Imagens do sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro

Page 1

IMAGENSDOSAGRADO

FernandodeTacca

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Governador José Serra

Universidade Estadual de Campinas Reitor Fernando Ferreira Costa

Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti

Alcir Pécora – Arley R amos Moreno Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo José Roberto Z an – M arcelo Knobel Sedi Hirano – Yaro Burian Junior

Diretor-Presidente Hubert Alquéres

Diretor Industrial Teiji Tomioka

Diretor Financeiro Clodoaldo Pelissioni

Diretora de Gestão de Negócios Lucia M aria Dal Medico

IMAGENS DO SAGRADO

Fernando de Tacca

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação

T116i Tacca, Fernando Cury de. Imagens do sagrado: entre a Paris Match e O Cruzeiro / Fernando Cury de Tacca. – Campinas, sp : E ditora da Unicamp , Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009 200p. - il.

e-isbn 978-85-268-1172-0

isbn 978-85-268-0848-5 (Editora Unicamp) isbn 978-85-7060-747-8 (Imprensa O cial)

1. Fotogra a. 2. Candomblé. 3. Antropologia visual. 4. Fotojornalismo. I. Título.

cdd 770 299 6 390 778.53807

Índices para catálogo sistemático:

1. Fotogra a 770 2. Candomblé 299.6

3 Antropologia visual 390 4 Fotojornalismo 778 53807

Copyright © by Fernando Cury de Tacca

Copyright © 2009 by Editora da Unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

Direitos reservados e protegidos (lei nº 9 610, de 19 02 1998)

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei nº 10.994, de 14.12.2004)

Impresso no Brasil 2009

Editora da Unicamp

Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp Caixa Postal 6074 – Barão Geraldo cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br vendas@editora.unicamp.br

Imprensa O cial do Estado de São Paulo

Rua da Mooca, 1921 – Mooca cep 03103-902 – São Paulo-sp www.imprensao cial.com.br livros@imprensao cial.com.br sac Grande São Paulo: (11) 5013-5108 | 5109 sac Demais localidades: 0800 0123401

IMAGENS DO SAGRADO ENTRE PARIS MATCH E O CRUZEIRO Fernando de Tacca

Não há Cruzeiro que pague tanto Riso...

A Micênio Carlos Lopes dos Santos, in memoriam

Agradecimentos

Ao povo de Mãe Riso do Bairro da Plataforma e de Nilópolis, pelos depoimentos aqui publicados, especialmente a Janíldece Barroso da Silva, que nos acolheu desde a primeira vez que chegamos de surpresa em sua casa e se tornou nosso principal contato no Bairro da Plataforma em Salvador, Bahia, e a Marilene da Silva Reis, pela paciência com nossas indagações. Agradeço a todas as pessoas cujos depoimentos constam neste livro.

Agradeço a algumas pessoas e entidades que foram muito importantes para esta pesquisa:

Micênio Carlos Lopes dos Santos, meu companheiro de trabalho, que acompanhou todas as etapas e esteve comigo em Salvador, em julho de 2003;

José Medeiros, que me recebeu em sua casa no Rio de Janeiro, em 1988, quando iniciava minha pesquisa;

Milton Guran, amigo e incentivador deste estudo; Cláudio da Cruz David, assistente de pesquisa, sempre atento aos dados; Susana Sel, sempre presente e acompanhando nosso trabalho;

Luiz Eduardo R. Achutti, Cláudia Possa, Emanoel Castro Oliveira , Vagner Gonçalves e Jéromê Souty, pelas preciosas informações e contribuições; Angela Lühning e Alex Baradel, da Fundação Pierre Verger; Casa de Cultura de Teresina, pelas informações da Coleção Fotográfica José Medeiros;

Lygia Nery, pelas traduções e amizade, e Eduardo Covas, pelas transcrições dos depoimentos.

Meus alunos de graduação e pós-graduação, sempre atentos ao desenvolvimento da pesquisa, e meus colegas do Departamento de Multimeios, Mídia & Comunicação, do Instituto de Artes da U;

Fundação Vitae, pela Bolsa Vitae de Artes — 2002.

Sumário

Apresentação 13 Introdução 17 Encontro com memórias e histórias recontadas 29

O contraponto de Pierre Verger 71 Clouzot no Brasil, o caso Paris Match 87

O Cruzeiro e José Medeiros 123

A fricção ritualística 159 Bibliografia 163 Candomblé — José Medeiros 165

Apresentação

Já foi dito que o jornalismo — o palco onde se desenrola a polêmica central deste livro — é um delicioso passeio pela superfície das coisas. De fato, cabe-lhe proceder a um inventário dos acontecimentos em geral. Entretanto, ao fazê-lo, o jornalismo produz, também, um registro mais ou menos minucioso dos diferentes interesses e mentalidades que permeiam a sociedade enfocada num determinado momento.

Às ciências sociais, por sua vez, cabe reunir, sistematizar e problematizar todo esse material — que constitui parte do seu campo de trabalho —, buscando produzir uma reflexão sobre como os indivíduos e os grupos sociais organizam e classificam suas experiências enquanto seres sociais.

São tarefas distintas, mas contíguas, por assim dizer. Normalmente, são desempenhadas por profissionais diferentes, cada um com uma formação específica e com propósitos diversos. Aqui, no entanto, encontramos o fotógrafo, com sua experiência de repórter-fotográfico, que se junta com o antropólogo para transformar aquele delicioso passeio pela superfície em uma apaixonante viagem pelas profundezas do mundo do candomblé, das suas dimensões sagrada, mediática e ética.

A partir da própria polêmica gerada pela sua exposição jornalística, são apresentados e analisados os preconceitos que o candomblé despertava naquela época no Brasil e no exterior, como também os interesses menores dos seus adeptos ao lado de toda a sua dimensão humana e força social. Bastam os títulos das reportagens em questão para se ter uma idéia da problemática que essa polêmica pôs em evidência. De um lado, a revista francesa Paris Match publica “Les possédées de Bahia”, reportagem marcada pelo sensacionalismo do exótico. De outro, ferida em seus brios de líder inconteste do mercado editorial brasileiro e exemplo mais bem sucedido das revistas ilustradas na América Latina,

A PRESENTAÇÃO 13

O Cruzeiro contra-ataca com “As noivas dos deuses sanguinários”, levando ao extremo o equívoco e o preconceito que marcavam a primeira reportagem.

A revista O Cruzeiro tinha um impacto na sociedade brasileira de norte a sul somente comparável ao das grandes cadeias de televisão de hoje. A sua reportagem, mais do que a da revista francesa, mexeu profundamente com a representação do candomblé enquanto culto religioso e agitou perigosamente seus seguidores, principalmente em Salvador. E como ficaram os adeptos nessa polêmica? Como se produziram essas reportagens, que interesses representavam, dentro e fora dos terreiros de culto? Quem eram os protagonistas, e por que colaboraram com essas reportagens? Eis algumas das perguntas que este livro responde, e aí reside um dos seus méritos.

Fernando de Tacca levantou as fontes originais dos jornais da época e foi procurar os seus protagonistas, diretos e indiretos, no próprio Bairro da Plataforma. Ouviu quem carregava ainda as lembranças da polêmica pelo seu lado de dentro, como Sissi, da Fundação Pierre Verger, e Mãe Cutu, da Casa Branca. Encontrou as mesmas imagens que foram sentidas como pejorativas agora habitando o universo das iaôs, ressignificadas em álbuns familiares. Aqui aparece, de volta, a personagem central de Mãe Riso, mãe-de-santo da periferia, de tradição banto, que foi duramente rechaçada pelo candomblé, mas que teve uma vida inteira dedicada somente a essa religião. Sua história de vida, por si só, enriquece enormemente a releitura desses fatos. Essa polêmica, naturalmente, envolveu a intelectualidade da época e aqui estão, também, Pierre Verger, Édison Carneiro, Paulo Duarte, Alberto Cavalcanti, Leão Gondim, Accioly Netto, Odorico Tavares e Roger Bastide (inclusive com o artigo específico sobre a revista O Cruzeiro, excluído dos seus compêndios), entre outros.

Imagens do sagrado — Entre Paris Match e O Cruzeiro nos traz, ainda, uma significativa contribuição para a construção de uma metodologia de trabalho que alia técnicas de reportagem jornalística às melhores práticas de pesquisa de campo da antropologia. Partindo de um conflito de interesses e disputas jornalísticas que abrangeram tanto questões éticas quanto comerciais, Fernando de Tacca colocou na boca da cena, com status de atores principais, personagens que até então funcionavam

14 I MAGENS DO SAGRADO

apenas como objetos de curiosidade. De seres exóticos, esses personagens e, através deles, o próprio culto passaram a sujeitos e interlocutores graças às entrevistas e, sobretudo, à leitura acurada das imagens publicadas.  

I NTRODUÇÃO 15

Introdução

Aprimeira vez em que as fotografias sobre rituais afro-brasileiros de José Medeiros estiveram diante do meu olhar corria o ano de 1984, quando me foi apresentado o livro Candomblé, publicado em 1957 pela Editora O Cruzeiro. Elementos inatingíveis pelo olhar leigo, espaços e temporalidades da liminaridade, detalhes do sagrado, impenetráveis ao olhar de um não-iniciado, eram explicitados pela fotografia e mostravam imagens nunca antes vistas, em recortes detalhistas de todo o conjunto de cerimônias que envolvem os ritos de iniciação no candomblé. Na ocasião, estava em Goiânia fazendo o primeiro curso no Brasil que tratava das questões de antropologia e imagem, seus usos e suas significações. Um curso no qual pude encontrar pessoas muito importantes para minha vida pessoal e profissional: Milton Guran, Kim-Ir-Sem Pires Leal, Micênio Carlos Lopes dos Santos, Luis Eduardo Jorge. O curso de especialização chamado de Recursos Audiovisuais em Etnologia foi realizado dentro de uma instituição sem nenhuma tradição imagética, mas com importante parte do acervo brasileiro do cineasta e fotógrafo Jesco von Puttkamer. Alguns professores foram importantes na aproximação com o conteúdo do curso, mas especificamente somente Cláudia Menezes tinha uma inserção real na área, já havia realizado um filme etnográfico sobre os pancararus e tinha alguma bibliografia básica para nos indicar. Um curso era uma idéia “fora de lugar”, pois o interesse era somente chamar a atenção para o acervo e buscar saber o que fazer com ele. Nessa situação, ainda um neófito na área chamada antropologia visual, que começava a encontrar seus primeiros caminhos no Brasil como área do conhecimento, estive com essas imagens pela primeira vez. Entretanto, eu vinha de uma experiência pessoal de pesquisa em alguns textos do periódico Studies in Visual Communications, que encontrei uma parte na biblioteca da F-USP e outra na biblioteca da ECA-USP, e com uma

I NTRODUÇÃO 17

prática fotográfica na documentação do cotidiano de pescadores da Ilha de Boipeba, Bahia, com cultura e conhecimento fotográficos. Assim, com essa formação, tive a primeira relação com as imagens de José Medeiros. O livro pertencia a Micênio Carlos Lopes dos Santos, também um antropólogo em formação com muita inserção no universo religioso dos cultos afro-brasileiros, com o qual travei as primeiras questões sobre as imagens e o contexto da cerimônia de iniciação no candomblé.

As imagens de José Medeiros imediatamente saltaram aos meus olhos iniciantes na compreensão da relação entre antropologia e imagem. Imagens nunca vistas por mim e com certeza tampouco por muitos pesquisadores nas áreas da antropologia e da fotografia, e, como fotógrafo, percebi que estava diante de um fotógrafo especial, com aguçado senso plástico para as condições dadas de um ritual e suas dificuldades de documentação. Percebi que estava perante uma documentação autêntica e original. Já conhecia a importância da fotografia de José Medeiros, mas sua obra era inacessível, somente algumas imagens suas tinham sido publicadas até então, fora as publicações da revista O Cruzeiro, também de difícil acesso. O que me atraiu de imediato no conjunto de 60 fotografias foi o olhar inserido na complexidade do ritual e a forma como o fotógrafo realizou as imagens, com proximidade e consentimento. A objetividade no enquadramento com contextualização dos momentos importantes do ritual condensa, principalmente, os detalhes sobre o corpo como suporte ritualístico. Desde o primeiro instante em que meu olhar percorreu o conjunto das imagens, identifiquei-as como uma documentação original e de forte valor etnográfico. O texto jornalístico que acompanha as imagens não compromete pelo seu caráter meramente descritivo, com detalhamento para ações, cantos, nomeação de objetos, e certa dramaticidade narrativa do evento. O texto e as legendas não identificam o local e as pessoas fotografadas, somente havia a indicação da cidade de Salvador, Bahia. Pensei ingenuamente tratar-se de uma forma de preservação das pessoas que se deixaram fotografar, mas fui percebendo, conforme a pesquisa se desenvolvia, que tenha sido talvez um caso de simples omissão.

Instigado então pelas imagens que ficariam retidas na minha memória, encontrei-me com o fotógrafo José Medeiros em seu apartamento no Rio de Janeiro, em 1988. Ele me concedeu, na ocasião, uma entrevista na qual relatou os fatos aqui apresentados. Eu tinha interesse específico em saber a motivação da reportagem, sua inserção no meio religioso,

18 I MAGENS DO SAGRADO

as relações que propiciaram a feitura das imagens, as conseqüências da publicação e outras informações que ele tivesse sobre o assunto. José Medeiros, amável e simpático, foi solícito e conversamos por duas horas. Na conversa, indicou-me caminhos importantes com informações que somente ele podia fornecer-me naquele momento. Disse ele que em 1951, sentindo-se importunado e incomodado em decorrência das imagens sobre candomblé publicadas por um estrangeiro, resolveu fazer uma reportagem mostrando os aspectos inacessíveis ao olhar leigo dos rituais de iniciação dessa religião afro-brasileira. Segundo ele, a reportagem estrangeira não mostrava o “verdadeiro candomblé”. Como era costume no processo de decisão de pauta na revista O Cruzeiro, os fotógrafos tinham autonomia para propor e conduzir uma reportagem. Os enfrentamentos com revistas estrangeiras eram um ponto importante de afirmação para O Cruzeiro como produto de um jornalismo autêntico e nacional. O caso Flávio publicado na revista Life é um deles. Medeiros partiu então com o jornalista Arlindo Silva para a Bahia para tentar uma documentação original dos rituais secretos do candomblé. A dificuldade de aproximação nos terreiros tradicionais levou-os a procurar alternativas, e um guia indicou-lhes uma casa não-tradicional onde três iaôs1 estavam em reclusão e em processo de iniciação.

Medeiros relatou-nos que teve uma experiência desagradável quando freqüentava os terreiros tradicionais tentando as primeiras aproximações com o intuito de fotografar, e logo em um deles, mesmo sem portar o equipamento fotográfico, foi questionado por uma mãe-de-santo em transe, que se dirigiu diretamente a ele e falou: “Você veio aqui para fotografar, mas não vai não!”. Medeiros contou-nos essa passagem com um ar de espanto místico, mas, como um fotojornalista exemplar, refletiu internamente e decidiu que não iria desistir de mostrar o “verdadeiro candomblé” e voltar para a redação sem o material prometido. Assim, mesmo fora dos terreiros tradicionais já se sabia de seus objetivos, afinal, a chegada de um fotógrafo e de um jornalista da revista O Cruzeiro era assunto em qualquer cidade na época. No depoimento mais informativo de sua vida, Medeiros fala sobre sua sensação de ser um fotógrafo da revista O Cruzeiro: “Um fotógrafo da revista era tão famoso quanto é

1 Termo que designa as pessoas que estão em processo de iniciação no candomblé.

I NTRODUÇÃO 19

hoje um galã da Globo, cheguei a dar autógrafos na rua. O pessoal ficava vidrado pelo fato de o cara ser d’O Cruzeiro”.2

Assim, ele encontrou um guia que o conduziu a um terreiro na periferia, no qual estariam sendo iniciadas as três iaôs: o Terreiro de Oxóssi, da mãe-de-santo Mãe Riso da Plataforma. Na conversa com Medeiros, pela primeira vez ouvi o nome da mãe-de-santo que se deixou fotografar, um dado importante para a pesquisa de campo realizada em 2002, pois pude ir diretamente para o local, o Bairro da Plataforma, em Salvador, e encontrar as memórias vivas dos acontecimentos nas pessoas que tiveram alguma relação com o evento ou que foram fotografadas por Medeiros. Somente no final da pesquisa, por meio de conversas com Arlindo Silva, tivemos a informação de como chegaram até o terreiro de Mãe Riso. O também fotógrafo Gervásio Batista apresentou-os a um motorista de táxi, chamado de Sessenta, que era freqüentador da casa de Riso e sabia da reclusão de três iaôs, e, por intermédio de Sessenta, chegaram até o Bairro da Ilha Amarela onde ficava o terreiro. Localizado no subúrbio ferroviário, o local era ainda zona rural com poucas casas e um trajeto muito longo e difícil, passando pela Ribeira e pela Plataforma, muito distante do centro de Salvador. Contou-nos Medeiros que “pagou” a mãe-de-santo para fotografar as três iaôs dentro de sua reclusão, as etapas do ritual de iniciação e a festa de saída. Com a carga mística envolvendo sua fala e o fato de estar documentando procedimentos ritualísticos não veiculados pela mídia brasileira até então, falou-nos com forte ar de mistério que ainda teve problemas com seu equipamento, pois o cabo de sincronismo do flash rompeu-se. Como o ambiente era muito escuro, fez as fotos com sua Rolleiflex usando B no anel do obturador.3 Assim, acionando e segurando o disparador na posição B, disparou a luz do flash e imprimiu imagens com ótima qualidade tonal no material fotossensível, demonstrando sua capacidade técnica de trabalhar em condições adversas.

A reportagem resultante foi publicada no dia 15 de novembro de 1951 na revista O Cruzeiro com o título “As noivas dos deuses sanguinários”, contendo 38 fotografias. Algumas dessas fotografias de Medeiros, poucas

2 Depoimento no catálogo da exposição José Medeiros — 50 anos de fotografia. Rio de Janeiro: F, 1986, p. 15.

3 Dispositivo que permite sensibilizar a película por quanto tempo desejar o fotógrafo: enquanto estiver apertando o botão disparador, o filme está sendo exposto à luz

20 I MAGENS DO SAGRADO

e raras, foram publicadas depois da reportagem e do livro, e foram sendo citadas em catálogos e artigos nos anos subseqüentes com erros de datas e falsas informações, mas sempre de uma forma ufanista sobre a importância desse material fotográfico na história do jornalismo brasileiro, e de modo superficial, pois, quando citado, nunca veio acompanhado de uma análise mais profunda, nem ao menos se discutiu o próprio campo ético do jornalismo, propício nesse caso. Accioly Netto, diretor de redação da revista por mais de 40 anos, deixou uma série de escritos memorialistas dos fatos, dos personagens e dos profissionais com quem conviveu e que seu filho fez publicar no livro O Império de Papel — Os bastidores de O Cruzeiro. Accioly Netto, mesmo estando próximo de José Medeiros, cometeu o erro grave de indicar o tradicional Terreiro do Gantois como o local de origem das fotos e acentua as dificuldades da reportagem, aumentando assim a mística em torno dela. Diz ele:

A atração pelo mistério levou José Medeiros também aos terreiros de candomblé em Salvador, Bahia, muitas vezes arriscando-se na tentativa de tirar fotos, que na época eram proibidas. Certa vez conseguiu documentar um ritual de iniciação das filhas-de-santo no terreiro do Gantois, com fotos impressionantes das mulheres de cabeça raspada e marcadas de sangue, que foram publicadas com grande sucesso em O Cruzeiro. (Accioly Netto, 1998, p. 120, grifo nosso)

No catálogo da exposição “José Medeiros”, Instituto Itaú Cultural, 1997, com curadoria de Rubens Fernandes Júnior, uma das fotos reiteradas vezes publicada depois da reportagem em O Cruzeiro em 1951 aparece com a seguinte legenda: “Candomblé — Iniciação de filha-desanto, Salvador, 1957”. A confusão com datas nesse caso deve-se às duas publicações: da reportagem e do livro. Esse mesmo erro aparece na edição comemorativa dos 50 anos da Editora Abril, em 2000, com o livro A revista no Brasil, com a publicação de uma das fotos com os seguintes dizeres: “[...] O Cruzeiro — revista em que outro mestre, José Medeiros, publicou em 1957 um notável ensaio sobre o candomblé na Bahia”. Parece que todos insistem em datar as imagens pela data da edição do livro e não pela data original da reportagem. Mesmo a mais cuidadosa publicação sobre Medeiros, com um depoimento elucidador de sua trajetória, José Medeiros — 50 anos de fotografia, que acompanhava uma exposição retrospectiva na F-RJ, em 1987, insiste na data de 1957. Nadja

I NTRODUÇÃO 21

Peregrino, que fez a curadoria dessa exposição e do catálogo, juntamente com Ângela Magalhães, publica alguns anos depois o livro O Cruzeiro — A revolução da fotorreportagem, em 1991, em que analisa, agora diretamente na fonte, a reportagem “As noivas dos deuses sanguinários”, creditando a data correta das fotografias e publicando uma reprodução de uma página da revista. Sua análise é formal e prende-se somente ao aspecto da diagramação, não abordando o conteúdo da reportagem ou a análise das imagens. Não se sabe quem são as pessoas fotografadas, como a reportagem foi feita, como Medeiros conseguiu fazer as imagens, ou suas motivações. Reforça-se aqui o desconhecimento relativo a informações sobre o conjunto de imagens publicado no livro e na revista por parte de uma pessoa que também esteve muito próxima de Medeiros . A mim, que perseguia essa história, parecia que nunca chegaria a entrar no mundo mágico e religioso fotografado por Medeiros; as imagens e a própria reportagem tangiam-se de uma aura intransponível.

Os remissivos erros em questões banais de datas facilmente pesquisáveis acompanhados por falsas informações, como a de Accioly Netto, são parte de um grande equívoco em relação à publicação da reportagem e do livro, do qual são cúmplices o mundo jornalístico, próximo e distante de José Medeiros, que nunca estabeleceu uma relação analítica com a reportagem para discutir as conseqüências éticas de invasão do universo religioso, como também o meio religioso dos cultos afro-brasileiros, que fomentou uma série de versões sobre o caso. Esse grande equívoco dura mais de 50 anos!

Luiz Maklouf Carvalho, no seu livro Cobras criadas — David Nasser e O Cruzeiro, traz um extenso volume de informações sobre a revista, dedicando apenas um parágrafo para a reportagem, e nos relata de maneira mais próxima dos acontecimentos a matéria de José Medeiros e Arlindo Silva: “[...] uma impressionante reportagem sobre a iniciação ritualística das filhas-de-santo em um terreiro da Bahia — ‘As noivas dos deuses sanguinários’ — de 19 de setembro de 1951. Medeiros fotografou a raspagem da cabeça das iaôs e o batismo com o sangue dos animais — fotos depois reproduzidas no livro Candomblé. Arlindo conta que a mãe-de-santo foi perseguida por ter permitido o acesso dos repórteres ao ritual secreto” (Carvalho, 2001, p. 236). Pela primeira vez aparece nos escritos sobre a reportagem, mesmo que somente como um dado e 50 anos, portanto, depois da publicação da reportagem, um relato sobre as conseqüências impostas à Mãe Riso da Plataforma, que nunca teve

22 I MAGENS DO SAGRADO

seu nome mencionado nas publicações. Para todos os protagonistas, esse anonimato imposto por José Medeiros e por Arlindo Silva nunca foi interesse de investigação, nem tampouco todas as decorrências da publicação. Maklouf somente erra na data da revista, compreensível para o volume de dados de seu trabalho e que não compromete as informações precisas sobre a reportagem, mas novamente a importância sobre a reportagem passa despercebida.

No meio antropológico, o acontecimento único de uma reportagem dessa importância ter acontecido, e naquele momento, simplesmente foi ignorado e desprezado como uma possibilidade de estudar as relações da fotografia com o mundo religioso. Segundo Medeiros, a publicação das imagens que mostravam cenas de sacrifício de animais, cenas internas da reclusão e detalhes do processo ritualístico causou muita polêmica no meio do candomblé na Bahia. Ainda, segundo ele, devido à reportagem, as iaôs não tiveram sua iniciação reconhecida e assim ficaram marginalizadas dentro da religião, com conseqüências graves para elas, uma suicidou-se anos depois e outra foi internada em um hospital psiquiátrico. Essas informações ele obteve quando esteve outras vezes em Salvador, de pessoas que encontrava e que tinham relações com o mundo religioso. Medeiros hospedava-se com nome falso para que não fosse identificado como o fotógrafo que fez as fotografias d’O Cruzeiro, disse-me que tinha medo de ebó. Segundo ele, a mãe-de-santo teria sido assassinada um ano depois, mas não sabia as causas do fato. Esses dados foram sendo desmontados no decorrer da pesquisa, assim como muitas versões locais, em Salvador, e que repercutiram e foram alimentados no meio religioso sobre a figura de Mãe Riso da Plataforma.

O impacto em Salvador

Uma série de publicações nos jornais antecedeu a chegada da revista em Salvador e produziu um impacto muito maior do que imaginávamos no começo da pesquisa. O jornal A Tarde, de Salvador, fez publicar no mesmo dia da capa da revista uma chamada de primeira página (um boxe de dimensões consideráveis), no alto, à esquerda, anunciando a reportagem e a chegada nos próximos dias dessa edição na cidade: “Ritual Secreto do Candomblé. Iniciação de Filhas-de-santo na Bahia. Hoje em todas as bancas, chegado via aérea, o novo número da Revista O C” .

I NTRODUÇÃO 23

Tal chamada se repetiu também no jornal Diário de Notícias , pertencente aos Diários Associados, com boxe anunciando a chegada da revista por cinco dias consecutivos, quatro deles na primeira página, com os dizeres: “Hoje em todas as bancas, chegado, por via aérea, o novo número da revista ‘O Cruzeiro’ — com a sensacional reportagem de José Medeiros e Arlindo Silva sobre a Iniciação das ‘ Filhas-de-santo’, na Bahia — em todas as bancas ao preço comum de quatro cruzeiros”. No dia 14 de setembro de 1951, um dia antes da data de capa da revista, o jornal publicou uma das fotografias da reportagem, criando uma expectativa ainda mais tensa sobre o conteúdo da matéria. A fotografia publicada na contracapa do jornal mostra uma cena muito forte a um olhar leigo, do sacrifício de um animal na cabeça de uma iaô, e a chamada do boxe em destaque é agressivamente apelativa: “O Deus tem sede de sangue”, e segue uma parte do texto de Arlindo Silva contextualizando a imagem, trecho literal da longa descrição publicada na revista. Pela primeira vez, um jornal publicava uma fotografia de uma iniciação no candomblé, o que demonstra o forte impacto da chegada da revista, pois outros dois veículos de comunicação de massa prepararam e acentuaram o conteúdo da reportagem. Reforçando ainda mais a reportagem, nesse mesmo dia (14/9/1951) o jornal O Estado da Bahia também publicou em

24 I MAGENS DO SAGRADO

primeira página um boxe exatamente igual aos publicados pelo Diário de Notícias. Assim, todos os principais jornais de Salvador anunciaram a chegada da revista para que nenhum leitor passasse despercebido e incólume pela revista O Cruzeiro.

Diz o texto do jornal Diário de Notícias do dia 14 de setembro de 1951, acompanhado da fotografia de sacrifício de animais retratado por José Medeiros com o título apelativo envolvendo divindades africanas e sua “ sede de sangue”:

Esta fotografia é uma das muitas que ilustram, de maneira sensacional e inédita, a reportagem que traz o último número de “O Cruzeiro”, já à venda nesta capital. Refere-se às cerimônias da iniciação da filhas-de-santo em toda a sua crueza espetacular e primitiva. Em resumo, trata-se de um autêntico e audacioso “furo” jornalístico.

O repórter-fotográfico José Medeiros e o repórter Arlindo Silva foram os autores da sensacional façanha. Durante longas semanas, insistiram, até conseguir o objetivo.

Eis um dos trechos da impressionante história:

Como a raspagem da cabeça, o ritual de flagelação foi repetido com as outras duas “iaôs”, sempre na cadeira. Durante mais de uma hora, assistimos a esse dilacerar de carnes ali na “camarinha”. A navalha não parava. O cheiro de sangue se misturava com o cheiro de suor, as “filhas-de-santo” entoavam lá fora os seus cânticos sacros, e o atabaque era um gemido rouco dentro da noite. A “mãe-de-santo” revelava minúcia em suas incisões. A navalha feria e o sangue brotava, quente, palpitando de vida. Por fim, a última incisão foi

I NTRODUÇÃO 25

feita, e as três iaôs se prostraram sobre as esteiras em atitude de oração. Víamos, diante de nós aqueles 3 corpos humanos retalhados e ofegantes, e não entendíamos uma só palavra da prece que arrancavam de dentro de si como roncos. De repente, a “mãe-de-santo” agitou por três vezes uma toalha branca, e de novo os “erês” se apossaram das três mulheres, cessando a atuação dos “santos”. O cerimonial servira para “fechar o corpo” das “iaôs”, livrando-as do mal, e agora a porta da “camarinha” se cerraria até a madrugada, quando a cerimônia da “iniciação” deveria conti nuar. Em silêncio, deixamos o recinto em companhia da “mãe-de-santo” e da “mãe-pequena”. Lá fora, o atabaque já não soava. Era mais de meia-noite.

A importância e o impacto da reportagem da revista O Cruzeiro no meio religioso do candomblé baiano podem ser compreendidos também pelo anúncio que a Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros fez publicar no dia 22 de novembro de 1951, no jornal A Tarde, quase dois meses depois, confirmando uma temporalidade expressiva desse impacto:

A Federação Bahiana de Culto Afro-Brasileiro tem a grata satisfação de convidar todos os terreiros, os simpatizantes do culto, a imprensa e o povo, em geral, para assistirem à assembléia geral extraordinária, a realizar-se no Domingo, 25 do corrente, às 14:00 horas, 1o andar, defronte à entrada do Cinema Liceu, a fim de especialmente julgar conveniente as publicações que foram feitas nas revistas “Paris Match” e “O Cruzeiro”, a respeito do culto africano na Bahia.

Surpreendentemente, pela primeira vez, desde minha conversa com José Medeiros em 1988, quando ele citou que a motivação para a reportagem surgiu após ter visto uma publicação estrangeira sobre candomblé, pude encontrar um elo perdido das informações na Paris Match. Imediatamente, contatei amigos na França e consegui um exemplar ainda em estoque nos arquivos da Paris Match, datado de 12 de maio de 1951, que mostrava uma reportagem de Henri-Georges Clouzot na Bahia. A reportagem intitulada “Les possédées de Bahia” (As possuídas da Bahia) tornou-se então o encontro com a motivação fotográfica responsável pela ida de José Medeiros para a Bahia e com o empenho desafiador em relação a uma importante publicação estrangeira. A publicação na qual a Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros clama por uma “audiência pública” demonstra ainda mais que nesse período existiu uma grande polêmica animada pelos jornais baianos sobre a documentação e a pu-

26 I MAGENS DO SAGRADO

blicação de imagens de candomblé. Recortes de jornais encontrados nos arquivos de Pierre Verger mostram que essa acirrada discussão pública se deu também em torno da Paris Match, e revela principalmente o fato de que o famoso fotógrafo e etnólogo estava muito bem informado do que acontecia, apesar de manter-se em silêncio público sobre os acontecimentos. Mais à frente irei deter-me em Pierre Verger, como um contraponto imagético e ético, e também na análise da revista Paris Match.

Seis anos então depois da publicação da reportagem de 1951, a mesma editora da revista O Cruzeiro publicou o livro Candomblé, em 1957, com todas as fotografias veiculadas na revista, com um acréscimo considerável de mais algumas escolhidas por Medeiros, totalizando 60 imagens, 22 fotografias a mais. A nova forma de publicação colocou as mesmas imagens em outro formato e em outra valorização. Se na revista o artifício jornalístico era o sensacionalismo para atingir um formato popular direto e ofensivo à religião, no livro, como indica o próprio título, as imagens passaram a ser um material etnográfico precioso e único.

O material fotográfico coletado por José Medeiros transforma-se de uma primeira publicação marcada por um fotojornalismo sensacionalista em um documento etnográfico na apresentação gráfica e nas marcações das legendas no formato livro. Meu objetivo nesta pesquisa é, inicialmente, discutir as mudanças de significação do material exposto acima, aprofundando a análise das narrativas nos meios impressos em que foram publicadas. Na primeira versão temos uma profanação do espaço do sagrado, permitido somente para os iniciados, ao torná-lo visível ao olhar, um olhar leigo massificado pela importância da revista O Cruzeiro na opinião pública da época. Na segunda versão, temos as mesmas imagens sem o tratamento sensacionalista, mas com uma abordagem que transparece uma aparente neutralidade na explicitação visual do ritual, transformando-as em documento etnográfico ou “científico”, coroandoas com uma nova aura para o sagrado profanado. No segundo momento, apresentamos detalhadamente o foco de tensão e revolta de um sentimento nacional posterior à publicação da revista Paris Match, criando um campo propício para a revista O Cruzeiro dar sua resposta. Em seguida, percorro o território espacial e cultural no qual José Medeiros e Arlindo Silva estiveram, na periferia de Salvador, para encontrar os resquícios memoriais dos personagens fotografados, principalmente de Mãe Riso da Plataforma. Pierre Verger surge em seguida como um contracampo a esse exercício ético do fazer jornalístico e documental sobre minorias

I NTRODUÇÃO 27

étnicas. O deslocamento contextual encontra a gênese da fotografia como realidades múltiplas, permitindo, dessa forma, significações diferenciadas, sagradas ou profanas, conformando o que expomos conceitualmente como fricção ritualística, em capítulo teórico final.

Os formatos de apresentação de material etnográfico nos meios de comunicação de massa e suas conseqüências com a invasão do olhar leigo, voyeur e massificado, muitas vezes preconceituoso e induzido pela mídia em relação às cerimônias e rituais tradicionais de culturas locais não globalizadas, produzem significações descontextualizadas, muitas vezes pejorativas e elevadas ao campo do exótico e da humilhação. Entretanto, as mesmas imagens de cunho sensacionalista veiculadas por mídias populares, quando descoladas do contexto jornalístico, reencontram seu referente vivificado no seu intrínseco valor etnográfico: porém as conseqüências desastrosas da primeira publicação se mantêm.

28 I MAGENS DO SAGRADO

ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS ENTRE SALVADOR, SÃO PAULO E NILÓPOLIS

Casa de Jorlando1

Micênio Carlos Lopes dos Santos, antropólogo e iniciado no candomblé, filho de Olga do Alaketo, esteve presente nesta pesquisa desde seu início. Mais do que um assistente de pesquisa nessa etapa da Bahia, Micênio sempre foi um partícipe, e mesmo um parceiro com o qual troquei diuturnamente observações, análises, estratégias e caminhos. Sua

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 29
1 Jorlando de Obaluaê, Bairro do Uruguai, Salvador (BA).

presença justifica-se pela sua inserção religiosa, sua formação antropológica e também por ter sido por seu intermédio que tive a primeira oportunidade de ver essas imagens em 1983, e por sua sempre estimulante sugestão de que eu fizesse esta pesquisa. Nossa estada foi um reencontro pessoal e profissional, dois amigos, compadres e antropólogos em campo, mesmo nos momentos de lazer nas praias de Salvador ou comendo um acarajé pela noite no Rio Vermelho, as conversas eram os acontecimentos do dia, as relações possíveis com as versões ou ainda as expectativas do outro dia.

Em nossas conversas por telefone, eu sempre reiterava o nome de Riso da Plataforma, e em um dos nossos momentos de diálogo, logo no início de nossa estada em Salvador, Micênio, estranhando, pergunta-me: “Placafor ou Plataforma?”. Existe um bairro em Salvador conhecido por ter tido no passado uma grande placa da Ford que se tornou referência espacial, e com o tempo passou a ser denominado Placafor. Micênio pensava que Riso era de Placafor e não da Plataforma, pequenos ruídos de comunicação, que podem mudar tudo. Imediatamente ele se lembrou de seu amigo pai-de-santo Jorlando de Obaluaê do Bairro do Uruguai. Jorlando viajou muito para Brasília e para o Pará, onde era convidado para rituais e cerimônias importantes do candomblé, e ainda o é. Como teve muita inserção no Bairro da Plataforma, achamos que seria a pessoa ideal para começarmos a pesquisa na Bahia, principalmente para tentar chegar diretamente às fontes primárias de informação, ou seja, pessoas que tiveram contato com Mãe Riso, antes de tentar outras pessoas, como a Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros, que será tema de uma visita especial depois de uma série de pesquisas, para exatamente checar possíveis fontes fidedignas. Decidi não procurar os antropólogos baianos, pois nada foi encontrado em seus escritos sobre o caso Mãe Riso, demonstrando uma omissão em relação a esse fato ou mesmo uma forma de interdito; assim não considerei necessária essa investigação, pois, como afirmei, nada consta nos estudos antropológicos, em parte pelo tabu em relação ao tema, em parte pelo fato de a área de antropologia e imagem começar a desenvolver-se no Brasil efetivamente a partir da década de 80, afirmando-se como área da antropologia e da comunicação na década de 90. A decisão de partir para o encontro memorial de pessoas íntimas ou fotografadas por Medeiros foi uma opção muito feliz para a pesquisa, encontramos uma rede viva das relações de Mãe Riso.

30 I MAGENS DO SAGRADO

Depois de contato telefônico com Jorlando, marcamos um dia para visitá-lo, e, ao telefone, quando citei que era amigo de Micênio, tudo ficou muito mais fácil, principalmente quando este assumiu o telefonema. Fomos muito bem recebidos, principalmente porque Micênio já o conhecia de Brasília, como também conhecia sua trajetória dentro do candomblé. Assim, muito da conversa inicial entre eles foi relembrar casos e atualizar informações sobre pessoas conhecidas do candomblé, inclusive filhos-de-santo iniciados por Jorlando, muitos renegados por ele. Fiquei sem saber do que falavam, de quem, quando, e ainda me era difícil entender o próprio Jorlando, pela maneira rápida de falar e também pelo uso do vocabulário do candomblé, que não é minha área de estudo. Vi-me rodeado por muitos termos específicos e situações importantes que entravam pela primeira vez em minha vida por intermédio da energia de um encontro solidário e amistoso entre Micênio e Jorlando: desde o início o grau de afetividade entre eles era muito intenso. Minha intenção era tentar refazer e compreender as várias versões dessa história da revista O Cruzeiro e de Mãe Riso, das relações entre o sagrado e o profano, quando esses campos foram interpolados pela fotografia. Tive a oportunidade de ver logo na minha chegada, no terreiro de Jorlando, um iaô na reclusão, situação que não poderia acontecer pois não sou um iniciado, mas como a casa estava em reforma para a comemoração dos 45 anos de iniciação de Jorlando, chegamos exatamente quando ainda ocorriam reformas no quarto de reclusão e o iniciado estava em um outro cômodo isolado dentro da casa, elegido como a camarinha temporária. Micênio cumprimentou-o de forma tradicional, sendo correspondido. Mais tarde, Jorlando confessou-nos em voz baixa, depois de várias cervejas festivas do encontro, que iria passar a casa para esse novo iniciado e que ninguém sabia ainda dessa sua decisão, e que suas filhas e filhos-de-santo iriam ficar desgostosos, e que haveria muito polêmica sobre isso em Salvador, segundo ele. Ele não deu uma explicação para essa escolha, mas disse que seria melhor assim, com um recém-iniciado, para não causar problemas com os mais velhos.

Logo em seguida fomos apresentados às pessoas que moravam na casa e a freqüentavam, entre eles dois surdos-mudos que foram iniciados por Jorlando. Viviam aí em virtude das atividades do terreiro, provavelmente não teriam teto e comida fora dali. Moravam 18 pessoas no terreiro, que era construído verticalmente. Na entrada do terreiro ficava o salão amplo das festas e, em seguida, no fundo, alguns quartos de santo e a

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 31

camarinha. No primeiro andar estavam a grande cozinha do terreiro e os quartos dos moradores; no segundo andar, ficava a parte de uso privativo do casal, onde também existia uma cozinha mais familiar e os quartos do casal e dos dois filhos. Jorlando é casado há dez anos com Mercia, bem mais nova que ele, e com a qual tem dois filhos pequenos. Disse-me ele que tinha 11 filhos, na Bahia e no Pará, tendo que sustentar também sua ex-mulher que mora em frente, com seus três filhos. No último andar ficavam os assentamentos dos santos. Portanto, a tradicional arquitetura dos terreiros da Bahia, com amplos espaços para as casas dos santos, algumas árvores sagradas e ervas, revelava-se opositiva com o terreiro de Jorlando. A conversa, que se estendeu das 11 até as 18 horas, foi regada a cerveja e muita música tocando em volume alto no aparelho de som, e as músicas eram todas nacionais, variando do pagode ao samba, com inserções de músicas românticas e de raiz. Depois da longa fase de conversas entre Micênio e Jorlando, pudemos entrar na temática e mostrei as fotos da revista para ele. Aparentemente ele não as tinha visto antes, porque tinha somente 3 anos na ocasião (nasceu em 1949). Mas com a presença de uma senhora que freqüentava sua casa conseguiu relembrar-se de filhas de Mãe Riso que ainda estavam vivas. Como Jorlando teve terreiro na Plataforma durante anos e foi, segundo ele, um dos fundadores do bairro, disse que conhecia todo o povo do candomblé da Plataforma, e que iria fazer contatos para que pudéssemos fazer uma visita direcionada na Plataforma. Foi combinada uma visita à Plataforma dois dias depois, para que ele pudesse ultimar esses preparativos. Somente depois de algum tempo percebi que as cervejas eram bancadas por Micênio, que a toda hora dava um jeito de colocar 10 reais na mão de Jorlando para que ele as mandasse comprar. No meio da conversa e do convite sempre insistente para que Micênio participasse das comemorações de seus 45 anos de candomblé, que seria no dia 17 de agosto, este deixou escapar que ajudaria na festa e perguntou o que ele queria, e logo recebeu de volta a proposta de bancar os bichos que seriam sacrificados para Xangô (disse ele: “então me dá a comida de Xangô”), orixá de Micênio, e também orixá patrono da casa, o que, comecei a perceber, deveria ficar muito caro. Micênio não esperava tal proposta e não pôde recusar-se a essa ajuda, e isso me pareceu também uma espécie de pagamento-troca pela ajuda que ele nos iria dar para localizar as pessoas ligadas à Mãe Riso que ainda viviam na Plataforma. O dinheiro serviu para comprar a comida de Xangô: um carneiro, cinco galos, um “coquem”

32 I MAGENS DO SAGRADO

(galinha d’angola), dois patos e dois pombos. Conversando depois com Micênio, ele concordou que poderia estar correta a minha versão e que eu mesmo deveria passar para Jorlando esse montante. De qualquer forma, eu iria ajudá-lo, pois talvez ele ficasse dois dias inteiros conosco, perdendo clientes que o procuravam para consultas, e cada dia ausente do terreiro significa menos entrada de suprimentos.

Quando perguntei a Jorlando se eu poderia fotografar todo o processo de iniciação no seu terreiro, fui surpreendido com sua resposta positiva, e pareceu-me claro que tudo dependeria de um acordo financeiro, em relação aos custos de um ritual. Acho que a situação aparenta ser a mesma vivenciada por José Medeiros, que não conseguiu ou não teve chances de propor isso nas casas tradicionais: pareceu-me que eu poderia conseguir fazer as fotografias em uma casa não-tradicional; fiquei fortemente com essa impressão, mas não era minha intenção no momento desta pesquisa, quem sabe em outra ocasião. Em todo caso, eu queria saber como seria uma proposta nesse sentido nos dias de hoje.

Casa de Jane, filha de Perrucha2

Chegamos à casa do babalorixá Jorlando, no Ilê Axé de Ajusin, como combinado, por volta das 10 horas da manhã. Ele estava atendendo uma

E
NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS
33
2 Waldemira Oliveira Barroso (Perrucha); Janíldece Barroso da Silva (Jane, filha de Perrucha).

pessoa e fazendo consulta, o que nos atrasou por uma hora. Segundo ele, iríamos na casa de uma filha-de-santo que fez cabeça com ele, pois ela mora na Plataforma há muito tempo e deveria saber algo sobre a história de Mãe Riso. Chegamos à casa de Vicélia, mas ela não estava, e um sobrinho seu saiu procurando-a. Depois de certo tempo, 40 minutos, ela chegou e logo Jorlando perguntou pelo assunto e ela disse que Perrucha havia falecido há pouco tempo. Micênio e eu entreolhamo-nos, ainda não sabíamos quem era Perrucha, e com a conversa a identificamos como uma das três iaôs fotografadas, o que nos deixou muito ansiosos para irmos à casa de uma de suas filhas de sangue. O bairro, Terezinha do Rio Sena, fica próximo de Plataforma, já quase área rural, ou nos limites da cidade. No caminho, Vicélia falou que a filha de Perrucha tinha a revista O Cruzeiro na qual saíra a reportagem de Riso, e a fala era de uma naturalidade muito grande, com certa intimidade com o assunto, parecia que a história de 50 anos atrás ainda estava presente na vida daquelas pessoas. Depois de entrarmos em um beco de 30 metros, que se origina na rua principal do bairro, passando por vielas de terra onde não entram carros, chegamos, e Vicélia foi logo chamando por Jane (Janíldece Barroso da Silva, 37 anos), filha de Perrucha (Waldemira Oliveira Barroso).

34 I MAGENS DO SAGRADO

Jane recebeu-nos um pouco assustada, mas com a presença de Vicélia, sua conhecida, e de Jorlando, que ela não conhecia pessoalmente mas sabia que era pai-de-santo respeitado na região, ficou mais à vontade. Logo lhe foi colocado que procurávamos por informações sobre Mãe Riso e sobre sua mãe, Perrucha. Ela buscou a revista O Cruzeiro guardada durante 50 anos e mostrou-nos, indicando quais das fotografias eram de sua mãe. A revista foi guardada por sua mãe durante 50 anos, com todo o cuidado, e era considerada uma preciosidade revelada a pouquíssimas pessoas. Fiquei emocionado, pois, apesar de ter tido outras ocasiões para ver a revista, somente tinha em meu poder uma cópia xerox enviada pelo setor de pesquisa da Biblioteca Nacional. Era a primeira vez que meu olhar tinha acesso direto à revista e nas mãos da filha de uma das iaôs fotografadas! Mesmo tendo outras duas oportunidades de ver a revista no Museu da Comunicação Hipólito da Costa, em Porto Alegre, e na Biblioteca Pública dos Barris, em Salvador, o destino fez com que esse exemplar especial fosse o primeiro a se mostrar aos meus olhos.

As imagens de Perrucha foram sendo identificadas. Waldemira Oliveira Barroso, nascida no dia 13 de julho de 1936, portanto com 15 anos na época das fotos, era uma das imagens mais divulgadas do trabalho de José Medeiros. Em seguida, mostrei-lhe o livro publicado em 1957. Em clima de muita emoção, ela chorou ao saber da dimensão que haviam tomado aquelas imagens, para ela tudo ainda era relacionado somente à reportagem de 1951. Mostrei-lhe um folder publicado por ocasião de uma exposição de José Medeiros no Itaú Cultural e ela disse que a imagem era de outra iaô e não de sua mãe.

Perrucha teve seis filhos, cinco mulheres e um homem. Ficamos sabendo que morrera somente há oito meses e ainda era para a filha um momento forte de lembranças, a qual acentuou ter tido, no dia anterior, uma recordação muito marcada de sua mãe, sentindo sua presença. Na conversa, outras informações foram aparecendo, entre elas a de que sua mãe se tornou mãe-de-santo e as outras duas iaôs tinham falecido, uma logo depois da reportagem, e outra depois de se tornar alcoólatra e ser ajudada muito tempo por sua mãe, Perrucha. Assim, caía a versão de que teriam sido execradas e de que não tinham tido a iniciação reconhecida, para não falar do testemunho de que morreram de morte natural sem terem sido internadas em manicômio.

As muitas versões do caso caíram no campo do imaginário popular pela fonte fidedigna de informações. Como eu havia previsto, revelou-se

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 35

a importância de ter procurado as pessoas que tinham de alguma forma participado do fato, e de ter agido com precisão ao não procurar outras fontes em Salvador antes de ir direto a essas pessoas. As versões que haviam sido construídas nesses 50 anos podem, de certa forma, ser entendidas como criações populares e talvez até mesmo ter sido incentivadas pelos adeptos do candomblé para justificar possíveis punições atribuídas magicamente ao evento. A versão de assassinato de Riso também não se sustentou, pois ficamos sabendo que seu terreiro teria sido “destruído” em virtude da publicação das fotos e ela “teria fugido” para o Rio de Janeiro, provavelmente para a região da Baixada Fluminense, segundo informações do meio religioso.

Algumas fontes mencionaram que ela voltava de vez em quando para Salvador, mas teríamos de checar essas informações, uma delas, vinda de Jorlando, de que ela tinha “tirado a mão” com o mesmo pai-de-santo que ele (“tirar a mão” é um ritual que se cumpre depois da morte da pessoa, mãe-de-santo ou pai-de-santo, que raspou a cabeça).

Jane, preocupada e tensa, perguntou-nos se iríamos “falar mal de sua mãe”. Havia ainda uma lembrança das provações e provocações que Riso e suas iaôs passaram depois da publicação da revista, como também de pessoas que tiveram participação na feitura das imagens. Jane informounos que uma irmã de sangue de Riso ainda estava viva, e marcamos uma visita para depois do almoço. Tentei fotografar Jane com a revista O Cruzeiro nas mãos, mas ela disse que não estava “preparada” para as fotos e que eu poderia fazê-lo pela tarde, ela lavava roupas quando chegamos, e tinha um turbante muito colorido e bonito na cabeça.

Logo em seguida Jane trouxe-nos um álbum familiar. Uma sobrinha de Perrucha recortara todas as imagens de uma revista O Cruzeiro em que aparecia a tia e fez uma espécie de álbum de recordações, com o título “Lembrança de minha Epilação, editada da Revista O Cruzeiro, de setembro de 1951”, descontextualizando dessa forma a reportagem e resignificando as imagens no âmbito familiar. Surpreendentemente aparece no final do álbum seu reconhecimento religioso pela Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros, com sua ficha de inscrição e sua carteirinha de associada. A migração das imagens publicadas, recortadas e deslocadas para o âmbito familiar, introduzia uma aproximação memorialista com o evento religioso em si, como o próprio título do álbum sugeria, e sem colocá-lo à parte do contexto midiático, pois as imagens mantinham o padrão gráfico de uma publicação e o título fazia referência à revista.

36 I MAGENS DO SAGRADO

Portanto, nesse momento, a epilação de Perrucha aparecia como uma recordação familiar de um evento midiático, mas sem as referências sensacionalistas do título da reportagem.

Jane também nos mostrou fotografias de sua mãe vestida de mãe-desanto em vários eventos religiosos. Essa reconstrução da história de uma das iaôs é muito importante para compreendermos histórias pessoais ligadas diretamente às imagens publicadas, e acredito que surpreenderá o meio religioso do candomblé, pois, apesar de toda a polêmica sobre as imagens e as várias versões superpostas sobre estas, Perrucha continuou imersa no mundo religioso do candomblé, sendo mãe-de-santo reconhecida no bairro até 2002, quando morreu. O candomblé popular tem uma dinâmica muito própria e cria redes de relação duradouras que muitas vezes não são atingíveis pelas organizações religiosas e mesmo pelos estudiosos.

O babalorixá Jorlando, em certo momento, perguntou-lhe se tinha telefone e ela tristemente disse que fora “cortado” por falta de pagamento. Ele perguntou o valor e pediu-lhe para buscar as contas atrasadas, e quando ela lhe entregou, imediatamente, ele disse que tudo já estava resolvido (senti que eu teria de pagar as contas atrasadas dela!!). Com certa ênfase na afirmativa de que tudo estava resolvido, essa questão elevou-se para o plano mágico e ele, Jorlando, soube muito bem conduzi-la para esse plano, e, como eu previa, assumi a dívida dela, já em “dívida” com Jorlando, mas agora seria ela que passaria a estar em dívida com ele. Na saída, comentei com Jorlando que não gostaria que acontecesse dessa forma, e ele calmamente me passou as contas e disse que tudo estava normal. Como estávamos atrapalhando as atividades cotidianas de Jane, combinamos de voltar depois do almoço para que ela nos acompanhasse até a casa de Leleta (Angioleta Silva dos Santos), irmã de Riso.

Fomos para o terreiro de Jorlando, um pouco distante, no Bairro do Uruguai, para almoçarmos, e ali nos esperava um verdadeiro banquete: bode assado, caruru, galinha de xinxim e arroz. Tivemos lugar à mesa no terceiro andar, uma mesa farta, enquanto Jorlando servia os pratos para todas as pessoas de sua casa, uma a uma, para que a divisão fosse equânime. Nós fomos privilegiados com uma mesa especial, acompanhada sempre de muita cerveja; e, para não fazer desfeita, eu bebia, mas com moderação pois ainda tinha trabalho pela tarde.

Por volta das 15h30, fomos nos encontrar com Jane, que estava arrumada com roupas de passeio, maquiada etc. Fomos para a casa de Leleta,

38 I MAGENS DO SAGRADO

não muito longe, e enquanto íamos caminhando ela cumprimentava a todos, parecia que conhecia muitas pessoas na rua, o que nos credenciava a entrar nas vielas sem sermos incomodados ou chamar muito a atenção. É surpreendente que, depois de tantos anos da reportagem, a rede de relações continuava forte e as pessoas dessa rede sabiam umas das outras. A chegada à casa de Leleta foi como a visita à casa de Jane, com intimidade, pois ela foi logo entrando e chamando pelas pessoas. Chamando Leleta por “tia Leleta”, pois era irmã de Riso, mãe-de-santo de sua mãe Perrucha, entrou sem cerimônias pela casa afora, subindo escadas que iam para uma casa de fundos, grande e espaçosa.

Fomos bem recebidos, iniciamos a conversa já com a perspectiva de voltarmos outro dia, pois estávamos atrapalhando um pouco o cotidiano da casa, era hora de uma sopa do jantar, e uma criança interrompia muito nossa conversa. Mas algumas informações já fluíam, como a confirmação de uma “quebra” do terreiro de Mãe Riso, com a chegada de viatura policial para prendê-la; ainda não obtivemos a fonte dessa denúncia, porém pareceu-nos conseqüência da reportagem, e Leleta fez questão de afirmar que Riso se recusou a entrar na viatura policial. Disse que não se lembrava de algumas coisas e que tinha uma filha natural morando perto de São Paulo, que tinha sido raspada por Riso, no Rio. Obtive então pela primeira vez, depois de quase 20 anos atrás de informações, o nome completo de Riso: Risolina Eleonita da Silva.

Leleta confirmou a saída de Riso para o Rio de Janeiro, e o fato de que ela vivera por muitos anos e mantivera um terreiro em Nilópolis. E ainda que sua filha, Loura, tinha mais informações sobre Riso, inclusive com recortes de jornal por ocasião de sua morte. Percebi que a pesquisa sobre a vida de Riso depois de sua saída de Salvador seria, necessariamente, por intermédio dessa sua sobrinha. Como estava tarde, combinamos de voltar com calma, por sugestão de uma filha de Leleta presente. Depois do almoço, sem a presença da criança, poderíamos ter uma conversa mais longa. Combinamos com Jane para que estivesse junto, pois entendia que sua presença iria ajudar e muito nas lembranças dos detalhes, já que, mesmo que Jane ainda não tivesse nascido quando da publicação das fotografias (nasceu 14 anos depois), alguns detalhes ainda estavam presentes em sua memória, mantendo viva essa história, no seu caso com uma ressignificação das imagens.

Leleta mostrou-nos em que direção se localizava o terreiro que fora de Mãe Riso, agora um supermercado. Para completar a mística da pesquisa,

E
COM
39
NCONTRO
MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS

fomos convidados por Jane para beber cerveja em um novo bar, aberto naqueles dias, e, ao chegarmos, perguntei a Jane: “Onde ficava o terreiro de Riso?”. Jane apontou para a nossa frente, estávamos exatamente diante do lugar onde ficara o terreiro, agora ocupado por um grande supermercado, “Bom-Preço da Plataforma”, o que foi um motivo para comemorarmos o andamento da pesquisa. Combinamos de voltar à casa de Leleta então no dia 15 de julho, segunda. Levei meu laptop e um scanner para copiar toda a documentação e as fotografias relevantes para a pesquisa.

Mariinha, mãe-pequena do barco das três iaôs

Tomamos a decisão de ir ao encontro de Mariinha, Maria José dos Santos, que foi a mãe-pequena3 do barco das três iaôs; ela e Leleta eram as duas únicas testemunhas vivas do que aconteceu com a chegada do fotógrafo José Medeiros e do jornalista Arlindo Silva e das conseqüências imediatas da publicação da reportagem. Mariinha era a pessoa mais próxima de Riso devido a seu cargo no terreiro de Riso, e eu acreditava que ela saberia muitos detalhes.

Fomos recebidos com atenção na casa de dona Mariinha, principalmente pela presença de Jane, que se tornou uma informante preciosa e não se cansava de estar conosco, partilhando de nossas expectativas, e também ela obtendo assim novas informações sobre o caso. Como Jane mantém um contato estreito com todos da casa, demonstrando que a rede estabelecida na época ainda é muito forte e relevante, nossa entrada foi tranqüila, e dona Mariinha, sentada na sala, recebeu-nos com muita atenção, mas, como havia dito Jane, ela convertera-se à Igreja Assembléia de Deus há dois anos, depois de 63 anos de cabeça raspada, e isso poderia dificultar que ela falasse do passado de candomblé. De idade muito avançada, disse-nos que não enxergava bem sentada, o que nos impossibilitou de mostrar as imagens e assim tentar obter uma resposta emocional no contato visual com as imagens da revista O Cruzeiro. Sentimos logo no início que a conversa teria interditos motivados pela nova concepção de vida religiosa adotada por Mariinha, pois disse ela que esse

3 Mãe-pequena ou pai-pequeno são pessoas muito próximas da mãe-de-santo que cuidam das iaôs quando elas estão na reclusão, levando comida, ajudando nos banhos e nas trocas de roupas, entre outras atividades cerimoniais.

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 41

assunto era esquecido e a conversão a fez esquecer esse passado. Entretanto, depois de alguma conversa, trouxe-nos sua carteira de filiação à Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros, onde consta que seu nome é Maria José dos Santos, nascida em 18 de julho de 1918, portanto com 84 anos; seu terreiro chamava-se Oiá de Umzambe, nação Angola, situado à rua R. Gervásio Cerqueira, 75, Itacaranha, Salvador, Bahia, matrícula 099. Pudemos notar que a carteira da Federação estava guardada embaixo do colchão de seu quarto, onde dorme. Mesmo estando freqüentando uma religião que faz as pessoas abandonarem o passado, ela mantinha uma relação forte com o candomblé por meio de uma formalidade concreta. Essa janela com o passado, guardado, escondido, preservado, na proximidade de seu corpo, na sua intimidade mais protegida, abriu-se para algumas recordações.

Apesar dos interditos religiosos, de um lado a dificuldade de falar sobre esse passado ainda presente na rede que se estabeleceu a partir de Mãe Riso e a recém-conversão de outro, algumas informações fluíram.

Disse ela que o terreiro não fora quebrado e que houvera uma intimidação da polícia para ela ir à delegacia, confirmando a versão de Leleta, e Mariinha disse que não acontecera nada com Riso, pois havia um tenente, de nome Edmundo, que freqüentava sua casa e intercedera por ela. Não ficamos sabendo de onde veio a intimidação nem o porquê, mas é claro que suspeitamos que fosse decorrência da reportagem. Mesmo dizendo que não houvera o quebra-quebra no terreiro de Riso, acentuou que Riso era hostilizada na rua, rodeada por mulheres portando navalhas, e por pessoas ligadas ao candomblé, inclusive com ameaça de morte, todos dizendo que houve muito ebó dos mais variados pais-de-santo e mães-de-santo de Salvador.

Disse ainda que Riso fora enganada por José Medeiros, pois não sabia que ele iria publicar as fotos nem que iriam fotografar tudo, evidenciando uma contradição no seu depoimento, pois Medeiros só poderia fazer as fotos com o consentimento de Riso, e Mariinha, como mãe-pequena, havia acompanhado tudo de muito perto, como podemos constatar no texto de Arlindo Silva, o que demonstra ainda alguma interdição ou preservação da imagem, dela e de Riso, talvez um pacto de silêncio.

Afirmou que Riso não recebeu dinheiro para deixar fazer as fotos, numa tentativa de preservar a si e Riso, pois Medeiros afirmou para mim, taxativamente, que houve um tipo de pagamento, e essa afirmação de Medeiros não lhe traria nenhuma vantagem, ao contrário, demonstrou

42 I MAGENS DO SAGRADO

sinceridade no depoimento. Não que Mariinha tenha sido insincera, mas poderia estar preservando a imagem das duas, pois houve muito boato sobre um “enriquecimento” de Riso depois da publicação da repor tagem. Afirmou também que Riso não saiu corrida de Salvador, mas por convite de uma filha-de-santo, chamada Berenice, que morava no Rio de Janeiro.

A entrevista foi muito entrecortada pelos motivos religiosos de sua conversão, e acreditava que poderíamos ainda ter uma conversa proveitosa, pois não lhe tinha apresentado as imagens do livro, nas quais ela aparece. Procurei em outra ocasião tentar nova conversa com Mariinha, mas ela não qui nos receber, mandando dizer que não queria mais falar sobre candomblé.

Apesar de todos os interditos e silêncios de Mariinha, suas informações davam mais corpo para encontrarmos o campo próprio dos acontecimentos, longe das versões de uma atitude politicamente correta ou mesmo religiosa, de penalizações, esquecimento e renegação de Riso.

Nova visita à casa de Jane

Em seguida à visita à casa de Mariinha, fomos para a casa de Jane e copiamos o álbum preparado a partir da revista O Cruzeiro, destacando a sua mãe. Jane apresentou-nos também cinco álbuns pequenos de recordações de festas de sua mãe, e escolhemos dez fotos dessas festas e rituais, as quais digitalizamos com as referências devidas: “Obrigação de Obaluaê e Iansã”, “Festa do caboclo”, “Confirmação de equede”, e o “Último candomblé”, um mês antes de ela morrer, uma obrigação de três anos de Oxum de um filho-de-santo de Perrucha. Passados dois dias, voltei a telefonar para Marilene (Loura), fi lha de Leleta, para ter uma resposta sobre nossa entrevista com sua mãe e ela. Mesmo sendo cordial, pediu-me para ligar em outro número e falar com um certo doutor Paulo, e não ficou claro qual seria a relação dessa pessoa com Marilene, se era um cliente ligado a seu terreiro, seu patrão ou vizinho. Liguei imediatamente e conversei com doutor Paulo, que se apresentou como advogado e amigo da família, e disse-me que eram pessoas simples e ele se dispusera a saber melhor o que queríamos. A conversa fluiu bem e ele pareceu-me convencido de nossas intenções e

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 43

disse que ligaria para Marilene. Liguei duas vezes para Marilene e não obtive a autorização para entrevistar sua mãe.

Durante a espera da confirmação do depoimento de Leleta em Salvador, almoçamos com Jane na feira São Joaquim e combinamos “um feijão” baiano em sua casa. Como ela está desempregada, dei-lhe R$ 20,00 para fazer as compras, que me pareceu uma feira para além do feijão; devido a sua disposição em comprar ingredientes, saiu com uma sacola cheia e pesada de carnes (o feijão servido dias depois estava delicioso); combinamos também uma conversa nesse dia com ela e sua irmã conhecida por Mosquito, apelido que teve desde o nascimento, por ter sido muito pequena. Essa conversa com Mosquito acabou não acontecendo.

Visita à Federação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros4

A Federação fica localizada agora no Pelourinho, e na sua entrada fomos recebidos por uma pessoa com certo ar de segurança. Identificamo-nos e tivemos de aguardar na calçada. Ele subiu uma longa escadaria para nos anunciar e em seguida fomos autorizados a subir. Esperamos por pouco tempo em uma sala de onde podíamos observar que várias pessoas trabalhavam: parecia um pouco com uma repartição pública não modernizada, algum ar de burocracia antiga, móveis velhos, retratos na parede e certo clima de assistencialismo. Entre as imagens na parede da sala de espera havia um retrato de Antônio Carlos Magalhães. Fomos recebidos pelo senhor Antoniel Ataíde dos Santos, que nos informou sobre o funcionamento da instituição, o número de associados (3 mil) e o número aproximado de terreiros existentes na Bahia (7 mil somente em Salvador). A conversa concentrou-se sobre fundamentos religiosos do candomblé, principalmente depois da apresentação de Micênio como sendo oriundo de uma casa tradicional da Bahia. Sobre possíveis informações documentais, a visita foi frustrante, pois eles não tinham essa documentação antiga, que não era sistematizada, e disse que somente uma pessoa, um dos fundadores da Federação, senhor Esmeraldo Emetério de Santana, ainda vivo, poderia ter algum documento da década de 50. A

44 I MAGENS DO SAGRADO
4 A Federação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros mudou seu nome para Federação Nacional dos Cultos Afro-Brasileiros.

Federação foi fundada em 1946 com a intenção de descriminar a prática dos cultos afro-brasileiros, que estavam sujeitos à Delegacia de Jogos e Costumes, e exigia muitos procedimentos burocráticos para autorizar o funcionamento de um terreiro. Disse-nos ainda que era comum aparecer nos quadros de marginais da delegacia a presença de retratos de pais-desanto. Assim, as primeiras gestões da Federação tiveram o objetivo de, segundo ele, retirar os cultos afro-brasileiros do foco policial. Pareceunos, então, que uma das primeiras assertivas públicas da Federação sobre fundamentos religiosos e sua prática se deu exatamente sobre o caso das fotografias das revistas O Cruzeiro e Paris Match. Sobre documentação, mostrou-nos um prontuário recente, que começava na década de 80, de uma mãe-de-santo, no qual se podia verificar um cadastro de todos os cerimoniais, da iniciação ao rito funerário de uma pessoa dentro de um candomblé, mas isso podia não ter efeito, pois teríamos de cruzar muitas das obrigações com outros terreiros, pois elas podiam ser realizadas por diferentes pais-de-santo. De qualquer forma, não deixava de ser um registro importante, ainda que embrionário, pois todos os pais-de-santo e mães-de-santo teriam de informar todos os seus passos, o que me parece muito improvável, talvez os livros próprios dos terreiros sejam mais confiáveis, ou pelo menos contenham mais dados.

Quando falei das imagens sobre as quais estava procurando informações, ele talvez não tivesse entendido direito e passou a falar que o candomblé não tinha uma iconografia ou culto a imagens, o que me pareceu contraditório, com a forte presença de signos visuais da religião e sua própria origem sincrética com as imagens do catolicismo. Acho que ele estava se referindo diretamente aos procedimentos ritualísticos. Percebendo que não estávamos falando do mesmo assunto, resolvi mostrar-lhe as imagens de Medeiros e pudemos verifi car que ele não as conhecia, e novamente se referiu ao senhor Esmeraldo, conhecido por Benzinho, como a pessoa indicada para falar sobre elas. Antes disso, referiu-se ele a certa imagem fotográfica de uma pessoa em uma bacia com o corpo coberto de sangue, não sendo a primeira vez que essa imagem era citada em entrevistas. Tal fato nos chamou a atenção para um caso que estava sendo de certa forma renegado. Antes da viagem para Salvador, nos preparativos e no planejamento, e nos contatos telefônicos, apareceu nas histórias do candomblé certa pessoa chamada Lulu (Ebome Lulu), que achávamos que seria uma das iaôs fotografadas por Medeiros. Lulu viveria à margem de um terreiro tradicional e seria susten-

E NCONTRO COM
45
MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS

tada por uma famosa mãe-de-santo. Entretanto, com as várias entrevistas de pessoas diretamente envolvidas nas imagens de Medeiros, pudemos identificar as três iaôs fotografadas por ele, e não constava nenhuma Ebome Lulu. Outra referência que tínhamos era um guia, chamado de Chico Monalê, que teria levado Medeiros até o terreiro de Riso, que também não apareceu em nenhuma das entrevistas. Por várias vezes o nome de Chico Monalê apareceu como o guia de Medeiros. Esses dois fatos nos permitiram formular a hipótese de que as fotos da Paris Match seriam as imagens que as pessoas do meio religioso citam como simulação do ritual ao qual esses personagens estariam diretamente vinculados. Nesse momento da pesquisa, a chegada da revista em minha casa em Campinas era eminente, e talvez elucidasse um elo importante dessa história. Caso fosse confirmada essa hipótese, ainda mais com a fala de Medeiros de que foram essas imagens e essa reportagem que o motivaram a revelar o que chamou de verdadeiro candomblé, a pesquisa fecharia seu ciclo, ou seja, poderíamos entender todo o processo. Como não conhecia as imagens e o teor da reportagem, fazia-se necessário que isso acontecesse exatamente nesse momento importante do trabalho de campo. Outra questão que talvez Seu Benzinho pudesse esclarecer é sobre como a Federação tomou conhecimento da reportagem da Paris Match, pois, em relação a O Cruzeiro, era possível compreender o seu acesso à reportagem, já que a revista tinha importância nacional e também pela prévia divulgação que pudemos constatar nos dois jornais mais importantes de Salvador, A Tarde e Diário de Notícias, inclusive com a publicação da fotografia da iniciação e das várias chamadas sobre o assunto, como vimos no início.

Abriu-se uma nova frente importante na pesquisa, pois a relação entre as duas reportagens nas diferentes revistas estava na motivação inicial de Medeiros e no cerne das discussões no meio religioso, e podemos ainda ter a discussão de uma contraposição entre verdade jornalística na documentação de Medeiros e na simulação da Paris Match.

Fechando a entrevista com o secretário da Federação, perguntei-lhe o que faria a Federação caso imagens semelhantes fossem publicadas em um jornal ou em uma revista de âmbito nacional. Ele nos respondeu que o pai-de-santo, ou mãe-de-santo, seria chamado para uma conversa com a presidência e poderia ser penalizado até com a expulsão, se o caso fosse para o Conselho Sacerdotal da instituição. Aparentemente, a posição da Federação seria muito mais branda do que a expressada em 1951, talvez

46 I MAGENS DO SAGRADO

em virtude de outras dinâmicas da própria Federação, como sua participação no plano político-partidário.

Entrevista de Leleta5

Depois de vários telefonemas para sua filha natural Marilene — chamada de Loura — que morava em São Paulo, fizemos uma entrevista gravada com dona Leleta, irmã de Riso. A fala de Leleta tornou-se o depoimento mais importante de todos. Loura, por outro lado, seria elemento vital para obtermos informações sobre sua vivência no Rio de Janeiro, pois foi com apenas 7 anos morar com sua tia Riso, em Nilópolis, e fez cabeça com ela aos 8 anos. Fomos muito bem recebidos por dona Leleta e pudemos ter uma entrevista agora legitimada pelos vários interlocutores intermediários da conversa, e ela estava muito tranqüila e à vontade. Seguem os principais trechos de seu depoimento, no qual não quis fazer muitas alterações para manter a autenticidade das informações:

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 47
5 Angioleta Silva dos Santos, irmã de sangue de Riso

Riso revelou o que nenhum pai-de-santo quis revelar... então, quando eles [José Medeiros e Arlindo Silva] chegaram lá na casa dela... foi na casa daquela mãe-de-santo de lá... Astera... Astera, então informou a minha irmã Riso sobre os jornalistas... então Riso aceitou... eles levaram na base de uns oito dias lá, sem sair de lá para nada, todos passos que Riso dava, eles também davam atrás para poder escrever tudo, para registrar tudo, até para ir para dentro do quarto do santo, que não se entra quando se tem “recardoria” [reclusão], eles entraram para ver tudo como era, e Riso disse tudo, tudo, tudo... então foi por isso a revolta dos pais-de-santo, porque ninguém revelava, parecia um bichode-sete-cabeças que não era, não é? Aí ela revelou, então os pais-de-santo ficaram tudo com raiva... tentaram matar ela... porque, naquele tempo, isso aqui não tinha pista, daqui para ir lá na Ilha Amarela era mato, só tinha um caminho, era um caminho só, não tinha transporte nada, e Riso morava lá, aí eles [os pais-de-santo] ficavam no caminho para ver se tentava emboscar ela, mas nunca conseguiram... ela só sabia que estava sendo ameaçada, e eles, os pais-de-santo, deram queixa na 1a Delegacia de Polícia... aí veio uma viatura da polícia buscar ela, aí ela disse: “eu vou mas primeiro vou trocar de roupa...”, entrou dentro do quarto do santo dela, depois foi na casa de Exu, porque ela tinha santo de nascença, aí quando ela voltou eles disseram: “nós não vamos levar você aqui dentro, depois você vai em outro carro”, depois que eles foram embora, ela pegou outro carro e foi para a delegacia... quando chegou lá, eles não fizeram nada porque o delegado só recebia telefonema que dizia para não tocar nela, não fizesse nada contra ela, então ele não podia fazer uma pergunta porque era só telefone tocando. Ele então disse: “a senhora vai embora porque a senhora é tão querida que é um tanto de telefonema para não tocar a mula e não fazer nada com a senhora, agora o dinheiro que a senhora pegou é tão pouco que se a senhora precisar de advogado o dinheiro não dá”. Naquele tempo foi besteira, naquele tempo dava na base de R$ 60,00 [Cr$ 60,00 na época] então ela vendeu lá [o terreiro] da Ilha Amarela e comprou uma roça aqui, que é o lugar da pista hoje na Plataforma, comprou um terreno enorme e fez uma casa de candomblé ali [apontando para o supermercado Paes Mendonça]. Naquele tempo não tinha pista, era mato, isso tudo em 1951 era mato... aí eles [os policiais] perguntaram quando tinha festa lá no candomblé, ela respondeu: “se o senhor puder ir, sábado estou fazendo uma festa”, ela então preparou uma festa com tudo, e quando foi no sábado da mesma semana eles chegaram com umas três viaturas, cheia de polícia para apreciar o candomblé e comer, depois disseram a ela: “quando tiver festa me convide que estou aqui”, isso lá ainda na casa antiga da Ilha Amarela, então com a polícia acabou o problema. Os pais-de-santo não puderam fazer nada contra ela porque ela tinha santo, tudo acalmou... ela foi ameaçada porque achavam que tinham descoberto o segredo [...] ela decidiu ir para o Rio depois

48 I MAGENS DO SAGRADO

de muitos anos, ela ficou aqui, e ela tinha um irmão de criação que tinha lá, ela resolveu ir para o Rio [...] abriu uma casa e eu fiquei morando na casa, a casa dela aqui... [no terreiro da Plataforma] quando veio passar essa rodagem, a casa era bem na pista, então ela foi indenizada, Riso veio para receber os papéis, receber a indenização e foi embora de novo para o Rio.

Assim, a versão de que o terreiro de Riso fora “derrubado”,“quebrado”, na verdade foi uma simples decisão estratégica de traçado de vias urbanas.

[...] Riso dizia que não tinha medo sobre toda essa história, não tinha feito nada demais, que o santo não tem mais segredo... ela fez aquilo com autorização do santo, porque ela tinha santo mesmo, porque se ela fizesse alguma coisa que o santo não quisesse... uma vez ele [o santo] deixou ela muda! Ela não falava de jeito nenhum... ela voltou a falar depois de muito tempo... ela só fazia o que o santo quisesse... então o santo autorizou fotografar... ela fez com autorização dos orixás dela... depois que ela foi para o Rio, lá ela abriu casa, tinha bastante prestígio... aqui ela tinha muito filho-de-santo porque ela era famosa mesmo [...] Riso não teve prejuízo nenhum, aqui ela não teve e lá no Rio ela também não teve, tinha muito filho-de-santo, tinha de tudo dentro de casa, não precisava trabalhar...

A fala de Leleta demonstra que Riso não teve “prejuízos” com a publicação das fotos, mas foi muito hostilizada, e afirmou que é “mentira” que a casa dela foi quebrada.

[...] depois que ela quis ir para o Rio porque tinha o irmão de criação lá, e eu mesmo fiquei na casa dela aqui em Salvador, eu mesmo que desmanchei o quarto de santo porque ela não ia voltar mais, chamei os filhos-de-santo, entreguei o de cada um... porque eu vivi dentro da casa de candomblé desde menina, como ela, mas não sou de candomblé, embora tenha um bocado de filho, tudo de candomblé [...]. Quando ela foi para o Rio, ela deixou tudo aí, o terreiro... e quando ela se deu bem e deu para ela por lá ficar... então ela só me deixa ficar tomando conta da casa [...]. Ela desde menina que era muito perturbada com esses negócios [Riso tinha visões] e minha mãe detestava, ela ia para casa desse irmão de criação dela e de lá ela ia para a casa de uma mãe-de-santo de São Caetano, Idalisse da Ilha Amarela, minha mãe não sabia. Idalisse foi a mãe-de-santo dela... então, quando foi um dia, minha mãe foi para a cidade, e veio um rapaz que tava com Riso, mas Riso não veio... ele disse que ela tinha bolado e que ela tava lá [no terreiro de Idalisse]

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 49

e o santo não queria levantar, e ela tinha bolado nessa casa pelo menos umas três vezes e mamãe não sabia, ela era de Oxóssi, então ela fez o santo, minha mãe nunca foi lá porque não gostava, só meu pai que ia às vezes... antes de fazer o santo ela via mesmo, mamãe levava ela para o caminho e ela não queria seguir adiante, dizia: “não pode passar, não pode passar...”. Ela via um cavaleiro, dizia que tinha um cavaleiro na sua frente que não a deixava passar... isso com uns 13 a 14 anos, ela tinha vidência, aí mamãe voltava, chegou a fazer promessa para Santo Antônio para ela não entrar nisso [...]. Ela trabalhou muito novinha na fábrica na União Fabril de São Brás, ainda não era de candomblé [ainda não tinha terreiro]. Aqui na Plataforma mesmo, a fábrica está desativada agora... com menos de 15 anos, naquela época era fácil se empregar [...]. Riso não casou, teve um fi lho, que já morreu, ele morreu num mês de novembro, quando foi o dia 1o de janeiro ela morreu, ela estava doente, diabética, então a paixão que era o filho único... o filho morava com ela ... nasceu aqui justamente na obrigação daquela moça que veio do Rio, teve de suspender a obrigação que ia começar pois Riso estava barriguda, aí adiou a obrigação, nasceu no dia 4 de dezembro... ela tá com sete anos de morta.

Pela primeira vez pudemos ter a confirmação da morte natural de Riso.

Perguntada sobre o fato de dizerem que Riso teria sido assassinada, Leleta disse:

Isso é uma confusão porque Loura viveu muitos anos com a mãe-pequena dela e a mãe-pequena é que foi assassinada, por uma filha-de-santo... lá em São Paulo [...]. Se você for para São Paulo e procurar minha filha, Loura, ela tem tudo, tem fita, foto, lá da casa do Rio, tem tudo... tem o jornal com o enterro dela com 600 filhas-de-santo, todas de alvo... ela [Loura] foi para lá com 8 anos de idade, na casa de Riso, ela é gêmea de Marinalva, a Morena... ela com 6-7 anos era uma menina que se assombrava muito, quando era de noite ela ficava assombrada, via um velho com um cachorro, então quando minha irmã, Riso, veio do Rio, passear, naquele tempo era de navio, aí eu disse “leva a Loura porque ela puxou a você, ela não puxou a mim, porque aqui eu não vou metê-la no candomblé”, ela chegou e levou. Aí mais de oito meses ela não sentia nada, me escreveu uma carta dizendo que ela ia voltar porque não sentia nada lá... eu disse a Riso: “é porque você foi de navio e o santo dela vai a pé...”. Aí quando Riso foi recolher um barco de seis pessoas, quando viu, o santo dela baixou, e fez o santo com 8 anos de idade.

50 I MAGENS DO SAGRADO

Leleta conta que não registrou Loura e Riso fez o registro no Rio de Janeiro com se fosse sua mãe, tornando-se ela [Loura] sua única herdeira depois da morte do filho de Riso.

A Riso vinha muitas vezes passear aqui em Salvador, e não freqüentava outras casas de candomblé aqui, só ia na casa de Mariinha... o povo que procurava ela, quando tinha candomblé aqui, vinha muita gente mesmo, era muita gente mesmo, era famosa mesmo, era o candomblé mais famoso da Plataforma [...] Riso começou a olhar desde quatro anos de feita, ela não tomou logo o decá, a Riso tomou o decá depois de velha... o candomblé agora tem valor.

Leleta conta que o cargo de Riso seria uma herança de seus avós africanos, pois quando eles chegaram disseram que o cargo seria passado para um parente distante e não para os filhos, e o cargo ficou para Riso. Ao mostrar o livro de José Medeiros, mais uma vez ninguém ali o conhecia, houve identificação das iaôs nas fotografias, como uma memória muito viva ainda de um evento de 50 anos atrás, e, sem titubear, foram identificando cada uma delas. Confirmou-se que não são diretamente ligadas à iniciação, foram feitas em outro terreiro, e, vendo as imagens, Leleta disse: “Não era conhecido pelas pessoas”, nunca souberam da existência do livro. Houve identificação das iaôs, de alguns fundamentos do candomblé, identificação de outras pessoas não importantes para a pesquisa, confirmou-se que algumas fotos foram feitas em outro lugar e não no terreiro de Riso.

Leleta fez comentários sobre fundamentos, já que, mesmo não sendo iniciada, viveu muito tempo dentro do meio religioso, demonstrando conhecimentos profundos sobre candomblé. Diz ela olhando para uma foto de sua irmã: “Olha a atenção de Riso para raspar a cabeça, não é?... Riso era bonita, não é?”.

Vendo um telhado que aparece em uma foto no livro, Leleta não o reconhece como sendo do terreiro de Riso porque, segundo ela, os dois terreiros eram cobertos de palha: “quando ia para o Rio e quis colocar laje no barracão, o santo não deixou”.

Leleta conta de uma ida de Idalisse, mãe-de-santo de Riso, para o Rio, quando houve um sacrifício de um boi para uma obrigação dela no terreiro de Riso em Nilópolis. Ela colocou o boi com as patas para cima e Riso o desvirou e fez logo outro trabalho porque o santo dela era forte. Diz que “Idalisse não se conformava de Riso saber tanto, mas ela [Riso]

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 51

freqüentava candomblé desde pequena e desde os quatro anos de feita que ela olhava e fazia trabalho, de nova no santo”.

Leleta diz que Riso não comentava muito sobre as fotos d’O Cruzeiro e que Nieta, uma das iaôs, bebia muito, morou em sua casa quando se mudou para o terreiro de Riso, e também morou na casa de Perrucha.

Conversa telefônica com Pai Benzinho

Conforme indicações do senhor Antoniel Ataide dos Santos, secretário da Federação, tentamos entrar em contato com Pai Benzinho, Esmeraldo Emetério de Santana, pelo telefone que nos passara, mas era número errado e conseguimos seu telefone pelo Auxílio à Lista. Na primeira tentativa, pediram-nos para ligar e falar diretamente com o filho e somente na segunda tentativa, ainda com desconfiança, passaram o número correto após explicações sobre nossas intenções.

Na conversa com Pai Benzinho, apresentei-me e tentei marcar uma conversa, mas ele foi enfático em dizer que não conversa mais com “jornalistas”, não dá entrevistas, pois muitas pessoas ganham com isso e ele somente se desgasta. Ele está atualmente com 87 anos. Quando insisti no assunto específico da pesquisa, as imagens da revista O Cruzeiro e uma revista estrangeira que publicara fotos de iniciação. Ele disse que estava velho para se lembrar desses fatos acontecidos há muito tempo, e perguntei-lhe se conhecia a Mãe Riso da Plataforma. Ele disse as seguintes palavras: “Essa mulher aprontou o diabo, saiu fugida da Bahia para o Rio de Janeiro, não sei se está viva ou morta, se estiver viva que o diabo a carregue”.

Essa explosão verbal demonstrou que a história ainda estava viva em sua memória, mesmo ele não querendo mais falar de candomblé, pois, segundo ele, estava aposentado e disse que teríamos de procurar a Federação, acentuando a existência de um processo seu, um prontuário, com toda a sua vida na Federação. Tudo indicava que ele tivera uma participação direta nos acontecimentos, já que era uma das pessoas mais importantes da Federação na época.

Visita ao terreiro de Mãe Cutu

Margarida Nayr da Anunciação, conhecida como Mãe Cutu, Ajicutu, “aquela que acorda cedo”, ou que vê antes as coisas, teve origem em uma

52 I MAGENS DO SAGRADO

das casas mais tradicionais de Salvador, a Casa Branca, e em contato telefônico disse que sabia de uma história relacionando um tal Chico Monalê com Ebome Lulu, e que poderia estar ligada com as imagens das revistas, pois a tão falada imagem da pessoa dentro da bacia novamente foi citada. Fomos muito bem recebidos por ela no bairro da Mussuranga, periferia de Salvador. Mãe Cutu não quis que a entrevista fosse gravada. Ela conhecia muito bem Ebome Lulu, disse que não sabia notícias dela e que perguntava para as próprias filhas de Lulu e elas não tinham informação da mãe. Mãe Cutu contou detalhes da vida de Lulu desde sua infância, o que demonstrava que a conhecia muito bem, sendo elas do mesmo barco, assim, transmitiu-nos que tinha uma afeição muito grande por Lulu. Esse fato relatado a credenciava a tentar reconhecer Lulu nas fotos.

Pensávamos que a imagem da bacia poderia ser uma das que foram publicadas na Paris Match, pois em uma das fotos aparece uma bacia. Pois bem, Mãe Cutu não reconheceu ninguém nas imagens, as quais também não eram de seu conhecimento, nunca as tinha visto antes, o que eliminou a hipótese de as imagens serem de Chico Monalê e Ebome Lulu, que agora se tornaram menos importantes para a pesquisa, ainda mais porque a imagem sempre citada da pessoa dentro de uma bacia com a cabeça raspada não apareceu em nenhum momento dela.

Essas imagens acompanharam a pesquisa desde a preparação da viagem e agora se tornavam somente uma citação que muitos relacionam com Riso, como vários acontecimentos desagradáveis do candomblé da época são vistos dentro do imaginário popular como ligados às imagens de O Cruzeiro e a Riso.

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 53

A revista Paris Match será analisada dentro de sua narrativa visual e textual como elemento de motivação para Medeiros e também como motivação para a discussão das imagens de iniciação de candomblé na mídia impressa da época por parte da Federação.

Alguns detalhes importantes da conversa com Mãe Cutu:

1. Não reconheceu as pessoas da Paris Match

2. Reconheceu Joana de Ogum em uma das fotografias, na qual quatro pessoas estão levando um presente para Iemanjá. O presente de Joana de Ogum era muito concorrido e famoso. Reconhece também o telhado em uma das fotografias como sendo a casa de Joana de Ogum, pois, como vimos na entrevista com Leleta, o telhado do terreiro de Riso era de palha. Caracteriza-se então que Medeiros fotografou as imagens complementares publicadas no livro de 1957 em Salvador mesmo, provavelmente nas suas outras viagens posteriores à época das fotos feitas para O Cruzeiro.

3. Em uma das únicas vezes que citou Riso, Mãe Cutu disse a seguinte expressão: “Deus perdoa seus pecados, Riso!”, deixando que o perdão aconteça no plano espiritual somente, e quando da afirmação de que Riso teria consultado seu orixá, Oxóssi, disse ainda: “Não consultou Oxóssi, não!”.

4. Mãe Cutu contou-nos uma passagem de sua vida relacionada diretamente com a revista O Cruzeiro, disse ela que era a primeira vez que via a revista com calma e atenção, pois, quando era ainda pequena, não iniciada, e freqüentava o terreiro onde raspou a cabeça, entrou um dia no barracão do terreiro e viu uma revista em cima de uma mesa. Começou a folhear, vendo algumas imagens. Estava sozinha nesse momento, mas em seguida uma pessoa mais velha da casa chegou e tomou-lhe a revista de sua mão de forma muito agressiva dizendo que ela não poderia ver aquelas imagens, o que demonstra uma interdição visual para não-iniciados, e também ela própria citou os problemas que imagens de iniciação podem causar para os iniciados após saírem da reclusão, pois nesse momento estão em transe e não se lembram de nada do que se passou; alertou para problemas de ordem pessoal e psicológica que podem surgir dessa situação.

5. Cantou-nos uma cantiga da época que está diretamente ligada a Riso. Quando lhe dissemos o nome da mãe-de-santo de Riso, ela cantou o seguinte:

54 I MAGENS DO SAGRADO

as muzenzas de Adalisse nuas na frente do guarda, as muzenzas de Adalisse vão levar borrachada

“Muzenza” significa iaô, ou seja, “[...] as muzenzas de Idalisse” evoca as iniciadas por Idalisse. Essa cantiga evidencia que Riso e, mais ainda, sua própria mãe-de-santo se tornaram personagens de cantigas populares em razão das imagens da revista O Cruzeiro, e pelo fato de que Riso teve de ir para a delegacia prestar esclarecimentos, com denúncia provável originada nas pessoas da Federação, como já citara Leleta.

6. Mãe Cutu disse que em sua casa de origem, Casa Branca, e na sua própria, não deixava que as pessoas iniciadas utilizassem cadernos de anotações durante o processo de iniciação, permitindo, assim, que o aprendizado se realizasse por intermédio da comunicação oral, como é tradição no candomblé. O caso da revista O Cruzeiro deve ser considerado dentro desse mundo da oralidade, mas uma oralidade paralela à tradição, fora do contexto religioso e dentro do cotidiano da religião, fazendo com que muitas pessoas que não tiveram contado direto com Mãe Riso lhe associem muitos fatos correlatos ou mesmo trágicos e escandalosos do candomblé que aconteceram na época. O caso de Joãozinho da Goméia, pai-de-santo muito questionado naquela época por suas atuações e aparições na mídia, surgiu em muitas citações como ligado ao caso da revista O Cruzeiro

Segunda visita à Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros

Com a chegada da revista Paris Match pelo correio e pela primeira vez aos nossos olhos, retornamos à Federação Nacional dos Cultos AfroBrasileiros, antiga Federação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros, para conversar com o secretário que havia também citado a tal fotografia da bacia, mas ele não reconheceu as pessoas das fotografias, o que me levou a acreditar na inexistência de tais imagens, e, como eu disse, alguns fatos acabaram sendo relacionados a Riso pelo imaginário popular e religioso. Também vimos o prontuário de Pai Benzinho, conforme ele nos indi-

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E
RECONTADAS 55
HISTÓRIAS

cara, mas somente constavam dados de seu itinerário pessoal dentro do candomblé.

Fomos levados a conversar com outra pessoa dentro da Federação, uma pessoa mais nova e com muita fluência que também não conseguiu reconhecer as pessoas da Paris Match e via pela primeira vez todas as imagens. Contou-nos que poderia haver uma pessoa chamada Lili entre as imagens, que sabemos não ter sido identificada pelas pessoas mais diretamente ligada às fotos da O Cruzeiro, e depois disse que Lili ficou conhecida por um acontecimento nessa mesma época, dentro de sua casa religiosa, quando algumas iaôs, incorporadas pelas entidades infantis, fugiram da camarinha e acabaram realizando furtos com conseqüências trágicas para uma delas. Tal citação reafirma o imaginário popular e religioso que tenderia a ligar Riso com várias passagens que de alguma forma “sujam” a imagem pública do candomblé. O interessante é que, mesmo sendo uma pessoa muito nova, sabia quem tinha sido Riso e o que ela fizera. Como um jovem envolvido com as propostas da Federação e também preocupado com a memória e a história do candomblé, sabia da história de Mãe Riso e de sua principal filha-de-santo, Perrucha, que ele disse ter conhecido, o que evidenciava que os fatos da década de 50 estavam tendo uma releitura pelos mais novos, e não manifestou também nenhuma reprimenda em relação a Riso. Interessante sua resposta à minha pergunta sobre a publicação nos dias atuais de imagens semelhantes às publicadas pela O Cruzeiro em 1951. Disse ele que o problema hoje é o uso que essas imagens poderiam ter por parte dos evangélicos, principalmente pela Igreja Universal do Reino de Deus, ou seja, ele está mais preocupado com os ataques que o candomblé sofreria da Igreja Universal do que com uma “revelação de segredo”. E ainda disse que a publicação poderia levar muitos adeptos a deixar o candomblé, que estaria perdendo influência devido exatamente aos ataques e ao conseqüente crescimento dos evangélicos.

Conversa com Sissi, Nancy de Souza

Com 63 anos de idade, Sissi tinha na ocasião das imagens de O Cruzeiro somente 12 anos. Recebeu-nos na Fundação Pierre Verger, onde trabalha, e contou-nos muitas histórias do candomblé e sobre seus fundamentos, revelando um vasto conhecimento sobre o assunto. Sua he-

56 I MAGENS DO SAGRADO

rança espiritual e intelectual está diretamente ligada à história de Pierre Verger, com quem viveu durante muitos anos, e a ele refere-se sempre com muita reverência.

Ela conheceu Riso em 1962, no estado do Rio de Janeiro, quando estava presente em um terreiro na Baixada Fluminense, para ver a saída ou a Festa do Nome de uma iaô (nação Angola). Disse que Mãe Riso chegou seguida de um séquito de pessoas e logo à sua chegada o pai-desanto da casa lhe perguntou: “Você conhece ela? Aquela que foi expulsa da Bahia, que deixou o Cruzeiro fotografar?”.

Mais uma vez apareceu a fala sobre uma “expulsão” de Riso que não somente correu a Bahia, mas o mundo do candomblé. Disse que ela chegou trajando uma saia justa, conhecida na época como “costume”, vestindo uma camisa masculina listrada, com suas contas de Oxóssi, seu orixá. Notou que ela tinha olhos esverdeados, como “olhos de gata”. Tinha também um anel de ouro no dedo com a imagem de São Jorge, que aparece em uma das imagens da revista O Cruzeiro. Sissi insinuou por meio de um movimento de ombros a chegada de Riso no terreiro, indicando sua preferência sexual, o que depois confirmou em fala baixa. Sabia ela que Riso tinha uma história controversa, mas não deixou de proceder aos ritos de obediência hierárquica, mesmo sendo de uma casa tradicional (Casa Branca), indo ao seu encontro para tomar bênção das mãos de Riso. Esse fato demonstra que Riso superou qualquer dúvida sobre sua história dentro do candomblé, confirmando as palavras de sua irmã Leleta de que não foi prejudicada depois da publicação das imagens na O Cruzeiro. Sissi ainda falou com muito respeito em relação a Riso, dizendo que ela era uma mulher muito séria, e citou exatamente uma fotografia publicada para comprovar suas idéias, comentando: “olha como ela está atenta na raspagem da iaô”, detalhe que havíamos notado antes e, é claro, por intermédio do perspicaz olhar fotográfi co de Medeiros. Mesmo assim, reafirmou a versão de que Riso teria saído “descarregada” para o Rio depois que saiu a revista O Cruzeiro, citando até mesmo o nome do navio em que ela teria embarcado, Comandante Capote. Sissi informou-nos que não havia muitas relações entre os terreiros da cidade alta com os terreiros da cidade baixa, assim, as redes de relações que se estabeleceram foram autóctones, sem criar redes mais extensas; é o que ainda predomina no candomblé. Dessa forma a rede estabelecida por Riso não nutriu de informações a rede da cidade alta. Do meu ponto de vista tal ocorrência facilitou a profusão de versões sobre os fatos da re-

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 57

vista O Cruzeiro, pois, caso houvesse essa rede, se saberia que Riso não tinha sido expulsa, que seu terreiro não fora quebrado e que também ela tivera uma vida longa e profícua no meio religioso.

Sissi indicou-nos uma imagem que teria sido realizada no Brasil por Pierre Verger, na mesma época, uma foto clássica de uma iniciação, na qual aparece uma pessoa com a cabeça de um bode na boca. Disse Sissi que a foto foi feita na casa de Pai Cosme, mas não aparecem muitas outras imagens de Verger sobre esses ritos no Brasil, somente nas suas fotografias da África. Como o tempo estava muito curto para continuarmos a conversa e ela prontificou-se a mostrar outras imagens de Verger sobre a temática, achei melhor fazer uma visita mais demorada e verificar as imagens do Terreiro de Pai Cosme em outra visita.

Sissi lembrou a participação de Joãozinho da Goméia nas filmagens de Barravento de Glauber Rocha, como também a participação de uma atriz argentina de nome Irma Alvarez em um filme chamado O cavalo de Oxumaré, e tentou ligar algo a Riso, sem clareza, dizendo que teria havido uma capa da revista O Cruzeiro com a argentina, ligando essa história a Riso.

Sobre os limites entre o sagrado e o profano nas imagens da revista O Cruzeiro, chamou a atenção para o lado psicológico da leitura posterior das imagens pelos iniciados, assim como disse Mãe Cutu, comentando que poderia haver prejuízos mentais para aqueles que estão em transe nos procedimentos ritualísticos, já que não têm consciência dos detalhes desses procedimentos pela própria postura corporal e pelo estado de consciência alterado em que se encontram. Ela mesma disse que não gostava de ver essas imagens e em alguns filmes sente-se mal. Em nenhum momento referiu-se a uma revelação do segredo ou outro fato que prejudicasse a religião com a publicação dessas imagens. Não me pareceu producente mostrar as imagens da revista e ela disse não saber da existência da reportagem da Paris Match, como também não se lembrou de nenhum pai-de-santo chamado Nestor, que é citado nela. As dúvidas sobre a existência desse pai-de-santo continuam, assim como a própria veracidade das imagens coletadas por Clouzot. Posteriormente, mandounos um recado dizendo que esse Nestor era um tal de Pai Rufino.

Perguntamos a Sissi se Pierre Verger se havia expressado alguma vez sobre a reportagem de O Cruzeiro e ela disse que ele nunca havia falado sobre o assunto, como também parece não ter nada escrito. Em que pese a seu favor todo o seu trabalho de pesquisa e o uso diferen-

58 I MAGENS DO SAGRADO

ciado que dava para suas imagens, deixa um espaço para pensarmos sobre o significado de seu silêncio, pois vivia ele na Bahia naquele momento em que o candomblé se arvorou contra fotografias publicadas em revistas e estava exatamente fotografando o candomblé, e trabalhando para a sucursal da revista O Cruzeiro, em Salvador.

Entrevista com Loura6

O encontro com Loura aconteceu em São Paulo, na sede de uma empresa de segurança vizinha ao seu terreiro na Vila Libanesa, Bairro da Penha. Os motivos de ser esse o local do encontro são difusos, e podem estar ligados ao fato de uma das pessoas da empresa ser sua cliente, mas a preocupação de Lili com a “segurança” mostrou sua própria insegurança em relação ao assunto tratado. Não tivemos nenhuma situação similar em toda a pesquisa.

Marilene nasceu quatro anos depois da publicação das fotos na revista O Cruzeiro, mas sua trajetória de vida fez com que encontrasse sua tia Riso no Rio de Janeiro, com a qual viveu alguns anos. Disse que sabe pouco sobre o caso, que houve até intervenção da polícia e o assunto não era tratado nas conversas. Assim como ocorreu com Riso, sua entrada no candomblé deu-se quando ainda era criança, época em que se identificou sua inclinação para a mediunidade. Disse ela sobre esses primeiros momentos (muito parecidos com a história de Riso):

Eu tinha 2 anos de idade, tinha saúde imensa, eu e minha irmã, que sou gêmea, e minha mãe tinha mania de dar banho na gente e colocar a gente no campo brincando, sentadinhas assim, e passou um velho, não me lembro, minha mãe conta, depois desse dia é que eu fiquei doente, aí passou um senhor de idade e passou a mão na cabeça de nós três, e falou assim: vocês vão dormir que vocês vão ver, aí minha mãe pôs a gente pra dormir. Todas as três dormiram, duas acordaram bem, e eu acordei mal. Dali por diante eu comecei a passar muito mal, de 2 anos em diante até 7, até completar 7 anos, e todo mundo dizia que era de santo e eu ia para o vizinho do lado, que era a dona Mariinha, ficava boa, voltava pra casa ficava ruim, e minha mãe sempre falando que não queria que eu entrasse na religião, que já tinha minha tia que

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 59
6 Marilene da Silva Reis, filha de Leleta.

é a Mãe Riso, e não queria, não queria mas a minha vida ia ser realmente pra fazer o santo, e fiquei até os 7 anos. Com 7 anos a Mãe Riso sempre estava lá no barracão dela, que era do lado da casa da minha mãe, e falava que eu tinha que fazer o santo, e minha mãe falava: ah, ela não vai fazer isso não, ela vai fazer só se for com você, que meu pai e ela só confiava nela.

Marilene foi morar com Riso no Rio de Janeiro quando completou 7 anos, idade necessária na época para fazer iniciação. A fala de Marilene revela que Riso tinha muitas atividades no Rio e manteve seu terreiro na Plataforma, no qual Leleta morava e do qual cuidava. Ainda em Salvador, Riso tinha muitos filhos-de-santo da região da Plataforma e da Ilha Amarela, e freqüentava outros terreiros da região carregando Marilene junto dela, e sempre Marilene “bolava” no santo nesses terreiros, acabava em quartos de reclusão com todos os pais e mães-de-santo querendo fazer sua iniciação, mas Riso dizia que ela iria ser iniciada em seu terreiro. Como era pequena, frágil e doente, não poderia ser recolhida sozinha e no terreiro de Riso havia outras pessoas para cuidarem dela. Com 7 anos foi embora de Salvador morar com Riso na Baixada Fluminense, e lembrava-se de que a casa de Riso tinha cerimônia e rituais quase todos os dias, era muito movimentada e freqüentada. Assim ela contou sobre sua iniciação por Riso:

Aí fui embora pro Rio, cheguei lá tinha muitos filhos-de-santo, ela me apresentava, levava pra me ver, eu ficava sempre dentro dum, não dum quarto de santo, eu ficava sempre dentro de casa, que tinha... era doente, num queria saber de nada, aí ela levava os filhos-de-santo dela, eram muito carinhosos comigo, e me agradavam... daí começou o ritual, todo dia tinha, como é que a gente fala: é adarrum! Pra poder ver se virá no santo, ver se bola, aí todo dia tinha e todo mundo bolou, e eu não bolava, e ela não tinha aquele negócio de você fingir, principalmente comigo. Antes de eu recolher, ela ia em muitos candomblé e eu ia junto. Chegava na casa dos outro eu bolava, eu caía e todo mundo queria me recolher porque eu era pequenininha, com 7 anos era assim. Aí ela dizia: “não, pelo amor de Deus, se alguém pôr a mão nela, minha irmã me mata, essa aí é comigo”. Eu acordava nos quartinhos que me colocavam lá, ela me levava embora pra casa. Aí nesse dia, que recolheu tudo pra fazer os negócios, nada de virar, nada de virar, antes de eu virar que tem a história do santo que não ia, ela brincava. Antigamente num tinha negócio de telefone, ela escrevia na carta para minha mãe em Salvador: “Ah! Aqui ela tá boa, num tá dando nada nela”. E minha mãe Leleta escrevia: “Não, pode deixar ela aí que vocês foram de navio e o santo tá indo a pé”.

60 I MAGENS DO SAGRADO

Marilena nos contou sua iniciação:

Aí começou aquilo tudo, eu deitei pra recolher, num ia virar no santo, aí no dia do orô, que é a obrigação, e todo mundo virado, todo mundo fazendo negócio, e eu deitei como a Obaluaê, que seria no mês de agosto, tanto que eu fiz agora aniversário de santo no dia 22. Aí ela falava assim: não, ela é de Obaluaê, porque todo lugar que eu caía, que eu bolava, eu ficava toda torta, e tinha muita coceira, assim, feridas... aí ela falava: não, ela é de Obaluaê. Aí, eu deitei pra fazer o Obaluaê, tanto que eu não ia virar, e eu virei... virei no santo com 7 anos e na hora de fazer obrigação, só que meu santo Obaluaê pegava branco e meu Xangô pega branco: Airá! Aí, na hora, na semana da saída, eu virei, em vez de ser Obaluaê era Xangô. No dia do orô, aí ela pegou e mudou para daí uma semana, pra poder... os bichos eram tudo igual, só o assentamento que era diferente, daí saiu na outra semana. Eu era pra sair no colo, ela se emocionou demais, ela via eu de santo, ela não acreditava que eu ia virar no santo. O barco era “dofana”, era da frente, atrás vinha o “chará”, e eu fiquei o tempo todo, o tempo que o santo dançou eu fiquei de santo e de pezinha, ninguém me carregou no colo... fiquei um ano de saia de santo, um ano de erê, normal, até eu ficar bem longe da minha mãe. E ela se emocionou demais, enquanto todo mês tinha saídas de santo, tinha muitos filhos-de-santo.

Marilene morou somente um ano com Riso, mudando-se para São Paulo por problemas de saúde, com uma mãe-de-santo da casa de Riso. Freqüentava mensalmente a casa de sua tia-mãe Riso (tia de sangue e mãe-de-santo), para cuidar de seu assentamento e visitar sua família mais próxima, que era somente Riso e seu filho Jorge. Riso tinha na época mais de cem filhos-de-santo no Rio e sua morte produziu conflitos sobre a herança de seu santo e o terreiro ficou parado, “sem tocar”, mais de ano. Nesse período muitas coisas desaparecem do terreiro. Segundo Marilene, Riso “tinha muitos herdeiros assim perante o povo, cada um queria uma parte”, e como herdeira patrimonial disse “então deixando pra mim, que era sobrinha, eu acho que seria o ideal, porque, se eu herdei uma casa, eu tinha que herdar o santo também”.

Riso freqüentava muito Salvador, principalmente o terreiro de Mariinha (mãe-pequena de sua casa na Ilha Amarela e na Plataforma) e de Perrucha, quando havia iaôs recolhidos, como também freqüentava o terreiro que Marilene abriu depois em São Paulo. Riso também abriu e manteve um terreiro na cidade de Ribeirão Preto, no interior de São

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 61

Paulo, na década de 90, perto de sua morte. Riso nunca foi casada e teve somente um filho chamado Jorge, cujo pai tem o nome de Antônio Geraldo. Esse é o único relacionamento citado por parentes de Riso, e que aconteceu ainda quando estava na Bahia e muito nova. O nome somente foi lembrado por Marilene porque ela leu no atestado de óbito de seu primo Jorge, pois Leleta não se lembrava desse nome, o que parece demonstrar que foi um relacionamento muito rápido de Riso.

Marilene lembrava-se de ter visto as fotografias da revista O Cruzeiro quando ainda era cria, principalmente de que Riso tinha um exemplar do livro Candomblé, e disse que ele ficava sempre muito escondido de todos. Riso nunca comentou com ela as imagens do livro nem as da revista: “Era dela... esse livro era dela; quando ela morreu foi a maior polêmica quando eu peguei esse livro e essa fotografia [uma fotografia de Riso pintada à mão]. E esse livro ninguém queria entregar, ninguém sabia onde tava, eu encontrei ele debaixo... eu encontrei debaixo do colchão, embaixo de um monte de coisa ”.

Riso manteve um exemplar do livro durante muitos anos e o guardou de outros olhares, como um passado polêmico, talvez proibido. Provavelmente não quis expor-se mais do que os próprios fatos decorrentes das imagens publicadas que a levaram a uma execração pública em Salvador. Riso resguardava-se desse passado punitivo que lhe foi imposto por não ter respeitado a tradição de preservar o segredo da religião. Como Leleta, Marilene partilha da opinião de que Riso não foi prejudicada pela publicação das imagens porque “ela era muito ciente do que ela fazia”. Exemplificando sua maneira de agir, Marilene comenta:

Ela era um tipo de pessoa que... hoje tem muito curso, eu num faço curso nenhum de negócio de candomblé, de espiritismo; eu não aprendi jogar búzio fazendo curso, porque ela não adotaria, tudo dela era feito pelo orixá, o orixá dava intuição pra ela, tanto que ela jogava búzio, o Ogum dela vinha, quando ela tava jogando; ele ficava em pé e jogava pra ela, pra pessoa... quando eu falei pra ela: “Mãe Riso, eu vou entrar no curso de búzio”, nossa, ela me deu uma bronca. Ela falava que isso não se aprende assim, isso é o dom, o orixá traz pra você... Ela era assim muito espontânea, ela não gostava de andar muito elegante. Ela era assim simples. Se você chegasse na casa dela, ela tivesse de calça e de chinelo, é a mesma pessoa. Nunca tava enfeitada. Ela recebia as pessoas bem, ela era muito alegre, todo mundo conhecia ela, a gente ria, que ela chamava as galinhas assobiando, né?! Ela tinha umas galinhas no barracão, chamava assobiando. Era pombo, tudo ela puxava assobio, todo

62 I MAGENS DO SAGRADO

mundo conhecia ela por causa disso. Ela ia na venda do lado, ela era muito assim, livre, se dava com todo mundo ali no bairro. Se ligasse lá, perguntasse da dona Riso, todo mundo sabia quem era. Se chegasse na rua de lá: “onde é a casa da dona Riso da Beija-Flor?”, todo mundo conhecia...Todo mundo conhecia ela, era na quitanda... ela fazia quitanda na frente, ela era mulher muito de negócio, ela gostava de vender as coisas assim, é... verdura, sabe?! Ela punha quitanda, vendia às vezes até bebidinha, essas coisas, tudo, assim, ela gostava. Ela mantinha a casa dela, nossa... ela morava lá sozinha com eles... tinha filhos-de-santo que morava lá, mas todo dia era aquele panelão de arroz, de feijão, né?! com carne, e muita coisa de mistura, e era cigarro, todo mundo que tava lá ela mantinha. Morava essa, a Jacira, aí ela aproveitava, ela colocou sobrinha, a prima, a irmã, morava todo mundo lá às custas dela. Ela era assim... o jeito dela de ser era rude, né?! Rude assim, em termos, porque gostava das coisas muito certas, porque na parte de santo ela era muito rigorosa. Ela achava que era uma responsabilidade muito grande, pegar um ser humano pra fazer uma obrigação ou qualquer coisa, um ebó, qualquer coisa que fosse. Então, por ser minha mãe-de-santo e por ser a minha tia, eu achei que ela trabalhava de um jeito muito certo. Se eu fosse fazer santo com outra pessoa... olha, se eu te falar a verdade, hoje eu não tenho... não escolhi outro pai-de-santo e não concordo. Eu falo que eu tenho ela até o resto da minha vida. Eu nunca mais dei a cabeça pra ninguém... nunca mais.

Justificando sua vinda para São Paulo, Marilene disse que Riso esquecia muito dela por causa das atividades do terreiro e que precisava de mais cuidados, mesmo tendo as filhas-de-santo que ajudam a manter o terreiro e os agrados que recebia de sua clientela. Marilene não achou importante procurar as filhas de Riso em Nilópolis, dizendo que elas inventariam mentiras, o que demonstra que o processo depois da morte de Riso foi conflituoso. Marilene ficou com alguns objetos de uso pessoal de Riso, como um anel de búzios, mas o famoso anel de São Jorge não se sabe com quem ficou: “[...] Esse aí sumiu, eu tenho do búzio, que ela tinha em pequenininho, ela mandou ampliar, o anel parece que ela colocou no assentamento do Oxum, e o grande ela mandou ampliar, é um búzio grandão, o brinco ela usava, até quando ela tava doente, começou a ficar leve, caindo, e no dia que ela faleceu, na hora, ela entregou: ‘entrega pra minha sobrinha’”.

Riso vestia-se sempre de calça comprida, sempre de claro com turbante na cabeça. Tinha muitos turbantes de crochê e o modo de ela colocar o turbante na cabeça denotava seu estado de espírito, que era logo compreen-

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 63

dido pelos freqüentadores de sua casa: “a gente falava: ‘carcará chegou, carcará chegou...’, era quando ela bebia, que ela gostava de tomar uma, quando não tava mexendo com preceito, aí ela entrava, quando ela entrava sambando a gente falava: ‘carcará chegou...’, aí ela cantava: ‘Carcará, pega, mata e come...’, aí a gente já sabia...”.

Riso ajudou Marilene a abrir seu terreiro em São Paulo no começo dos anos 90, ficou mais de 40 dias na cidade nessa ocasião, e às vezes passava semanas em momentos ritualísticos que necessitavam de uma pessoa que conhecesse muito bem os preceitos da religião. Riso era uma espécie de madrinha de Marilene, dando cobertura religiosa quando ela precisou. E Marilene fez com ela as obrigações de 14 e 21 anos, no terreiro de Nilópolis. Marilene esteve próxima de Riso quando aconteceram as internações e sua morte em 1995.

Dado importante são as viagens que a mãe-de-santo de Riso, Idalisse da Ilha Amarela, fazia de Salvador para o Rio, sendo presença constante no terreiro de Riso em Nilópolis. Com as afirmações das viagens também de Riso para Salvador, fica claro que ela manteve laços fortes com o candomblé de sua origem e de seu território na área da Plataforma.

Em Nilópolis

O encontro com o terreiro de Riso

Resolvi ir a Nilópolis encontrar as pessoas ligadas a Riso, o povo de Riso, no Rio de Janeiro. A única informação de que dispunha era o endereço de seu terreiro e de sua casa, que constava no próprio atestado de óbito, Rua Carlos Bernadete, 283, Cidade Nova, Nilópolis. O motivo do empenho em encontrar pessoas ligadas a Riso e a seu terreiro foi tentar elucidar seus passos no Rio de Janeiro, suas atividades e seu itinerário pessoal de vida. Era um dos últimos passos previstos na pesquisa e esperava encontrar muitos detalhes de sua vida pós-Salvador. Já no ônibus, quando perguntamos ao motorista pela rua, um senhor de idade disse que a conhecia e uma garota disse que morava nessa rua. O senhor indagou-me qual o motivo da visita e a quem procurava, e aproveitei perguntando se tinha conhecido Mãe Riso, ele confirmou e disse que ela tinha falecido. Falou com respeito, disse que ela era muito conhecida, e colocou-se à disposição para ajudar. A garota que estava no ônibus acompanhou-nos e disse que

64 I MAGENS DO SAGRADO

ao lado de sua casa morava uma mãe-de-santo, chamada dona Marta, indicando na chegada sua residência. Após apresentações e dizendo o motivo da visita, dona Marta não quis falar sobre Riso, pois disse que, sendo ela da nação Queto e Riso da Angola, não caberia falar de outro povo, e não conhecia a reportagem da revista O Cruzeiro. Indicou-me o caminho mais à frente como o do terreiro de Riso.

Chegando ao número de que dispunha, logo o identifiquei como sendo o terreiro de Riso: um lindo São Jorge em azulejo reinava incrustado na frente e no alto da casa. Nesse momento senti uma grande emoção de estar ali defronte o terreiro de Riso, e ao mesmo tempo uma vontade muito grande de tê-la conhecido. De alguma forma, senti sua presença pela primeira vez, uma boa sensação. Como me haviam indicado, na casa logo em frente morava uma família ligada a Riso, e, como eu esperava, obtive, ao chegar ao local, informações da vizinhança, uma senhora disseme que procurasse Adalgiza, filha-de-santo de Riso.

Na casa de Adalgiza, também fomos muito bem recebidos. Quando comecei a falar de Riso e das informações que tinha sobre ela, senti uma simpatia muito grande por parte de Adalgiza, com 77 anos, e de João, seu marido, com 67 anos. O verdadeiro nome de Adalgiza é Sebastiana Stanziola Diniz, nascida na Itália em 1928. Foi uma das primeiras filhasde-santo de Riso no Rio de Janeiro, e sua “digina” 7 é Mutalecy. Seu marido era Oxogum na casa de Riso, o primeiro a ser confirmado por ela no Rio, e tem a “digina” de Omonyle. Estava falando com uma das pessoas mais próximas de Riso em Nilópolis, o que se confirmou quando disse que quase todas as filhas e filhos de Riso agora freqüentavam o terreiro de Adalgiza, Terreiro São Miguel Arcanjo. Riso fazia parte do Conselho Espiritual da casa, conforme o livro de registro. Adalgiza contou-nos que Riso era muito exigente com os fundamentos, e as filhasde-santo mantinham um respeito muito ardoroso, não ultrapassando nunca os limites, falando sempre com a cabeça abaixada, não entrando no recinto onde ela estivesse a não ser com consentimento. Assim, informou que não mantinha conversas sobre a vida pessoal de Riso, nem sobre o passado. Diniz confirmou todas as informações, enfatizando mais ainda o conhecimento de Riso sobre candomblé, e disse ainda que ela era analfabeta.

7 Nome pelo qual as pessoas são reconhecidas dentro do candomblé.

E NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 67

A edição de O Cruzeiro não foi mencionada e, quando perguntei sobre a revista, disseram inicialmente que nunca a tinham visto, que Riso não a tinha e nunca comentou nada a respeito. Minhas informações sobre Riso foram sendo transmitidas e iam surpreendendo-os, pois desconheciam detalhes do passado de Riso, mesmo sendo pessoas próximas a ela. Sobre a revista O Cruzeiro, disseram que ouviram falar vagamente, e Adalgiza contou-nos que um dia, freqüentando um terreiro com Riso, a mãe-desanto pediu ajuda na pintura de uma iaô e Riso mandou Adalgiza fazê-lo. Quando entrou na camarinha, encontrou a revista aberta e identificou uma pessoa como sendo Riso. Foi somente esse contato rápido que teve com a revista. Ela achava que as pessoas estavam vendo a pintura da iaô na revista para fazer igual. Riso não trouxe um exemplar da revista O Cruzeiro com ela da Bahia, ao que tudo indica não o tinha, e se tivesse teria ficado com sua irmã Leleta. Mesmo tendo consigo um exemplar do livro Candomblé, mantinha-o guardado longe de outros olhares. Riso não comentava com ninguém a reportagem nem as polêmicas que causou na Bahia. Para ela os minutos de glória de estar na revista O Cruzeiro como destaque em 38 fotografias não tiveram importância, como também não trouxeram uma herança negativa; parece que, simplesmente, ela ignorou por completo a reportagem e preferiu colocá-la no passado quando chegou ao Rio de Janeiro.

As pessoas mais próximas de Riso em Salvador não conheciam o livro, o que indica que Riso teve contato com ele no Rio de Janeiro, quando o adquiriu ou ganhou de alguém. Ao manter o livro consigo, embaixo de seu colchão, Riso trazia seu passado bem próximo de si; ao mantê-lo longe de outros olhares, preservava-se publicamente desse mesmo passado.

Riso disse que seria ela, Adalgiza, a fazer o seu axexê, ritual funerário do candomblé. A morte violenta de seu filho Jorge deixou-a desconcertada e amargurada. Mesmo sentindo que ainda não estivesse preparada para fazer o axexê e não encontrando um pai-de-santo que quisesse proceder a esse ritual fúnebre do candomblé, pois Riso morreu no dia primeiro do ano e muitos estavam nas águas de Iemanjá, o que acabou dificultando o contato, Adalgiza tomou-se de coragem e o fez, acompanhada pelo marido, como Riso explicitou ainda em vida. A herança espiritual de Riso concretizou-se com Adalgiza e seu terreiro, mesmo Marilene sendo sua parente mais próxima e natural herdeira.

68 I MAGENS DO SAGRADO

A sucessão de Riso foi confusa, pois Marilene (Loura) resolveu vender a casa e o “povo de Riso” no Rio ficou indignado, querendo que os assentamentos dos santos continuassem no lugar. Houve proposta para aluguel da casa e assim manter os assentamentos dos filhos e filhas-desanto, mas não houve acordo e devagar foram sendo retirados, um a um. João Diniz fez o despacho das coisas de Riso e disse que seu orixá, Oxóssi, e Exu não quiseram sair da casa.

No Jornal de Nilópolis, um dia depois da morte de Riso (1o de janeiro de 1993, segundo seu atestado de óbito), aparece a notícia:

Muita emoção no enterro de mãe-de-santo

Cerca de 600 pessoas, todas vestidas de branco, compareceram sábado à tarde, no Cemitério de Ricardo de Albuquerque, para o enterro da babalorixá Rizolina Heleonita da Silva, 73 anos, que recebia a entidade Oxóssi em seu terreiro em Nilópolis. Riso de Oxóssi, como era bastante conhecida no Rio e na Bahia, morreu de embolia pulmonar no Hospital Santa Maria, em Nilópolis. Segundo Cleomídio da Silva, morador na Estrada dos Bandeirantes, 7.993, Riocentro, mãe Riso de Oxóssi foi uma santa criatura. Durante anos ela se dedicou a fazer o bem às pessoas necessitadas e sua passagem espiritual deixa uma lacuna nos meios umbandistas.

Três fotos são preciosas no baú de imagens de Adalgiza e elucidam o trânsito Salvador–Nilópolis:

E
NCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 69

Primeira foto: Riso logo na chegada ao Rio, em uma festa de seu terreiro, tendo ao seu lado sua mãe-de-santo, Idalisse da Ilha Amarela, aparecendo cortada da parte esquerda da foto.

Segunda foto: Riso com Adalgiza em Salvador, quando foi fazer o decá de Idinha, sua cunhada. As duas fotos reafirmam visualmente as informações de que havia um trânsito intenso do povo de Riso da Plataforma entre Salvador e Rio de Janeiro ; como foi dito em Salvador, Riso recebia muitas visitas de pessoas no Rio. Riso manteve então fortes relações, além das familiares, com o candomblé baiano, e Adalgiza disse que depois da morte de Idalisse Riso foi para Salvador tirar a mão com Vicente da Casa Branca.

Terceira foto: Riso aparece sentada e encostada carinhosamente em Adalgiza ao seu lado, em pé, ainda muito nova e usando o quelê de sua recente iniciação. Nessa singela foto, anuncia-se o futuro dessas duas pessoas ligadas espiritualmente pela crença nos orixás.

70 I MAGENS DO SAGRADO

O CONTRACAMPO DE PIERRE VERGER

Pierre Verger, um ícone das relações da imagem fotográfica com o mundo religioso do candomblé e a cultura afro-brasileira, é elemento primordial para a reflexão na área e um contracampo ao trabalho sensacionalista realizado na época por Henri-Georges Clouzot, na Paris Match, e por José Medeiros, n’O Cruzeiro.

Em visitas à Fundação Pierre Verger pudemos pesquisar a intensa atividade de Verger na revista O Cruzeiro entre os anos de 1946 e 1958, e surpreendentemente encontramos quatro reportagens com suas fotografias na revista A Cigarra, e entre elas uma seqüência de imagens de um ritual de iniciação do candomblé com texto de Roger Bastide (texto publicado como anexo da segunda edição da clássica obra de Bastide: O candomblé da Bahia — Rito nagô, mas não cita que o texto foi publicado com imagens de Verger). Essa descoberta abriu ainda mais o campo reflexivo de imagens de candomblé e de seus ritos em meios de comunicação de massa, pois a torna, até o momento, a primeira publicação conhecida desse tipo de imagens. Em conversa com Angela Lühning, que conviveu com Pierre Verger em seus últimos anos de vida, tivemos a declaração de que ele lhe deu a revista O Cruzeiro, com a reportagem de José Medeiros e Arlindo Silva, pois não queria tê-la consigo, confessando que desgostava desse tipo de abordagem do culto, a ponto de a direção da revista já ter pedido uma reportagem da mesma natureza e ele ter-se recusado a fazêla, dado confirmado por uma carta de Leão Gondim para José Medeiros, que será analisada mais à frente.

Souty (2006, pp. 374-5) destaca algumas passagens dessa relação de Pierre Verger com as reportagens nas trocas de correspondência com A. Métraux, ou, ainda, por exemplo, na entrevista para Emmanuel Garrigues (L’Ethnographie, 1991), da qual ressalta o trecho em que Verger critica o caráter sensacionalista das fotos de Clouzot, e diz que suas imagens são

O CONTRAPONTO DE P IERRE V ERGER 71

de outra ordem. Souty ressalta também que Pierre Verger retira imagens de sacrifícios de animais na preparação de seu livro Dieux d’Afrique, principalmente pelo impacto das duas reportagens naquele momento.

A proximidade de Pierre Verger com Odorico Tavares e o fato de terem feito juntos mais da metade de seus trabalhos n’O Cruzeiro colocaram Odorico também no campo da omissão, sugerida por Gondim a Medeiros na Bahia. Entre as reportagens de Pierre Verger e Odorico Tavares, destaca-se a série Roteiro de Canudos, com três reportagens, e ainda, em dupla com Gilberto Freire, cinco matérias no Benin sobre os ex-escravos que voltaram para a África depois de libertos no Brasil, criando uma “cultura brasileira” no antigo Reino do Daomé. Nota-se que Pierre Verger se manifestou apenas privadamente sobre o conteúdo das reportagens da Paris Match e d’O Cruzeiro apesar de manter em seus guardados toda a polêmica suscitada na imprensa brasileira sobre a Paris Match, como veremos.

Pudemos pesquisar e ver nos arquivos digitalizados da Fundação, além das imagens publicadas na revista A Cigarra, um ritual de iniciação no terreiro de Pai Cosme, na década de 501. A seqüência com um total de 111 imagens realizadas mostra imagens muito parecidas com as fotografias de José Medeiros, e somente duas delas vão ser publicadas no livro Orixás, em 1981, 20 anos depois, citando somente no final que foram feitas no Brasil (“Bahia, Brasil”). A seqüência, além das próprias imagens publicadas, revela o processo de escolha (edição) das imagens, acentuando o fato de não serem imagens isoladas e sim uma grande e significativa seqüência. Ao publicar somente duas dessas imagens, sem referências explícitas do lugar e da data, e com fotos que não identificam pessoas, Verger preserva o anonimato dos envolvidos de forma muito diferente da que José Medeiros e Arlindo Silva quiseram ingenuamente fazer ao não citar o nome de Riso. Nas duas únicas fotos publicadas de Verger envolvendo sacrifícios de animais, não temos a possibilidade de ver a seqüência enunciadora do evento fotografado, e como ele é citado na carta de Gondim dizendo que não as publicaria naquele momento, somente muito tempo depois de realizá-las é que ele as torna públicas, mas fora do contexto de um de embate O Cruzeiro–Paris Match, empre-

O CONTRAPONTO DE P IERRE V ERGER 73
1 Segundo Angela Lühning, da Fundação Pierre Verger, essa seqüência de imagens no terreiro de Pai Cosme não foi realizada no mesmo dia e somente metade das imagens se refere ao ritual de iniciação, incluindo o ritual do oruncó no barracão.

sas de comunicação com conteúdo de um fotojornalístico muitas vezes sensacionalista, e sim dentro de sua reflexão da ponte cultural religiosa África–Brasil. Verger escapa conscientemente de uma manipulação de seu trabalho pela direção da revista O Cruzeiro, interessada em contrapor-se à matéria da Paris Match, para reafirmar-se no cenário midiático brasileiro como instrumento genuíno de defesa dos temas nacionais. Esse desafio e esse embate não pertenciam a Pierre Verger.

A Fundação Pierre Verger, na ótica atual, endossa e respeita a posição do fotógrafo de não apresentar a seqüência inteira, preservando a imagem dos fotografados e acentuando a “proibição” de veiculação desse tipo de imagens na mídia, de acordo com as posições originais de Pierre Verger. Relação de fotorreportagens de Pierre Verger encontradas na Fundação

Revista A Cigarra

1) Adoradores de astros na várzea de Recife (3.1949), texto: Gonçalves Fernandes

2) Roda de samba (4.1949), texto: Cláudio Tuiuti Tavares

3) Candomblé (6.1949), texto: Roger Bastide Caroá, texto: José Leal

Revista O Cruzeiro

4) Cuzco — Cidade dos deuses (7.9.1946), texto: Vera Pacheco Jordão

5) Cuzco — Imperial e colonial (5.10.1946), texto: Vera Pacheco Jordão

6) Saveiros do Recôncavo (30.11.1946), texto: Odorico Tavares

7) A aldeia festeja a Virgem do Carmo (14.12.1946), texto: Vera Pacheco Jordão

8) A vitória do Rei Índio (04.1.1947), texto: Vera Pacheco Jordão

9) O mundo trágico da talha baiana (1.2.1947), texto: Godofredo Filho

10) Itinerário das feiras da Bahia (15.2.1947), texto: Odorico Tavares

11) O ciclo do Bonfim (22.3.1947), texto: Odorico Tavares

74 I MAGENS DO SAGRADO

12) Maracatu (29.3.1947), texto: Odorico Tavares

13) Atlas carrega o seu mundo (5.4.1947), texto: Odorico Tavares

14) Frevo (19.4.1947), texto: Odorico Tavares

15) O reino de Iemanjá (26.4.1947), texto: Odorico Tavares

16) Caymmi na Bahia (17.5.1947), texto: Odorico Tavares

17) Conceição da Praia (31.5.1947), texto: Odorico Tavares

18) Roteiro de Canudos — (19.7.1947), texto: Odorico Tavares

I - O reduto de Antônio Conselheiro

II - O repórter Euclides da Cunha

III - Depoimento dos sobreviventes

19) A pesca do xaréu (18.10.1947), texto: Odorico Tavares

20) Bumba-meu-boi (13.12.1947), texto: Luiz Alípio de Barros 21) Mamulengo — A poesia do Nordeste (27.12.1947), texto: F. Balzoni Filho

22) A vida de um circo (17.1.1948), texto: Guerra de Holanda 23) Cultura popular — ex-votos (31.1.1948), texto: Antônio R. Bandeira 24) O calvário dos sertões baianos (27.3.1948), texto: O. Tavares 25) Chiou, perdeu! (3.4.1948), texto: Fernando Lôbo 26) Vitalino e o mundo dos bonecos (10.4.1948), texto: Mário Leão Ramos 27) Afoché — ritmo bárbaro da Bahia (29.5.1948), texto: Cláudio Tuiuti Tavares 28) Tubarão (30.10.1948), texto: Franklin Oliveira 29) Baianas das saias rodadas (5.2.1949), texto: José Leal 30) Roteiro poético do Capibaribe (12.11.1949), texto: José Césio Costa 31) Pancetti (11.11.1950), texto: Odorico Tavares 32) Cosme e Damião — Os Santos Mabaças (18.11.1950), texto: Odorico Tavares 33) Mataripe (25.11.1950), texto: Odorico Tavares 34) A cozinha da Bahia (2.12.1950), texto: Odorico Tavares 35) Rafael, o pintor (6.1.1951), texto: Odorico Tavares 36) N. S. da Boa-Morte das Negras de Cachoeira (13.1.1951), texto: Odorico Tavares

37) A escultura afro-brasileira na Bahia (14.4.1951), texto: Odorico Tavares

38) A casa do Tio Juca (14.4.1951), texto: Odorico Tavares

O CONTRAPONTO DE P IERRE V ERGER 75

39) Decadência e morte da lavagem do Bonfim (23.6.1951), texto: Odorico Tavares

40) Revolução na Bahia — Artistas baianos (7.7.1951), texto: Odorico Tavares

41) Acontece que são baianos (11.8.1951), texto: Gilberto Freire 42) Senhor do Bonfim domina a África (18.8.1951), texto: Gilberto Freire

43) Casas brasileiras na África (25.8.1951), texto: Gilberto Freire Brasileiros Grão-Senhores na África, texto: Gilberto Freire 44) A dinastia dos Xaxá de Souza (9.1951), texto: Gilberto Freire 45) Inflação de reis africanos (29.9.1951), texto: Odorico Tavares

46) Martírio e glória de Cosme e Damião (25.9.1954 — edição colorida), texto: Franklin de Oliveira

47) El viejo y el mar (16.9.1957 — edição internacional), texto: Fernando G. Campoamor

48) Así eran los astecas (1.1.1958 — edição internacional), texto: Mário Dantino 49) La moda viene de África (1.7.1958 — edição internacional), texto: Nora Toupet

A Cigarra

Antes mesmo de ir para a Bahia, que era sua vontade, depois de encontrar-se no primeiro dia que esteve em São Paulo com Roger Bastide, vindo de Corumbá, por onde chegou ao Brasil, Verger é por este instigado a continuar sua viagem para Salvador e falou-lhe da importância da influência africana nessa região. Verger diz em suas memórias que já tinha lido em francês o livro Jubiabá, de Jorge Amado, e tinha noções dessa influência. Verger descreve que, em sua passagem pelo Rio de Janeiro, procurando Vera Pacheco Jordão, por indicação de seu amigo Alfred Métraux2, quase que não é recebido por ela, pois “[...] a minha habitual deselegância no vestir lhe fez crer que tinha a ver com um pedinte ou um vendedor de aparelhos domésticos” (Verger, 1982, p. 239). Apresentando-

76 I MAGENS DO SAGRADO
2 Nesse sentido, ver Alfred Métraux e Pierre Verger, Le pied à l’étrier — Correspondance 12 Mars 1946 — 5 Avril 1963. Paris: Jean Michel Place, 1994.

se como fotógrafo e necessitando ela de imagens do Peru para matérias que tinha realizado, sugeriu que procurasse a redação da revista O Cruzeiro e ofertasse-as para acompanhar o texto. As fotos foram aceitas para a reportagem e, tendo uma história internacional no fotojornalismo, ele foi convidado a fazer matérias sobre a Bahia, com contrato que oficializou sua permanência no Brasil, tor nando-se assim fotógrafo da revista O Cruzeiro em Salvador, realizando quase uma centena de reportagens, muitas delas não publicadas.

Angela Lühning, que teve uma convivência bastante estreita com Verger, assim se refere a sua chegada:

Uma data sempre lembrada por Verger foi a da sua chegada à Bahia, em 5 de agosto de 1946. Tratava-se não somente de um compromisso formal, mas também de um interesse particular de Verger, já que amigos que havia feito na década anterior nas Filipinas também residiam na “Boa Terra”, como Salvador era chamada à época. Imediatamente após a sua chegada, dá início às suas atividades profissionais, realizando reportagens fotográficas que passarão a ser publicadas em O Cruzeiro. Verger mora temporariamente no Hotel Chile, situado no Centro Histórico de Salvador, e é de lá que parte para as suas diversas viagens pelo Nordeste para realizar as reportagens que seriam enviadas para a revista. (Lühning, 2002, p. 13)

Grande parte das fotorreportagens de Pierre Verger publicadas na revista O Cruzeiro aconteceu entre os anos de 1946 e 1951. Diz Verger que fez mais de 80 reportagens e a maioria em dupla com Odorico Tavares; estariam aí computadas as reportagens publicadas na revista A Cigarra e aquelas enviadas e não publicadas. As reportagens mostravam a exuberância cultural da Bahia, candomblé, festas populares, carnaval, e aspectos da vida no Recôncavo. Então, nesse período publicou também algumas matérias na revista A Cigarra, entre elas Candomblé, em parceria com Roger Bastide, na edição de junho de 1949. A surpresa pelo encontro dessa matéria deve-se ao perfil da própria revista, uma revista de variedades, mais voltada para o público feminino, e a matéria de Pierre Verger e Roger Bastide escapa da superficialidade generalizante presente na maior parte dos assuntos tratados, embora muitos dos temas da revista fossem de forte apelo nacional e sobre cultura regional brasileira.

Provavelmente essa reportagem foi realizada somente por Bastide, pois Verger encontrava-se na África:

O CONTRAPONTO DE P IERRE V ERGER 77

[...] Durante a segunda estada de Bastide na Bahia, em 1949, Verger encontra-se na sua primeira grande viagem à África, após ter conhecido o território baiano. Bastide passa algumas impressões para Verger; porém, curiosamente, eles pouco conversam acerca da vivência baiana de Bastide”. (Lühning, 2002, p. 14)

E também, como cita Lühning, a casa mais freqüentada por eles era o Axé Apô Afonjá, de Mãe Senhora, onde participou pela primeira vez de cultos, tendo-a como mãe-de-santo. Somente a partir de 1951 eles começam a realizar juntos visitas a festas e cerimônias de candomblé. A saída de iaô descrita por Bastide na revista A Cigarra foi vista, como ele próprio diz no texto, na casa de Joãozinho da Goméia, e as fotos, mesmo com a indicação da não-presença de Verger, foram confirmadas por Sissi e constam no banco de imagens como sendo desse terreiro, mas em nenhum momento Joãozinho da Goméia aparece explicitado como um dos retratados.

Depois do primeiro encontro com Bastide no primeiro dia em São Paulo, uma amizade de amplas dimensões vai fazer com que mantenham um permanente contato através de cartas, visitas mútuas, visitas a candomblés, e acentua Verger:

Foi Roger Bastide quem revelou a África no Brasil, ou mais exatamente, a influência da África na Região Nordeste deste país [...]. Aconselhou-me vivamente a ir à Bahia, região sobre a qual o livro Jubiabá, de Jorge Amado, havia-me dado uma primeira idéia. Bastide havia ido a essa região e escrevera uma excelente obra intitulada “Imagens do ‘Nordeste místico em preto e branco’”, que iria me servir de guia na região. Ele me confiou um certo número de cartas de apresentação para os seus amigos da Bahia [...]. Isso se passou em 1946. Tive o privilégio, 12 anos mais tarde, de lhe mostrar, em contrapartida, a influência do Brasil no Daomé e na Nigéria. (Lühning, 2002, p. 39)

Realizam então, juntos, uma longa viagem à África em 1958. Da trajetória de três meses, desde a chegada de Bastide e seu encontro com Verger em Porto Novo no Benin (de 13 de julho a 22 de setembro), que imediatamente o levou para ver uma festividade, ao último dia, realizaram uma série de reportagens para O Cruzeiro, mas não foram publicadas. Para Verger, as viagens de Bastide para a África participando de colóquios e congressos fizeram que ele somente encontrasse com muitos africanistas e poucos africanos. Diz Bastide:

78 I MAGENS DO SAGRADO

Quem viveu no Brasil não consegue esquecer o país. Procura-o em toda parte. Não posso passar diante da Torre Eiffel sem ver se desenhar no céu a imagem de Santos Dumont, nem diante do Bœuf sur le Toit sem escutar ressoarem os sambas brasileiros. Foi essa vontade de rever o Brasil que me levou, nestas férias, a ir ter com meu amigo Pierre Verger entre os “brasileiros” de Uidá, em Porto Novo, e de Lagos, que ele conhece bem. E o Brasil — esse Brasil importado para a terra africana pelos descendentes dos antigos escravos que voltaram para lá com sua religião, a língua e os costumes do Brasil — mais uma vez realizou meus desejos: no próprio dia em que desembarquei do avião, sem ter tido tempo de desfazer as malas, de me instalar, Verger me arrastou a Uidá para assistir a uma “Burrinha deliciosamente brasileira”. (Lühning, 2002, p. 77)

Assim, Verger começou a mostrar o Brasil na África para Bastide. Fluxo e refluxo de uma amizade consolidada na paixão abnegada de entender o trânsito da cultura afro-brasileira no Atlântico. Foram oito trabalhos juntos, nos quais Verger não apenas fazia o papel de “fotógrafo itinerante voltado para a etnografia”, como ele se autodenomina, mas eram uma dupla de produção intelectual em campo, e Verger, como Lühning acentua em muitas passagens, mesmo fornecendo suas notas de campo, preferia assinar as imagens, e seis delas são encaminhadas para a redação da revista O Cruzeiro, infelizmente não publicadas, mas resgatadas por Angela Lühning3. São as seguintes reportagens encaminhadas e não publicadas:

– “Aidjan, São Paulo da África Ocidental francesa”;

– “Fretown, os créoles parecem sair de uma gravura da época da rainha Vitória”;

– “A ‘Burrinha’ de Uidá”;

– “O mistério dos bronzes de Ifé e do Benin”;

– “A festa de Oxum, deusa do amor e da água doce”;

– “O ritual de iniciação das filhas de Xangô na África e no Brasil”

3 Angela Lühning (org.), “Verger/Bastide — Dimensões de uma amizade” Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Também estão presentes na íntegra e com as respectivas imagens, como todos os outros textos citados, os seguintes trabalhos da dupla Bastide-Verger: “Contribuição ao estudo da adivinhação em Salvador”, “Pesca na Bahia (Xaréu)”, “Procissões e carnaval no Brasil”, e outros.

O CONTRAPONTO DE P IERRE V ERGER 79

Ainda são resgatados textos mais profundos — também produzidos na viagem — do que os textos preparados para a revista O Cruzeiro: “Uma festa dos inhames novos em Pobé”, “Ogum Igbo-Igbo” e “Contribuição ao estudo sociológico dos mercados nagôs do Baixo Daomé”.

Mesmo não estando juntos na visita ao terreiro de Joãozinho da Goméia, a publicação do texto de Bastide com as fotografias de Verger em A Cigarra anunciava um campo profícuo de trabalho conjunto. A revista A Cigarra mostrava um Brasil diferenciado nos seus aspectos regionais. Entre as reportagens destaca-se “Um rio imita o inferno”, sobre o rio Parnaíba, com fotos de José Medeiros e texto de José Leal. São 19 fotografias publicadas, dando-se uma preferência explícita à visualidade por intermédio da diagramação. Ainda nessa edição uma reportagem sobre um culto religioso em Recife demonstra o interesse de Pierre Verger por essas manifestações culturais no Brasil. “Adoradores de astros da várzea do Recife” mostra o culto a um homem chamado Bento Milagroso, ou Bento do Beberibe. Uma das fotos indica uma ovelha designada para o sacrifício, não mostrado nas fotografias de Verger. Nessas duas reportagens, em uma mesma edição da revista, a opção pela imagem acentua-se quando são usadas quatro imagens em uma mesma página, cada uma ocupando um quarto do espaço, com uma pequena legenda centralizada. Outras reportagens seguem essa linha: “O roteiro do agreste”, publicada na edição de abril de 1949, com texto de José Conde e fotos de José Medeiros, e nesse mesmo número a matéria “Rodas de samba”, que dá grande destaque para as fotos de Pierre Verger com texto de Cláudio Tuiuti Tavares. Na chamada da primeira página, seis retratos de sambistas abrem uma visualidade muito característica de Verger, os retratos anônimos da Bahia. São 12 fotografias publicadas no total e duas ocupam página inteira. Com os mesmos fotógrafos e jornalistas da revista O Cruzeiro, a revista A Cigarra era de menor formato, mensal e utilizava o mesmo padrão imagético cristalizado por Jean Mazon.

A amizade entre Verger e Medeiros vem dessa época e Verger, durante sua viagem à África entre 1948 e 1949, envia uma carta carinhosa para Medeiros com os seguintes dizeres4:

4 Memorial José Medeiros na Casa de Cultura de Teresina, Piauí.

80 I MAGENS DO SAGRADO

20 dec 48

Meu caro José Medeiros Cheguei por fim no Dahomey adonde vou ficar um ano. Encontrei aqui coisas super-interessantes. Tanto Brasileiras com os “descendentes” dos que voltaram aqui no último siglo com todas as tradições brasileiras — Já vi “Bumba meu boi”, “Sambas” estilo de Bahia —, vou fazer a festa do Bonfim em Janeiro com segunda-feira gorda como na “boa terra”. Do lado Africano é estupendo — vi cerimônias incríveis. Espero colher bom material e mostrar-lhe algum dia. Resta-me saber si “o cruzeiro” publicou algumas fotos minhas e se “O diário da Noite” publicou a coisa das “Bush Negras” de gueyara. Amizades a família — e aos amigos do cruzeiro e do teatro de ensaio. Axé logo e escreva.

A Cigarra teve uma história editorial anterior à revista O Cruzeiro. Foi criada em 1914 e existiu até 1956 (adquirida por Assis Chateaubriand em 1933); tornou-se uma irmã menor da revista O Cruzeiro, iniciada em 1928. Dirigida pelo seu sobrinho Frederico, filho do irmão mais velho de Chatô, A Cigarra foi por algum tempo mais importante do que O Cruzeiro, na década de 30, e muitos autores e fotógrafos que se tornaram famosos trabalhando em O Cruzeiro começaram em A Cigarra, como Millôr Fernandes e Ary Vasconcelos. Com o passar do tempo e a transformação implementada por Jean Mazon, O Cruzeiro tornou-se o principal órgão dos Diários Associados.

Freddy diz que A Cigarra começou a deslanchar, enquanto na sala em frente, O Cruzeiro marcava passo. Cheio de gás, com a força do tio em ótimo faro para talentos, começou a dar palpites. Aos poucos foi transferindo sua turminha para a revista de Accioly. Nem tinha nome no expediente, mas começou a ocupar espaço. (Carvalho, 2001, p. 57)

A dupla francesa Verger-Bastide vai mostrar pela primeira vez ao grande público brasileiro aspectos detalhados da religião afro-brasileira do candomblé na reportagem publicada em junho de 1949. A profundidade relativa do texto de Bastide, no contexto e no perfil da revista, e a força das imagens de Verger tornam essa matéria uma primeira visualidade positiva da religião nos meios de comunicação de massa no Brasil. Nesse mesmo número de A Cigarra (junho de 1949), outra reportagem, “Caroá”,

O CONTRAPONTO DE P IERRE V ERGER 81
 

enfatiza as imagens de Verger e sua figura despojada, com texto de José Leal. Assim começa o texto da matéria:

Pierre Verger é um espírito irrequieto, um homem apaixonado pelas aventuras arriscadas, um fotógrafo internacionalmente conhecido. Sei que ele é francês mas nunca perguntei-lhe em que parte da França nasceu. Está entre os quarenta e cinco anos de idade, já percorreu a maior parte do mundo, e sua bagagem consta apenas de três blusões, três calças, um par de sapatos, roupa interna, sua máquina fotográfica e um arquivo de negativos que constitui um documentário riquíssimo. Alto, apressado, afável, bom companheiro, ele pensa unicamente em viajar. Esteve no Brasil por mais de dois anos, morou na Bahia e fez centenas de reportagens e agora está na África de onde escreveu longa carta para José Medeiros. Certa vez encontrei com ele no interior do Maranhão. “Oh, sua chegada foi muito oportuna. Eu estou querendo fazer um passeio a Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Quer ir comigo para fazer os textos das reportagens que pretendo fazer?” — Naquele mesmo dia embarcamos num caminhão de carga, vencendo estradas perigosas, até chegar em Campina Grande, na Paraíba. Nessa cidade tomamos um avião que nos deixou no Recife. Mais tarde, Verger conseguiu o avião particular de um amigo para sobrevoar o estado do Pernambuco. O mau tempo entretanto impediu nossa viagem de observação. Os planos dele foram abaixo, e na mesma semana Verger decidiu fazer uma reportagem sobre o caroá, planta nativa cuja fibra resulta em cordas e tecidos, que enriqueceu um grande número de nordestinos.

O texto de Leal coloca Verger no campo das decisões de sua própria pauta, assim como acontecia com os fotógrafos em O Cruzeiro e A Cigarra. Mas Verger, por estar deslocado do centro das decisões das revistas no Rio de Janeiro, tinha plena autonomia para circular fotografando acompanhado por um jornalista de texto, principalmente Odorico Tavares. Nesse mesmo ano fez com Leal uma reportagem para O Cruzeiro: “Baianas das saias rodadas”, publicada no dia 5 de fevereiro. A decisão sobre Verger publicar em A Cigarra ou em O Cruzeiro ocorria no Rio de Janeiro pela direção das revistas. “Caroá” tem um texto que apresenta o fotógrafo, descreve superficialmente o contexto da produção do caroá, fazendo com que a matéria se torne basicamente visual, com 11 fotografias publicadas ocupando grandes espaços na diagramação.

Candomblé tem 11 imagens de Verger publicadas. As imagens mostram cenas de uma cerimônia pública e Verger mantém-se a certa distância

82 I MAGENS DO SAGRADO

respeitosa. A primeira imagem ocupa quase toda a página dupla, restando uma pequena coluna para a introdução do texto de Bastide. Anuncia-se, portanto, o candomblé por intermédio da imagem de uma divindade sendo reverenciada; dessa forma, a abertura imagética da reportagem acentua os procedimentos ritualísticos. As imagens, quase todas de corpo inteiro, sem uso de uma grande angular, acentuam o contexto. Não vemos uma fotografia que poderia destacar-se das outras no sentido de identificar o pai-de-santo ou a mãe-de-santo. Ao não personalizar as imagens com referências ao nome e ao cargo, a edição reflete o próprio texto de Bastide, que somente situa o terreiro de Joãozinho da Goméia, com poucas falas sobre o principal mestre da casa, e apresenta o candomblé através de uma visão mais genérica. As legendas também não nomeiam as pessoas, sendo exaltações à origem africana, ao roteiro penoso dos navios negreiros, dos quais se ouve o “rumor”, à dança do “Ballet Negro”, à confraternização do “abraço litúrgico”.

O texto de Bastide alude, no início, à sua viagem no caminho do terreiro de Joãozinho da Goméia, pelas estradas da Bahia, com “um grupo de amigos”, para ver no espaço cerimonial a Festa do Nome: “A noite caía sobre a estrada litorânea onde se defrontavam e se confundiam os perfumes das árvores tropicais das florestas selvagens da terra e o odor persistente de iodo e de maresia, vindo do mar próximo”. Mesmo citando Arthur Ramos e Nina Rodrigues no parágrafo anterior, demonstrando seu conhecimento da bibliografia, Bastide sabia que estava escrevendo para os leitores da revista A Cigarra, envolvendo-os com o mistério e o exótico. E o faz de forma poética, em doses equilibradas, entre o onírico e o etnográfico. Antes de entrar nos aspectos mais descritivos da cerimônia, Bastide diz que em ocasião próxima tinha visto iaôs em camarinhas com “os rostos afogados na brancura da fazenda [...] semelhavam a humildes crisálidas [...]” que aos banhos de ervas preparados pelo babalorixá abririam suas cabeças e seus corpos para entrada do divino e assim “[...] desvencilharia as asas das dançarinas dos deuses” (Bastide, 2001, p. 328).

Assim, Bastide cria com sutilezas que lhe são próprias a temporalidade e a anterioridade da Festa do Nome, colocando para um leitor atento que havia um percurso ritual para chegar ao nome religioso das jovens iniciantes dali para frente. Depois dessa introdução, Bastide mergulha na sua veia antropológica e o texto flui para as descrições da cerimônia, para a análise do sincretismo e para particularidades do terreiro:

O CONTRAPONTO DE P IERRE V ERGER 83

Em nenhuma parte eu havia visto cerimônias iguais, em que os iaôs entrassem enfileirados com as vestimentas dos orixás. Joãozinho, que é um admirável maître de ballet, aqui, abandonou-se, certamente, à sua fantasia de criador estético. A cena é grandiosa e os corpos negros pintalgados de branco são como noites estreladas da África.

As imagens finais saltam aos nossos olhos pelos detalhes, uma foto próxima de uma mão tocando um instrumento anuncia em tom dramático “o agogô se agita e o ritmo se torna mais feroz”, antecipando uma imagem que retrata partes de um boi em um altar, principalmente a cabeça e as patas em posição sagrada, e os dizeres: “Enfim — a imolação”. A imagem mostra as partes de um animal sacrificado para um orixá ofertado em seu altar próprio, mas o sacrifício não é mostrado e sabemos que aconteceu em cerimônia anterior à saída das iaôs. A imagem final, a única na exterioridade do terreiro, realizada à luz do dia, anuncia o fim da cerimônia: “ e quando desponta a madrugada os atabaques emudecem”. O texto de Bastide não conduz a uma narrativa forte na qual o sacrifício aparece com tom dramático, mas o final é uma interação entre texto e imagem, quando Bastide diz que vai descer rumo à cidade adormecida, no último bonde, a imagem final do altar nas cercanias do terreiro marca a territorialidade sagrada de uma divindade que ficou emanada da energia ritualística.

Diz Bastide no final do texto:

A festa está terminando. Segundo o costume, vou comer o resto do alimento dos deuses. E depois, partirei só. Quero descer, rumo à cidade adormecida, levando a cadência da música, que continua em minha memória. Tomarei o último bonde que geme nos trilhos. Perto de mim, entre os passageiros, alguma filha-de-santo, de novo em roupa triste de trabalho, ainda trará nos olhos o brilho do amplexo dos deuses. (Bastide, 2001, p. 330)

84 I MAGENS DO SAGRADO

CLOUZOT NO BRASIL, O CASO PARIS MATCH

Henri-Georges Clouzot, cineasta francês de grande importância na cinematografia francesa e internacional, diretor de clássicos como Le corbeau e Manon, chegou ao Brasil no começo de maio de 1950, acompanhado por sua mulher brasileira, Vera Amado, filha do escritor Gilberto Amado. A intenção de Clouzot era fazer um filme intitulado a princípio de Le Brésil, com roteiro incerto, mais voltado para um diário de viagem, segundo suas próprias palavras:

Não preparei nada. Será uma coisa impressionista, o enredo formado pelos fatos à medida que se processarem. Só quero filmar o que sentir e não o que me disserem, mas para sentir preciso ter conhecimento das coisas, estudálas. Antes de vir para cá não quis ler nada sobre o Brasil, a fim de não ter opiniões já feitas e preservar a primeira impressão. Agora estou lendo muito, já comecei Os sertões1 .

Clouzot foi recebido com muita deferência, por onde passava a burguesia nacional realizava reuniões com a intelectualidade local, assim foi no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Bahia, encontros nos quais todos queriam fornecer informações pontuais importantes para suas pretensões, e, dessa forma, foi coletando informações e histórias sobre o Brasil. Com seu jeito franzino, agitado e querendo mais informações, foi colecionando uma série de “primeiras impressões”, que já lhe permitia dizer: “Uma coisa que muito me impressiona, aqui no Rio de Janeiro, é a ignorância dos cariocas relativamente ao interior do Brasil. Acho que sei mais do que muita gente carioca. Conto coisas que sei serem verdadeiras e as pessoas

1 “Clouzot quer mostrar o Brasil aos brasileiros”, entrevista ao Folha da Manhã, 11 jun., 1950.

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 87

me olham desconfiadas”2. Sua formação de iniciante brazianist já lhe permitia traçar suas primeiras observações sociológicas:

Seu país é um país heróico, isto é, até certo ponto ainda se encontra numa idade heróica. Os sertanejos vivem numa luta constante contra inúmeras dificuldades, especialmente a falta de comunicações. Ao lado de casos de esforços sobre-humanos, encontra-se também muita indolência e um estranho desinteresse. Creio que, como resultado da herança indígena, ainda falta o instinto de fixação: continuam nômades, plantam um pedaço de terra e feita a colheita, mudam-se para outro lugar [...]3

Sua entrevista para o jornal Folha da Manhã foi realizada em uma reunião social no Rio de Janeiro, e ele afirma ainda que queria mais do que mostrar a unidade do país, queria “prová-la”. Esse encontro deu-se depois de sua primeira viagem ao interior do país rumo a Goiás. Queria ele refazer o percurso dos bandeirantes, “do pior para o melhor”, partindo de Goiás, até o rio da Prata, Minas Gerais e São Paulo. No Rio, já tinha filmado os contrastes arquitetônicos entre as grandes obras e as favelas e, dizendo que ficou impressionado com a rapidez da construção do Estádio Municipal (que também filmou), continuou sua impressão sociológica sobre o trabalhador brasileiro: “No entanto, os operários pareciam inativos, e tive de pedir-lhes que fingissem trabalhar para a filmagem!”4. Clouzot era muito ambicioso e generalizante com sua perspectiva de filmar o Brasil, afirmando: “Pode ser que eu falhe, mas, se não falhar, terei obtido uma coisa única na história do cinema. Um documentário que não é um documentário. Algo que reúne o interesse humano, político, geográfico e social. Conforme já disse, procurarei unificar na tela os aspectos heterogêneos e a diversidade do Brasil”5.

Considerava o sujeito “Brasil” como uma entidade que pudesse ser condensada em uma película, um olhar de estrangeiro voltado para o exterior.

Parece que a passagem de Clouzot foi incentivada pela convivência com sua linda mulher. Já em outra ocasião fala da relação fulminante com 2 Ibidem. 3 Ibidem. 4 Ibidem. 5 Ibidem.

88 I MAGENS DO SAGRADO

Vera, quando da primeira vez que a viu e deixou sua mulher, Susi Delair, e convidou-a a dançar uma música brasileira que tocava naquele momento. A decisão pelo divórcio veio em questão de dias, segundo ele. Vera seria o personagem principal de seu filme, que teria também o nome Brasil — O diário de uma viagem: “[...] agora, felizmente casado com Vera, nada melhor para provar o meu afeto por ela que prestar uma homenagem merecida e sincera aos meus patrícios, fazendo um filme para o mundo, a fim de levar ao estrangeiro a beleza desse país que também é o meu de coração”6. Clouzot trouxe consigo 3 mil e 500 quilos de equipamento, e os gastos seriam por sua conta no valor de mais de 70 milhões de francos; as filmagens durariam um ano. Com ele veio uma equipe técnica, entre eles o conhecido fotógrafo de cinema Armand irard. Paulo Duarte escreveu um artigo na sua revista Anhembi7 sobre a passagem de Clouzot pelo Brasil. No artigo publicado quase um ano depois da passagem do cineasta francês, relata o malogro das filmagens. Ressalta a excelência da equipe técnica nomeando-os8 e dizendo que tinha apoio de “inteligentes capitalistas”, e o próprio capital de Clouzot de Cr$ 5.000,00.

O artigo relata as dificuldades enfrentadas pela equipe para liberar seus equipamentos, ficando dois meses sem filmar, envolvidos com a liberação do material e as dificuldades de importar película virgem, solicitada “três dias após o meu desembarque [...]. Exaltado como uma personalidade [...] gente como Clouzot deveria ser recebida com todas as facilidades”, ainda teve de contar com “advertências veladas da censura”, preocupada com a temática e a opção naquele momento já explicitada por Clouzot de filmar os usos e costumes religiosos da Bahia, “entre os quais cenas de macumba e de magia primitiva, tão comum entre populações de origem africana”, dizia o artigo.

O mesmo navio que trouxera a equipe técnica e o pesado equipamento profissional retornou para a França levando-os depois da malograda

6

“Vencido pelo amor a uma carioca sob o som duma música brasileira”, entrevista ao Diário de Notícias, 7 maio, 1950.

7 “Henri-Georges Clouzot e o Brasil”, Anhembi , n o 5, vol. II. São Paulo, abr., 1951, pp. 396-8.

8 “[...] operadores irard, Pecqueux e Ducop, responsáveis pela fotografia das melhores películas francesas atuais, algumas delas premiadas em vários festivais europeus; dois engenheiros de som, Sivel e Bocher [...]”.

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 89

tentativa de filme sem roteiro e produção, somente uma idéia aventurosa. Clouzot e sua mulher Vera ficaram no Brasil interessados cada vez mais pela Bahia e seus mistérios, aludindo a um outro projeto que causou manifestações sobre a “desmoralização” do país depois de uma nota na revista Paris Match na qual Clouzot indicava que queria fazer agora um novo filme somente interpretado por atores negros. O artigo defende o cineasta, apontando que os problemas brasileiros em relação ao aspecto moral são de outra ordem, e indica a imprensa sensacionalista, os políticos e os governantes como o fator desmoralizante:

Há em nossas incribilíssimas câmaras federais, estaduais e municipais, as quais, para os seus deputados e vereadores, não passam de um escritório de negócios, escusos na maioria das vezes... Há outras coisas muitíssimo mais desmoralizantes por aí a passar em branca nuvem e que por vezes tornam o Brasil motivo de pilhéria humilhante e ninguém se lembra de apelar para a ação de “nossas autoridades”. Bastou, porém, que um cineasta do porte de Clouzot escolhesse o Brasil para campo de uma experiência que só poderia lisonjear o país, para que a patriotada e os catões de esquina surgissem em defesa dos brios nacionais, profundamente lesados pela leviandade de um artista francês, a tirar da Bahia motivos para realizar uma película inteiramente interpretada por negros e inteiramente vivida no ambiente característico desses negros.

Tal película, seu roteiro e seu argumento nunca vieram à tona; qual era o filme que Clouzot queria fazer no Brasil, não sabemos até hoje. Paulo Duarte exalta ainda mais as pretensões de Clouzot na Bahia, ao dizer que o Brasil e a França teriam a lucrar com tal empreitada e de uma forma colonizada termina: “O Brasil, porque verá inscrito, numa película assinada por um grande artista, um pouco do folclore, dos costumes de uma de suas regiões mais pitorescas e mais ricas em motivos cinematográficos. E a França, porque terá registrado em seu cinema uma curiosa experiência impressionista, realizada por um de seus mais ilustres [...]. Mas, chegaremos a ver tudo isso? ”, termina o artigo.

90 I MAGENS DO SAGRADO

Reportagem “As possuídas da Bahia”, Paris Match, 12 de maio de 1951

Henri-Georges Clouzot traz do Brasil um extraordinário documento etnográfico:

AS POSSUÍDAS DA BAHIA

Pela primeira vez um branco pode penetrar no santuário dos deuses negros onde se praticam os ritos sangrentos de iniciação. É a primeira reportagem fotográfica do grande diretor Clouzot e Paris-Match a publica com prioridade mundial.

No meio do século XX, em 1950, um quarto dos 400 mil habitantes de uma cidade moderna continua a celebrar Shango, o deus do trovão e dos raios. Em Salvador, capital do estado brasileiro da Bahia, para 96 igrejas há 453 templos fetichistas declarados à polícia, sem contar os clandestinos.

Tendo partido para o Brasil em 1950 para rodar um filme, o grande diretor francês Henri-Georges Clouzot — autor do Corbeau (Corvo), de Manon, de Miquette et sa Mère (Miquette e sua Mãe) — renunciou ao seu projeto para mergulhar com Vera, sua mulher, no estudo dos ritos fantásticos que assombram as noites da maior cidade negra da América do Sul.

A alucinante reportagem que ele traz de lá vai aparecer nas livrarias sob o título O Cavalo dos Deuses. “Paris-Match” assegurou-se da exclusividade dos documentos fotográficos que Clouzot realizou no curso das cerimônias secretas onde ele foi excepcionalmente admitido após três meses de pesquisas e procedimentos. O cineasta nunca tinha usado uma câmera fotográfica. Seu sucesso surpreendeu a ele próprio.

O Brasil é uma terra de contrastes espantosos. Em São Paulo termina-se um arranha-céu a cada quarto de hora, mas o policial negro da Bahia vai à noite fardado às cerimônias fetichistas. A “Panair do Brasil” colocará em serviço, no próximo ano sobre o Atlântico, aviões à jato, mas em Salvador, a cada ano, uma procissão vai afogar um garanhão negro para que “Yemanja”, deusa do oceano, possa cavalgar agradavelmente seu reino submarino.

“A canção que o barman assobia”, escreve Clouzot, “é um cântico africano em homenagem a Oshun, que habita as águas doces, e o ascensorista do Palace usa sob sua camisa o colar de Ogoun, que preside a guerra. No escritório do hotel você pode ligar para Paris ou New York, só que a telefonista que fará a comunicação é

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 91

uma iniciada. Ontem à noite, na festa secreta, Omolu, o deus da peste, baixou em sua cabeça, ou talvez fosse Santa Bárbara ou Nossa Senhora do Rosário.”

Uma noite, Clouzot, após mil procedimentos, foi conduzido a uma cerimônia fetichista nos subúrbios da Bahia. Assim que se aproximou, sob a tempestade, do “lugar santo”, ele percebeu pela primeira vez a cadência misteriosa dos tambores sagrados.

“Eu parei, levantei a cabeça. Vera também ouviu os tambores. As vibrações tocam em nós qualquer coisa de mais profundo do que o que se pode exprimir. Ainda mais implacável ou angustiante...”

Na sala semi-iluminada onde ocorre a cerimônia, jovens negras dançam. Seus rostos estão tensos, seus olhos fechados, seus lábios tão apertados que estão arroxeados. De vez em quando elas soltam grunhidos de animais. Elas estão possuídas. Um “deus” que lhes entrou na cabeça dita seus gestos, suas palavras, seus passos. Todo um povo de negros as segue com olhos fascinados. Às vezes, na multidão, uma mulher levanta, perde o equilíbrio e, como que embriagada, se deixa ir de um lado para outro da pista.

“A jovem, conta Clouzot, tampa os ouvidos, aperta os punhos e o maxilar. Ela se debate com todas as suas forças contra um fantasma. Mas o maestro que tem o maior dos tambores sagrados viu a cena: ele precipita o ritmo dos tambores. Dessa vez a infeliz não escapará. Ela o sabe e se abandona ao tremor terrível que a agita dos pés à cabeça. Seus pés não se movem no solo, mas a cabeça balança a toda velocidade, da frente para trás e de trás para frente, sobre um pescoço completamente desarticulado. Ela vai e vem sob uma chuva de golpes invisíveis, como um punching-ball. Depois a dançarina se imobiliza e toma a pose ritual, com suas duas mãos atrás das costas. A jovem possuída pelo demônio começa a dançar. Certas “possuídas” dançam assim durante quarenta e oito horas ininterruptas. Os negros as chamam de “filhas-de-santo”.

Toda a noite, a festa (o “Candomblé” no dialeto local) continua, com períodos de paroxismo espantoso.

No Brasil, os raros intelectuais que se interessam por essas estranhas manifestações foram incapazes de fornecer a Clouzot a explicação dessas possessões em cadeia, desses fenômenos de histeria fantástica.

O cineasta e sua jovem mulher resolveram penetrar mais fundo no mistério. O relato de suas desventuras iluminam com algo de pitoresco sua “reportagem” de pesadelo.

Desde a primeira noite, eles foram “carregados” (como o próprio Clouzot confessa) por uma rabatteuse (pessoa que angaria clientes) que os conduziu por

92 I MAGENS DO SAGRADO

mil atalhos ao casebre de um “feiticeiro” de grande reputação local. Este lhes extorquiu inicialmente 2.000 francos e propôs a Vera de lhe “ler a sorte”.

“Nunca houve necessidade”, nota Clouzot maliciosamente, “de insistir muito junto a uma mulher para que ela tenha seu futuro adivinhado, sobretudo por um feiticeiro negro.”

O adivinho, após intermináveis caretas, pronunciou o seu oráculo:

— Você tem um mau olhado contra você — disse para Vera.

Eu olhava Vera, ela estava consternada. Uma brasileira pode ter sido educada no colégio de freiras, falar cinco idiomas correntemente, ter percorrido a Europa e as duas Américas, conhecer a gíria de SaintDenis e ao mesmo tempo poder recitar vinte páginas de Claudel — ela não deixará de ser a criança supersticiosa que foi.

Quantas vezes eu vi Vera pular da cama precipitadamente para desvirar uma pantufa caída de cabeça para baixo! Ainda me lembro do dia em que ela me alertou pela primeira vez contra as forças ocultas.

“— Você não acredita? Você não acredita nas forças ocultas? Puxa! Mas é loucura! E você fala isso em alto e bom som! Você não se dá conta de que está provocando? Mon Dieu de la France (meu Deus), proteja-o! Bata na madeira, rápido, não, assim não, por baixo.”

Clouzot teve de romper relações com o feiticeiro quando este pediu, para iniciá-lo em outros mistérios, 3 galinhas — uma branca, uma preta e uma mestiça — um litro de óleo, 5 metros de diferentes tecidos, 6 velas e 260 “cruzeiros”.

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 93

A EMPREGADA DE CLOUZOT ERA UMA FEITICEIRA

Para ter todo o dia sob as mãos um objeto de estudo, Clouzot decidiu contratar como empregada uma “filha-de-santo”. Sua primeira empregada que possuía esta mística qualidade chamava-se Petronília. Ela tinha dois filhos e tomava três banhos por dia. Ela também roubava comida. Petronília passava por longos estados de embrutecimento total, durante os quais não se podia tirar nada dela. Interrogada sobre suas possessões noturnas, ela declarou somente:

— Quando me dá isso, num sei que qui mi acontece. Eu sinto tudo zanzando e dá dor de cabeça. E quando eu acordo, num lembro mais di nada.

“Petronília foi substituída”, conta Clouzot, “por uma espécie de monstro pré-histórico que se chamava Anita.” Este diplodocus (gigantesco réptil dinossauro fossilizado) que tinha dois ventres, um pela frente e outro por trás, se acocorava em um canto da cozinha na hora do almoço para devorar bolotas de farinha amassadas longamente entre seus dedos cheios de gordura. Anita não falava. Ela se exprimia por grunhidos, por gestos, por onomatopéias. Ela chegava raramente a pronunciar três palavras em seqüência. E elas ainda não faziam o menor sentido.

— Anita — perguntava Vera — o que é que nós temos para almoçar hoje?

— Ahn... uhn...

— Para o almoço? Anita?

— Ahn... coisas.

— Tá... mas que coisas?

— eh... de comer.

— Claro... mas o que de comer?

— Ummmm... do bom...

Não se pode nunca tirar nada mais.

O diretor do hospício local não foi nem um pouco sutil.

— O “candomblé”? Não conheço.

Fui uma vez. Repugnante... Se fosse o delegado de polícia, fecharia tudo.

Os médicos não eram mais explícitos.

— 30% de simulação e de resto um pouco de tudo. Muita histeria, alguns casos de esquizofrenia e excepcionalmente alguma coisa que não se reduz a nada de patológico: nem neurose, nem psicose.

— O que, então?

Mas Clouzot não recebia em resposta senão gestos de ignorância. Ele descobriu pouco a pouco que os verdadeiros iniciados nos segredos do candomblé eram muito pouco numerosos.

94 I MAGENS DO SAGRADO

Vera propôs então heroicamente de se fazer “filha-de-santo”. O que a dissuadiu foi a idéia de que ela teria de deixar raspar sua cabeça.

SACERDOTE NESTOR ABRE AS PORTAS DO MISTÉRIO

Clouzot marcou passo por longas semanas (“todas as noites ficava à espreita do som dos tambores”, disse ele) antes de entrar em contato com um verdadeiro “pai-de-santo”, o feiticeiro fetichista Nestor. A expressão “pai-de-santo” designa o “pai” que inicia as jovens nos mistérios do rito e leva-as ao estado de possessão por “um deus”. Elas tornam-se então “filhas de santo” e participam dos “candomblés” organizados a cada noite nos lugares santos. “Fazer seu santo” é sofrer sua primeira possessão.

Com Nestor, Clouzot entra enfim em pé de igualdade no mundo secreto dos negros fetichistas.

Nestor consente em iniciar algumas jovens negras em presença de Clouzot, que deve pagar o preço dessas cerimônias. Nestor pede 70 mil francos e um lampião com bomba. Durante duas semanas as duas jovens ficam seqüestradas em um cômodo nu, quase sem comida, mas empanturradas de infusões misteriosas. De vez em quando, Nestor entra no cubículo onde as infelizes criaturas estão deitadas de bruços. Ele as ofende e humilha. As negras beijam suas mãos tremendo. Elas estão reduzidas a um incrível grau de submissão.

— Vocês são animais, vocês não existem? — fala pausadamente o feiticeiro na semi-obscuridade fétida da cela.

As jovens recebem também banhos de ervas, de uma composição secreta, e devem submeter-se à inalação de substâncias entorpecentes. Elas caem logo em um estado próximo à infância, chupam incessantemente seu polegar e só se exprimem por onomatopéias como os bebês.

Clouzot e Vera foram obrigados a se submeter a curiosas cerimônias. Vera teve que dançar e cantar nas cerimônias. Clouzot teve que “dar de comer à sua cabeça”, quer dizer, colocar sobre seu crânio diversos alimentos.

O rito de iniciação das jovens toma pouco a pouco um aspecto horrível. Nestor faz entrar as duas postulantes e tira de um caixote dois pombos brancos.

“Nestor está de pé”, conta Clouzot, “o pombo se debate na sua mão esquerda. Com um golpe de polegar, ele faz saltar sua cabeça e antes que o sangue tenha tempo de jorrar, ele introduz o pescoço do pombo na boca da jovem que avança os lábios avidamente. E, eis que em um último espasmo, a vítima decapitada põe-se a bater as asas. Suas penas brancas batem nas bochechas negras. É como

96 I MAGENS DO SAGRADO

um mecanismo que se aciona: o gosto do sangue desencadeia o “deus” e o “deus” transmite seu delírio ao corpo da “possuída”, que se abandona aos seus impulsos furiosos. Os transportes são assustadores. Pela primeira vez, Vera empalidece sob seu bronzeado... As mulheres, iradas, balançam suas presas por todos os lados, em um turbilhão de penugem. Elas apertam tão forte os maxilares que Nestor precisará de muitos minutos para desapertar seus dentes e fazê-las soltar os restos dos pássaros.”

As jovens, que foram previamente raspadas e pintadas em todo o corpo, são então ungidas e molhadas com sangue de galinha.

RITOS SANGUINÁRIOS HERDADOS DA IDADE DA PEDRA

Nestor pratica sobre seus braços, seu peito e sua língua incisões com lâmina que as deixam praticamente insensíveis. Depois ele as inunda com sangue fresco de um bode, em meio a um tumulto de cânticos e de convulsões. “Nós ficamos abestalhados, mudos, paralisados. Era inútil recuar os limites da repugnância, encontrava-se sempre um detalhe nojento para ultrapassar ainda mais esses limites: as manchas vermelhas nas calças, a cabeça do bode que uma mulher levava pela orelha entre seus dentes, as máscaras e trejeitos faciais atrás dos quais não encontrávamos mais traços humanos, sob a crosta formada pelas penas e coágulos diluídos no suor.”

Mas o horror desse espetáculo desperta também ressonâncias distantes. Muito antes de Buda e Confúcio, o fetichismo reinou nas cavernas onde a humanidade da idade da pedra tomava consciência dos mistérios da morte e do além.

“Nós nos sentíamos em presença de alguma coisa tão antiga, tão fora das eras, que um estranho respeito nos fazia esquecer a nossa náusea.”

Clouzot também teve de beber, do pescoço recentemente cortado, o sangue quente de um pombo.

“Assim”, concluiu o cineasta, “terminou-se essa experiência apaixonada”. Alguns dias mais tarde ele reencontrava, longe dos deuses selvagens, a razoável Europa no clima pomposo do barco inglês que o levava de volta para a França.

As conclusões que ele tirou da sua incursão no mundo proibido dos últimos fetichistas não são menos extraordinárias que as aventuras que ele viveu.

Clouzot ficou surpreso com as semelhanças apresentadas pelo trabalho do “pai-de-santo” com o do psicanalista. Lá e cá, leva-se o doente (ou o futuro iniciado) a regressar até o estado infantil. É assim que as jovens negras, submetidas

98 I MAGENS DO SAGRADO

aos procedimentos de Nestor, falavam e agiam como bebês. Parece que as provas do feiticeiro constituem um tratamento de certas neuroses, que, eliminando as crises agudas, conservam essas neuroses e as fixam em certas formas regulares.

No curso das sessões de iniciação, os postulantes são autorizados a satisfazer seu complexo de agressividade: os ritos sangrentos cumpririam esse objetivo. Tratar-se-ia fundamentalmente de verdadeiras curas de “desrecalcamento”, de redução dos complexos.

“Tudo isso”, acrescenta prudentemente Clouzot, “é infinitamente mais complicado, mais incerto na realidade. Os fetichistas bahianos continuaram primitivos; raciocinar logicamente com eles ou a propósito deles deturparia tudo, pois isso seria introduzir um elemento estranho à sua consciência.”

De fato, nenhuma explicação científica ou filosófica pode conjurar o encantamento das divindades negras africanas. Clouzot reencontrou o céu razoável da Ile-de-France (região parisiense), mas confessa que, quando fecha os olhos, lhe parece ouvir, em alguma parte, muito longe, como um eco, a pulsação dos tambores gigantes, os gritos inumanos das “filhas-de-santo” que se debatem para matar seus demônios.

Não esperavam todos os seus anfitriões brasileiros que tal passagem conturbada de Clouzot pelo Brasil, não conseguindo fazer com que suas idéias de um filme genérico sobre o país se concretizassem, causasse ainda mais polêmica com essa reportagem e colocasse a todos que o receberam em estado de indignação e revolta. Clouzot escreveu e lançou um livro na França em 1951, Le cheval des dieux, e como uma espécie de marketing, também é publicada na ocasião a matéria na revista Paris Match com caráter sensacionalista que vai causar manifestações de intelectuais e artistas no Brasil, pela imprensa nacional.

Neste estudo um fato foi muito significativo. Quem fez a pesquisa nos jornais da Bahia foi meu assistente, Cláudio David da Cruz, e quando, ainda a distância, lhe solicitei que fizesse uma pesquisa sobre a revista O Cruzeiro, não tínhamos a informação sobre a reportagem da revista francesa, e as matérias nos jornais baianos sobre essa reportagem passaram despercebidas. Entretanto, como tínhamos Pierre Verger como um contracampo imagético e ético, confirmado pelos depoimentos e pela documentação, encontramos um farto material recolhido por ele e guar-

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 99

dado entre seus pertences na Fundação que leva seu nome. Portanto, Verger acompanhava os fatos e mantinha-se informado do que acontecia na mídia, mas manteve silêncio nos seus escritos e mesmo com as pessoas próximas. Assim, não foi preciso voltar aos jornais novamente e percorrer dia a dia as publicações para encontrar as possíveis manifestações sobre a revista francesa, felizmente Verger já o tinha feito, coletando as matérias dos jornais e guardando-as em seus arquivos pessoais.

A reportagem publicada no dia 12 de maio de 1951 pela revista francesa Paris Match, com o título: “As possuídas da Bahia — Henri-Georges Clouzot traz do Brasil um extraordinário documento etnográfico”, apresentava uma série de fotografias, inclusive imagens de iniciação. Tal reportagem foi reproduzida na íntegra pelo jornal A Tarde, de Salvador, em três dias seguidos, 10, 11 e 12 de julho de 1951, com a publicação de fotografias de Clouzot, repercutindo ainda mais a publicação francesa na capital da Bahia. Nessa altura da pesquisa, ficou clara a forma pela qual os baianos tiveram acesso à reportagem estrangeira e também como e quando quiseram discutir seu conteúdo, pois não tínhamos no início, conforme a introdução, como saber a penetração da Paris Match além do seleto grupo de intelectuais que tinham acesso às publicações estrangeiras. A publicação de toda a reportagem em jornal da capital, e ainda por três dias seguidos, tornou acessível a reportagem da revista francesa para o público baiano. Com o título de chamada “Um francês em visita aos candomblés”, ainda tinha dois subtítulos: “Pela primeira vez um branco pode penetrar no santuário dos deuses negros onde se praticam os ritos sangrentos da iniciação” e “Reportagem em Paris Match, do grande cineasta Georges Clouzot, que esteve na Bahia no ano passado”.

O mesmo jornal publica anteriormente no dia 7 de julho de 1951 uma reportagem na qual traz como título a opinião de um eminente pesquisador: “Roger Bastide protesta contra as reportagens de Clouzot”.

Em passagem por Salvador, “[...] em viagem mais de passeio do que de estudos”, o sociólogo francês acusa o cineasta de sensacionalismo que não exprime a realidade do culto afro-brasileiro na Bahia. Bastide se diz um admirador da “boa terra”, das tradições e dos costumes baianos e aproveitará a viagem para recolher material folclórico, histórico e artístico, e que, se houver festa em algum “terreiro”, irá assisti-la.

Indagado pela reportagem sobre a matéria de seu conterrâneo, Bastide afirma que “[...] observa nessa reportagem apenas um cunho sensacionalista, nela não se encontrando uma orientação científica”. Ainda questiona

100 I MAGENS DO SAGRADO

a fidelidade das imagens e das informações da reportagem retiradas da fala de pais-de-santo que facilitam acesso a estranhos aos segredos do candomblé, recebendo para isso remuneração, como o tal Nestor o fez com Clouzot. Bastide tinha consigo um exemplar da revista Paris Match e questiona a informação de Clouzot ter dito ser ele o primeiro branco a penetrar na camarinha. Mesmo sem citar, Bastide já havia mencionado que entrara na camarinha na reportagem publicada pela revista A Cigarra, e mais, diz:

Isso não é verdadeiro. Antes dele outros brancos já entraram em tais recintos. Basta dizer que nem todos os fetichistas são negros; há gente branca entre eles, inclusive uma filha de espanhóis. Agora, que tenha sido ele um dos primeiros a publicar fotografias de camarinhas e de algumas cenas mais íntimas dos candomblés, não tenho dúvida e devo acrescentar que houve aí espírito sensacionalista, dando-se à publicidade de segredos da religião afro-brasileira.

Bastide ainda questiona a visão colonialista de Clouzot de não enxergar o caráter moderno de Salvador, criando uma imagem de “primitivismo”, que estaria impressa em toda a cidade pela sua fala afirmativa de que um terço da população era de “fetichistas”: “Acho que a civilização africana está bem desenvolvida, mas como a Bahia, pela sua expressiva maioria, professa outros costumes, está na civilização que adotamos na Europa, escrevi artigos que serão publicados em São Paulo e em Paris, protestando contra essas afirmações do meu patrício”.

O teor dessa reportagem foi noticiado também pelo jornal O Globo de 18 de julho de 1950, com o título: “Caluniada em Paris a cidade de Salvador. — A reportagem de Clouzot agita a sociedade baiana — O sociólogo Roger Bastide contradiz seu patrício”. A reportagem reproduz uma das imagens fortes de Clouzot (o sacrifício de uma pomba na cabeça de uma iaô) e acrescenta: “Deixamos de reproduzir outras, a fim de não ferirmos a sensibilidade dos nossos leitores”. Por meio de um telegrama vindo da Bahia: “Por menos jornalístico que possa parecer, podemos iniciar este telegrama com a famosa advertência de Apeles, avisando que o sapateiro não deve passar dos sapatos [...]”, e segue reafirmando as posições expressadas por Roger Bastide para o jornal A Tarde.

O jornal baiano Diário de Notícias, do dia 11 de julho de 1951, publica um longo artigo assinado por José Valladares com o título: “Monsieur

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 101

Clouzot — cineasta ou etnologista?”. No artigo, Valladares exalta a erudição e o conhecimento de Clouzot, e sua aventura cinematográfica na qual queria o comprometimento e o apoio oficial em larga escala, e questiona as relações deste com Hitler e Mussolini, pois Clouzot teria dito a um baiano que nem esses ditadores o teriam feito esperar como as autoridades brasileiras. Depois de suas tentativas frustradas de filmar, teria vindo à Bahia “a conselho de amigos [...] onde se acreditava que a cor local, os costumes regionais e a vida pacata da província podiam favorecer seu trabalho”. Clouzot era uma figura inquieta e não respeitava os processos de inserção e legitimidade das informações, “Queria saber de tudo, inclusive daquilo que ninguém sabe”, e a culpa acaba no pai-de-santo que lhe ofereceu uma iniciação, pois tinha, segundo Valladares, muito dinheiro para tal, e queria desvendar [...]. Os segredos mais delicados da magia negra figuravam-se-lhe essenciais para o desenvolvimento temático de um filme em que a Bahia fosse aproveitada”.

De forma muito consciente, Valladares relaciona o livro de Clouzot com a reportagem da Paris Match, acentuando o autor como um cronista estrangeiro passando pela Bahia e traçando suas observações. Entretanto, diz Valladares:

O que francamente nos parece lamentável quando se considera o valor de Henri-Georges Clouzot como homem de cinema é que, de volta a Paris, tenha vendido suas fotografias a uma revista sensacionalista, Paris Match, que do texto do livro fez um resumo ainda mais sensacional, apresentando o Brasil e com especialidade a Bahia em cores que não são de todo falsas, porém que deixam de possuir a escusa da objetividade científica, uma vez que aplicadas num retrato onde a intenção do escândalo e da propaganda sobrepuja qualquer outra. Não adianta os editores da revista dizer-nos que estamos em face de um Clouzot etnólogo e não do diretor de cinema. Não obstante sua extraordinária cultura, sua etnologia é improvisada, de tudo transpira claramente que seu principal interesse está em chamar atenção sobre si mesmo. Mas será este o caminho mais adequado para uma personalidade de sua grandeza?

Ainda o jornal A Tarde, na mesma semana em que reproduziu a reportagem da Paris Match, traz uma longa entrevista com o médico e professor Estácio de Lima, catedrático de Medicina Legal da Escola de Medicina da Bahia, com o título: “Turista no candomblé — Um novo Colombo descobridor de tudo”. Estácio de Lima exalta uma tradição

102 I MAGENS DO SAGRADO

de pesquisa dos cultos afro-brasileiros com Nina Rodrigues e Arthur Ramos, dizendo que sempre conduz uma aula no término do curso de medicina com seus alunos em um terreiro, para introduzir-lhes a riqueza cultural dos cultos afro-brasileiros: “[...] E então, me apraz mostrar aos moços a multiplicidade de questões que, em si, se agitam. Estes de ordem filológica, pois temos nunca menos de oito idiomas exóticos, cinco dos quais desconhecemos, por completo, o emprego dos verbos”, e continua ressaltando aspectos da mitologia e do panteão afro-brasileiro na cultura popular, os mais variados aspectos coreográficos, a culinária, a escultura, as artes etc. Lima reforça seus argumentos científicos com estatísticas do Instituto Nina Rodrigues e diz que:

Sempre nossas investigações levadas a cabo à luz da psicologia clássica e da psicanálise de Freud, dos seus discípulos e dissidentes. Para o mestre vienense, haveria, no estado de santo, uma sublimação da sexualidade. Na lição de Adler, seria resultante do complexo de inferioridade (receber o santo equivaleria a engrandecer-se). Numa interpretação à Jung, teríamos, em jogo, o inconsciente atávico. De qualquer maneira, todos sabemos o que é, o que significa uma crise, distinguindo as simulações, que os leigos não distinguem, os casos psiquiátricos e as reações normais da personalidade.

A reportagem tenta mostrar que existe uma tradição científica na Bahia, citando nomes importantes da pesquisa passada e atual, os quais Clouzot deixa no anonimato. Estácio de Lima identifica Clouzot com a ingenuidade da visão de um turista na Bahia:

O turista, aportando em nossa terra, tão cheia de encanto e deslumbramento, raramente foge à tentação de assistir a uma representação dos ritos afrobaianos. Aí, o ambiente esquisito, a música tonitruante e a singularidade das práticas religiosas conduzem comumente o espectador primário à crença de que é um descobridor de tudo, um Colombo desse bizarro, nunca dantes visto ou percorrido por outros [...].

Também o jornal A Tarde publica nesse dia uma carta raivosa e até mesmo preconceituosa em relação ao próprio candomblé, de autoria do “escritor e historiador” Gustavo Barroso. A carta publicada na íntegra reforça a característica de “escândalo”, depois da reprodução da reportagem da Paris Match por esse mesmo jornal. Barroso chama Clouzot de aventureiro que se “apregoa cineasta”, publicando em uma “revista qualquer”,

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 103

e com “barato sensacionalismo”, uma reportagem com fotografia de “ritos bárbaros [...] apresentando a Bahia como um simples antro de feitiçaria africana”. Segundo Barroso, desculpando os baianos de favorecerem o estrangeiro pela sua generosidade, seria da falta de senso, de inteligência e de probidade mental de Clouzot unicamente a responsabilidade: “Se ele somente foi capaz de apreender aquilo que de mais baixo e aviltante pode existir nas camadas inferiores da população, é que a sua alma se mede por essa craveira, isso é o que agrada e alimenta a sua mentalidade”.

A carta reveste-se de uma atitude nacionalista e preconceituosa ao aludir os cultos como “bárbaros” e situando os cultos afro-brasileiros nas camadas “inferiores” da população. Questionando a visão colonialista decadente européia, acaba propondo que as revistas nacionais publiquem a miséria nas cidades européias para mostrar que também lá existe pobreza: “[...] Há um meio excelente de responder a publicações da espécie dessa tão comentada na Bahia e aqui. É darmos em troca nas nossas revistas as cenas noturnas de miséria física e de miséria moral que se passam por todos os cantos nas capitais européias... cá e lá fadas há”. A revista O Cruzeiro irá fazê-lo dez anos depois com o caso Flávio.

A saga da imprensa nacional continua com a divulgação da opinião de Édison Carneiro, um dos principais especialistas em religiões afrobrasileiras.

O periódico O Jornal, do dia 19 de julho, traz uma reportagem sobre a relação de Édison Carneiro com Clouzot, com a seguinte manchete: “Sensacionalismo e nada mais a reportagem de Georges Clouzot — Édison Carneiro aponta falsidades”.

O professor Édison Carneiro redigiu um guia turístico e várias cartas, dirigidas a seus amigos baianos, recomendando-lhes o cineasta francês, incluindo terreiros famosos da Bahia, com os quais Carneiro tinha relações amistosas e respeitosas. O guia preparado pelo etnólogo baiano apontava os verdadeiros pais-de-santo, a situação dos terreiros, condições de facilidade para chegar até estes, e a natureza de seus cultos. Carneiro foi uma espécie de padrinho e credenciou o passaporte de Clouzot para sua incursão na Bahia.

No livro Les cheval de dieux, logo nas primeiras páginas, Clouzot menciona que ignorava a existência do candomblé até conhecer Édison Carneiro, do qual não diz mais nada, nem menciona sua obra, e, segundo Carneiro, Clouzot faz citações e traduções de trechos de seu livro Candomblés da Bahia, sem referências, e mesmo o glossário, elaborado por

104 I MAGENS DO SAGRADO

Carneiro, é plagiado com uma simples repetição do que já havia no seu livro. Carneiro deduz que existe uma fotomontagem nas imagens, na qual a mulher de Clouzot, em trajes tradicionais dos ritos, aparece com um cachimbo na testa e com a legenda afirmando que ela teve de se disfarçar de filha-de-santo para participar das cerimônias. Ao ser indagado sobre o livro e a reportagem, Carneiro afirma:

Sensacionalismo, nada mais. Clouzot fez cinema com as letras. Não se trata de um documento etnográfico, e muito menos extraordinário e intimamente a gente dos candomblés, não consegui identificar muita coisa, tal a maneira por que as experiências de Clouzot estão narradas. O pior é a “descoberta” do candomblé que Clouzot pretende ter feito. Clouzot nasceu em 1907, mas antes disso, em fins do século passado, Nina Rodrigues escrevia mais profundamente sobre o candomblé e por coincidência em francês, em revistas científicas de Paris; antes de Clouzot ter notícia de que havia candomblés em alguma parte do mundo, os livros de Arthur Ramos eram traduzidos em inglês, francês, alemão e espanhol [...]. A explicação da “possessão”, que Clouzot diz que ninguém lhe soube explicar no Brasil, está em trabalhos de Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Por aí você vê a importância do documento etnográfico que ele apresenta [...].

Credenciando Clouzot na sua incursão baiana, Carneiro generosamente diz que não se arrepende de tal aproximação e favorecimento: “Faria isso outra vez, se necessário. O candomblé não é privilégio de ninguém, nem me julgo dono do assunto. Creio que todos têm liberdade de dizer as bobagens que quiserem [...]”.

A carta de Alberto Cavalcanti

Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro com um importante histórico dentro do cinema internacional, pela sua vivência no exterior, escreveu uma carta dirigida a vários jornais que é considerada a primeira manifestação contrária à reportagem da Paris Match. Publicada na íntegra em vários jornais nacionais na época (entre eles a A Folha da Noite, em São Paulo, no dia 27 de julho), é também mencionada nas várias reportagens sobre o assunto. Na publicação em terras baianas, no jornal Diário de Notícias, de 18 de julho, a manchete diz: “Cavalcanti acusa Clouzot: amargura mal digerida contra nosso país”.

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 105

A carta teve até mesmo uma publicação tardia na revista Anhembi9, como uma espécie de redenção ao artigo já mencionado anteriormente de exaltação da presença do ilustre cineasta francês no Brasil e publicado pela mesma revista em abril do mesmo ano. A carta de Cavalcanti é anunciada como parte de uma “[...] tremenda onda de protestos em todo o Brasil pela leviandade e má fé de Henri-Georges Clouzot, o cineasta francês que há questão de um ano esteve no Brasil tentando realizar uma fita sobre o país”.

Alberto Cavalcanti morou na França na década de 20 do século XX, onde participou da vanguarda francesa, produzindo, fazendo filmes experimentais e mais convencionais (Rein que les heures, Le train sans yeux). Ainda na França integra os estúdios Paramount, na época estruturados como uma indústria do cinema. Na Inglaterra, entra para a equipe do General Post Office Film Unit, cuja produção revolucionou o documentário social. Com sua intensa experiência no exterior, produzindo e dirigindo filmes na França e na Inglaterra, imprimia seu nome como o mais conhecido diretor de cinema brasileiro no exterior. Entusiasmado com as possibilidades da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, torna-se produtor geral em 1950, depois rompe com os donos da empresa e continua dirigindo filmes no Brasil. Alberto Cavalcanti tornou-se, na época, o único cineasta com reconhecimento e trajetória internacional, com mais de 20 filmes na França e na Inglaterra. No ano em que assumia a produção geral da Vera Cruz, teve um encontro com Clouzot, que passava pelo Brasil para tentar fazer seu filme Brésil, encontro relatado em sua carta. A legitimidade de Cavalcanti no cinema credenciava-o a falar sobre o cineasta francês, de cineasta para cineasta, e sua carta, transcrita a seguir, foi amplamente divulgada pela mídia brasileira:

Procuremos esquecer o senhor Clouzot

Durante a guerra, Clouzot dirigiu um filme extraído de uma história de Louis Chavance, chamada Le corbeau (A sombra do pavor). Era uma história bastante sórdida, que, infelizmente, os americanos acabam de filmar outra vez, com o título de 13th Letter (Cartas venenosas).

106 I MAGENS DO SAGRADO
9 Roger Bastide, “Ainda o caso Clouzot”, Anhembi, no 10, vol. IV. São Paulo, set., 1951.

Quando eu voltei a Paris, no momento da Libertação como membro do exército inglês, havia certa desconfiança a respeito do diretor e do cenarista: os alemães tinham divulgado o seu filme como sendo o retrato fiel dos costumes numa aldeia francesa. Na excitação do momento, Clouzot e Chavance foram considerados responsáveis por essa propaganda mal intencionada. A acusação era injusta. Depois passou-se o tempo. O incidente foi esquecido. Clouzot fez muitos filmes. Todos se lembraram de Quais des Orfevres (Crime em Paris), que é um dos meus filmes preferidos, e de Manon (Anjo perverso), mais desigual, mas onde há momentos admiráveis.

Clouzot veio ao Brasil e pode-se mesmo dizer que ele quis “fazer o Brasil”. Recebi-o em minha casa, em São Bernardo do Campo. Lá, contou-me o argumento do filme que pretendia realizar. Nesse tempo eu era produtor numa companhia de São Paulo, o que me possibilitou oferecer-lhe estúdios, técnicos e a quantia que eu próprio tinha à minha disposição para os filmes que eu então produzia e que me pareciam planejados dentro de orçamentos normais. Mas isso não interessava a Henri Clouzot. Ele queria ser o produtor do seu filme brasileiro. Ele me disse: “Exijo que me paguem soma idêntica à que me foi oferecida por Hollywood”; Clouzot foi embora. Ao que parece, o tal oferecimento americano não se concretizou.

Parece que Clouzot diz nos meios cinematográficos parisienses que ele filmou oito mil metros no Brasil e que nossa censura impediu a saída desse material. O Dr. Melo Barreto Filho, chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas, nos informa que nunca filme algum foi vetado antes da exportação e muito menos o de Clouzot, que nem sequer foi submetido à censura. Naturalmente, não quis exibir a sua incursão no documentário. Mas a censura tem as costas largas!

No “Match”, revista muito popular aqui e conhecida como uma das de maior tiragem em todo o mundo, Henri Clouzot publicou uma reportagem sobre sua viagem. Esta reportagem chocou o público brasileiro. As fotografias escolhidas, e, coisa curiosa, assinadas por Clouzot, que, todo mundo sabe, não é fotógrafo, apresentam um pitoresco de uma violência excessiva. A macumba é apenas um pequeno aspecto da verdadeira fisionomia do Brasil. Se se mostram as práticas de magia negra ou branca tão comuns nas aldeias do coração da Inglaterra, isso não tem importância. Todo mundo conhece a Inglaterra e todos sabem estabelecer a justa proporção dos fatos. Mas mostrar os nossos negros domésticos lambuzados de sangue e praticando rituais africanos como a única coisa vista por ele no Brasil digna de ser mostrada é uma atitude um tanto esquisita. Por isso, venho à presença de “Match”, para botar os pontos nos ii. É preciso explicar as causas dessa escolha infeliz. Há no Brasil muita gente como eu que não é “patrioteira”

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 107

e que absolutamente não se importa de que nos mostrem como nós somos. Para nós dá no mesmo que os nossos visitantes nos mostrem como eles nos vêem. Mas no caso Clouzot isso nos aborrece.

A nossa sorte é que outros franceses vieram cá antes e depois do sr. Clouzot! Vieram o galante Villegagnon, o delicioso Debret e o “nosso” talentoso Taunay; como eles, muitos outros nos compreenderam. Jamais os esqueceremos. Procuremos pois esquecer o sr. Clouzot.  

A reportagem de Odorico Tavares e Pierre Verger

Encontrada em meio dos arquivos de Pierre Verger, uma reportagem preparada por Odorido Tavares e indicando fotos de Pierre Verger reproduz e sintetiza os vários momentos do caso Clouzot na sua estada baiana, a repercussão na mídia e a “posição da Bahia” perante a reportagem da Paris Match. A reportagem encontrada datilografada e com correções a caneta e contendo ainda alguns erros não foi publicada pela revista O Cruzeiro. Segue sua transcrição:

Resposta da Bahia a Clouzot

Texto de Odorico Tavares — fotos de Pierre Verger

Certa manhã, um amigo nos telefona e diz: “Acaba de chegar o Clouzot com a esposa, estão hospedados no P H, trazem recomendações para você”. Tocamos incontinente para o hotel e lá estava o Diretor de “M” já cercado de jornalistas e Diretores do Clube de Cinema local. Com seu ar espantadiço de bicho acuado, parecia cansado, e sua bela e simpática esposa, Vera Clouzot, atendia como podia as pessoas. Tanto quanto possível, queixaram-se ambos da falta de cooperação das autoridades, da desistência do filme no Rio e que, embora tivesse regressado a equipe que trouxera da França, estavam dispostos a escrever o cenário de uma película passada na Bahia. Si tudo corresse bem a equipe viria meses depois. Mas Clouzot já meio impaciente queria detalhes e mais detalhes do candomblé. Estava com o bolso cheio de apresentações de

108 I MAGENS DO SAGRADO

É C

e gostaria de tomar contato com mães e pais-de-santo. As primeiras providências a respeito fracassaram: Clouzot desejava um candomblé no dia que chegara e não era possível, pois candomblé não é espetáculo público que se possa improvisar a qualquer momento.

Algumas reuniões sociais, em homenagem ao casal, alguns contatos com escritores, durante os quais a obstinação de Clouzot mais se frisava: candomblé, candomblé, candomblé. Fora de candomblé, não haverá acordo. Enfarado no hotel, mudou-se para um casarão em Rio Vermelho e prosseguiu na sua caçada ao candomblé. Este lhe daria margem para o filme, acentuava, e na conversa sempre girava sobre o mesmo assunto: de todos inquiria e vinha a decepção. Por que não se desvendava o “mistério” do candomblé? Queria “ferir de cheio o mistério do candomblé”.

Sucede que o candomblé não é diversão, repitamos, e sim cerimônia religiosa dos negros baianos. Não tenhamos dúvida que grande parte dos negros da Bahia participam dos seus ritos, dentro da maior ordem e do maior respeito. As autoridades baianas reconhecem o livre direito de reunião e de liberdade religiosa, não trazem embaraços à religião dos negros da Bahia. Apenas para controle, tem registro dos “terreiros” e das solenidades que se vão ali realizar, em determinadas épocas. Clouzot, na sua busca incessante e inquietadora do “mistério” do candomblé, procurou pais e mães-de-santo, foi a diversos terreiros — e ele próprio confessa no seu livro “Le Cheval des Dieux”.

Em face de tais propósitos de descobrir o “mistério”, foi recebido com reservas naturais em alguns deles, sobretudo naqueles ortodoxos, onde não se pode interferir à larga, usando o suborno. A própria Tia Massi, do terreiro Engenho Velho, recusou delicadamente recebe-lo pela segunda vez. Estava doente e cansada, deixasse para outra oportunidade. Mas Clouzot não é homem para desanimar; cada vez mais inquieto à procura do mistério que haveria de ser revelado para gáudio seu. E um belo dia, soube-se que estava recolhido a um candomblé, onde passaria dias, com Vera, assistindo e participando de todas as cerimônias de iniciação de filhas-de-santo. Dias depois, ressurgia com uma forte gripe, que pôs Vera em polvorosa, apavorada com a frágil saúde do marido.

Não era nada, não haveria recaída para a sua tuberculose curada. Por fim, soube-se que iria dar o regresso de Clouzot, que acabara de escrever um diário e o argumento do filme. Este teria adiada a sua execução mas seria realizado na Bahia. Questão de meses e questão sobretudo de como G encararia sua pessoa. G permitirá o filme? G eliminará as dificuldades? Não se sabia, pois G ainda não tomara posse. Clouzot se foi, saciado, pois alegara ter descoberto o “mistério” do candomblé. Que se aguardasse o seu livro.

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 109

Antes do livro porém, chegou à Bahia a reportagem — digamos a sensacionalíssima reportagem — do “Paris Match”, sobre a estada de Clouzot na Bahia. E causou lamentável repercussão, sobretudo porque o problema foi pessimamente situado. Não se tratava de preconceitos: a Bahia tem orgulho tanto de suas igrejas, de sua riqueza artística, de suas casas coloniais, de sua arquitetura velha, como de suas feiras, de suas festas populares, de seus brancos e de seus pretos. Somos a Cidade mais democrática do Brasil: não há aqui preconceitos, nem limitações. Exatamente, o que irritou na reportagem de Clouzot foi o seu preconceito de europeu em transformar numa novidade o que é velho de séculos, o candomblé, conforme acentuou, muito bem, o Sr. É C, em entrevista aos Diários Associados: “Tudo que Clouzot achou ser a revelação dos mistérios está em estudos sérios e realizados por mestres honestos, como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Édison Carneiro e um francês tão compreensivo aos problemas do negro baiano, Sr. Roger Bastide. De toda a sua estada, no Brasil, só se preocupou em fazer sensacionalismo com um detalhe muito limitado da vida brasileira, a reportagem de Clouzot faz um mal terrível”.

“E um mal terrível aos candomblés e aos pretos baianos”, diz-nos o Sr. J M  R, presidente da Federação de Culto Afro-Brasileiro. Trouxe contra nós um sensacionalismo ultrajante e que repelimos com toda energia. Além disso, utilizou elemento que desonrou o seu terreiro, deixando-se comprar pelo dinheiro miserável de um sensacionalista. Tanto Clouzot como este pai-de-santo, que ele acoberta com o nome de Nestor, mas que se chama Rufino, são do mesmo naipe.

A Federação vai tomar as medidas mais rigorosas contra o culpado local, já que no que tange ao Sr. Clouzot, está ele recebendo a repulsa dos maiores elementos dos mais culturais brasileiros, como o grande cineasta C, professor J V, o nosso É C e o professor R B, francês como ele mas um francês digno de uma grande pátria. Quero acentuar que o professor B, que conquistou a nossa confiança, tem um livro e outros estudos onde o negro baiano e suas religiões são analisadas dentro do maior respeito, sobretudo dentro daquilo que se chama respeito humano. Quero dizer aos brasileiros, por intermédio de “O C”, que o candomblé pode ser tudo menos a palhaçada que o Sr. Clouzot descreve no seu livro ou na sua reportagem. Tudo ele usou e utilizou-se de um homem fraco e que não resiste aos dinheiros da traição. Usou, e ele confessa, até chaves falsas. Fracassando o seu filme, ele desejava levar alguma coisa para suprir suas deficiências: levou a reportagem graças ao conúbio Clouzot-Rufino, ou melhor, Georges-Nestor... Não há nenhum mistério a revelar nos candomblés. Não temos nada a ocultar,

110 I MAGENS DO SAGRADO

nem somos mistificadores. A religião afro-brasileira é uma herança de nossos antepassados africanos, vem de muitos séculos. É acatada por todos; às nossas solenidades freqüentam, convidados ou não, pessoas de mais absoluto respeito: visitantes ilustres, gente de todas as classes, como iniciados ou como simples curiosos, e jamais se apresentou uma “aventura” como a de Clouzot-Rufino. Nos meios intelectuais baianos que conviveram com Clouzot, a repulsa é geral: não se justificava o seu sensacionalismo, nem tampouco as inverdades trazidas no livro. Ele fala que todos os anos, no dia de Iemanjá, é jogado ao mar um garanhão preto, de presente à deusa. É falso. Como são falsos e frágeis muitos assuntos e conceitos emitidos, com uma firmeza de conhecedor, quando na realidade ele apenas estava atrás de um ponto a visar: descobrir à França alguma coisa que ele fosse o único a ver, mesmo utilizando os processos mais condenáveis. O que ele viu, muitos o viram, a questão é que os demais não sensacionalizaram nem deturparam os acontecimentos.

O primeiro protesto contra a reportagem de Clouzot, na Bahia e no Brasil, partiu do professor J V, crítico de arte do “Diário de Notícias” e Diretor do Museu do Estado, salientando que o que Clouzot desejou foi chamar atenção sobre si mesmo e não querer trazer qualquer contribuição honesta para o problema do candomblé. O professor R B, da Faculdade de Filosofia de São Paulo, visitando mais uma vez a Bahia, disse à imprensa a respeito da prioridade invocada por Clouzot, em entrar em recintos reservados.

— Isso não é verdadeiro. Antes dele outros brancos já entraram em tais recintos. Basta dizer que nem todos os fetichistas são negros; há gente branca entre eles, inclusive uma filha de espanhóis. Agora, que tenha sido ele um dos primeiros a publicar fotografias de camarinhas e de algumas cenas mais íntimas dos candomblés, não tenho dúvida e devo acrescentar que houve aí espírito sensacionalista, dando-se à publicidade de segredos da religião afro-brasileira.

Além disso, o autor da reportagem não disse, no seu trabalho, como deveria fazê-lo, que a Bahia é uma cidade civilizada e progressista, com inúmeras escolas e hospitais, cheia de tradições. Dizendo, por outro lado, que um terço da população local é de fetichistas, com o que não concordo, deu a impressão aos que não conhecem esta terra, de que aqui se vive em completo primitivismo. Acho que a civilização africana está bem desenvolvida, mas como a Bahia, pela sua expressiva maioria, professa outros costumes, está na civilização que adotamos na Europa, escrevi artigos que serão publicados em São Paulo e em Paris, protestando contra essas afirmações do meu patrício.

Também, É C, autoridade no assunto assim se expressou em entrevista à imprensa carioca:

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 111

— Sensacionalismo, nada mais, Clouzot fez cinema com as letras. Não se trata de um documento etnográfico, e muito menos extraordinário. Eu mesmo, que conheço de perto e intimamente a gente dos candomblés, não consegui identificar muita coisa, tal a maneira por que as experiências de Clouzot estão narradas. O pior é a descoberta do candomblé que Clouzot pretende ter feito. Clouzot nasceu em 1907, mas antes disso, em fins do século passado, Nina Rodrigues escrevia mais profundamente sobre o candomblé e por coincidência em francês, em revistas científicas de Paris; antes de Clouzot ter notícia de que havia candomblés em alguma parte do mundo, os livros de A R eram traduzidos em inglês, francês, alemão, espanhol... A explicação de possessão, que Clouzot diz que ninguém lhe soube dar no Brasil, está em trabalhos de Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Por aí você vê a importância do documento etnográfico que ele apresenta... A C, grande cineasta como Clouzot, externou seu protesto, mostrando que o Brasil não pode ser olhado por um pequeno aspecto de sua fisionomia. Novos protestos vão surgindo, como o do professor E  L, da Faculdade de medicina da Bahia. Outra figura de importância nos meios dos candomblés baianos adianta-nos: “Não são as nossas ‘filhas-de-santo’ criaturas miseráveis e doentes, que se deixassem reduzir a frangalhos humanos, degradadas e desequilibradas, como acentua o Sr. Clouzot. As nossas mães-de-santo chegam à idade avançada queridas e respeitadas por todos, como mães de família, como líderes de nossos ritos. Como isso poderia acontecer, si fossem elas miseráveis meninas de que fala o Sr. Clouzot? E dizer que haja em nosso meio quem tenha consentido na presença do cineasta francês em cerimônias, para que ele nos achincalhasse desta maneira. Pode dizer que não é somente a Bahia dos brancos que se revolta com a reportagem e o livro de Clouzot. Somos sobretudo, nós, os pretos, ofendidos e ultrajados pela sua escrita. Mas não faz mal: sabemos desprezar Clouzot e o seu conivente”.

Pois é assim que se reage na Bahia contra o que escreveu Georges Clouzot, o admirável diretor de “M” e de “L C”. Não há uma voz divergente: todos lamentam a sua maneira de apresentar um problema de interesse étnico, sociológico e portanto humano. De apresentar um país inteiro que o acolheu como um grande artista, através de seus olhos penetrantes e mórbidos. E que os franceses não queiram ver o Brasil, através da reportagem e do livro de Clouzot, como os alemães tentaram inutilmente mostrar ao mundo, o caráter e os costumes da França através de “L C”. Erro fatal e inversão de visão.

112 I MAGENS DO SAGRADO

Roger Bastide e Henri-Georges Clouzot

O sociólogo francês foi mencionado em quase todas as matérias publicadas nos jornais, pois, como patrício e envolvido diretamente na pesquisa com os cultos afro-brasileiros, era constantemente assediado para manifestar-se sobre o caso Clouzot-Paris Match. Suas opiniões de oposição ao conteúdo e à forma de apresentação dos ritos de iniciação na revista francesa levaram-me a pesquisar seu clássico livro O candomblé da Bahia — Rito nagô. Publicado na sua primeira edição em 1958, imaginávamos encontrar alguma referência aos fatos pela viva participação de Bastide na onda de protestos da qual fez parte. Nenhuma referência havia sido encontrada até então sobre esse assunto em outros trabalhos científicos de etnólogos brasileiros ou estrangeiros. Fazendo uma leitura minuciosa no texto do livro de Bastide, encontramos muitas passagens sobre o livro de Clouzot Le cheval de dieux, que consta em sua bibliografia. Tinha à mão uma edição recente, cujo exemplar ficou perto de mim durante todo o tempo esperando a hora de lançar-me a ele, a hora tinha chegado. E para minha surpresa essa nova edição tem vários anexos, inclusive um compêndio da sua obra, na qual encontramos dois artigos publicados na revista Anhembi.

O primeiro artigo, “A etnologia e o sensacionalismo ignorante”10, é aberto com uma nota explicativa da editoria da revista que lembra sua imparcialidade quando defendeu a proposta fílmica de Clouzot e suas dificuldades com as autoridades brasileiras, principalmente da alfândega, na edição de abril de 1951, já comentadas aqui. A nota diz:

[...] abrimos espaço às linhas que seguem, a fim de colocar na sua justa medida o intuito sensacionalista de um cineasta, de alto valor na sua especialidade, mas de uma lastimável ignorância sociológica. Um homem inteligente como Clouzot não cairia nesse erro grosseiro, por ignorância apenas [...]. Temos para nós que Clouzot se arriscou a comprometer a sua idoneidade intelectual exclusivamente para exercer uma vingança contra o governo do Brasil [...]. Com a mesma imparcialidade contra o gesto desarrazoado de nossas autoridades, fazemos agora nossas as palavras serenas e lúcidas do professor Roger Bastide, ao qual a cultura brasileira deve inestimáveis serviços.

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 113
10 Idem, Anhembi, no 9, vol. III. São Paulo, ago., 1951, pp. 580-3.

Já havia sido publicada a carta de Alberto Cavalcanti na qual ele não identifica uma ação da censura sobre o trabalho de Clouzot, mas unicamente nos parece ter havido problemas com a liberação do equipamento cinematográfico e na importação de películas virgens, mas, se havia problemas para brasileiros, qual a razão de termos facilitação para estrangeiros? A revista tenta esquivar-se de suas atitudes anteriormente elogiosas e exaltadoras da capacidade do diretor francês e de suas futuras contribuições à imagem do Brasil no exterior, o que inversamente ocorreu, e nada como contar agora com a fala de um contemporâneo com a legitimidade de Bastide.

Bastide reafirma suas opiniões já amplamente públicas de localizar no sensacionalismo a razão da matéria, e diz que o artigo não apresenta interesses etnográficos como também não poderíamos esperar de sua obra científica uma formatação jornalística, mas irá apontar um “desejo sensacionalista duplamente injurioso para os meus amigos de cor e para os meus amigos brancos da Bahia, em detrimento da verdade. É o que não se pode tolerar”.

Para Bastide, Clouzot caiu na armadilha da escola do cinema italiano que pede a participação de não-profissionais, na qual uma deformação voluntária da realidade cria “uma estilização, seja no sentido de carregar as cores, seja no de poetizá-las”. Mas quando um cineasta pretende escrever um “documento etnográfico”, não deve utilizar esses métodos de documentação. Bastide diz que Clouzot foi vítima de um “candomblé para turista”, e vítima de exploradores que lhe extorquiram quantias razoáveis de dinheiro por duas vezes: “Clouzot saiu da aventura ridicularizado, se realmente acredita que viu manifestações da religião afro-brasileira”.

Bastide enumera uma série de questionamentos sobre as informações da reportagem. Não aceita, como já havia dito, Clouzot afirmar-se como o primeiro branco a penetrar o espaço sagrado desses ritos. Diz que o candomblé não tem preconceito de cor e vários imigrantes fazem parte do culto. Cita um suíço francês que é “ministro de Xangô” e, em seguida, Pierre Verger, que passou pelo mesmo ritual ao qual Clouzot faz referência — “dar comida à cabeça” — e, ainda, “contrariamente ao que julga Clouzot, nada tem a ver com iniciação propriamente dita”. Mostra a ignorância de Clouzot sobre a obra de Nina Rodrigues, que descreve essas cerimônias, e o fato de terem sido objeto de artigo de Marcel Mauss. Sobre esse tema, faz questão de reafirmar o desconhecimento de Clouzot quando ele comenta não ter encontrado intelectuais no Brasil para ex-

114 I MAGENS DO SAGRADO

plicar as possessões em série e a “histeria fantástica”. Bastide diz que tal informação cria uma imagem deformadora da ciência brasileira, pois, além dos escritos de Nina Rodrigues e Arthur Ramos, amplamente conhecidos do circuito acadêmico internacional, congressos sobre religiões afro-brasileiras já haviam ocorrido em várias capitais brasileiras. Bastide cita estudos que mostram que a histeria é uma doença de brancos, não sendo encontrada em populações negras, e afirma que não podemos tomar o termo “possessão”, dentro do candomblé, no sentido médico e sim sociológico: “[...] o transe místico afro-brasileiro nada tinha de realmente patológico e não constituía uma entidade psiquiátrica”. Bastide questiona a participação de Clouzot na liminaridade do processo ritualístico, pois não se podem tirar conclusões etnográficas em terreiros que permitem a entrada de pessoas não iniciadas, pois isso não aconteceria em um “verdadeiro candomblé tradicional”, e ele próprio diz que, quando introduzido em uma camarinha, teve o cuidado de não generalizar o que viu. Para Bastide, então, Clouzot “Tomou os gestos simbólicos do novo nascimento por manifestações de esquizofrenia e as onomatopéias das futuras iaôs por uma regressão ao estado de infância, quando tudo isso não passa do rito sociológico da interdição da fala”.

Ainda sobre as questões médico-psiquiátricas, Bastide diz que Clouzot, ao comparar os candomblés com o cerimonial da psicanálise, “[...] não compreendeu nem a terapêutica psicanalítica nem a iniciação africana”. Ao afirmar que o feiticeiro trata de fixar e tratar de neuroses que se apresentam na possessão de erê (entidade infantil), Clouzot, segundo Bastide, confunde-se, pois elas não existiriam no ritual e “porque se trata apenas de sublimar a libido, e não de curar o doente”.

O sociólogo francês reafirma uma visão de Salvador como uma “cidade progressista”, mas que aparenta ser dominada pelos cultos fetichistas conforme estatística primária e descontextualizada de Clouzot: “Esses algarismos arriscam-se a dar aos estrangeiros uma idéia errônea do que se passa na Bahia”. Bastide diz que uma pequena minoria freqüenta os terreiros, que, apesar de um grande número de templos, “não têm mais do que uma dúzia de adeptos”. E refuta a carga de fanatismo dos cultos conforme texto de Clouzot.

Identifica um erro etnográfico no texto sobre o sacrifício de “um garanhão negro para que Iemanjá, deusa do oceano, possa cavalgar agradavelmente pelo seu reino submarino”, pois, segundo Bastide, trata-se de um acontecimento histórico e singular do universo imaginário da cultura

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 115

popular, e, se acontecia no passado, as festas de Iemanjá não comportam mais sacrifícios de animais. Bastide identifica o mesmo erro em várias outras descrições dessas cerimônias, que exageram na dramaticidade e esquecem o elemento estético para encontrar explicações psicologizantes na histeria, na hipnose etc. Erros que já foram formalizados em seus escritos e de Herskovits. Sobre a embriaguez e o uso de álcool, Bastide diz que essa ação é regulada e fiscalizada pela própria sociedade religiosa e “não apresenta nada de comum com a loucura estática, ou o paroxismo assustador”.

Sobre a descrição do rito “dar comida à cabeça”, embora Bastide encontre elementos reais na narração, aparenta, segundo ele, “uma deformação turística” do ritual, e o que chama sua atenção é a ênfase na “náusea” de Clouzot, “pois desnatura totalmente uma das coisas mais belas do mundo”. Colocado dessa maneira, como “ritos sangrentos herdados da idade da pedra”, não encontraremos um etnógrafo a aceitar os valores da reportagem. Nesse sentido, Bastide ainda aprofunda a ignorância de Clouzot ao contextualizar as origens desses rituais em civilizações muito adiantadas como “a da Nigéria e do Dahomey, com fortes influências egípcias e sem dúvida asiáticas”.

A falsa imagem do “verdadeiro candomblé” criada por Clouzot poderia ser exposta também se escrevêssemos uma reportagem sensacionalista sobre o catolicismo, diz Bastide no final do artigo, e ele se prontifica a fazê-lo para a Paris Match, comentando um filme de Giraudoux, Anjo perdido, sobre a honra da Igreja Católica. É mais uma provocação do que uma verdadeira proposta, e, alterando o ponto de vista e a ordem dos fatores, pergunta se um negro assistindo a essa película não poderia escrever uma reportagem tão sensacionalista como a de Clouzot. Bastide invoca os franceses a admirar a beleza litúrgica desse culto, pois lá “[...] encontrarão um culto respeitoso, sincero, sem nada de histérico [...] mas que tenham cuidado para não introduzir nele o seu erotismo ou o seu sadismo pessoal: todos os elementos patológicos que se infiltraram em certas seitas, foram levados pela imaginação mórbida e pelos preconceitos dos brancos”, termina.

Bastide, do alto de sua legitimidade acadêmica e de sua cumplicidade com os cultos afro-brasileiros, disseca a reportagem da revista Paris Match como nenhum outro intelectual, jornalista ou cineasta havia feito, e coloca Clouzot no plano de sua total ignorância e arrogância colonizadora. Dessa forma, distingue-se deste e caracteriza-o como um aventureiro,

116 I MAGENS DO SAGRADO

pela inoportuna matéria sem relevância etnográfica, afundando-o no esquecimento, como queria Alberto Cavalcanti. Bastide aparentemente joga a última pá de terra na sepultura de um “Clouzot etnógrafo”.

A redenção de Clouzot?

O mesmo Bastide que desconstrói a farsa da Paris Match faz ressurgir das cinzas a passagem de Clouzot pelo Brasil. Apenas um mês depois de publicar o artigo que coloca o cineasta francês no banco dos réus e como um advogado sagaz o incrimina, escreve outro artigo na mesma revista Anhembi11, com essas primeiras palavras:

Tendo sido, segundo me parece, o primeiro a protestar contra a reportagem de “Match”, sinto-me na obrigação de ser o primeiro a reconhecer que o livro de Clouzot, “Le cheval de dieux”, é infinitamente superior à reportagem sensacionalista que dele tiraram para fazer publicidade. A maioria das críticas que formulei caem por terra, e em particular a mais grave de todas, sobre a cerimônia de “dar de comer à cabeça”, pois as fotografias incluíam apenas a iniciação e o “bori” desse rito especial, e não o rito dos não-iniciados.

O artigo em questão muda o clima de denúncia anterior e encontra um Clouzot que permite o diálogo etnográfico. Entretanto, mesmo identificando caminhos possíveis de uma grande obra no livro, quando Clouzot indica em suas lembranças ginasianas os estudos do politeísmo grego e seus ritos, e Bastide vê esses estudos como porta de entrada para a compreensão dos ritos de iniciação, diz que ele confundiu arcaico com primitivo, e primitivo com selvagem, e por um “deleite sombrio” encontra em toda parte “o sujo, o repugnante, o bárbaro”. E diz:

No fundo, eu não estava errado atacando-o através da “Match”, pois o cineasta, que realizou as suas mais belas películas justamente pela pintura da feiúra e do nauseabundo, prejudicou o etnógrafo. Clouzot viu tudo através da sua sensibilidade masoquista ou sádica, de modo que, entre a sua pintura dos candomblés e a realidade, vai a mesma distância que entre a vida real de

11 Idem, “O caso Clouzot e ‘Le cheval de dieux’”, Anhembi, no 10, vol. IV. São Paulo, set., 1951, pp. 188-90.

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 117

uma cidadezinha francesa e a película “Le Corbeau”. “Le Cheval des Dieux” deve ser considerado uma obra da “série negra” e não uma visão exata do mundo dos deuses.

A náusea e a repugnância em Clouzot estão ligadas a sua concepção do sangue nos ritos religiosos, impedindo-o de compreender o sangue místico no candomblé, o que até mesmo um cristão pode compreender, diz Bastide.

Como muitos afoitos e iniciantes na observação dos cultos, Clouzot procurava o segredo imediato, alcançável e visível, mas, ao fotografar segredos, “o mistério permanece inteiro, pois o mistério é espiritual”, afirma Bastide, e mesmo comprando um babalorixá “sacrílego” para fazer fotos proibidas “[...] ou entrar com chaves falsas nos santuários vedados, tudo o que se poderá encontrar serão fragmentos de segredos, mas nada se descobrirá, pois ter-se-á deixado de lado o fundamento, a explicação do segredo: o mistério, no sentido que Gabriel Marcel dá à palavra, e que vale tanto para o candomblé como para o cristianismo”. Clouzot diz em seu livro que assistiu à cerimônia dos eguns, ou à materialização dos mortos, e em uma passagem faz pilhéria, dizendo que o morto se esqueceu de tirar o relógio do pulso. Bastide, também escarnecendo, pergunta: “Clouzot julgará realmente que os negros da Bahia são tão bobos que não sabem que o papel do morto é representado por um homem?”. Ao entrar na Casa dos Mortos e não encontrar o segredo, Clouzot espera, de uma forma racionalista, encontrar traços visíveis e palpáveis de uma concretude inexistente, que haveria somente na relação indelével do sagrado com o profano, do natural com o sobrenatural, e para isso necessitaria aceitar a “categoria do sagrado”, como o faz a sociologia, diz Bastide, “A Casa dos Mortos é secreta porque é o lugar dos mistérios. Mas o mistério é invisível”.

A prática desastrosa de Clouzot é identificada como o principal elemento de um clima de falta de confiança em relação à mídia e aos pesquisadores que se instalou no meio do candomblé baiano, relação de confiança e Bastide sente falta da paciência de um etnógrafo em Clouzot, pois ele poderia ter acrescentado novas informações dos boris, mas como ele não era um etnógrafo,“[...] por três ou quatro fotografias sensacionais, tornou impossível qualquer pesquisa científica durante alguns anos. Digo, pois, que o preço foi muito caro. Caro demais para a Ciência”.

118 I MAGENS DO SAGRADO

Ao levantar uma possível pergunta sobre o seu próprio julgamento do livro de Clouzot, Bastide aponta para um método condenável e pouco moral. Sobre a veracidade das informações, aponta o mesmo erro de Clouzot, aludido em seu outro artigo, de confundir o símbolo com a realidade quando ele se colocava em busca do segredo, pois “a iniciação não nos dá a chave da vida mística”, completa. Assim, mesmo considerando que não há erros graves em seu conjunto, a imagem construída do candomblé por Clouzot permanece falsa, por procurar sempre “o grotesco, o nauseabundo, o ridículo [...] assim, desaparece o que há de lírico, de místico, e de filosófico nessa religião, essa busca ardente do divino, essa participação poética com as forças da natureza, essa fidelidade comovente com a África ancestral [...]”. Clouzot carece de simpatia humana, finaliza Bastide, como se novamente indicasse que devíamos esquecê-lo.

Clouzot, de volta das cinzas

Logo na Introdução do livro Candomblé da Bahia — Rito nagô, de 1958, Bastide chama uma primeira nota na qual completa informação sobre a bibliografia comentada sobre o candomblé, reafirma algumas colocações de seus artigos na revista Anhembi sobre Clouzot e faz uma comparação entre os procedimentos utilizados por ele e os adotados por Pierre Verger. Diz Bastide:

Já citamos as publicações feitas em francês por Nina Rodrigues e pelo padre Brazil. Também nessa língua, acrescentemos às obras precedentes a do cineasta Clouzot, Le Cheval de Dieux (Paris, 1951), e o álbum Dieux d’Afrique (Paris, 1955), de Pierre Verger, composto de fotografias comentadas. Embora o livro de Clouzot não seja o de um etnógrafo, não contém erros muito graves; pode até ser útil, fazendo-nos assistir à vida de alguns candomblés e, desse ponto de vista, ocupa em nossa literatura lugar análogo ao livro de Ruth Landes, A Cidade das Mulheres. Infelizmente, Clouzot nada compreendeu da mentalidade do negro baiano e apresenta uma noção engraçada do “segredo”, que o faz desviar para falsas pistas, impedindo-o de ver o que há de mais importante no culto. A leitura do livro revela todo o mal que a literatura sádica, pode trazer à pesquisa científica. Pierre Verger, ao contrário, é o homem que mais bem conhece atualmente os candomblés, pois não só é membro como ocupa neles posição oficial; sem dúvida, por isso mesmo está, por sua vez, ligado pela lei do segredo e nunca poderá contar tudo que sabe;

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 119

mas esperamos muito de seus conhecimentos, e particularmente a obra que está agora preparando [...]. (Bastide, 2001, p. 267)

Em outra passagem, logo à frente, sobre a cerimônia chamada bori, ou “dar de comer à cabeça”, Bastide alude à existência de alguns detalhes dessa cerimônia encontrados na “reportagem” de Clouzot (Bastide, 2001, p. 42). Note-se que Bastide usa o termo “reportagem”, mas a matéria publicada na revista Paris Match não é citada em momento algum do livro, e Bastide refere-se sempre ao livro de Clouzot nas suas notas e na sua bibliografia. O detalhe que Bastide vai buscar em Clouzot aparece na forma de nota, e explica o efum em um texto descritivo, mas Bastide acentua: “Clouzot só se interessa pelos elementos dramáticos; mas se nossa interpretação sociológica for exata, são ao contrário os elementos simbólicos os mais importantes. Para nós, o efum individualiza a possessão” (Bastide, 2001, p. 270, grifos do autor).

Clouzot aparece de forma mais incisiva no livro de Bastide quando o assunto é a iniciação. Bastide resume a passagem de Clouzot quando este indaga sobre a alta incidência de doentes histéricos na Bahia, indicando uma relação entre a possessão e a crise histérica (assunto já tratado por ele em artigo na revista Anhembi). Para Clouzot, então, a administração de ervas especiais para as iaôs funcionaria como drogas para colocá-las em uma espécie de estado de atordoamento, mas sob uma dominação hipnótica, em um estado de desagregação mental, criando uma associação da música com o transe e um conseqüente sugestionamento, que ainda vai continuar também na passagem para o estado de vigília. Não da mesma forma veemente, por meio da qual refuta essa justificativa de Clouzot, Bastide diz agora que a atitude é mais flexível “[...] pois leva em consideração ainda o fato de certas candidatas serem possuídas por um santo bruto antes de terem sofrido as provas iniciáticas” (Bastide, 2001, p. 46).

Nesse sentido, uma passagem de Clouzot é citada para aludir uma questão refutada anteriormente por Bastide sobre o “tratamento de neuroses”. Mais flexível também nos parece Bastide nesse momento, mesmo questionando a argumentação de Clouzot de reconhecer a iniciação como um fator de controle dessas crises, mas sem destruir o indivíduo, tornando-o sugestionável: “No entanto, encara ainda o controle por meio da medicina psiquiátrica. Dever-se-á encarar necessariamente as centenas de filhas e filhos-de-santo que vivem na Bahia como outros tantos epi-

120 I MAGENS DO SAGRADO

lépticos, histéricos, paranóicos — numa palavra, neuróticos —, embora nosso autor pareça de início rejeitar essa hipótese?”. Bastide retoma aqui quase literalmente seu texto publicado na revista Anhembi, o qual não é citado em suas notas nem na sua bibliografia. E continua dentro da mesma perspectiva:

Mas o transe de possessão tem caráter antes sociológico do que patológico; como Herskovits observa com muita razão, não devemos esquecer que esse transe é um fenômeno ‘normal’ para certas civilizações como as da África negra, imposto pelo meio e constituindo uma espécie de adaptação social a certos ideais coletivos.

A pergunta que fica é: Por que razão não incluir o texto no qual ele próprio já tinha dessa forma argüido anteriormente? Independentemente de seus motivos, o que nos interessa é a volta de Clouzot como um autor questionável em seus pontos de vista, mas agora passível de certa flexibilidade.

Em alguns outros momentos menos importantes do livro, Clouzot é lembrado, como na passagem em que Bastide relata um processo de sucessão em um terreiro tradicional de Salvador e a disputa que se estabeleceu com a morte da ialorixá, cujo protetor era Xangô. Durante os sete anos regulares que se esperava para que a sociedade dos eguns da ilha de Itaparica invocasse a alma da mãe-de-santo, a filha-de-santo mais velha de terreiro ficou encarregada de cuidar da casa religiosa, mas como era filha de Oxum, aconteceram conflitos até mesmo no plano místico com os seguidores de Xangô, e Bastide diz: “Clouzot, aliás, que estava na Bahia nessa época, faz a isso uma rápida alusão” (Bastide, 2001, p. 246). Qual a importância de novamente citar Clouzot se suas observações não são relevantes? As cinzas de Clouzot são constantemente reavivadas por Bastide, legitimando sua passagem pelo Brasil. Assim, Clouzot não foi esquecido como tanto queria Alberto Cavalcanti.

C LOUZOT NO B RASIL , O CASO PARIS MATCH 121

O CRUZEIRO E JOSÉ MEDEIROS

De Leão Gondim para José Medeiros1

Anexo reportagem de Clouzot, se é que você não a conhece, para inspiração. O “furo” é de doer, caramba! Endereço — Av. Copacabana 1386 – AP. 701 Rio, 2 de agosto

Caro Medeiros

Acabo de receber a reportagem das baleias — mandei fazer logo as provas pequenas e pelo que pude olhar no laboratório está bôa. Poderia estar magnífica se houvesse por aí uma teleobjetiva para focar cenas longínquas como as do harpoamento. Estou providenciando para que em breves dias “O Cruzeiro” possúa equipamentos especiais de fotografia para todas as emergencias.

Soube que você andou meio mal dos pulmões com qualquer cousa parecida com peneumonia (o molestia do sono?) mas acredito que já esteja bom. O motivo desta carta, como se pode prever, não é de saudades de tão insignificantes creaturas que vocês são, mas outro. U     

Como você sabe aquela reportagem de Paris-Match sobre os “Pocessos da Bahia” deixou nosso chefe com absoluta e gravissima dor de côrno — principalmente porque sabe e viu que Verger possue fotografias tão sensacionais ou mais sensacionais do que as do cineásta francez.Verger esteve aqui no Rio e foi convenientemente cantado para ver se nos cedia tal material — fez promessas vagas e agóra manda dizer que “em hipótese nenhuma os publicará agora”. Ora,

1 Correspondência reproduzida com a grafia da época e os grifos originais.

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 123


meu caro Medeiros, se um francez chamado Verger conseguiu fotografar os ritos secretos da Macumba, e quando outro francez chamado Clouzot conseguiu também o mesmo, porque raios que os partam um fotografo brasileiro não poderá fazer o mesmo? Estaremos tão avacalhados assim? Somos tão cretinos assim que nos deixemos vencer em nossa própria terra por dois gringos?

que há é o seguinte: o nosso chefe acredita

eu quasi que participo da mesma opinião, muito embóra os rapazes cá de casa digam que

Muito bem, você será capaz de nos trazer uma reportagem ao menos semelhante ao de Clouzot? Bem sei que agóra a cousa está mais difícil depois do escandalo de Paris-Match. Mas nada existe de impossível quando há dinheiro para gastar, e vocês estão autorizados a gastar o que for necessário para conseguir o que queremos. P

(“nossa cara” quer dizer, nossa honra de revista que realisa as melhores reportagens do Brasil) Você é capaz negroide amigo? Pois então mãos á obra para construir o maior cartaz da reportagem brasileira. Veja se Arlindo o auxilia, se esse paulista peçonhento e prosa p’ra xuxú sabe fazer alguma cousa a não ser descobrir tramas comunistas inexistentes... I — Desse plano ninguém deve saber, principalmente Verger e inclusive nosso amigo querido Odorico Tavares, que está com escrupulos de abordar o assunto, de acordo com razões que possue e que respeitamos. Trabalhe na moita, dizendo que quer fazer cousas diversas, documentação pessoal sobre qualquer assunto,

Escreva com notícias. É preferível que para mim para que a carta não se perca na Redação. Mandaremos o que vocês necessitarem. Lembranças ao Arlindo a quem (aqui entre nós) muito admiro e estimo e abrace o amigo (não sei porque, mas amigo) e  .

(chefe da Revista “O Cruzeiro”)

As informações dessa carta enviada por Leão Gondim para José Medeiros, quando ele e Arlindo Silva ainda estavam na Paraíba fazendo uma reportagem sobre a pesca da baleia em Cabedelo, são elucidativas de todo

124 I MAGENS DO SAGRADO
M            —
    ...
       
 
O
 J


C
     
C. Combinado?



o processo de tomada de decisão para a realização da pauta que resultou na reportagem “As noivas dos deuses sanguinários”. Datada do dia 2 de agosto de 1951, a carta foi endereçada diretamente a José Medeiros.

A visão negativa sobre a presença de jornalistas no meio religioso do candomblé depois de um mês de julho intenso de críticas públicas à reportagem da Paris Match irão dar o tom da carta de Leão Gondim para José Medeiros. A deturpação dos fundamentos e uma visão preconceituosa por meio de um texto infeliz e de imagens sensacionalistas do “segredo” do candomblé colocaram a comunidade religiosa, pelo menos os terreiros tradicionais, em estado de desconfiança, como acentuou Roger Bastide. Alguns dados merecem comentários e análises. O tratamento dado na carta é de extrema intimidade com José Medeiros e coloca-o em uma situação de desafio profissional, ou seja, demonstra que o interesse principal da revista é conseguir um conjunto de fotografias com cunho documental e jornalístico. Ao colocar o jornalista de texto em segundo plano, valoriza-se a fotografia como principal elemento de comunicação pretendida.

Logo no cabeçalho da carta, Leão Gondim diz que manda anexa a reportagem publicada na Paris Match para que Medeiros se inspire, e a importunação aparece de imediato com a frase: “O ‘furo’ é de doer, caramba!”. Instaura-se assim o teor corrente que terá a carta, o fato de um estrangeiro abordar uma temática nunca explorada pela mídia nacional: os segredos do candomblé.

No tratamento próximo, perguntando sobre a saúde de Medeiros, Leão Gondim diz que escreve não de saudades de “insignificantes criaturas”, mas enfatiza em letras maiúsculas: “um motivo que deve permanecer em segredo absoluto”.

Cita que “nosso caro chefe”, no caso Fred Chateaubriand, ficou com “absoluta e gravíssima dor de corno”, principalmente por ele saber da existência de documentação fotográfica realizada por Pierre Verger focalizando o ritual secreto de iniciação, e por Verger ter-se recusado a publicá-la, sendo no início ambíguo quando de uma estada sua no Rio de Janeiro, e enviando depois uma mensagem na qual declara que “em hipótese alguma as publicará agora”.

A posição ética de Pierre Verger, como um cúmplice do candomblé, coloca-o dentro da esfera da lei do segredo e, portanto, do invisível, ou da preservação imagética desse universo. Dado o contexto, Chateaubriand parte para o desafio com Medeiros, colocando-o como único fotógrafo

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 125

brasileiro a poder fazer frente aos “dois gringos” que conseguiram imagens dos rituais sagrados e ele ainda pergunta: “Será que estamos tão avacalhados assim?”.

Colocado o desafio e a pauta sendo articulada na cúpula da revista O Cruzeiro, e não como inicialmente pensávamos, como uma pauta do próprio Medeiros, Leão Gondim reconhece que depois da Paris Match se tornaria difícil entrar novamente em um terreiro para realizar reportagem semelhante: “Mas nada existe de impossível quando há dinheiro para gastar e vocês estão autorizados a gastar o que for necessário para conseguir o que queremos”. O Cruzeiro coloca-se no mesmo plano de Clouzot, que tinha também muito dinheiro para gastar e o fez pagando uma alta soma para o tal Nestor, conhecido como Pai Rufino. Leão Gondim coloca para Medeiros, dessa maneira, além do desafio pessoal de um fotógrafo em relação a dois estrangeiros, a própria “honra” da revista O Cruzeiro, para “lavar a cara” da “revista que realiza as melhores reportagens do Brasil”. E pergunta em desafio direto: “Você é capaz, negróide amigo”? Arlindo Silva, “paulista peçonhento e prosa p’ra xuxu”, é indicado como acompanhante de Medeiros, reforçando o caráter imagético da pauta.

A última frase coloca novamente a importantíssima missão secreta dos dois, pois pede que não falem nem com Pierre Verger, nem com Odorico Tavares (chefe da sucursal da revista em Salvador). Ou seja, orienta que digam mentiras para os dois, que não aceitariam uma outra reportagem semelhante à de Clouzot, principalmente publicada por uma revista brasileira. “Não diga nada para ninguém”, “trabalhe na moita”, diz Leão Gondim. E ainda sugere a Medeiros que não mencione Clouzot em suas conversas para não levantar suspeitas que dificultariam o trabalho.

A decisão de uma pauta secreta, e a carta endereçada para Medeiros que nem mesmo foi mencionada por ele a seu companheiro de trabalho, Arlindo Silva, coloca essa reportagem no âmbito de uma “missão secreta” redentora da importância da revista O Cruzeiro com as temáticas nacionais. Podemos imaginar a surpresa da intelectualidade baiana e brasileira que se movimentou armada em críticas abertas em relação à reportagem da Paris Match. Pouco se escreveu sobre a reportagem, e todos silenciaram em uníssono, temendo talvez a força da revista e de seu dono. Talvez se sentindo, alguns, magoados com a forma de conduzir a reportagem, mas parece que todos se sentiram redimidos, menos, é claro, a parte mais fraca do elo que se formou desde a publicação da Paris Match, a mãe-de-santo Riso da Plataforma, para a qual toda a ira local foi deslocada.

126 I MAGENS DO SAGRADO

O embate da revista O Cruzeiro com a imprensa internacional sobre temas brasileiros tomou uma dimensão de farsa no repique que a direção da revista quis fazer sobre uma reportagem publicada nos EUA em 1961. A história do menino Flávio da Silva foi publicada na revista Life no dia 16 de junho de 1961. Gordon Parks, em viagem ao Brasil para fazer uma reportagem sobre favelas no Rio de Janeiro, encontrou Flávio no barraco de sua família com graves problemas de saúde. A foto que mostra Flávio em sua cama, uma foto que dramatiza seu sofrimento pela luz e pela expressão anunciada de uma morte próxima, sensibilizou centenas de pessoas nos EUA, que imediatamente encaminharam doações que resultaram em US$ 30.000. O fundo criado pelo volume expressivo das doações foi repartido entre a ajuda direta a Flávio e sua família e a favela que morava, Catacumba. Simultaneamente a esse fato, a favela da Catacumba tornou-se assim um piloto de um “projeto de progresso”, como ressalta Parks em seu livro Flávio, publicado em 1978, como pleiteava John Kennedy e sua ação na Aliança para o Progresso. Parks esteve durante três meses em contato com Flávio e a família na sua estada no Brasil. Diz Parks em seu livro:

Nada pareceu mais irritado do que a revista brasileira O Cruzeiro. Depois da história de Flávio ser publicada em Life en Español, O Cruzeiro enviou um de seus próprios fotógrafos para a cidade de Nova Iorque tentar fazer uma reportagem similar no distrito de Wall Street onde moravam famílias porto-riquenhas, e mostrou uma criança dormindo com baratas em sua face e outra criança chorando de fome. A matéria acusava Life de fabricar toda a história de Flávio e me acusava de comprar um caixão e colocar uma mulher viva dentro dele (na verdade, a mulher estava realmente morta, com o atestado de óbito para provar, e ela não estava em um caixão mas deitada em um esquife provisório). Time Magazine descobriu, depois de investigações, que o correspondente do O Cruzeiro fez uma foto armada com a criança dormindo, tendo pego as baratas e colocando-as em seu rosto. Para fazer a outra criança chorar, o fotógrafo ameaçou jogá-lo pela janela. (Parks, 1978, p. 91)

Parks diz que se surpreendeu, pois, se O Cruzeiro quisesse fazer uma matéria semelhante, era somente ir ao Harlem ou ao sul de Chicago que iria encontrar uma história genuinamente trágica como a história de Flávio. E disse que, quando a Time publicou a matéria sobre a farsa, a revista O Cruzeiro não respondeu. O caso Flávio publicado na Life fez que uma onda de artigos de protesto aparecesse na mídia brasileira,

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 127

principalmente nos jornais O Dia e Correio da Manhã. O Dia escreve que não era necessário um estrangeiro para alertar-nos para as condições das favelas, e que não se poderia culpar o povo brasileiro por essa situação, mas, ao mesmo tempo, o Correio da Manhã dizia que as fotografias de Parks falavam por si sós e falavam muito alto, e pergunta se os outros vizinhos de Flávio poderiam esperar por outras reportagens e assim ganhar também uma casa em lugar limpo e sadio. Com o dinheiro arrecadado pela reportagem, doações espontâneas dos leitores de Life, Parks comprou uma nova casa para a família de Flávio em um bairro, Guadalupe, e levou-o para tratamento nos EUA. Flávio sobreviveu e estudou durante dois anos nos EUA, vivendo com uma família hispânica. Parks voltou ao Brasil em 1977 e fotografou Flávio, já casado, e sua família; justapõem-se no livro as fotos feitas em 1961 com as fotos de 1977, inclusive a foto do casamento feita por um fotógrafo anônimo, provavelmente um fotógrafo de casamento.

Segundo Arlindo Silva, o fotógrafo que a revista O Cruzeiro mandou a Nova Iorque para fazer a reportagem sobre miséria em bairro portoriquenho foi o francês Henri Ballot. O embate Paris Match-Clouzot repetiu-se de forma trágica para a revista no caso Life-Parks. A revista perdeu credibilidade com o repique da Life desmontando a farsa de Henri Ballot.

Encontro com Arlindo Silva

Depois de várias tentativas durante todo o ano de 2002, consegui agendar um dia para conversar com Arlindo Silva. Não sei a razão pela qual ele adiou tantas vezes a entrevista, que acabou sendo muito importante para fechar o levantamento de dados da pesquisa. Muitas dúvidas foram sanadas, principalmente em relação à identificação de uma carta recebida por José Medeiros, datada de 2 de agosto de 1951, e às informações que deu sobre a relação estabelecida na ocasião com Mãe Riso da Plataforma.

Em relação à carta, tive a informação de que a Casa de Cultura de Teresina mantinha uma sala com alguns objetos pessoais de José Medeiros e algumas cartas, entre elas uma que referenciava a sua ida para Salvador. Gentilmente a carta foi digitalizada e enviada via Internet, e pude usá-la na entrevista com Arlindo Silva. A cópia que me foi enviada pela Casa

128 I MAGENS DO SAGRADO

de Cultura estava sem assinatura, provavelmente deixaram de digitalizar a última parte. Medeiros e Arlindo Silva a receberam na Paraíba quando estavam fazendo uma reportagem sobre a pesca da baleia em Cabedelo. A carta é elucidativa de vários aspectos da tomada de decisão de fazer a reportagem sobre candomblé pela revista O Cruzeiro. Destinada diretamente a Medeiros, pede-lhe que mantenha absoluto segredo do seu conteúdo, e Arlindo Silva não sabia da sua existência. No encontro que tivemos, ele pôde ler pela primeira vez, 51 anos depois, a tal misteriosa carta que esclarece a decisão de fazer a reportagem, a motivação e as circunstâncias ocultas da sua realização perante a dupla de inúmeras reportagens no Nordeste: Pierre Verger e Odorico Tavares, esse último então responsável pela sucursal de Salvador.

Arlindo Silva confirmou que a motivação da passagem pela Bahia, junto com José Medeiros, foi a reportagem da Paris Match antes mesmo de ver a carta enviada para José Medeiros, dizendo que Clouzot fez um grande alarde da matéria, e eles colocaram então a reportagem de Salvador como uma questão de honra, de brio profissional, pois a imprensa brasileira comentara a polêmica da Paris Match, e disse que a decisão partiu da redação da revista O Cruzeiro. Odorico Tavares era muito amigo de José Medeiros e colocou-se contra a reportagem dos dois; Pierre Verger não foi procurado. Segundo Arlindo Silva,

O próprio Odorico também foi contra essa reportagem, de nossa tentativa lá... vocês vão quebrar... vocês não deviam fazer isso, esse Clouzot fez um mal, ele fez um grande mal, porque contou coisas secretas, de coisas bonitas, coisas dessa religião, e acho que vocês não deviam fazer isso, vocês vão quebrar o encanto de muitas cerimônias que existem aí, do mundo secreto, religioso, é muito bonito esse mundo secreto e tal...

Como eu estava com a carta incompleta na ocasião da entrevista com Arlindo Silva (faltava a frase final e a assinatura), ele identificou a autoria da carta como sendo de Antônio Accioly Netto pelo endereço que constava no cabeçalho, pela forma jocosa como as pessoas eram tratadas na carta e mesmo por um detalhe sobre equipamentos fotográficos que estariam sendo providenciados pela revista: Accioly “me chamava de paulista”.

Por causa da confusão estabelecida pela falta da autoria da carta nessa ocasião, Arlindo Silva identificou, equivocadamente, um chefe citado na carta como sendo Leão Gondim, diretor responsável pela revista, que

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 129

participava das idéias e das discussões das matérias. Ele “dava muito palpite, e nesse caso ele se interessava muito e tal, porque a Paris Match tinha feito essa coisa, então essa carta é do Accioly Netto, que era o diretor responsável da revista, e pelo endereço aqui [...]”2.

Apesar da resistência de Odorico Tavares, Arlindo e Medeiros insistiram na reportagem e a relação com Riso foi estabelecida por Gervásio Batista, fotógrafo do Diário de Notícias, que fazia parte dos Diários Associados, jornal em que Odorico Tavares era editor-chefe:

O Gervásio tinha um amigo motorista de praça, que o apelido dele era Sessenta, então através dele nós chegamos até o terreiro, ele era amigo desse pessoal, pelo menos conhecia. Através do Sessenta encaminhamos uma negociação com a mãe-de-santo do terreiro, ele intermediou a negociação, foi lá, conversou com ela. Ela disse que o material era muito caro, bichos, folhas etc... aí nós mandamos dizer, olha não queremos violentar a norma da religião mas se ela quiser a gente pode comprar o material necessário, podemos oferecer o material necessário.

Sessenta então se incumbiu da negociação com Mãe Riso, comprando os bichos, e todo material necessário para finalizar a iniciação do barco de três iaôs que estavam recolhidas, não havendo, portanto, uma soma muito grande de dinheiro em espécie na relação com Riso, conforme se alardeou rapidamente em Salvador depois que a reportagem foi publicada. É possível que um pequeno montante tenha ficado com Riso, pois sua irmã Leleta disse que ela usou esse dinheiro para completar a compra do terreiro da Plataforma, depois da venda do terreiro da Ilha Amarela. Uma semana depois eles estavam dentro do terreiro fotografando e anotando todos os passos da mãe-de-santo. O local era considerado muito distante da cidade, tendo de ser percorrida uma certa distância a pé. José Medeiros e Arlindo Silva dormiram nos fundos do terreiro esperando as cerimônias de sacrifício de animais para os orixás, e não tiveram nenhuma restrição de circulação para fotografar ou observar todo o ritual. “Nós chegamos lá de dia, à tarde, dormimos lá, dia seguinte tomamos café, comemos uns bolinhos, aquela coisa toda, e não havia nenhum tipo de movimento de

2 Cláudia Possa me enviou em setembro de 2006 a carta completa, pois passou por Teresina e teve acesso aos originais, e ficou estabelecida finalmente a autoria da carta, assinada por Leão Gondim.

130 I MAGENS DO SAGRADO

cerimônia, só tinha lá essas moças, moças normais, ninguém dizia que seriam iniciadas [...]”.

Sem pesquisar sobre candomblé anteriormente, e sem muitas perguntas, Arlindo escreveu o texto da matéria de forma quase direta:

Durante a noite a mãe-de-santo começou a preparar o material, pra ver os bichos, aquela coisa toda etc. e tal, e mais tarde, numa hora x, que ela começou, acho que ela entrou em transe, quando ela começou a trabalhar, então o Zé Medeiros começou a fotografar, e eu tomando rigorosamente nota, o que estava acontecendo eu estava passando para o papel, aí a mãe-de-santo pegou a moça e começou a raspar, cantando a música, eu sabia da música até agora... veja você como é interessante, faz 50 anos e eu me lembro da música. Então eu tinha tudo anotado ali, como se eu estivesse vendo e escrevendo, fazendo uma narrativa ao vivo do que eu estava assistindo, senão seria depois impossível escrever mais tarde, lembrar de tudo o que estava acontecendo, então anotei “passou a navalha do lado de cá e tal, e os pêlos estão caindo no chão, agora ela mudou de lado [...]”, tudo com detalhes, sem conversar com ela, sem conversar, assistindo e escrevendo o que ela estava fazendo, inclusive as reações das pessoas que estavam ao lado, as assistentes, auxiliar. Foi escrito ao vivo ali, assistindo o fato e descrevendo o fato. Então ficamos lá até de madrugada, e as moças ficaram lá ainda em transe, as iaôs estavam em transe, entendeu? Estavam completamente tomadas. Houve vários santos que baixaram, não me lembro quais os santos que baixaram nelas, então terminou esse cerimonial, até quase raiar do dia seguinte, até quase a madrugada do dia seguinte, quando terminou, nós fomos nos recolher.

Ao contrário de Medeiros, sem lembrar-se do nome da mãe-de-santo, Arlindo Silva disse que não nomearam as pessoas no texto da reportagem para preservar o anonimato, e ingenuamente não perceberam que a rede do candomblé conhece a todos, e assim Riso da Plataforma foi imediatamente reconhecida quando a revista chegou a Salvador. Arlindo e Medeiros sabiam das conseqüências de sua reportagem:

A reportagem foi feita debaixo de muitos cuidados, e a própria mãe-desanto sabia que ela estava correndo algum risco, algum perigo... O Clouzot fez aquela matéria pequena, e deu uma revolução, no Brasil inteiro a imprensa comunicou, comentou isso, deu uma enorme repercussão, na França, o Clouzot tornou-se um nome faladíssimo por essa reportagem na Bahia, então tornou-se uma coisa misteriosa, selvagem... e nós, por uma precaução, conhecendo o problema da época, não iríamos citar o nome dela porque ela

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 131

seria perseguida, como depois souberam, descobriram, em uma comunidade tão pequena, e depois de muito tempo, conversando com o Gervásio Batista, soube desses fatos, porque depois ele saiu da Bahia e tornou-se fotógrafo da revista Manchete, começamos a ter uma convivência maior, uma grande amizade... eu soube que ela foi realmente perseguida, até que teve de sair da Bahia, sair de Salvador [...].

Riso sabia o que estava fazendo e tinha consciência de que eles eram jornalistas da revista O Cruzeiro, pois dessa forma se apresentaram a ela:

[...] ela sabia que era para ser publicado na revista O Cruzeiro, a gente até comentou nessa base de que um estrangeiro tinha publicado umas fotos de Candomblé e tal, e a gente queria também fazer a mesma coisa e tal, e foi assim a conversa. A gente tentou outros caminhos, e houve recusa de pessoas que podiam nos ajudar, e sempre davam contra, era Odorico Tavares. Pierre Verger nós não conversamos porque sabíamos que ele iria dar sumariamente contra, outros jornalistas também, porque na Bahia, é engraçado, viu? Porque na Bahia jornalistas, escritores, gente de cultura, gente que está habituada com todos os dramas e problemas do mundo, do dia-a-dia, da pobreza e da miséria do crime, eles respeitam o negócio, e acreditam no negócio, então não foi muito fácil até aparecer o Gervásio Batista e o motorista Sessenta... porque o Sessenta era acostumado a levar turista para ver os rituais públicos...

A editoração da revista O Cruzeiro era “formatada” no calor do momento quando todos os grandes assuntos eram discutidos na sala da paginação, e todos observavam e davam palpites, pois não era uma grande equipe, e assim aqueles que estavam na redação nesse momento participavam das escolhas em relação ao que deveria ser destacado, qual imagem deveria vir em página dupla ou em página inteira. As duplas saíam para fazer uma reportagem e voltavam com cinco ou seis sobre assuntos que encontravam pelo caminho, havia autonomia, pois não existia uma chefia de reportagem. Quem mais encaminhava decisões de pauta eram Accioly Netto e o próprio Leão Gondim, responsável pela revista e primo de Chateaubriand, o dono da revista.

O Cruzeiro naquele tempo não tinha editoria, não tinha chefe de reportagem, não tinha pauteiro, não tinha nada disso que hoje em dia tem. Os repórteres em si eram donos das suas idéias, e quando eles partiam para uma reportagem, eles traziam às vezes cinco ou seis, que iam surgindo no meio do caminho,

132 I MAGENS DO SAGRADO

na viagem eles iam fazendo... essa daí, nosso destino era uma reportagem sobre pesca da baleia, aí paramos na Bahia, atrás um pouco dessa coisa toda, e ver da possibilidade de se fazer alguma coisa, né? Tanto é que depois nós fomos fazer a reportagem das baleias [...].

Assim, o título da reportagem da Bahia foi decidido. O título inicial proposto por Arlindo era “Os deuses sanguinários da Bahia” e acabou virando “As noivas dos deuses sanguinários”, numa troca de idéias entre Arlindo e o baiano Herberto Sales. Houve uma grande euforia com a publicação, considerada um grande furo espetacular de reportagem, com destaque fora da normalidade editorial, em um momento em que a revista se encontrava em seu auge.

José Medeiros3

Medeiros teve, muito cedo, uma vivência no universo da fotografia, estando envolvido desde a infância com a prática de seu pai, fotógrafo amador; ganhou uma câmara de um parente aos 11 anos de idade. Modificando-a com lentes de óculos, fazia reproduções de imagens de artistas de cinema para vendê-las. Seu pai vendeu-lhe a própria câmara com a qual fotografava a família, numa espécie de financiamento: Medeiros teria de pagar-lhe com trabalho de fotografias de eleitores para um político do Piauí, seu estado natal, onde nasceu em 1921.

Medeiros mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1939 e tornou-se funcionário público, mas continuou fazendo fotografias, agora retratos de artistas de teatro e do rádio. Começou como fotógrafo na revista Tabu e na revista Rio, realizando trabalhos freelancer. Nessa ocasião, em 1946, conheceu Jean Mazon, que estava montando a equipe da revista O Cruzeiro, e somente um pequeno grupo operava a revista. Medeiros foi então um dos primeiros fotógrafos da revolução jornalística, apoiada em imagens, realizada pela O Cruzeiro, com influência direta das revistas Life e Paris Match; era uma espécie de espelho dos mais importantes magazines da época, mas teria uma roupagem própria, ao encontro de um Brasil distante, regionalista, por um lado, e nacionalista, como principal veículo

3 Baseado no depoimento de José Medeiros para Nadja Peregrino e Ângela Magalhães, José Medeiros — 50 anos de fotografia. Rio de Janeiro: F, 1986.

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 133

formador da opinião pública da época nos temas brasileiros. Logo outros fotógrafos e jornalistas foram incorporados à equipe da revista, além de Jean Mazon e David Nasser: nomes como Luciano Carneiro, Luis Carlos Barreto, Indalécio Wanderley, José Leal, e depois Flávio Damm. Havia um glamour de pertencer à revista, e onde estivessem eram procurados pela população como “gente famosa”. Medeiros mantinha uma relação umbilical com a imagem desde a infância, como vimos, e assinava revistas internacionais de fotografia: Modern Photography, Popular Photography, Animal Photography, Look e a Life. Acentua que teve uma forte influência de fotógrafos como Walker Evans, Paul Strand, Berenice Abbot, Eugene Smith e Henri CartierBresson. Medeiros estava em sintonia com a nata da fotografia internacional, principalmente com aqueles que trabalhavam um novo olhar do fotojornalismo: fotógrafos autorais. Como era um fotógrafo de ação, na tradição da street photography, que procura suas imagens nos locais dos acontecimentos, diferentemente da escola de Jean Mazon, que prepara a luz com todos posando4, Medeiros achava sua câmara Rolleiflex, equipamento oficial da revista, muito inapropriada para suas viagens e ações mais ágeis. Assim, começou a usar uma Leica 35 mm, menor, mais leve e flexível, mas a reação da direção foi de proibir-lhe o uso. Medeiros continuou a usar o formato 35 mm, porém entregava suas cópias no formato quadrado, como na Rolleiflex, e suas fotos eram elogiadas e publicadas, sem perceberem diferença. Jean Mazon criou um estilo formal e clássico de iluminação, que será muito copiado, preparando uma imagem para uma pauta já definida anteriormente. Entretanto, quebrando a lógica da imagem posada, Mazon fez imagens memoráveis dos índios xavantes atacando com flechas o avião no qual estava, em reportagem publicada em 1944, com repercussão internacional, abrindo o campo para a fotografia instantânea, o “momento decisivo” na revista. Medeiros irá contrapor à tradição de uma fotografia formal sua visão de autoria fotojornalística para a qual também terá, como forte ponto de apoio e seguindo a mesma proposta, as imagens enviadas por Pierre Verger da Bahia.

Medeiros saiu da revista depois de perder o interesse em trabalhar na edição internacional de O Cruzeiro, para a qual foi designado, e porque,

4 No início da carreira na revista O Cruzeiro, Medeiros foi influenciado pelo estilo de Jean Mazon e fazia suas fotografias utilizando muitas luzes e cenas montadas.

134 I MAGENS DO SAGRADO

na ocasião da morte de um colega (Luciano Carneiro) em um desastre de avião, a preocupação da direção era com um provável cheque que Luciano Carneiro trazia para o Rio, vindo de Brasília. Depois disso, Medeiros irá ter uma significativa participação no cinema nacional, sendo seu primeiro trabalho a fotografia do filme A falecida, de Leon Hirszman, com Fernanda Montenegro como atriz principal. Uma série de filmes conta com sua luz brasileira, trabalhando com os principais diretores de cinema no Brasil: A opinião pública (Arnaldo Jabor,1967), Vai trabalhar, vagabundo! (Hugo Carvana,1973), A rainha diaba (Antônio Carlos Fontoura, 1973), Xica da Silva (Carlos Diegues, 1976), Aleluia, Gretchen, República dos guaranis, Guerra do Brasil (Sylvio Back, 1976, 1978, 1986), Morte e vida severina (Zelito Viana, 1977). Como diretor, faz quatro filmes de curtametragem e um longa, Parceiros da aventura (1979).

A história pessoal de José Medeiros na revista O Cruzeiro colocou-o estrategicamente no lugar certo, na hora certa. Como os acontecimentos decorrentes da publicação da Paris Match foram acirrados no mês de julho, Medeiros estava perto da Bahia para tentar contrapor a “visão brasileira” do candomblé que a revista O Cruzeiro queria, e era ele o fotógrafo com o perfil mais adequado para tal. A conjunção dos fatores levou-o à Bahia e o embate editorial com a Paris Match tornou-se um desafio pessoal, conforme nos disse em 1988. Queria ele mostrar o “verdadeiro candomblé”, e não o “candomblé para turista” de Clouzot. Assim, Medeiros recebe a carta de Leão Gondim, em tom desafiador e de muito mistério, cobrando-lhe, dessa maneira, uma atitude de desafio pessoal, profissional e de cunho nacionalista, elevando-o à condição de um fotógrafo singular que poderia contrapor seu olhar brasileiro à visão estrangeira sobre o candomblé. Assumindo então uma atitude de enfrentar o tenso mundo religioso do candomblé da Bahia pós-reportagem de Clouzot, Medeiros leva consigo seu parceiro Arlindo Silva para um terreiro da periferia, longe dos terreiros tradicionais, e produzem a matéria “As noivas dos deuses sanguinários”, considerada como exemplo do fotojornalismo brasileiro.

Da reportagem para o livro, a redenção de Medeiros

A passagem da reportagem “As noivas dos deuses sanguinários”, publicada em 15 de setembro de 1951, para o livro Candomblé, em 1957, transformou o fotojornalismo sensacionalista em uma documentação

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 135

fotoetnográfica singular. A reportagem foi publicada com 38 fotografias, proposta da reportagem ilustrada, clássica da revista O Cruzeiro, que era fazer com que o olhar do leitor navegasse sobre um volume muito grande de imagens. A diagramação da revista propiciava esse olhar narrativo de imagem a imagem, na qual as legendas reforçariam um contexto imagético preferencial. Nadja Peregrino5 faz uma análise da diagramação da revista O Cruzeiro, utilizando como exemplo a própria reportagem em questão. Para essa autora, a narrativa na revista é organizada como uma crônica visual, tendo as fotografias como sua matéria-prima, na fusão do trabalho do fotógrafo com as outras informações gráficas. O seqüenciamento fotográfico é intercalado com certas intensidades visuais pontuais. A disposição das imagens em página inteira acontece em momentos fortes da seqüência, como a primeira e a última imagem. Muitas vezes uma fotografia editada em página inteira apresenta em destaque uma outra imagem menor sobreposta, criando tais intensidades pontuais dentro da narrativa; são pulsões de ruptura da linearidade e funcionam como pontos de passagem para o plano do imaginário do leitor; escapam, portanto, de uma cadeia sintagmática, própria da fotorreportagem, colocando o olhar em situação ativa. A riqueza da diagramação torna a leitura visual atrativa pela não-repetitividade de procedimentos, surpreendendo o leitor a cada página. A clássica seqüência de quatro imagens em uma mesma página, com cada uma ocupando um quarto do espaço, é repetida na página ao lado, tornando a dupla página um dos momentos mais fortes da narrativa. Um pequeno detalhe imposto pela diagramação nesse momento denuncia a intencionalidade sensacionalista da reportagem. O final de uma frase de uma simples legenda colocada em maiúsculas e em negrito escapa da parte inferior de uma das imagens e continua na imagem ao lado, acentuando o caráter sensacionalista já explicitado no próprio título da matéria: “Sacrifício a Yamanjá. As degolas tiveram início às duas e meia da madrugada, prolongando-se até às quatro e meia. Esse ritual sangrento não é porém [grifos nossos] UM ÍNDICE DE CRUELDADE. As divindades das religiões fetichistas africanas banqueteiam-se com sangue. E o sangue lhes é oferecido assim [...]”. Ao passar de uma página a outra e não de uma legenda a outra, o

136 I MAGENS DO SAGRADO
5 Ver Nadja Peregrino, O Cruzeiro — A revolução da fotorreportagem. Rio de Janeiro: Dazibao, 1991.

leitor relaciona imediatamente o destaque citado com o título colocado no alto e à esquerda da página dupla, “O 

”, descontextualizando o próprio texto de Arlindo Silva e conduzindo a uma leitura equivocada do sentido da frase.

O texto incorre em expressões que adensam a dramaticidade do evento religioso, da mesma forma que em Roger Bastide, em outras vezes acentua o caráter sensacionalista, mas sem comprometer no conjunto o grau de detalhamento da cerimônia. Considerando a falta de familiaridade de Arlindo Silva com o candomblé e os procedimentos ritualísticos e com a linguagem própria do culto, associada ao pouco tempo que estiveram dentro do terreiro e ao fato de o texto não ter sido trabalhado posteriormente para publicação, podemos dizer, à parte sua dramaticidades e alguns exageros lingüísticos, que o texto tem qualidades muitos superiores ao da Paris Match. Clouzot prende-se a explicações psicanalíticas e muitas de suas passagens são preconceituosas e pejorativas, principalmente quando se refere a sua empregada doméstica, “seu objeto de estudo próximo”, como portadora de uma natureza animalesca. Tal não acontece com o texto de Arlindo Silva, que enobrece o ritual como uma tradição africana no Brasil:

Hoje os negros são livres e fazem soar apenas os seus atabaques ritualísticos [...]. De repente, entre os espectadores, uma jovem negra é acometida de movimentos convulsivos. A mãe-de-santo, suprema dignidade do rito, corre a ampará-la. É uma negra alta, de cabeça grisalha, que chegou ao posto em virtude dos seus conhecimentos do ritual e da pureza de sua linhagem africana.

Por quatro vezes o texto assinala o caráter “bárbaro” do ritual, no sentido de uma cerimônia “selvagem e primitiva”, como é enfatizado na introdução à reportagem: “E é esta reportagem, que ora publicamos, realizada pelos dois únicos jornalistas brasileiros que até hoje assistiram às práticas secretas da religião negra professada na Bahia, que vem revelar, ao mundo civilizado, a estranha história das noivas dos deuses sanguinários”. Estavam, então, os repórteres, como mensageiros da civilização, criando uma ponte com o mundo “estranho e sanguinário de uma cerimônia bárbara”. E conseguiram tal feito porque ocorria “[ ] a popularidade e o prestígio de O C em todas as camadas sociais”. Clouzot e a revista Paris

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 137
  

Match em nenhum momento são citados no texto, seria uma associação implícita para os leitores privilegiados que acompanharam o caso.

Foram publicadas 62 fotografias no livro Candomblé, de 1957, das quais apenas 23 são as mesmas das 38 publicadas na reportagem de O Cruzeiro do dia 15 de setembro de 1951, ou seja, 39 fotografias são inéditas, o que demonstra que a documentação feita por Medeiros era muito mais rica do que a edição apresentada na revista. Medeiros é o autor do livro e, assim, fez uma edição própria ao seu olhar, diferentemente da reportagem, na qual muitos fatores influenciaram a edição das imagens.

Logo na introdução do livro, Medeiros cita os estudos de Nina Rodrigues e de Arthur Ramos como as primeiras pesquisas científicas do candomblé como religião, mas diz que eles não “conseguiram desvendar os rituais secretos da iniciação das filhas-de-santo”. Ao demonstrar o conhecimento de tais trabalhos, Medeiros quer diferenciar e descolar a edição do livro da reportagem. Cita ainda o clássico livro de Édison Carneiro, Candomblé da Bahia, e afirma haver neste somente uma passagem rápida sobre o assunto e acentua o fato de o próprio autor não ter presenciado tais cerimônias: “Confessou-me ele, aliás, que, durante os seus oito anos de freqüência aos candomblés de sua terra, nunca lhe foi permitido assistir a nenhum dos rituais secretos a que só figuras importantes da própria seita é dado presenciar”. Medeiros cita que o material editado no livro é acrescido de outras imagens colhidas posteriormente, mas em todo o conjunto nunca são explicitados datas, nomes e eventos nos quais tais imagens foram realizadas, comprometendo uma etnografia fotográfica. O texto que acompanha as imagens é meramente descritivo, de muita superficialidade, sem adjetivações e dramaticidades como os termos usados na reportagem. O texto aparece como um enxugamento do relato de Arlindo Silva, mas com muito menos detalhes. Entretanto, o conjunto fotográfico e a nova edição das imagens tornam a dinâmica da leitura diferente da reportagem, pois não existe uma diagramação voltada para a ilustração jornalística, e as imagens passam a ter autonomia. As fotografias colhidas em outros candomblés intercalam-se com as imagens da iniciação no terreiro de Mãe Riso. São imagens de festas públicas e principalmente de representações de orixás com suas vestes, adornos e instrumentos que lhes são próprios e os identificam. As imagens dos orixás são quase todas posadas e feitas com luz natural, em ambiente externo, contrastando com as imagens da iniciação realizadas em ambiente interno sem iluminação e sensibilizadas com luz artificial. Medeiros tenta

138 I MAGENS DO SAGRADO

mostrar algumas diferenças ao incorporar imagens de candomblé de caboclo, principalmente quanto às suas vestes e na relação com o indígena brasileiro, mas o faz com muita superficialidade, não deixando ao leitor ambigüidades em relação ao ritual fotografado de tradição angola. Entre as imagens colhidas por Medeiros, e que fazem uma tentativa de contextualização do ritual de iniciação como uma cerimônia mais longa do que sua documentação, uma se destaca: é a foto na qual Joana de Egum foi reconhecida por várias pessoas que viram o livro, no tradicional presente que ela fazia a Iemanjá. Tal imagem não tem relação com a cerimônia de iniciação e muito menos com o terreiro de Mãe Riso. Da mesma forma, uma fotografia de um pai-de-santo ornamentado com colares e adornos em posição de jogar os búzios para fazer adivinhação é descontextualizada das imagens e não pertence à rede de Riso. Até mesmo o telhado de um terreiro que aparece para ressaltar Ossãe não é do terreiro de Riso, que seria coberto de palha, conforme sua irmã Leleta.

Ao não ter os elementos contextualizadores das imagens, ao não nomear as pessoas fotografadas, ao não identificar locais, datas e situações, Medeiros faz por enfraquecer seu material original, pois tenta criar contextos falsos para as imagens originais realizadas em 1951 no terreiro de Mãe Riso da Plataforma. Entretanto, a força das imagens e a sua singularidade permitem que elas tenham autonomia estética, além de constituírem uma documentação descritiva, tornando o conjunto fotográfico da iniciação das três iaôs um marco nas relações entre mídia, antropologia e imagem. Riso tinha consigo um exemplar do livro e não um exemplar da revista, talvez por perceber algumas dessas diferenças e por não querer levar consigo a carga negativa que a reportagem lhe impôs, ausente na edição do livro. Medeiros, de certa forma, redimiu-se ao publicar o livro.

A reportagem de O Cruzeiro

AS NOIVAS DOS DEUSES SANGUINÁRIOS

Dois repórteres de “O Cruzeiro” desvendam mistérios do mundo ritualístico e bárbaro dos candomblés da Bahia — A iniciação das “filhas-de-santo” — Ma-

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 139

nifestação de uma divindade feminina — Cenas de um cerimonial secreto em toda a sua grandeza primitiva.

Texto de A S Fotos de J M

Abrimos espaço para uma reportagem que se destina à mais ampla repercussão dentro e fora do país. Ao entregá-la ao público, está certo o O C de que se trata não só de uma grande realização jornalística, mas também de uma documentação fotográfica inédita e tanto quanto possível completa sobre a mais impressionante prática fetichista dos negros baianos: a iniciação das “filhasde-santo”. Não é difícil, pois, avaliar as enormes dificuldades que os repórteres encontraram no cumprimento de sua audaciosa missão, levados que foram a infringir uma severa norma sagrada que restringe às pessoas iniciadas a graça de assistir aos cerimoniais secretos dos candomblés. Durante quatro semanas, os repórteres permaneceram na Cidade de Salvador, entrando em contato com os mais destacados chefes das agremiações negras da Bahia. Tudo, porém, só corria bem até o momento em que se tocava no assunto principal da reportagem: a iniciação das “filhas-de-santo”. Isso era o bastante para que os  e -- se tornassem esquivos, enchendo-se de sombria e temerosa desconfiança. Uma força, entretanto, atuava em favor de Arlindo Silva e José Medeiros: a popularidade e o prestígio de O Cruzeiro em todas as camadas sociais. Um dia, quando já estavam quase desfeitas todas as esperanças, chegou a esta redação um lacônico telegrama: “Seguiremos amanhã com a reportagem no bolso”. E é esta reportagem, que ora publicamos, realizada pelos dois únicos jornalistas brasileiros que até hoje assistiram às práticas secretas da religião negra professada na Bahia, que vem revelar, ao mundo civilizado, a estranha história das noivas dos deuses sanguinários.

É noite na Cidade da Bahia. O cais está deserto, as luzes das ruas cintilam ao longe. A cidade dorme no seu mundo de contrastes. Vem, dos arredores, o rumor surdo dos atabaques. Agora, que emudeceram na noite os sinos das igrejas centenárias, uma força misteriosa se desencadeia sobre a cidade mais religiosa do Brasil. São negros baianos que invocam os seus deuses. Estão reunidos num local afastado, em plena mata, onde construíram o pavilhão sagrado a que dão o nome de barracão. Das paredes, tapadas com folhas de palmeiras, pendem inscrições numa mistura de português e nagô, e o teto é ornamentado com flâmulas vermelhas, azuis e amarelas. Três negros continuam a fazer soar os atabaques. À esquerda, sobre um estrado, estão colocadas as cadeiras dos sacerdotes. Em volta

140 I MAGENS DO SAGRADO

da coluna central do barracão, as “filhas-de-santo” ou dançarinas cerimoniais começam a dançar. Os atabaques entram num ritmo acelerado e vibrante. São tambores de madeira, medindo cada um mais ou menos meio metro de diâmetro, e formando um conjunto de três. O maior deles é o ilu e tem quase dois metros de altura. Ao médio chamam rumpi e o menor tem nome de lé. Os negros batem com as mãos sobre o couro esticado, mas os sons mais fortes são obtidos por meio de baquetas. Na noite do candomblé já não se ouve o batá-cotó, o tambor guerreiro das insurreições de escravos. Hoje os negros são livres e fazem soar apenas os seus atabaques ritualísticos. O rumor cresce dentro da noite, ensurdecedor, anunciando os deuses que vão chegar. Outros instrumentos menores compõem a orquestra bárbara, o bitonal agogô, o piano-de-cuia, que é uma grande cabaça contendo pedrinhas e ornamentada com búzios importados da África, o caxixi e o xaque-xaque, este último um instrumento oco de metal, contendo seixos nas extremidades, e que produz, ao ser agitado, o ruído que lhe dá o nome. O barracão é mal iluminado. Na noite quente, espalha-se no ar o cheiro de plantas aromáticas e excitantes. A atmosfera do barracão é densa e abafada. Em volta, toda uma assistência de fiéis se comprime para ver dançar as “filhas-de-santo”. O bater ritmado dos tambores sagrados, o calor sufocante, o aroma das plantas exóticas, a fisionomia impassível das imagens nos seus altares iluminados com velas, tudo isso concorre para envolver a assistência numa onda de expectativa depressiva. A tensão chega ao auge. De repente, entre os espectadores, uma jovem negra é acometida de movimentos convulsivos. A mãe-de-santo, suprema dignidade do rito, corre a ampará-la. É uma negra alta, de cabeça grisalha, que chegou ao posto em virtude dos seus conhecimentos do ritual e da pureza de sua linhagem africana. Logo em seguida, outra mulher entra em transe e se atira ao chão. Nesse momento, os atabaques aceleram o ritmo, como se um frenesi se apoderasse dos tocadores. A assistência, extasiada, vê sucessivamente mais três mulheres “caírem no santo”. Elas se destacam da massa de espectadores e, correndo para o centro do “terreiro”, param, de súbito, contraem firmemente os músculos, fecham os olhos, emitem sons desarticulados, esbracejam, dançam, batem com os pés, rodopiam à luz das velas, sob a coação mágica dos tambores sagrados. A mãe-de-santo já não pode socorrer a todas. Vem, em seu auxílio, outra dignidade do rito, a jibonam ou mãe-pequena, cuja função principal é ajudar às dançarinas durante a execução das obrigações rituais. Estamos assistindo, nesse instante, à “chegada” dos orixás ou deuses negros do culto gegê-nagô da Bahia. Os ogans, pessoas credenciadas junto aos candomblés, mantém os espectadores afastados do local das danças. Uma das mulheres não resiste e se deixa vencer pela fadiga. O seu orixá é violento e a tortura, desferindo sobre ela como que

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 141

consecutivos golpes de um chicote invisível. Ela tem o rosto coberto de suor, os punhos cerrados, e seu corpo estrebucha no chão. Em meio ao rumor dos atabaques, ouve-se, então, o seu grito de angústia: — Me dê água! É crença, entre os fetichistas, de que um gole de água pode impedir que a divindade negra entre no corpo. Essa mulher, com certeza, não está em condições de “receber o santo”. As outras, porém, continuam a dançar. O ritmo dos atabaques é cada vez mais frenético, e os tocadores trazem estampada no rosto uma incontida alegria, porque os deuses estão, afinal, se manifestando. Entre os circunstantes, ouvem-se expressões de entusiasmo quando alguém identifica, no corpo convulso de uma das mulheres que dançam, a presença de Ogum, o poderoso deus da guerra. O reconhecimento da divindade, porém, é feito pela mãe-de-santo. Agora a sua voz se eleva, dentro do barracão, cantando um salmo sagrado. De acordo com o orixá invocado, varia o toque dos atabaques. Uma das mulheres descreve uma volta com o corpo, outra tem as mãos unidas atrás das costas, outra subitamente se deita e, diante dos tambores, o corpo apoiado nas mãos e nos pés, toca a cabeça no chão coberto de areia. Todas elas, tendo recebido espontaneamente os orixás, serão iniciadas como “filhas-de-santo”: os deuses lhes concederam essa graça. Em volta, e mantendo sempre os espectadores afastados do local das danças, os ogans se conservam atentos. São estivadores e vendedores ambulantes, gente do cais e das ruas da Bahia. Ouve-se, ao ritmo dos atabaques, às vezes monótono e grave, um acompanhamento vocal constituído de frases curtas — sobrevivências de cantigas trazidas no bojo dos navios negreiros. A mãe-de-santo está satisfeita: o seu terreiro foi honrado com a manifestação de vários orixás que querem ser “feitos” ali, e é necessário preparar os novos instrumentos de comunicação entre as divindades e os homens — as “filhas-de-santo”. Para isso, terá que obter o consentimento das respectivas famílias, embora ela saiba que ninguém ousará contrariar a vontade dos deuses. A mulher que, depois da “visitação” do orixá, fugir à iniciação do culto, por livre vontade ou por pressão dos parentes, atrairá sobre si a ira do santo que nela se manifestou. Oxum a castigará com terríveis dores no ventre. Omolu, o deus da bexiga e da peste, cobrirá de lepra o corpo daquela que se recusar a servi-lo. Ogum a levará à loucura. No candomblé, todos os deuses sabem castigar e ferir. De repente, a um sinal do agogô, os atabaques de novo retumbam no pavilhão sagrado. Ao redor da mãe-de-santo, as mulheres se debatem e retomam a dança com os mesmos movimentos convulsivos. Ouvem-se gemidos trêmulos, latidos como os de um cachorro, gritos agudos e desarticulados. Todo o barracão estremece. São três novas eleitas dos deuses que surgem na noite negra da Bahia.

142 I MAGENS DO SAGRADO

OS MISTÉRIOS DA “CAMARINHA”

Para sagrar-se “filha-de-santo”, a iniciante, ou iaô, tem que se submeter a um período de provações e sacrifícios, preparando-se para a missão de hospedeira das divindades. Enclausuram-na numa pequena cela a que chamam camarinha, onde ela permanece pelo espaço de dezesseis dias, antes de tomar parte na primeira cerimônia. Voltando à camarinha, isolada de todo convívio, a iaô é internada por um período que pode variar de seis meses a um ano. Aprende, então, os rituais do culto, os cânticos sagrados e rudimentos de uma das línguas africanas: o nagô, o jejê, o ijexá, o queto, o egbá ou o musurumi. É submetida a uma alimentação especial e a banhos aromáticos ao ar livre, preparados com folhas que são colocadas dentro do vaso pertencente ao santo. Durante o noviciado, a iaô se abstém completamente de relações sexuais, sendo de notar que muitas delas são casadas. Sua alimentação consiste de mingau de milho e de folhas. Por cama, lhe dão uma esteira. Dentro da camarinha, que não tem janelas, a escuridão é total. Ali só podem entrar a mãe-de-santo e a “mãe-pequena”, sua auxiliar. Antes, porém, tem que “pedir licença”, o que fazem batendo palmas e dizendo: — Iaô onipaô.

AS NOIVAS DOS DEUSES SANGUINÁRIOS

Geralmente, durante o período de internamento na camarinha, as iaôs se acham possuídas por “espíritos” inferiores, de índole infantil, a que dão o nome de erês. Por esse motivo, ali se encontram vários brinquedos para distração dos travessos “espíritos”: carrinhos de lata, pedrinhas coloridas, pincéis, tintas, lápis de cor. Essa a razão pela qual as paredes da camarinha estão sempre cobertas de garatujas, de desenhos idênticos aos que as crianças costumam fazer. De vez em quando, os erês se tornam tão insuportáveis nas suas traquinagens, que precisam ser castigados para se acomodarem. Então a mãe-de-santo vai à camarinha e, com uma palmatória, espanca a iaô portadora do erê, acalmando assim o irriquieto “espírito”. Não raro, em vez de bater com a palmatória, a mãe-de-santo esfrega no corpo da iaô uma folha de urtiga a que chamam de cansanção. O “espírito”, porém, é por demais travesso, e por vezes a iaô, impelida por ele, arromba a murros a porta da camarinha, indo brincar ao ar livre. Para prevenir tais fugas, a mãe-de-santo amarra xaraôs, ou chocalhos, nos tornozelos da iaô, podendo assim localizá-la a distância. É necessário que as iaôs permaneçam encerradas na camarinha, cumprindo rigorosamente o noviciado, e para isso a mãe-de-santo se mantém vigilante. Por fim, desde que a iniciante se revele digna do seu santo, as camarinhas se abrem para o mais secreto dos cerimoniais fetichistas.

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 143

AS “FILHAS DE SANTO”

Uma nova noite envolve a Bahia bárbara e mística dos candomblés. Em companhia da mãe-de-santo e de sua auxiliar, entramos na camarinha que vai ser abandonada hoje. Mal nos pressentem, as iaôs se levantam das esteiras com grande alarido. Estão possuídas pelos erês. Uma delas avança na nossa direção, fazendo gestos confusos, e, por fim, agarra as nossas mãos para beijar. É uma jovem negra de traços harmoniosos, tendo, em volta do pescoço, um colar de búzios africanos. A outra se agita no fundo da camarinha mal iluminada e, como se nos tomasse por dignidade do rito a ser celebrado dentro em pouco, nos pede a bênção. A outra, a terceira, reintegrada no mundo infantil pela atuação do erê, justamente a que está mais possuída, estende a mão e nos pede uma moeda de tostão. De repente, todas três se entregam a grande algazarra, mas logo a mãede-santo, fazendo soar o adjá, uma pequena sineta, afasta os “espíritos” infantis que as perseguem. Tudo é rápido como num passe de mágica. À luz da única vela que alumia o cômodo, vemos as três negras caírem em transe ao toque do instrumento sagrado.

Ia ter início a primeira fase do cerimonial secreto. Ajoelhando-se diante do altar, a mãe-de-santo murmurou uma prece em língua africana. A sua auxiliar alumiava o altar com a vela, e a luz incidia sobre as cabeças tosquiadas das três negras sentadas à nossa frente. No santuário, viam-se os fetiches dos orixás: um arco e flecha, uma frigideira de barro, uma concha do mar e piaçava com búzios. De repente, a mãe-de-santo se ergueu e os seus olhos se dirigiram para as iaôs que nós observávamos. Num gesto firme e decidido, abriu uma navalha e encaminhou-se para a primeira delas, a que ia ser “feita” em Oxóssi, o deus da caça. A “mãe-pequena”, como se obedecesse a uma ordem secreta, trouxe a vela para mais perto. Nesse momento, a mãe-de-santo fez correr a navalha sobre a cabeça da iniciante, sentada em uma cadeira. Um ruído áspero, de metal raspando couro, indicava o começo da epilação. A cabeça da negra tinha movimentos bruscos sob a ação da navalha. Um doce canto nagô, que a mãe-de-santo começou a entoar, veio, porém, transfigurar a cerimônia bárbara:

Indé bunecô, indé bunecô

Catualá junsun tira mokunã

Indé bunecô

144 I MAGENS DO SAGRADO

Do lado de fora, as “filhas-de-santo” respondiam em voz baixa, batendo palmas. Um leve toque de atabaque as acompanhava. Eram vozes litúrgicas que se elevavam na noite, enquanto a navalha, no interior da camarinha, ia deixando lisa como um ovo a cabeça da iaô. As outras duas permaneciam sentadas, imóveis, sobre a esteira, com as mãos no quadril direito, como se estivessem sentindo uma dor. Para amolecer o cabelo que raspava, a mãe-de-santo esfregava na cabeça da iaô uma mecha de palha da Costa embebida em espuma de sabão também da Costa africana. Assim que a cabeça da “filha” de Oxóssi ficou completamente lisa, a cadeira foi ocupada pela “filha de Omolu”, o deus da varíola e da peste. Mais uma vez, a mãe-de-santo recitou uma prece diante do altar, e, em seguida, iniciou a nova epilação. Assistimos a um cerimonial em tudo parecido com o primeiro, menos no canto ritualístico com que a mãe-de-santo fazia acompanhar a raspagem da cabeça da iaô. Para Omolu o canto era diferente:

Orixá ma bé

Todimá beberéré Jacolô undó ma bé...

Do lado de fora, como da vez anterior, as “filhas-de-santo” respondiam em voz baixa, batendo palmas. E o mesmo leve toque de atabaque as acompanhava. Finda a epilação, a “filha” de Omolu foi substituída na cadeira pela última das iaôs Esta ia ser “feita” em Iemanjá, a rainha do mar. Tudo se repetiu como das outras vezes, variando apenas o canto. Antigamente, disse-nos mais tarde a mãe-de-santo, eram raspadas todas as partes pilosas do corpo da iaô. Hoje, porém, a epilação se restringe à cabeça. Este trabalho, sob as nossas vistas, durou aproximadamente hora e meia. De repente, imaginamos que uma nova cerimônia se ia iniciar. Raspada a cabeça da filha de Iemanjá, a mãe-de-santo a levou para a esteira, trazendo de volta à cadeira a “filha” de Oxóssi. À luz de vela, a cabeça da iaô brilhava. Em seguida, observamos que a mãe-de-santo tornava a empunhar a navalha. Que iria ela mais raspar? O aço da navalha reluzia na mão da sacerdotiza negra. Vimo-la, então, apoderar-se do braço direito da iaô e, desferindo uma sucessão de golpes rápidos, fazer na carne moça da iniciante sete profundas incisões. A iaô, porém, se mantinha imóvel, não contraía um só músculo. Tinha a fisionomia extática. Sob as nossas vistas, o sangue grosso aflorava à pele e, depois de mais duas incisões em forma de cruz, acima das sete primeiras, foi com dificuldade que pudemos controlar os nervos: o braço da iaô estava completamente banhado em sangue. Rápida, a mãe-de-santo tomou de um pires onde havia uma pasta feita de ervas sagradas misturadas com óleo, e com ela untou todos os cortes. A flagelação,

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 145

porém, ía continuar: ainda faltava o braço esquerdo. O mais impressionante, entretanto, é que não parou aí: a navalha continuou o seu trabalho nas costas da iaô, mais ou menos na altura da omoplata esquerda. Dessa região passou ao peito e, por fim, empunhando sempre a navalha ensangüentada, a mãe-de-santo fez mais duas incisões bem no centro da cabeça da iaô, em forma de cruz — a navalha cortando num rangido o couro cabeludo.

Já então chamava a iaô de “santo”: — Abra a boca — mandou. — Bota a língua pra fora.

E a língua foi coberta com o pó de ervas sagradas. Com a língua para fora, a iaô era um instrumento passivo do seu “santo”. Foi quando a mãe-de-santo apanhou uma garrafa de cachaça com uma cobra coral dentro. Pondo uma dose num copo, fez com que a iaô bebesse e, bebendo, engolisse ao mesmo tempo o pó que lhe dera. Como a raspagem da cabeça, o ritual da flagelação foi repetido com as outras duas iaôs, sempre na cadeira. Durante mais de uma hora, assistimos a esse dilacerar de carnes ali na camarinha. A navalha não parava. O cheiro de sangue se misturava com o cheiro de suor, as “filhas-de-santo” entoavam lá fora os seus cânticos sacros, e o atabaque era um gemido rouco dentro da noite. A mãede-santo revelava minúcia nas suas incisões. A navalha feria e o sangue brotava, quente, palpitando de vida. Por fim, a última incisão foi feita, e as três iaôs se prostraram sobre as esteiras em atitude de oração. Víamos, diante de nós, aqueles três corpos humanos retalhados e ofegantes, e não entendíamos uma só palavra da prece que arrancavam de dentro de si como roncos. De repente, a mãe-de-santo agitou por três vezes uma toalha branca, e de novo os erês se apossaram das três mulheres, cessando a atuação dos “santos”. O cerimonial servira para “fechar o corpo” das iaôs, livrando-as do mal, e agora a porta da camarinha se cerraria até à madrugada, quando a cerimônia da “iniciação” deveria continuar. Em silêncio, deixamos o recinto em companhia da mãe-de-santo e da “mãe-pequena”. Lá fora, o atabaque já não soava. Era mais de meia-noite.

SANGUE NO ALTAR DOS DEUSES

Uma onda de ruídos vem quebrar o silêncio que envolve o terreiro. Ouvem-se grunhidos de porcos e berros de bode. Cantam galos e galinhas cacarejam. São os animais que vão ser sacrificados dentro em poucos minutos, em holocausto aos deuses negros da Bahia. Aproximamo-nos do cercado e contamos: dois bodes, um porco, quatro galinhas, quatro galos, três patos, três cocás ou galinhas-d’angola. De repente, vem juntar-se a esses ruídos o bater ritmado de um atabaque. É que a mãe-de-santo já anunciou que está na hora da matança. Ao ouvir o som

146 I MAGENS DO SAGRADO

do atabaque, os que se achavam dormindo se põem de pé, inclusive as três iaôs recolhidas à camarinha. São quase três horas da madrugada. O atabaque continua a bater, chamando as “filhas-de-santo”. Elas não tardam a se reunir à mãe, e todas se dirigem em seguida para a camarinha. Ao chegarem ali, um grande pano branco, do tamanho de um lençol, é aberto à guisa de pálio. A porta da camarinha se descerra. Surgem então, lentas, uma atrás da outra, as iaôs, e se colocam sob o pálio. O cortejo desfila num ritmo processional. Algumas tochas brilham na escuridão, clareando o caminho. Pendem dos pescoços das mulheres longos colares de búzios vindos da África. Dentro em pouco, o cortejo chega à porta de uma espécie de capela, que é o santuário negro ou peji. Os atabaques, indispensáveis em todas as cerimônias, soam gravemente. No interior do peji, porém, só penetram a mãe-de-santo, a “mãe-pequena” e as três iniciantes. O pálio é recolhido e ficam do lado de fora as “filhas-de-santo” e os tocadores de atabaques. Contudo, para auxílio do trabalho da matança, é ainda permitida a entrada de dois ogans no santuário.

Diante do altar ornamentado com as insígnias e os fetiches dos orixás, as iaôs se sentam. Em seguida, a mãe-de-santo fez soar o adjá e os “santos” baixam, entrando na posse de suas “filhas”. Trazem o primeiro animal a ser sacrificado. É um pequeno porco. Auxiliada pela “mãe-pequena” e pelos ogans, a mãe-de-santo ergue o animal sobre a cabeça da “filha de Oxóssi” e, de um só golpe, corta-lhe a garganta. O porco entra em movimentos desesperados, fazendo espirrar sangue por toda parte. A iaô, porém, recebe na cabeça raspada a maior quantidade desse sangue. Quando o animal entra em agonia, a mãe-de-santo o conduz para junto do altar, deixando cair o resto do sangue na tigela de Oxóssi. Depois decepa a cabeça do animal sacrificado, corta-lhe os pés e os órgãos genitais, depositando também essas partes na tigela do santo. Depois trazem uma galinha. E a mãe-desanto procede da mesma maneira. Do peji, enquanto lá fora as “filhas-de-santo” cantam, partem gritos de dor dos animais imolados. Agora a mãe-de-santo entoa o hino sagrado em língua queto:

Ô Sanji bate la sauji

Ô Sanji atororô...

E as “filhas-de-santo” respondem em coro, acompanhadas por um leve toque de atabaque. À medida que sacrifica cada novo animal, a mãe-de-santo canta para o coro responder do lado de fora. Um galo agora é sangrado, e um jato de líquido vermelho e quente vai cair sobre a cabeça raspada da iaô. O sacrifício do galo é acompanhado por uma variante do cântico anterior.

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 147

O pé pé bate o pé Azazá atororô...

Como sempre, as “filhas-de-santo” respondem em coro e o atabaque soa de leve. Trazem, depois, uma galinha-d’angola. A mão da sacerdotisa negra, tão hábil em manejar a navalha, não o é menos ao vibrar a faca da matança sagrada. Basta um só golpe, e a galinha-d’angola estrebucha entre os dedos da “mãe-pequena”, fazendo jorrar sobre a yaô o seu sangue grosso. E vem o cântico especial:

Gindin atarará gingin Oluandêêêêê...

E as “filhas-de-santo” mais uma vez respondem, secundadas pelo leve bater do atabaque. Diante da mãe-de-santo, a filha de Oxóssi tem a cabeça e os membros inundados de sangue. As penas da galinha-d’angola, atiradas sobre ela, aderem à pele como estranhos ornatos. Fica, assim, terminada a mantança para Oxóssi Agora é a vez de Iemanjá. A cerimônia começa com a matança de um bode. Por ser um animal de grande porte, dá muito trabalho mantê-lo erguido sobre a cabeça da iaô. A mãe-de-santo é auxiliada pela “mãe-pequena” e pelos ogans e, depois de muito lutar para conter o animal, pôde, enfi m, atravessar-lhe a garganta com a faca. A iaô recebe um verdadeiro banho de sangue — sangue abundante e rubro que lhe escorre pelos membros e forma uma poça no chão. Suspenso sobre a cabeça da iniciante, o bode berra, estrebucha violentamente. Apanhando no altar o vaso de oferendas de Iemanjá, a mãe-de-santo recolhe nele o resto do animal. Em seguida, secciona-lhe os pés, os órgãos genitais e a cabeça com grandes chifres. Sucessivamente, são sacrificados um galo, uma galinha, um pato e, finalmente, uma galinha-d’angola, cujas penas são também atiradas sobre o corpo coberto de sangue da segunda iaô

O holocausto a Omolu vem por último. Um novo bode é imolado, e depois dele um galo, uma galinha, um pato, terminando o sacrifício igualmente com a cerimônia das penas de galinha-d’angola. Um cântico especial acompanha o último sacrifício;

Fala-éé bacunum Fala-éé akikô...

Suando, as mãos ensangüentadas, a mãe-de-santo pousa finalmente a faca no chão. Estão terminadas as núpcias sangrentas das iaôs com os deuses negros dos candomblés da Bahia. À nossa frente, curvadas, exaustas, as novas “filhas-de-santo”

148 I MAGENS DO SAGRADO

constituem como que um grande, um imenso, um único coágulo de sangue no chão do santuário bárbaro. Finalmente, a um sinal da mãe-de-santo, elas são levadas a um cercado no fundo do quintal e despidas para a ablução ritualística, que é feita com água perfumada com ervas sagradas. Depois do banho, a roupa usada durante o batismo de sangue é dada para guardar e não lhe será mais devolvida. Essa mesma roupa, reunida a objetos do culto que lhe pertenciam, é atirada ao mar, depois de sua morte, para que as ondas levem tudo de volta à África.

ESCRAVAS DOS SANTOS

Uma nova cerimônia tem lugar à tardinha desse mesmo dia. Uma grande paz descera sobre o terreiro deserto, mas de repente os atabaques voltam a soar. A mãe-de-santo se dirige apressadamente para a camarinha, e mais uma vez permite que a acompanhemos, embora a cerimônia seja secreta. Ao entrarmos, vamos encontrar as três iaôs nas suas esteiras. Elas se mostram como que privadas de qualquer ação consciente. Embora o sol ainda brilhe lá fora, aqui no interior da camarinha estamos com uma vela acessa. Dos corpos das três mulheres se desprende um cheiro exótico e penetrante: não cessaram ainda os efeitos das ervas aromáticas do banho sagrado. Lá fora, os tambores batem vagarosamente. A mãe-de-santo, auxiliada sempre pela “mãe-pequena”, dá então início ao efum. Desta vez, não se trata de nenhuma cerimônia sangrenta. A mãe-de-santo pinta a cabeça das iniciantes, fazendo sobre elas vários círculos coloridos. As cores, como os cânticos sagrados de outras práticas, variam de acordo com o santo: para Iemanjá, branco; para Omolu, verde; e vermelho para Oxóssi. Também os pés são pintados, mas com outro critério, em vez de círculos são riscos compridos que obedecem à direção dos dedos. É uma cerimônia rápida e simples. Logo em seguida, a mãe-de-santo deixa de novo a camarinha, onde as iaôs permanecerão incomunicáveis durante mais algumas horas. Nessa noite, as iaôs, “feitas” filhasde-santo, revelarão publicamente os nomes dos “santos” que as possuem. No dia seguinte, durante o banquete realizado especiamente para este fim, comerão todas as partes dos animais recolhidas no vaso de oferendas na noite da matança: as cabeças, os pés e os órgãos genitais. As despesas feitas com a iniciação somam alguns milhares de cruzeiros. As que puderem pagar terão permissão para deixar o candomblé logo depois da “feitura” do santo. As outras ficarão trabalhando como escravas para a mãe-de-santo, até que tenham juntado dinheiro para sua alforria. Todas elas, porém, se tornarão para sempre escravas do “santo” que “baixou” sobre elas e lhes “entrou” no corpo. Esta é a lei do candomblé da Bahia e os deuses negros assim o querem.

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 149

Novamente Bastide

Não encontramos nenhuma manifestação, contra ou a favor, sobre a reportagem “As noivas dos deuses sanguinários”. Um silêncio sepulcral abateu-se nos jornais e revistas. Esperávamos, depois da fúria incontida contra o estrangeiro usurpador de nossa cultura, que ao menos os mesmos jornalistas e intelectuais se manifestassem como fizeram com Clouzot. Alguns caminhos podem ser explicativos. Medeiros era amigo de todos eles, companheiro de trabalho de vários jornalistas, e uma pessoa muito amável, como todos assim se referiam a ele. Já tinha na época uma admiração profissional de seus próprios pares. Junte-se a esse aspecto afetivo, de difícil resolução, a questão de colocar-se em oposição a um semanário nacional da importância de O Cruzeiro, com a força devastadora de seu dono, Assis Chateaubriand, e da rede dos Diários Associados. Todos silenciaram, menos um, que não era brasileiro e pôde ter uma neutralidade em relação aos fatos.

Na pesquisa dos dois textos relacionados na obra de Roger Bastide, encontramos um terceiro artigo não mencionado e publicado pela mesma revista Anhembi, com o título “Uma reportagem infeliz”6. O artigo começa com Bastide lembrando ter sido ele “o primeiro a protestar” contra a reportagem da Paris Match, e ainda acentua que na sua qualidade de conterrâneo devia lançar-se à frente dos próprios “amigos brasileiros” na denúncia do “[...] que havia de grave na publicação de certas fotografias”. Bastide se refere acima às suas manifestações orais e escritas sobre as imagens de Clouzot publicadas na Paris Match, e diz que eles cometeram o mesmo erro de Clouzot, mas como eram brasileiros, Bastide diz que se calou esperando que os mesmos protestos irados contra a Paris Match viessem à tona: “Fiquei à espera do protesto dos que se haviam voltado contra Clouzot, a saber, os Cavalcanti, os Édison Carneiro e outros. Porém, passam-se os dias e este prolongado silêncio me assusta...” [reticências do autor].

Aludindo à existência de uma “moralidade jornalística”, coloca a reportagem de O Cruzeiro como um “crime” da mesma ordem da Paris Match. Diz que conhece José Medeiros e o acha encantador, e que ele não teria consciência das conseqüências da reportagem. Coloca-o dentro

6 Anhembi, no 12, vol. IV. São Paulo, nov., 1951, pp. 563-4.

154 I MAGENS DO SAGRADO

da lógica da busca obsessiva do furo jornalístico a qualquer preço. Ao inocentar Medeiros alegando uma ingenuidade no seu próprio âmago, o que a carta trazia claramente, ou seja, as dificuldades de obter as imagens e as conseqüências que trariam, permitiu a Bastide encontrar outros culpados. Diz ele: “Não estou, pois, atacando Medeiros pessoalmente, mas a mentalidade jornalística que se criou na nossa época”.

A fotografia é vista por Bastide como uma mera ilustração de textos científicos, e mesmo as imagens de rituais de iniciação, como é o caso de Clouzot e Medeiros, “nem sempre seriam condenáveis”, desde que fossem meramente ilustrativas de texto com cunho acadêmico e científico e com circulação restrita para um publico “culto”. Então, Bastide desconhecia o trabalho de Margaret Mead e Gregory Bateson realizado na década de 30 e publicado em 19427, pesquisa que encontra novos espaços enunciativos da fotografia na pesquisa antropológica. Ao restringir a circulação de imagens do sagrado para um público considerado culto, encontramos o argumento para localizar a profanação do sagrado pelas fotografias quando de sua circulação nos meios de comunicação de massa, portanto, fora de um contexto científico autorizador das mesmas imagens e dentro do campo jornalístico, que nem é ético com seus retratados, pois, diferente do pesquisador, o fotógrafo não precisa voltar constantemente para encontrar seus objetos de estudos. Ou seja, se a comunidade religiosa não tomar conhecimento das imagens e se elas não circularem na sociedade midiática, o segredo será preservado; a caixa preta do segredo é a falta de circulação das imagens. As fotografias de Medeiros poderiam então estar dentro de um contexto científico, o que as justificaria, diz ele, mas, ao serem publicadas em um veículo para o grande público, adquirem “uma grande força malfazeja”.

Para Bastide, a reportagem de O Cruzeiro não pode ser considerada etnografia, mesmo que ele identifique uma “simpatia humana” no texto de Arlindo Silva, o que coloca o artigo em posição superior ao livro de Clouzot; diz que não é um texto de especialista “pois contém contrasensos dos mais grosseiros”, e desse ponto de vista é inferior ao livro de Clouzot. Bastide identifica uma confusão na descrição do bori por Arlindo Silva, o qual afirma que a cerimônia serve para “fechar o corpo” , quando se trata do contrário, ou seja, abri-lo para a descida do orixá, e

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 155
7 Gregory Bateson e Margaret Mead, Balinese character — A photography analysis. Nova Iorque: Special Publications of the New York Academy of Sciences, 1942, vol. 2.

diz: “De um modo geral, a descrição da iniciação é muito incompleta e mal interpretada, seja por ignorância da mãe-de-santo que prestou as informações, seja pela astúcia, para despistar o repórter”.

Entretanto, o texto de Arlindo Silva, considerado como mero texto jornalístico, longe dos rigores científicos da boa descrição etnográfica, aparece como uma fonte importante em seu livro Candomblé da Bahia — Rito nagô. Na análise do estado de erê, Bastide lança mão da descrição de Ar lindo Silva: “Qual a peculiaridade desse estado, e que nova contribuição pode trazer à nossa pesquisa sobre a filosofia africana? É preciso, naturalmente, antes de responder à segunda pergunta, dar uma descrição do estado de erê; para isso resumimos um artigo pouco conhecido de Arlindo Silva”. Segue uma longa descrição recortada do texto da reportagem ingênua e mal vista por ele no próprio artigo: “Ora, a reportagem de ‘Cruzeiro’ não entra no quadro da etnografia”, como ele mesmo acentuou.

Vamos encontrar uma saída metodológica para essa contradição em uma nota do mesmo livro. Nessa nota, relativa às saídas da iaô da camarinha, quando lhe é feito um pequeno orifício no crânio: “A terceira saída, depois do banho de sangue e da abertura, no alto do crânio, do caminho por onde passará daí por diante o orixá todas as vezes que quiser se manifestar, chama-se ‘dar o nome’” (Bastide, 2001, p. 54). Na nota, aparecem citados Clouzot e Medeiros. Em Clouzot, a nota remete-se à numeração do livro e, em Medeiros, a uma reportagem com o título “A purificação do sangue”, com data de 15 de agosto de 1951. Tal reportagem de Medeiros não foi encontrada, pois inexiste uma revista O Cruzeiro com essa data e com esse título. Pesquisamos também na revista A Cigarra e não encontramos a reportagem citada por Bastide. O texto diz:

As duas reportagens, efetuadas por pessoas que assistiram a cerimônias proibidas, que não podem ser vistas nem fotografadas, são interessantes como documentos vivos. Mas infelizmente nada trazem de novo ao que já conhecíamos por informações orais. Mesmo a abertura do orifício no crânio, de que Clouzot não fala, mas a respeito da qual Medeiros insiste, como se fosse algo inédito, já era conhecida. (Bastide, 2001, p. 271)

Novamente Bastide comete “ato falho” ao referir-se ao livro de Clouzot como reportagem, mas encontramos uma justificativa para o uso da descrição de erê de Arlindo Silva; a reportagem seria, então, um “documento vivo”.

156 I MAGENS DO SAGRADO

Bastide pergunta se as censuras que foram feitas a Clouzot perderiam sua razão perante a reportagem de O Cruzeiro, e indica, por um lado, que a imagem do Brasil feita pelo e para o olhar estrangeiro pode ser prejudicial à imagem dos brasileiros no exterior, como no caso da Paris Match, e por outro lado, que a circulação de imagens de ritos sagrados no Brasil podem prejudicar diretamente os fiéis do candomblé. Faz aqui voz com a Federação dos Cultos Afro-Brasileiros, que denunciou Mãe Riso da Plataforma para a polícia e criou uma hostilidade com características agressivas e violentas contra ela em Salvador. Vê também prejuízos no uso das imagens fora do próprio contexto jornalístico por “inimigos do candomblé”, que poderiam usá-las como ferramenta para fechamento dos terreiros, ou seja, as imagens alimentariam uma hostilidade já existente contra a religião. Bastide extrapola: “Elas podem até tornar-se uma arma de guerra civil”.

Novamente, quase ao final do artigo, Bastide inocenta os produtores de imagens e joga a culpa de uma forma maniqueísta na mãe-de-santo que se deixou fotografar: “Faço questão de proclamar que os fotógrafos não são os principais responsáveis. A responsabilidade maior cabe ao candomblé que permitiu que se tirassem fotografi as dessa ordem”. Não sei se essa afirmação livrou Medeiros de seus temores ao voltar à Bahia e ter de enfrentar os ebós que teriam sido preparados para ele. Entretanto, o sociólogo francês atenua a responsabilidade dos candomblés ao ressaltar o fato de a maioria deles serem constituídos de pessoas provenientes das classes pobres da sociedade e assim necessitarem de dinheiro para suas cerimônias sempre muito custosas: “Eis o drama. É a conseqüência da multiplicação abusiva dos candomblés. Os antigos e os mais tradicionais são ricos, podem defender os seus segredos; mas os mais novos que, por enquanto, têm apenas uma clientela restrita são mais permeáveis às influências de desagregação moral, por falta de segurança econômica”. O que ele quis dizer com “multiplicação abusiva”? Nem parece que o grande sociólogo desconhece a dinâmica própria do candomblé na qual não existe uma hierarquia burocrática que permite abrir, fechar ou restringir cerimônias, e essa riqueza cultural prolifera por toda a periferia de Salvador, longe das casas tradicionais. Coloca-se nesse ponto de vista uma dicotomia muito utilizada entre os detentores do saber dos terreiros mais antigos e os dos terreiros populares, sem tradição. Talvez até mesmo entre cidade alta e cidade baixa! Redes de candomblé que não se cruzam.

O CRUZEIRO E J OSÉ M EDEIROS 157

No final do artigo, Bastide vê uma “crise moral” abatendo-se sobre o candomblé em virtude das duas reportagens publicadas pela Paris Match e por O Cruzeiro. Essa “crise moral”, da qual as reportagens seriam testemunhas, segundo ele, abate-se também sobre as casas tradicionais? Afinal não foram elas que permitiram as imagens. Então, por que distinguir a fonte do saber? E finaliza dizendo literalmente que “A única instituição com autoridade para resolvê-la é a Federação das Seitas Afro-Brasileiras”. A Federação tomou as providências no caso de Mãe Riso da Plataforma, fez dela um caso de polícia! Mas, lembrando, Riso consultou seu orixá, Oxóssi, e foi por ele autorizada a deixar-se fotografar. Como bem sabia Roger Bastide, no candomblé os pais-de-santo e as mães-de-santo têm acesso direto às divindades e não precisam para isso de autorização de uma instituição burocrática como a Federação, nem mesmo de seus pares; o canal místico é único e singular, o que torna ainda mais fascinante esse mundo religioso. Quem então autoriza as fotografias?

158 I MAGENS DO SAGRADO

A FRICÇÃO RITUALÍSTICA

Os processos sociais nomeados como rituais de passagem (Van Gennep, 1978; Turner, 1974; Leach, 1978) caracterizam uma zona marginal na qual os iniciados em uma religião e em inúmeras outras situações sociais, como acentua Van Gennep no próprio subtítulo de seu trabalho, ficam isolados da marcação linear temporal da sociedade, vivendo um tempo mágico e um estado social diferenciado. Os ritos de passagem são marcados por cerimônias de separação (preliminares) e de agregação (pósliminares) que criam no seu interstício, muitas vezes de longa duração, um estado de liminaridade acentuado, principalmente nos casos de ritos de iniciação. As características da liminaridade às quais o neófito está sujeito são: submissão, silêncio, ausência de sexualidade e anonímia. São entidades em transição, em passagem, não tendo lugar e posição, pois todos os atributos da ordem social são suspensos e as categorias e grupos sociais dissolvem-se na morte social da liminaridade.

Assim Turner refere-se a esse estado do evento social nos ritos de passagem:

O neófito na liminaridade deve ser uma tábula rasa, uma lousa em branco, na qual se inscreve o conhecimento e a sabedoria do grupo, nos aspectos pertinentes ao novo “status”. Os ordálios e humilhações, com freqüência de caráter grosseiramente fisiológico, a que os neófitos são submetidos, representam em parte, a têmpera da essência deles, a fim de prepará-los para enfrentar as novas responsabilidades e refreá-los de antemão, para não abusarem de seus novos privilégios. É preciso mostrar-lhes que, por si mesmos, são barro ou pó, simples matéria, cuja forma lhes é impressa pela sociedade. (Turner, 1974, p. 127)

Da mesma forma, utilizando os mesmos procedimentos conceituais, a fotografia pode ser considerada como um ritual de passagem (Tomas, 1982; 1983; 1988). Tomas parte da estrutura proposta por esses autores

A FRICÇÃO RITUALÍSTICA 159

para encontrar similitudes no processo entre o ato fotográfi co em si, no momento único de sua indicialidade, e seus procedimentos técnicos no processamento da imagem como um ritual de passagem. De forma sintética, para Tomas, o rito de separação na cerimônia fotográfica é desprendimento da materialidade através dos processos óticos de inversão da realidade para um suporte bidimensional. A negatividade e a ausência de luz significariam o momento da liminaridade, a imagem latente não processada quimicamente e seu processo de formação de uma imagem negativa da realidade. A agregação é a criação da condição de positividade da imagem e sua inserção no campo social. A morte simbólica por intermédio da redução ótica e pela espacialidade do suporte bidimensional transforma-se em “ponte de permanência” de uma cena ou de uma pessoa, ou seja, a ligação entre o fotógrafo e o espectador da imagem criando um “eterno presente”. Diz o autor:

O ritual fotográfico concedeu presença na ausência do objeto fotográfico; processou a imagem de luz e a transpôs quimicamente. O objeto é agora estável e permanente como imagem na sociedade. O ritual fotográfico funciona para marcar simbolicamente a morte do objeto pela sua transformação óptica e dimensional. Ademais, ele congela o objeto “não-estruturado” durante um período de isolamento ritual e sagrado e, finalmente, marca a reintrodução ou reencarnação do objeto na sociedade por meio de sua “reestruturação”, na forma de um novo estado fotográfico da atemporalidade e da ilimitabilidade social e simbólica. (Tomas, 1982, p. 9)

A similitude entre os processos que envolvem um ritual de passagem na sua liminaridade e a imagem técnica da fotografia, também marcada por um processo ritualizado que cria campos marginais com todas as características dos ritos de passagem, transfere o rompimento da linearidade do tempo social (e entenda-se aqui o espaço do sagrado nesses rituais) para outra categoria liminar, agora no campo das imagens técnicas. A superposição das liminaridades justapõe a proibição da visão nas reclusões dos iniciados e na imagem latente da película. A existência de dois campos marginais, ou liminares, cria uma fricção ritualística entre o sagrado contextualizado na cosmologia religiosa e os mecanismos ideológicos no processamento da imagem técnica, ou seja, a metáfora de Turner para a modelagem do barro pela matér ia nuclear, a transformação do pó, aplica-se à modelagem da luz pelos grãos de prata, uma construção imagética social que lhes dá forma existencial além da primeira realidade.

160 I MAGENS DO SAGRADO

A morte social encontra aqui similitude na morte da primeira realidade, já que, prisioneira do recorte temporal e espacial do campo fotográfico, ressurge na agregação como um conceito, uma imagem-conceito (Tacca, 2001, pp. 123-32).

Ao trazer ao olhar leigo o campo elegido da magia ou do contato primordial com as divindades, o campo marginal da imagem fotográfica assume e superpõe sua liminaridade ao campo religioso, uma nova magia estabelece-se, alterando o conteúdo original do sagrado. Nas palavras de Flusser:

A nova magia não visa modificar o mundo lá fora, como faz a pré-história, mas os nossos conceitos em relação ao mundo. É magia de segunda ordem: feitiço abstrato. Tal diferença pode ser formulada da seguinte maneira: a magia pré-histórica ritualiza determinados modelos, mitos. A magia atual ritualiza outro tipo de modelo: programas. Mito não é elaborado no interior da transmissão, já que é elaborado por um “deus”. Programa é modelo elaborado no interior mesmo da transmissão, por “funcionários”. A nova magia é ritualização de programas, visando programar seus receptores para um comportamento mágico programático. (Flusser, 1985, p. 22)

Guardada na escuridão para preservar seu campo liminar, a imagem latente não pode causar danos para o sagrado religioso, mantém-se invisível na escuridão do sagrado fotográfico; temos então o sagrado superposto; entretanto, ao dar-se a ver, e de forma pública, se rompe a estrutura própria do segundo campo liminar, expondo a liminaridade inicial, mas ainda somente para os olhos individualizados do fotógrafo ou de seu laboratorista, ou mesmo de algumas pessoas da redação. A publicação das imagens decreta a profanação do sagrado. Aqui nos aproximamos do que Van Gennep chamou de “rotação do sagrado”. A rotatividade do sagrado, ou, como diz Da Mata, a “relatividade do sagrado”. Perde-se a aura original do fechamento social da reclusão após se tornar imagem massificada, mas cria-se no deslocamento original do profano uma nova ordem sagrada, a ordem mágica e programática das imagens técnicas (Flusser, 1985). O sagrado desloca-se de seu sítio apreendido na câmara escura, guardiã dos segredos originais quando a imagem está ainda latente, para concretizar-se em imagens visíveis. No relativismo do campo religioso do candomblé, cristaliza-se a profanação. No documento etnográfico único, uma nova ordenação do sagrado está presente no campo imagético; o fotógrafo torna-se f eiticeiro ou, melhor dizendo, sacerdote de uma

A FRICÇÃO RITUALÍSTICA 161

ordem superior da sociedade tecnológica, um embate de duas magias. O fotógrafo-feiticeiro extrapola a “lógica da falácia do bruxo” (Leach, 1978, pp. 37-40), pois, em vez de cometer o “erro” de transformar um símbolo metafórico em signo metonímico, estará epistemologicamente sempre dentro do campo da indicialidade, ou da existência por contigüidade física (Dubois, 1994, p. 94); ou ainda, o processo de construção da significação do signo fotográfico implica a superposição entre significante e referente (Barthes, 1980, p. 18), mesmo que o operador seja simplesmente um mero “funcionário do programa” (Flusser, 1985, p. 22).

Aprofundando a liminaridade fotográfica, lembramos o que dissemos antes, ou seja, a técnica fotográfica manipulada por Medeiros propiciou uma exposição longa, com tempo indefinido na posição B, que atua no tempo extenso do obturador aberto no toque do dedo e na velocidade intensa e rápida do flash para guardar a imagem latente em película e levá-la em liminaridade para outros espaços, o laboratório, e depois a visibilidade da publicação das imagens nos meios de comunicação. De outro lado, pelo campo ético-religioso, as imagens de Pierre Verger ainda adormecem na liminaridade do acervo e, lentamente, algumas escapam em processo de agregação com uma realidade muito distante na qual foi originado o ato fotográfico do sagrado.

O deslocamento do profano no roteiro revista-livro permite voltar a Van Gennep e ao “deslocamento dos círculos mágicos”, os quais, conforme uma posição ou outra na sociedade, mudam o lugar do indivíduo ou de seu status: “Quem passa, no curso da vida, por estas alternativas encontra-se no momento dado, pelo próprio jogo das concepções e das classificações, girando sobre si mesmo e olhando para o sagrado em lugar de estar voltado para o profano, ou inversamente” (Van Gennep, 1978, p. 32).

O referente aderido à imagem fotográfica perde sua carga mítica original ao descontextualizar o evento religioso, para transformar-se em outra magia, uma magia contemporânea que não se propõe a modificar o mundo, e sim nossos conceitos sobre o mundo (Flusser, 1985, p. 22), ou o que esse autor chama de magia de segunda ordem, e, com essa carga intencional, o sensacionalismo surge para os olhares maniqueístas da cultura na categorização de um primitivismo religioso visto pejorativamente pelos valores estabelecidos do “bem”, e dessa forma o fotógrafo substitui com eficácia o feiticeiro-xamã-pai-de-santo, criando uma nova ordem imagética e programática na sociedade de consumo de imagens na qualidade de mercadorias simbólicas.

162 I MAGENS DO SAGRADO

Bibliografia

A N, Antônio. O Império de Papel — Os bastidores de O Cruzeiro, Porto Alegre: Sulina, .

. A revista no Brasil. São Paulo: Abril, .

B, Roland. A câmara clara. Lisboa: Edições , .

B, Roger. “A etnologia e o sensacionalismo ignorante”, Anhembi, no , vol. III. São Paulo, ago.,a.

.“O caso Clouzot e Le cheval de dieux”, Anhembi, no , vol. IV. São Paulo, set., b.

.“Uma reportagem infeliz”, Anhembi, no , vol. IV. São Paulo, nov., c.

. O candomblé da Bahia — Rito nagô. Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, .

C, Luiz Maklouf. Cobras criadas — David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: S, .

D M, Roberto. “Apresentação”, in V G, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, .

D , Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus,  E, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes,  F, Vilém. Filosofia da caixa preta — Ensaios pa ra uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: H, 

L, Edmund. Cultura e comunicação: a lógica pela qual os símbolos estão ligados — Uma introdução ao uso da análise estruturalista em antropologia social. Rio de Janeiro: Zahar, .

L, Angela (org.). Verger/Bastide — A dimensão de uma amizade . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, .

M, José. Candomblé. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, .

José Medeiros —  anos de fotografia. Rio de Janeiro: F, 

B IBLIOGRAFIA 163

P, Gordon. Flávio. Nova Iorque: Norton, .

P, Nadja. O Cruzeiro — A revolução da fotorreportagem. Rio de Janeiro: Dazibao, .

S, Vagner Gonçalves. “O antropólogo e sua magia”. São Paulo: E, .

S, Jéromê. Pierre Fatumbi Verger — Du regard détaché à la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve & Larose, 

T, Fernando de. “O feitiço abstrato”, Cadernos da Pós-Graduação, vol. , no , Instituto de Artes, U. Campinas, 

T, David. “A mechanism for meaning — A ritual and the photographic process”, Semiotica, (). Amsterdã: Mouton Publishers, .

. “ e ritual of photography”, Semiotica ,  (  /  ). Amsterdã: Mouton Publishers, .

. “Toward and anthropology of sight — Ritual performance and the photographic process”, Semiotica (/). Amsterdã: Mouton Publishers, 

T, Victor W. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 

V G, Arnold. Ritos de passagem. Petrópolis: Vozes,  V, Pierre. Orixás. Salvador: Corrupio,   anos de fotografia. Salvador: Corrupio,  V, Pierre e Métraux, Alfred . Alfred Métraux/Pierre Verger — Le pied à l’étrier, Correspondance  Mars  –  Avril . Paris: Jean Michel Place, .

164 I MAGENS DO SAGRADO

CANDOMBLÉ

JOSÉ MEDEIROS

RITUAL DE INICIAÇÃO NO CANDOMBLÉ POR JOSÉ MEDEIROS

Areportagem “As noivas dos deuses sanguinários”, na edição da revista O Cruzeiro do dia 15 de setembro de 1951, com texto de Arlindo Silva, publicou 37 fotografias de José Medeiros, todas realizadas durante um ritual de iniciação de candomblé no Terreiro de Oxóssi, de Mãe Riso, no Bairro da Plataforma.

O livro Candomblé (Edições O Cruzeiro, 1957), organizado por José Medeiros, publicou 64 fotografias do ritual de iniciação, dentre elas 25 anteriormente presentes na reportagem da revista e outras fotografias inéditas da cerimônia. As rápidas passagens no livro remetem ao texto publicado na edição da revista, fato que deixou Arlindo Silva muito chateado por não ter sido comunicado ou ao menos citado. Medeiros inseriu também muitas fotografias não relacionadas ao ritual de iniciação fotografado no terreiro de Mãe Riso da Plataforma, com o objetivo de tornar o livro mais ilustrado.

Segundo o Instituto Moreira Salles, que detém o acervo de José Medeiros, foram encontrados somente 38 negativos em formato 6 cm x 6 cm, resultado do uso por Medeiros da câmera Rolleiflex. Algumas fotografias emblemáticas da reportagem e do livro infelizmente não fazem parte do acervo adquirido pelo Instituto.

Para o portfólio aqui selecionado optamos por publicar 28 fotografias a partir dos negativos originais, indicando sua veiculação na revista e/ou no livro, incluindo uma foto inédita. As fotos aparecem sem cortes, o que não aconteceu com várias delas, as quais tiveram somente algum detalhe selecionado na ocasião das duas publicações dos anos 50. O encadeamento das fotos busca a própria trajetória do olhar de Medeiros dentro da temporalidade do ritual de iniciação nos dois dias que passou no Terreiro de Mãe Riso da Plataforma, começando pela epilação das

167

iaôs, os subseqüentes sacrifícios aos orixás e a Festa do Nome, quando as iniciadas saem finalmente da camarinha para os olhares públicos.

Fotos publicadas na revista O Cruzeiro (15/9/1951): 2, 11, 17, 21, 28.

Fotos publicadas no livro Candomblé (1957): 1, 4, 6, 8, 10, 14, 16, 24, 25, 27.

Fotos publicadas na revista e no livro: 3, 5, 7, 9, 12, 15, 18, 19, 22, 26.

Foto inédita: 13.

Legenda para a seqüência de fotos a seguir:

Ritual de iniciação no candomblé (Terreiro de Oxóssi, Mãe Riso da Plataforma), Salvador, Bahia, 1951.

Fotos de José Medeiros (acervo do Instituto Moreira Salles)

168
171
172
175
176
179
180
183
184
187
188
191
192
195
196

Título Autor

Imagens do sagrado: Entre Paris Match e O Cruzeiro

Fernando de Tacca

Assistente técnico de direção Coordenador editorial Secretária editorial Secretário grá co Preparação dos originais Revisão

Projeto grá co e design de capa Editoração eletrônica

José Emílio Maiorino Ricardo Lima Eva Maria Maschio Morais Ednilson Tristão Juliana Bôa Luis Dolhniko Isabel Carballo Silvia Helena P. C. Gonçalves

Gerência de Produtos Editoriais e Institucionais Assistência editorial Editoração

Vera Lúcia Wey Berenice Abramo Isabel Ferreira Teresa Lucinda Ferreira de Andrade

Formato Papel Tipologia Número de páginas

16 x 23 cm

O set 90 g/m2 – miolo Cartão supremo 250 g/m2 – capa Garamond Premier Pro 200

Impresso nas o cinas grá cas da Imprensa O cial do Estado de São Paulo, julho de 2009

Imagensdosagrado—EntreParisMatcheOCruzeiro status

nostrazumasignificativacontribuiçãopara aconstruçãodeumametodologiadetrabalhoque aliatécnicasdereportagemjornalísticaàsmelhores práticasdepesquisadecampodaantropologia. Partindodeumconflitodeinteressesededisputas jornalísticasqueabrangeramtantoquestõeséticas quantocomerciais,FernandodeTaccacolocouna bocadecena,comdeatoresprincipais,personagensqueatéentãofuncionavamapenascomo objetosdecuriosidade.Deseresexóticos,essespersonagense,pormeiodeles,oprópriocultopassaram asujeitoseinterlocutoresgraçasàsentrevistase, sobretudo,àleituraacuradadasimagenspublicadas.

Milton Guran

Editora da Unicamp Imprensa Oficial
788570 607478

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.
Imagens do sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro by BASE DE DADOS DE LIVROS DE FOTOGRAFIA - Issuu