêmio Brasil Fotografia 2013 (menção honrosa); XII Prêmio Funarte Marc Ferrez Fotografia 2012; Prêmio de Residência Artística WBK Vrije Academie (17o Festival Internacional de Arte Contemporânea Sesc – Videobrasil), São Paulo, Brasil, 2011; Ateliê Residência/Rumos. Artes Visuais 2008/2009 Künstlerhaus Bethanien, Berlim, Alemanha; Programa de Bolsas de Estímulo à Criação Artística – Funarte, Belém, Brasil, 2008.

Fabrício Cavalcanti é fotógrafo, educador e artista visual. Mestre em Ciência da Arte pela UFF-RJ (2009), especialista em Artes e Contemporaneidade (2006) e bacharel em Artes Plásticas pela Escola Guignard/UEMG-MG (2001). Seu interesse de pesquisa versa sobre poéticas visuais e o sentido da memória e da identidade na cultura pós-moderna. Desde 2000 realiza exposições de arte e de fotografia, intervenções urbanas e desenvolve ações colaborativas no campo da arte, da cultura e da educação. Como fotógrafo, faz registro de obras e desenvolve trabalhos fotográficos para artistas visuais. Como educador, realiza workshops em fotografia e vídeo em dispositivos móveis. Atua, também, no tratamento e edição profissional de imagem. Atualmente, é professor de fotografia no Ateliê da Imagem e dirige o SETOR 5 estúdio/ateliê, o qual consiste em um local de trabalho de 175 m2, com a proposta de ser um espaço para locação de fotografia, vídeo e ocupações no campo da arte.

Inaê Coutinho é doutora e mestre em Poéticas Visuais pela ECA-USP com estágio doutoral na Sorbonne Nouvelle Paris 3, sob orientação de Philippe Dubois. Graduada em Educação Artística pelo Instituto de Artes da UNICAMP, atua como fotógrafa, pesquisadora e professora, com larga experiência no ensino de fotografia, história da arte e artes visuais para diversos públicos, inclusive em formação de professores. Presta consultoria em Educação Visual para o 3º Setor. Foi agraciada com o Prêmio Internacional de Inovação e Criatividade por sua atuação no ensino de fotografia pela Safe Kids WorldWide em 2005. Atualmente, leciona no Instituto Tomie Ohtake, na Escola Nova Lourenço Castanho e em seu ateliê. Ganhou a Bourse-Cadrage Atelier Gapihan (Paris/2011) e é representada, em São Paulo, pela Galeria Virgílio e, em Paris, por Agnès Voltz.

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Jochen Dietrich é diretor do Gymnasium Stift Keppel, Hilchenbach, Alemanha. Licenciado em Artes plásticas/Arte-educação e doutorado em Ciências da Educação pela Universidade de Siegen. Prêmios e bolsas: bolsa pépinières européennes pour jeunes artistes, 1996; bolsa artist-in-residence do Instituto Goethe Porto Alegre, Brasil, 1997; prêmio de excelência da Universidade de Siegen 2001. Participou de mais de 50 exposições individuais e coletivas em Berlim, Cidade do Cabo, Frankfurt, Lisboa, Leiria, Paris, Porto Alegre, Siegen, Rio de Janeiro, Rochester e Santa Fé, EUA. Monografias e catálogos: Vom Ansehen der Dinge, editora Athena, Oberhausen 2001; Medidas de Segurança, Ed. Fotogaleria ImagoLucis, Porto 2003; Viagens na terra deles, Ed. Ateliê da Imagem, Rio de Janeiro.

Luciana Guimarães Dantas é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ, na linha de pesquisa Tecnologias e Estéticas. Atualmente, cursa o doutorado neste mesmo programa. Desenvolve um projeto de pesquisa voltado para a arte contemporânea, tendo como focos de interesse a produção de temporalidades na experiência da arte e a relação entre arte e afeto. Participa do Grupo Fotografia, Imagem e Pensamento (ECO/UFRJ) e do Grupo de Pesquisa Interfaces: Técnica, Arte e Questões Ético-Políticas no Pensamento Filosófico (UNIRIO/CNPq). Realiza, ainda, um trabalho artístico com fotografia, e tem participado de exposições coletivas.

Luiz Alberto Guimarães nasceu e mora em Niterói. Graduado em Física e Engenharia, com mestrado em Educação pela UFF, desenvolveu sua vida profissional na área de ensino, no Centro Educacional de Niterói e no Departamento de Física da Universidade Federal Fluminense. A partir de 2006, dedicou-se à fotografia, frequentando cursos no Ateliê da Imagem e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Em 2013, cursou Pós-Graduação com pesquisa em Fotografia e Imagem, na UCAM/IUPERJ, apre-

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sentando no fim do curso o trabalho “Essas máquinas maravilhosas”, no qual descreve sua experiência com máquinas artesanais ao longo desses anos. Tem participado regularmente de salões de arte contemporânea e de exposições coletivas e individuais.

O casamento dessas duas paixões já dura mais de 20 anos sem sinais de desgaste. Considero que meu trabalho tenha a interpretação declaradamente subjetiva mesmo sendo documental.”

Miguel Chikaoka Mão na Lata As oficinas de fotografia pinhole e criação de narrativas do Mão na Lata, para crianças e jovens, na comunidade da Maré, tiveram início em 2003. O projeto é resultado de uma parceria entre a fotógrafa Tatiana Altberg e a Redes da Maré. O objetivo do Mão na Lata é a manutenção de um espaço dedicado aos jovens, em que por meio de uma experiência cultural e artística, possam desenvolver um olhar crítico e poético sobre seu cotidiano. Ao longo de dez anos, o projeto Mão na Lata formou vários grupos que participaram de uma série de exposições, oficinas, seminários e publicações. O projeto atua dentro e fora da Maré, junto a muitos parceiros, como o Instituto Moreira Salles, Observatório de Favelas, Biblioteca Parque da Rocinha/C4, Casa Daros, Projeto Subsolo, Secretaria de Cultura do Estado e do Município do Rio de Janeiro, MinC, Petrobras, entre outros. O Mão na Lata realizou a publicação dos livros Mão na Lata e Berro D’água, em 2006, e Cada dia meu pensamento é diferente, em 2013. Uma série de imagens do último livro foi adquirida para o acervo permanente do Museu de Arte do Rio – MAR, e exposta durante a comemoração do primeiro ano do museu, em 2014.

Maria Di Andrea Hagge é artista visual, nascida e criada no Amazonas. Iniciou na arte da fotografia em 1993 como autodidata. Em 1994/1995, formou-se em Fotografia no International Center of Photography, em Nova York, onde morou por seis anos. Atualmente, desenvolve pesquisas e projetos de expressão pessoal para buscar novas linguagens na fotografia e resgatar aspectos de identidade cultural, social e étnica de grupos sociais específicos. Em suas palavras: “Me encantei com as belezas do cotidiano de minha terra, com os rituais indígenas, com as cerimônias religiosas, mais ou menos na mesma época em que descobri a fotografia documental.

nasceu no Vale do Ribeira, São Paulo. É formado em Engenharia Eletrotécnica pela Universidade de Campinas, SP. Reside em Belém desde 1980, onde idealizou a Fotoativa, um núcleo de experimentação, pesquisa, reflexão e difusão do fazer fotográfico. Ainda na década de 1980, atuou como fotógrafo junto aos Jornais Resistência, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, e Movimento (SP), e foi colaborador da Agencia F4 (SP). Como autor, acumula exposições individuais e participações em mostras e salões no Brasil e no exterior. Possui obras nos acervos do Museu de Arte de São Paulo (MASP); Biblioteca Nacional, RJ; Museo de Arte de las Américas, EUA; Museu de Arte Contemporânea Casa das Onze Janelas, PA; e Museu Histórico do Pará. Em 2012 recebeu o prêmio Brasil Fotografia Especial e foi condecorado pelo Ministério da Cultura com a Ordem do Mérito Cultural. Seus experimentos na prática do ensino da fotografia encontra na abordagem transversal da luz, matéria – símbolo, a potência inspiradora para a construção de percursos educativos.

Monica Mansur é artista visual, nascida no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha. Graduada pela FAU/UFRJ em 1980, frequentou a EAV/Parque Lage por alguns anos, onde iniciou sua carreira como gravadora com o desaparecido mestre José Lima, em cujo ateliê passou a trabalhar desde final do ano de 1989 – ano em que começou a expor coletiva e individualmente – até o ano de 1992. Cursou a Pós-Graduação em História da Arte e Arquitetura no Brasil na PUC-Rio e obteve o título de Mestre pelo PPGAV/EBA/UFRJ em 2000. Fundou a Binóculo Produção e Editora, associando-se em 2009 à artista Claudia Tavares. Sua obra é citada em artigos, pesquisas internacionais e publicações brasileiras, exposta em mostras nacionais e internacionais e pode ser vista no site www.monicamansur.com.

Nadja Fonsêca Peregrino é mestra em Comunicação (ECO/UFRJ-1990). Professora do Pós-Foto da Universidade Cândido Mendes, atuou na Funarte (1977-1990, RJ) e no Centro de Artes da UFF (1990-1998, Niterói), organizando individuais de Sebastião Salgado e José Oiticica Filho (anos 80) e o evento Niterói Foto (anos 90). Como curadora independente, realizou exposições, como La revue O Cruzeiro (França, 2006); Um certo Brasil (China, 2010); Laços de Família, Etnias do Brasil (MAM, RJ, 2012); O corpo, a expressão e a poética do movimento (SP, 2014); Brasil, China, luz no lixo (CCJF, 2014). Como conferencista, participou do Fórum Latino-Americano (SP, 2007) e do Photograma (Montevidéu, 2007-2009). Foi premiada com as bolsas RioArte (1998) e Fundação Vitae (2004). Integrou a seleção dos prêmios Hercule Florence (Brasil/França, 2003), Marc Ferrez (Funarte, 2010) e ArtePará (Belém, 2010). Publicou o livro O Cruzeiro – A revolução da fotorreportagem (1991) e, em parceria com Angela Magalhães, Mato Grosso – Território de imagens (2008), Fotografia no Brasil: um olhar das origens ao contemporâneo (2005) e Fotoclubismo no Brasil – o legado da Sociedade Fluminense de Fotografia (Senac, 2012).

Paula Biazus e Rafael Johann Paula Biazus é jornalista com mestrado em Antropologia Social pela UFRGS. Foi aprendiz de fotógrafa no laboratório da faculdade, passando horas a revelar ou copiar imagens em preto e branco. Atualmente, é professora de fotografia nos cursos de graduação em Comunicação Social e Design da UNIVATES em Lajeado, RS, e em cursos de extensão da UFRGS. Membro do coletivo Lata Mágica desde a primeira oficina de fotografia pinhole ministrada pelo grupo em 1999. Rafael Johann é bacharel e licenciado em Artes Visuais pela UFRGS. Aprendeu a revelar o primeiro filme fotográfico no laboratório do avô aos 12 anos. Hoje, leciona Artes em uma escola municipal de Porto Alegre, inserindo a fotografia pinhole nas suas aulas. Recebeu o prêmio Professor Excelência da Secretaria Municipal da Educação – POA/RS por essa iniciativa. Desde 2001, integra o coletivo Lata Mágica.

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Os dois se encontraram através da fotografia pinhole. Nos últimos 13 anos, ministraram oficinas fotográficas nos mais variados contextos, percorrendo muitos caminhos, de câmeras escuras à fotografia digital. Promoveram o projeto O Olhar Passageiro, o qual levou a fotografia pinhole em adesivos para as janelas dos ônibus da cidade de Porto Alegre. Seguem sempre pesquisando a construção de imagens em fotografias pinhole através de diferentes câmeras e suportes fotossensíveis. Integraram diversas exposições, encontros e projetos.

Paula Trope é artista visual, formada em Cinema pela UFF (1990), mestre em Técnicas e Poéticas em Imagem e Som pela USP (1999). Expõe no Brasil e no exterior desde os anos 1990: A Espessura da Luz – Fotografia Brasileira Contemporânea, Frankfurt, 1994; Versiones del Sur: Más Allá del Documento, Centro de Arte Reina Sofía, Madri, 2001; 52ª Biennale di Venezia, 2007; O Abrigo e o Terreno, Museu de Arte do Rio de Janeiro, 2013; e Experiência da Arte – Série Arte para Crianças, CCBB, Brasília, 2014. É professora de Fotografia e Artes, tendo feito parte do corpo docente da Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro; do Departamento de Artes e Design da PUC-Rio, entre outras instituições. Premiada no Panorama da Arte Brasileira 1995, no 5º Programa de Bolsas RIOARTE 2000, no Prêmio CNI-SESI Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas 2004, no Prêmio IBRAM de Arte Brasileira Contemporânea 2011, entre outras bolsas de pesquisa, realização e ensino.

Pedro Afonso Vasquez é escritor, tradutor, fotógrafo e curador. Autor de 24 livros, entre os quais as obras de referência: Dom Pedro II e a Fotografia no Brasil; Fotógrafos Alemães no Brasil do Século XIX; O Brasil na Fotografia Oitocentista. Formado em Cinema pela Université de la Sorbonne, é mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense, e trabalha como editor de não-ficção na Editora Rocco. Como administrador cultural, foi responsável pela criação do Instituto Nacional da Fotografia da Funarte; do Departamento de Fotografia, Vídeo & Novas Tecnologias do Museu de Arte Moderna do Rio

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de Janeiro; e diretor do Solar do Jambeiro. É membro titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto Histórico e Geográfico de Niterói.

Regina Alvarez foi uma das precursoras no ensino e experimentação com câmeras pinhole e câmeras obscuras no Brasil. Inicia suas atividades como arte-educadora na Escolinha de Artes do Brasil na década de 1970. Com uma bolsa do Conselho Britânico, estudou na Cardiff College of Art e na Birmingham School of Art Education and Design, entre 1975 e 1977, onde conheceu a fotografia pinhole. Em 1978, retorna ao Brasil e realiza, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, a primeira oficina de fotografia pinhole no Brasil. Em 1981, realiza a exposição Fotografia sem Câmara, na Galeria da Funarte, cujo catálogo é a primeira publicação brasileira de fotografia pinhole. Nos anos seguintes realizou oficinas de fotografia por todo o Brasil, influenciando artistas como Paula Trope e Miguel Chikaoka. Faleceu em 2007 em decorrência do Mal de Alzheimer.

Ricardo Hantzschel é jornalista formado pela PUC-SP e pós-graduado em Fotografia e Mídia pelo Centro de Comunicação e Artes do Senac. Atua como fotógrafo profissional desde 1987. É professor do Bacharelado em Fotografia do Centro Acadêmico Senac (CAS) desde 2000 e da Pós-Graduação em Fotografia (2013/2012 e 2003/2000) no Senac Lapa Scipião. Em 2003 foi vencedor do Prêmio Porto Seguro de Fotografia, São Paulo 450 anos. Em 2014 foi reconhecido com o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia pelo ensaio SAL. Figura no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo desde 2001. Desenvolve ação educativa aplicada em parceria com movimentos comunitários. Em 2007 publicou o livro Estrela Nova 21 anos, sobre comunidade de base no bairro do Campo Limpo (SP). Concebeu e coordena o projeto educacional em linguagem visual Cidade Invertida, com atuação em entidades da periferia, escolas, faculdades, instituições públicas e privadas e eventos fotográficos desde 2006. O projeto foi premiado, em 2006, pelo Programa de Ação Cultural do Governo do Estado, reconhecido, em 2008,

com a certificação de “Mérito Cultural” pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo e premiado, em 2010, pelo Fundo Comgás de Patrocínio Sociocultural. Sites: www.fotopositivo.com.br e www.cidadeinvertida.com.br

Roberto Corrêa dos Santos é semiólogo, teórico da arte, escritor e artista. Atua como professor de Teoria da Arte e de Estética nos cursos de graduação e de pós-graduação do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É pesquisador do CNPq, com pós-doutorado na PUC-SP. Publicou, e vem publicando, livros sobre teoria, arte e literatura; livros de poesia; e livros de artista. Dedica-se há alguns anos ao exame teórico-crítico de obras do âmbito das artes plásticas e visuais contemporâneas, realizando ao mesmo tempo importantes pesquisas sobre uma teoria da arte recente e adisciplinar.

Tatiana Altberg é fotógrafa e designer com ampla experiência em projetos ligados à fotografia e educação. Em 2005 publicou o livro Sí Por Cuba, pela Ed. Cosac Naify. Em 2003, criou o projeto Mão na Lata em parceria com a Oscip Redes da Maré para jovens das comunidades da Maré, que desde então tem participado de exposições, seminários e publicações. Em 2008 foi contemplada com a Bolsa Funarte de Estímulo à Criação Artística. Tem fotografias pertencentes à Coleção Joaquim Paiva, expostas no Théâtre de la Photographie et de l’Image (Nice).

ção, fotografia e a simples observação da paisagem. Participa de exposições coletivas desde o final dos anos 1990, como Rumos Visuais Itaú, 1999; Panorama da Arte Brasileira MAM, 2001 (com o Clube da Lata); Bienal de las Américas, 2010; e 9ª Bienal do Mercosul, 2013. Realizou, também, as individuais SubinônibuS (2000), na Galeria Iberê Camargo, em Porto Alegre; Via de mãos dadas, nº 1 (2008); Horizonte de nós dois (2011), no Ateliê Aberto, em Campinas; e Eu e outros nós (2012), na Galeria IBEU, no Rio de Janeiro.

Victa de Carvalho concluiu o doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estágio de pesquisa na Université Paris1: Sorbonne. É professora adjunta da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora do PPGCOM-ECO/UFRJ e coordenadora da Central de Produção Multimídia – CPM/ECO. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Artes, privilegiando os seguintes temas: fotografia, arte contemporânea, cinema, vídeo e novas mídias. Publicou diversos artigos, entre eles: Dispositivos em evidência na arte contemporânea, na revista Concinnitas; Cinema as Dispositif, em parceria com Andre Parente, na Revue Cinéma; Cotidiano e Experiência na Fotografia Contemporânea, na revista Em Questão. Organizou, em parceria com Teresa Bastos, o livro Fotografia e Experiência: o desafio das imagens na contemporaneidade. Atualmente, pesquisa sobre as relações entre cotidiano e experiência estética na arte contemporânea, com especial interesse pela fotografia.

Tiago Rivaldo cursou Comunicação na PUCRS e Artes Visuais na UFRGS. Trabalha com imagens técnicas (foto/vídeo) associadas a ações performativas e operações relacionais que pretendem pensar a relação do seu corpo com o espaço e com o tempo, e refletir sobre o eu-e-o-outro e o ser-estar. Utiliza câmera obscura em seus projetos desde a 1ª Bienal do Mercosul, em atividade paralela com o fotógrafo alemão Jochen Dietrich, oficina a partir da qual se formou o Clube da Lata (19982002), grupo que explorou a utilização do fenômeno como instrumento poético em propostas de interven-

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Presidente da República Dilma Rousseff

Projeto e coordenação editorial Projeto Subsolo

Ministra de Estado da Cultura, interina Ana Cristina Wanzeler

Organização de conteúdo Ana Angélica Costa

Presidente da Funarte Gotschalk da Silva Fraga – Guti Fraga

Produção executiva Janaina Garcia

Diretor Executivo Reinaldo Veríssimo

Projeto gráfico Marina Lutfi / Cacumbu Design

Centro de Artes Visuais - Diretor Francisco de Assis Chaves Bastos - Xico Chaves

Tratamento de imagens Davi Kuhn

Coordenadora de Artes Visuais Andrea Paes

Imagem de capa Ana Angélica Costa e Janaina Garcia (fotografia pinhole do Jardim Botânico, Rio de Janeiro)

Coordenador do prêmio Marc Ferrez Osvaldo Alves

Revisão de textos Valeska de Aguirre Impressão Ipsis gráfica e editora

Prefeito da cidade do Rio de Janeiro Eduardo Paes

Patrocínio FUNARTE / XIII Prêmio FUNARTE Marc Ferrez de Fotografia e Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro / I Programa de Fomento à Cultura Carioca

Vice-prefeito Adilson Pires Secretário municipal de cultura Sérgio Sá Leitão

Distribuição gratuita - proibida a venda

Chefe de gabinete Cláudia Pedrozo Subsecretária de cultura Danielle Barreto Nigromonte Subsecretário de gestão Carlos Corrêa Costa Coordenadora de equipamentos culturais Luciana Adão de Paula Andrade Richard Coordenador de fomento Jorge Luiz José Maria Assessoria de comunicação Roberta Mattoso Flavia Cavalcante

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Possibilidades da câmera obscura / organizadora Ana Angélica Costa . -- Rio de Janeiro : Projeto Subsolo, 2014. ISBN 978-85-68777-00-8 1. Arte e fotografia 2. Fotografia - Métodos Fotografia 3. Técnicas I. Costa, Ana Angélica. 14-13291 Índices para catálogo sistemático: 1. Fotografia : Artes 770

CDD-770


Este livro foi composto em Foundry Gridnik e Akkurat e impresso no papel Eurobook 135g, pela grรกfica Ipsis em novembro de 2014.

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Realização

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Patrocínio


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