À mercê do impossível - Ana Cristina Cesar

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apresenta

Alice Sant’Anna Ana Hortides Armando Freitas Filho Flavia Trocoli Heloisa Buarque de Hollanda Italo Moriconi Luciana di Leone Roberto Corrêa dos Santos Thiago Grisolia

21 de março a 7 de maio de 2017





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À mercê do impossível

Ana Cristina Cesar

Thiago Grisolia “Olho muito tempo o corpo de um poema”¹ de Ana Cristina Cesar, na impossibilidade de olhar seu próprio corpo presente (teria sido um defeito irremediável das cronologias, mas já sabemos que o contemporâneo é mesmo o intempestivo, ou o fora-do-tempo) – olho com muita minúcia, com alguma obsessão, quase, “até perder de vista o que não seja corpo”. Prazer estranho sinto ao olhá-lo, lê-lo, misto de angústia (“angústia é fala entupida”) e uma entrega boa, embora dolorida: e sentir separado dentre os dentes um filete de sangue na gengiva

¹ Todos os trechos entre aspas que não estiverem identificados são de autoria de Ana Cristina Cesar.


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Mas “o prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas ideias que eu”². É preciso uma leitura intensa, um intenso contato de corpos (meu corpo com o corpo do poema), porque o mergulho no poema é um mergulho na linguagem, e não no discurso. Ana Cristina Cesar sabe convocar esse mergulho com a precisão de um acontecimento que, como o acontecimento da linguagem, nos coloca nesse lugar onde vigora o corte do entre. “Vacilo da vocação”, “tesão do talvez”, ou aquela fenda entre a linguagem e sua destruição, que mexe com nossas entranhas: nas palavras de Ana, anotadas em seu caderno, “medida exata entre o acaso e a estrutura”. Contudo, apesar da implicação corporal que me parece fazer-se necessária em Ana Cristina Cesar, ela mesma nos adverte: “esquece essa história do corpo”. À parte o cinismo deste verso, esse sofisticado “desvelo técnico”, que concorre em sua poética com a entrega mais escancarada, seu enunciado parece dizer-nos: deixemos de lado o corpo, por ora, e aceitemos afundar nessa “arte ininterrupta” e ficar “à mercê do impossível”. Estar à mercê do impossível, em Ana Cristina Cesar, é estar a bordo de um de seus instrumentos de passagem, meios de transporte que pululam em seus livros, como bem apontou Viviana Bosi³ – os trens, automóveis, navios etc., mas também, e sobretudo, aqueles que conduzem de nada a lugar algum. Esses são os mais difíceis de ancorar (“é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”). E ficamos ansiosos, esperando “que alguma coisa... divina aconteça. F for Fake.” “Vocês querem que aconteça alguma coisa, e não acontece nada, pois o que ocorre à linguagem não ocorre ao discurso”⁴. Às vezes, ficamos tentados a atribuir um sentido ao que parecia ser uma narrativa. Mas algo se interrompe, bruscamente, cinicamente, doloridamente, embora sem que se atribua muita importância a isso. A poeta parece querer nos dizer que a vida é assim mesmo, prosaica (exceto – ou, por outra, sobretudo – quando está muito “sentida e portuguesa”, “mulher do século XIX disfarçada em século XX”, ou quando, ao encon-

² BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2013, p. 24

³ BOSI, Viviana. “À mercê do impossível”. In: CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.

⁴ BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2013, p. 19.


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trar luvas de pelica dentro da valise, em cima dos postais, se permite uma viagem pelas épocas); e que, embora os fatos estejam ali, embora os acontecimentos estejam ali, como nas páginas de um diário, os acontecimentos e os fatos não importam tanto, porque não é do discurso que se trata.

⁵ Livre tradução do poema The red wheelbarrow, de William Carlos Williams, publicado pela primeira vez no livro Spring and all, em 1923. No original: “So much depends/ upon// a red wheel/ barrow// glazed with rain/ water// beside the white /chickens”

Em seus diários ou correspondências, ficções da intimidade, os vários dias 16 de junho, os vários nomes de pessoas que nunca sabemos se suficientemente reais, a segunda edição sem a primeira, os vários acontecimentos sem importância alguma nos mostram que a matéria do dia (do cotidiano e do passar dos anos) não é a narrativa, mas a linguagem. Tanta coisa, dirá William Carlos Williams, poeta traduzido por Ana, depende de um carrinho de mão vermelho, esmaltado de água da chuva, ao lado das galinhas brancas⁵, querendo talvez alertar-nos para a existência daquele objeto vermelho, daquela cápsula condensada de presente/ presença, daquela pílula mínima da realidade mais comezinha, mais insignificante, de que, entretanto, tanta coisa depende – inclusive, talvez, a poesia, a linguagem e a vida. A coceirinha no hímen impede a poeta de andar de bicicleta. Célia aparece com um muxoxo inexplicável. Rouba-se um verso de Cecília Meireles até fazê-lo destituir-se de toda uma eventual e pretensa grandeza: “E suicidaram-se os operários de Babel” abandona o registro sublime, por vezes dramático, sobre as agruras do discurso poético (em Cecília, o poema chama-se justamente “Discurso” e se inicia com “E aqui estou, cantando”, para terminar com a grande pergunta “Ah, se nem sei quem sou,/ como posso esperar que venha alguém gostar de mim?”), para aparecer quase desapercebido, precedido, em Ana, pela pequena pergunta “Comprou carteira no Detran?”. Ladra ocasional, Ana C. confessa os roubos no seu Índice Onomástico: não há crime neste sequestro. Resta comigo a impressão de que tanto melhor seria se sequer pudéssemos perceber o delito: se ele literalmente passasse batido por nossa suposta sofisticação intelectual e se prestasse a se infiltrar apenas nessas secretas frinchas da vida regular. Deixar o sublime: “Isso


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foi antes. Agora irretocável prefiro ficar fora, só na capa do seu livro”. Se a escrita feminina, como dizia Virginia Woolf em Um teto todo seu e Ana Cristina parece endossar em sua palestra no seminário Literatura de Mulheres no Brasil, organizado por Beatriz Resende, em 1983, começa sempre no interior do lar, nessa escrita justamente íntima, a poética de Ana C. inventa uma intimidade fictícia para provocar essa torção: o interlocutor está em vias de ser encontrado, a intimidade é alguma coisa que escapa, “que desliza” – tem sempre um ponto de fuga. Por isso, seus livros, seus poemas, enfim sua poesia é, sem ser fugaz, fugidia: estamos, afinal, aos pés de quem? Entretanto, cabe lembrar o que, de modo despretensioso, diríamos mesmo lateral, colocou Ana em uma de suas respostas neste mesmo seminário: que em poesia, não importa tanto as entrelinhas, e sim a própria linha, o próprio verso. Isto é, não se trata, em poesia, de deflagrar no meio dos versos uma cifra, de modo a decifrar o poema, mas de ficar com a materialidade mesma do verso. Por isso, acreditamos ser, senão necessário, importante passar através dos textos. Ideias que nos pareceram fundamentais dentro da poética de Ana C. nos ajudaram a pensar em caminhos para a exposição: a torção que a poeta cria entre biografia e ficção, ou entre intimidade e confissão, revirando o espaço doméstico e a literatura feita por mulheres; seu vasto aporte crítico e teórico, que revelava a leitora de poemas junto da poeta; sua relação com a desmedida, o inominável, o extemporâneo. Mas o leitor-expectador saberá atravessar o espaço escolhendo seu próprio caminho, tendo sempre por companhia a matéria de seus poemas. Para além de discutir a incursão de Ana Cristina em movimentos literários dos anos 70 e 80; para além de dar corpo a sua escrita que ficcionaliza uma intimidade; para além de deflagrar as referências indiretas ou explícitas a poetas e poéticas os mais variados – o que desejamos com essa exposição é fazer um duplo convite ao público do Rio de


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Janeiro. Por um lado, convidamos a entrar em contato com a obra, a biografia e a fortuna crítica a respeito desta que tem se consolidado como uma das maiores poetas brasileiras do século XX; por outro, mergulhar no prazer de seu texto e ficar, com Ana, à mercê do impossível.

Thiago Grisolia Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF. Foi curador da mostra Desescritos (CCPCM, Niterói) e da exposição Em Memória de Nós (CCJF, RJ), do artista Nico Dantas, ambas realizadas em 2015. Realizou o Seminário A Literatura Expandida: Escrita-Corpo-Imagem, parceria da UFF com a Fundação de Artes de Niterói. Foi diretor cultural do Programa de Melhoria de Qualidade de Vida do Ministério da Saúde/RJ e atualmente integra o Programa Educativo do Centro Cultural do Ministério da Saúde. Foi professor-bolsista no departamento de artes da UFF.





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Carta à autora Ana Hortides Querida autora, Me reporto finalmente a você, agora de forma “oficial”, por meio desta tentativa de carta, no espaço do entre-tempos, para, por nosso desencontro temporal, dizer-lhe que ouvi parte da sua entrevista ao programa de rádio Café com Letra. Nos últimos segundos você nos diz: “Me escrevam cartas. Eu quero receber cartas.” E sugere, “Prezada autora...”. Confesso que, por esta, não venho apenas contar que ouvi você, mas também confidenciar-lhe pequenas coisas, gestos nossos, carregados pela escrita. Dizer-lhe, antes de tudo, “tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.”¹ Temos apenas


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duas mãos... E delas, a escrita é o jogo que vale. E dentre as suas verdades, a verdade é apenas uma possibilidade. “Agora é a sua vez. Do you believe in love...? Então está.” A vida por aqui está mesmo “laminha”, converso com você todos os dias, agora mais do que nunca. Eu pude ver as fotografias do seu acervo, não todas, mas talvez quase todas, percorrer-lhe inteira, imagens de várias épocas, várias “Anas”. Mas a gente sempre fica pelas bordas. Anseio por saber de você, não pergunto, mas desejo profundamente, devo salientar, profundamente, que Armando ou Helô me confessem algo sobre você. Eu gostaria de perguntar logo: Ela era fabulosa, não?! Mas me seguro num misto de vergonha-segredo que a sua multiplicidade me coloca, talvez nos coloque a todos. Está nos textos, já estava lá, e agora aqui. Os olhos passam por entre as suas fotografias, desde a infância até a vida adulta, porém, não lhe encontro. Percorro novamente, na esperança de saber quem fora, quem é a Ana Cristina Cesar, Ana C., Anatina, Ana. Quando penso tê-la desvendado, você me escapa mais uma vez, e olhar as suas fotografias, ler os seus poemas me fazem desejar procurar você. Em cada foto é uma Ana. Não é a pose, menos ainda o corte de cabelo ou a expressão da face, é o que não se coloca em imagem, ou melhor, é o que está lá, mas não pode se apresentar em palavras, isso a faz escapar. Assim seguimos, “ao sabor dos humores, natureza chique, disposição ambígua, signo de gêmeos”. É do nosso “canto do mundo” que falo, segundo Bachelard, ou de Um teto todo seu, em Virgínia Wolf. A escrita do âmbito da casa, do íntimo. O espaço histórico que guardou, dentre tantas, tantas coisas, os segredos, os diários e a escrita das mulheres. Forma sem norma Defesa cotidiana Conteúdo tudo Abranges uma ana

As poéticas de si, que mesclam a arte com a vida num exer-

¹ ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do Mundo. In: Carlos Drummond de Andrade: Sentimento do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


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cício de intimidade-desvelo-ficção-biografia, fazem parte da escrita que nasceu no espaço do privado. Mas, creio eu, com desejo, desejo tremendo. Toda escrita, por ser escrita – êxtimo – carrega algo de ficcional... “ecos de Angela”. Talvez assim seja mais fácil, não? ² HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012.

Parece que só é possível habitar o que se constrói², nos contou Heiddeger. E parece que é através do seu texto que estamos em você, nas linhas, em doses de biografia-ficção, and “I am going to pass around in a minute”. Também em Célia, Julia, Cris, Angela… “julgando adivinhar tudo”. Caro leitor, “reparem nas minhas mãos, vazias. Meus bolsos também estão vazios. Meu chapéu também está vazio. Vejam. Minhas mangas. Viro de costas, dou uma volta inteira. Como todos podem ver, não há nenhum truque, nenhum alçapão escondido, nem jogos de luz enganadores". "O prazer é anterior, boboca. “ Com carinho, Ana H.

Ana Hortides Ana Hortides é artista visual e produtora cultural. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, na qual se Graduou em Produção Cultural. Estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV)/ RJ. Pesquisa o espaço do corpo, da casa e da escrita na arte contemporânea.



No seminário, oferecemos para cada mesa conceitos que nos pareciam fundamentais na obra de Ana Cristina Cesar, para que fossem desmembrados por cada palestrante do modo como lhes parecesse mais oportuno, e a partir do método que mais lhes agradasse. Esperamos, assim, sem fechar ideias e conceitos para a sua obra, abrir sua poética à visão enriquecedora desses pensadores, desenhando um corpus crítico mais próximo de um poema que de um tratado.

BIOGRAFIA/ FICÇÃO

O tempo fecha. Sou fiel aos acontecimentos biográficos. Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos que não largam! Minhas saudades ensurdecidas por cigarras! O que faço aqui no campo declamando aos metros versos longos e sentidos? Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida: agora sou profissional.



BIOGRAFIA/FICÇÃO

Perguntas à Armando Freitas Filho Armando Freitas

Filho

Thiago Grisolia: Ana Cristina Cesar

era como sua poesia? Havia nela a mesma beleza, a mesma angústia, a mesma esperteza, a mesma agilidade, o mesmo desconcerto que havia em seus poemas? Armando F. Filho: Podia responder

simplesmente que sim. Afinal, tudo o que a gente faz carrega nossas marcas. Sejam elas de virtude e de vício.

Thiago Grisolia: Observo que, lado

a lado com seu muito bem fundamentado aporte teórico, há na poesia de Ana C. uma tendência à desmedida, dir-se-ia mesmo à loucura. Ana Cristina Cesar fa-


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zia poesia “cerebral” ou “irracional”? Ou sublimava poeticamente essas categorias? Armando F. Filho: A poesia da Ana, a meu ver, era pre-

dominantemente cerebrina.

Thiago Grisolia: O senhor foi amigo pessoal e um dos

maiores interlocutores de Ana C. Toda a confissão, intimidade e biografia presente em sua obra é ficção, artifício de linguagem poética? Como Ana se nutria dos acontecimentos do cotidiano para fazer poesia? Armando F. Filho: Tudo o que se escreve, literariamen-

te falando, é ficção. Até mesmo diários pessoais. Ana se nutria como todo escritor: ficcionalmente.


Armando Freitas Filho Armando Freitas Filho nasceu no Rio de Janeiro, em 1940. É autor de Palavra, À mão livre, 3x4, Fio Terra, Raro mar, Lar, Dever e Rol, entre outros. Sua obra, até 2003, está reunida em Máquina de escrever, e foi premiada com o Jabuti, prêmio Alphonsus de Guimarães, Portugal Telecom, Alceu Amoroso Lima - Poesia e Liberdade 2014, APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e foi menção honrosa no Prêmio de Las Americas, em Cuba, 2016.



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Sobre a correspondêcia Heloisa Buarque de Hollanda Antes dela, conheci sua poesia. Por volta do final de 1974 ou do final de 1975, não me lembro com exatidão, Clara Alvim me falou de uma aluna sua, da PUC, que tinha uma poesia interessantíssima, que ainda ia dar o que falar. Alguns dias mais tarde, Clara me trazia os poemas prometidos. Minha empatia com a poesia de Ana Cristina Cesar foi imediata e seus poemas entraram como primeiríssima opção na seleção de inéditos que eu estava fazendo para a antologia 26 Poetas hoje. Passados dois ou três meses, num debate lotadíssimo do ciclo Casa Grande, um daqueles que fizeram história na época,


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Clara me apresentou à autora dos poemas que havia me encaminhado. Olhei, curiosa, para a aluna de Clara. Ana Cristina tentou se livrar de mim o mais rápido possível. Era muito bonita, tinha um riso nervoso e um temperamento obviamente instável. Nossa aproximação posterior se deu de maneira burocrática: a escolha dos poemas, a discussão de praxe sobre uma censura possível à publicação, a cessão de direitos autorais. Nesta época, eu morava numa casa antiga na rua Faro, número 21. Talvez pela conjuntura do meu momento de vida, talvez pelo clima agitado das manifestações culturais “marginais” que, a sua maneira, anunciava a perspectiva de uma abertura política, a casa da rua Faro tornou-se uma espécie de ponto de encontro da cultura alternativa. Os grandes habitués eram Clara Alvim, Chico, Cacaso, Armando Freitas Filho, Ana Carolina, Eudoro Augusto, Clare Paine, Sergio Santeiro. Por lá circulavam os poetas marginais e os não marginais, estudantes, o povo do Teatro Ipanema, a troupe do Asdrúbal, os jornalistas dos periódicos Opinião, Movimento, Beijo & outros e a equipe do programa Café com letra que realizávamos semanalmente para a Rádio MEC. Foi nesse contexto que Ana chegou à rua Faro e nos aproximamos um pouco mais. Ana Cristina não era uma poeta marginal convicta. Fazia uma clara diferença do grupo, apesar de, de maneira paradoxal, com ele identificar-se profundamente. Era, digamos, uma poeta marginal “especial”. E todos – poetas e leitores – reconheciam isso. Além disso, havia nela uma inquietação que a mantinha estrategicamente equidistante de suas várias vocações e caminhos profissionais possíveis. Ana admirava a academia e integrou-se imediatamente ao grupo de estudo que se reunia na casa do Cacaso promovendo leituras infindáveis de Lucáks, Benjamin, Antonio Candido. Encantou-se com a imprensa alternativa e marcou presença no corpo de colaboradores e nas reuniões dos principais suplementos e tabloides da época (tendo, inclusive, namorado e algumas vezes se apaixonado por vários de seus


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integrantes). Era professora do Estado e do Colégio Souza Leão e exercia esta atividade, que na realidade consistia no seu real ganha-pão, mais ou menos em sigilo. Mais tarde, conseguiu um emprego na Globo como analista de novelas, emprego que exibia como uma espécie de malcriação subversiva. E continuava, prolífica, com o talento incrível que Deus lhe deu, escrevendo poesia. Nesta atividade, o que guardo na memória é um traço muito peculiar seu. Ana escrevia porque sabia escrever, gostava de escrever, mas, sobretudo, porque precisava escrever. Vou tentar explicar um pouco melhor essa impressão muito pessoal minha. No ambiente agitado da rua Faro, era fácil perceber que Ana, para usar um termo de hoje, não era uma pessoa “situada”. Parecia sempre ansiosa, levemente genée, querendo chamar atenção a qualquer custo mas ao mesmo tempo se sentindo extremamente desconfortável quando notada, apreciada. Sua enorme afetividade procurava mas parecia não encontrar a direção certa. Era uma pessoa de relações e amizades intensas, invasivas, possessivas. No fundo, basicamente oblíquas. Ambivalente. E sofria com isso, queria se livrar disso. E escrevia. Escrevia poemas, diários, cartões, cartas, muitas cartas. Não será à toa que a questão que sua escrita ainda hoje levanta é a questão do interlocutor, de seu destinatário. Para quem Ana escrevia? Ou para ser mais correta: quem escrevia, quando Ana C. escrevia? Uma pergunta que conseguiu manter em aberto através de toda a sua obra. Essa, sua grande expertise. Nossa relação, desde os tempos da Faro, tomou um atalho nesse labirinto. Fiquei com a Ana instável de nosso primeiro encontro na plateia do Teatro Casa Grande. Fui orientadora de sua tese de mestrado, Literatura não é documento, “arquiteta de interiores” de seu apartamento na Gávea (ou casinha como ela preferia), leitora de plantão, capista de vários livros seus, supervisora editorial de outros, ouvinte impassível de complicadíssimos namoros e aparentemente dramáticos impasses existenciais, sua anfitriã em inú-


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meras estadias em Vargem Grande ou em Búzios. Foi ali que inventamos o minivolume Correspondência completa, que foi publicado pela primeira vez, já na segunda edição, e se resumia a uma única carta, obviamente falsa. Ana gostava de amigas mais velhas. Comportava-se como se estivesse sempre em crise e fingia que precisava de nossos conselhos. Eu não acreditava nisso. Por isso provavelmente ela tenha tantas vezes me acusado de “distraída”. Em 1979, apareceu na minha casa agitadíssima com a ideia de concorrer a uma bolsa que a Rotary Foundation estava oferecendo para estudos no exterior. Acabamos discutindo exaustivamente qual seria o discurso que pudesse impressionar de fato os imponderáveis rotarianos na prova final que seria uma entrevista pública e formal, na sede do clube. Parece que o discurso foi o correto. Ana viajou para Colchester, com a bolsa do Rotary e com o firme propósito de estudar Sociologia da Literatura. Voltou um ano e meio mais tarde, Master of Arts pela Universidade de Essex, com uma refinadíssima tradução de Bliss, de Katherine Mansfield. Neste trabalho, seu fascínio pela persona do tradutor frente a frente com a escrita do outro, as opções de linguagem ou as questões que explicita à margem do texto, revela que Bliss, sua tese, vai bem além de um erudito exercício de leitura e interpretação. Na realidade, desenha sua profunda ansiedade diante da interdição de alguma coisa da qual Ana procurou, mas não encontrou tradução satisfatória, nem em Essex, nem em qualquer outro lugar. Retirado de texto originalmente publicado em Correspondência incompleta, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda e Armando Freitas Filho, publicado em 1999 pela editora Aeroplano.


Heloisa Buarque de Hollanda Heloisa Buarque de Hollanda, nascida em Ribeirão Preto, SP, é escritora, professora de teoria crítica da cultura da UFRJ, coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), diretora da Aeroplano Editora e Consultoria e coordenadora do projeto Universidade das Quebradas. É autora de muitos livros entre eles Impressões de Viagem; Cultura e Participação nos anos 60; Pós Modernismo e Política; O Feminismo como Crítica da Cultura; Guia Poético do Rio de Janeiro;Asdrúbal Trouxe o Trombone: memórias de uma trupe solitária de comediantes que abalou os anos 70; Rachel de Queiroz; Outra línea de fuego: 15 poetas ultracontemporaneas; ENTER, uma antologia digital; Escolhas: uma autobiografia intelectual.



INTIMIDADE/ MOSTRAÇÃO/ CONFISSÃO

“NESTAS CIRCUNSTÂNCIAS O BEIJA-FLOR VEM SEMPRE AOS MILHARES” Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse… Ai que enjoo me dá o açúcar do desejo.



INTIMIDADE/MOSTRAÇÃO/CONFISSÃO

A história completa Alice Sant’Anna Há um poema de Ana Cristina Cesar que termina assim: “hoje sou eu que/ estou te livrando/ da verdade”. Talvez ela não esteja mentindo o tempo todo. Mas vai saber se está sendo sincera. Ao se apropriar dos estilos habitualmente femininos – a carta, o diário –, ela estabelece com o leitor um vínculo de absoluta intimidade para, aí sim, subverter o gênero. Se o que está em jogo é a confissão, sua escrita explora justamente a forma, as pistas, a construção de um diálogo que parece vir carregado de uma intensa cumplicidade pregressa, mas que não necessariamente traz uma informação tão contundente quanto se espera. O leitor sente que está pegando o fio da meada na tentativa de,


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a partir de uma nesga de conversa, compreender o todo. “Não fui totalmente sincera”, ela diz. E em outro momento: “A história está completa”. E ainda: “Não consigo contar a história completa”. Que história será essa? No curso “Literatura de mulheres no Brasil”, ministrado por Beatriz Resende, em 1983, na Faculdade da Cidade, Ana fala sobre a ambiguidade da revelação e do ocultamento, do segredo revelado e do guardado a sete chaves. Talvez importe menos o que se expõe e mais a maneira de expor: o desejo de mobilizar o outro, de se jogar aos pés do outro, de segurar o outro pela gola. Mas a intimidade, vale lembrar, é construída. “A literatura é muito pensada”, ela explica na aula. “Se você conseguir contar a tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou.” Ao interpelar diretamente “você”, o leitor, Ana embaralha ficção e confissão numa conversa de muitas camadas. Seu processo criativo passa por incorporar frases lidas, falas entreouvidas e inventadas, numa intrincada colagem de vozes. São referências diretas à literatura – Manuel Bandeira, Charles Baudelaire, Francisco Alvim, Armando Freitas Filho, Angela Melim, entre muitos outros –, à música – “Pra você gostar de mim”, “Tea for two”, “I’m old fashioned”, para ficar em apenas três exemplos – e tantas outras alusões cifradas, incorporadas, retrabalhadas, camufladas. O leitor decide se prefere se ver como cúmplice ou voyeur. O buraco da fechadura está aberto, e resta saber se o que se vê é suficiente para reunir os cacos da intimidade alheia e montar o quadro completo. No poema “Noite carioca”, ela escreve: “Te apresento a mulher mais discreta/ do mundo: essa que não tem nenhum segredo.”


Alice Sant’Anna Alice Sant’Anna nasceu em 1988, no Rio de Janeiro. Publicou Dobradura (2008, 7Letras), Rabo de baleia (2013, Cosac Naify, prêmio APCA) e Pé do ouvido (2016, Companhia das Letras). Lançou também Pingue-Pongue (2012), em parceria com Armando Freitas Filho, Ilha da decepção (2014, Luna Parque), com fotografias de Alexandre Sant’Anna, e Vinhetas (2015, Luna Parque), com Zuca Sardan.



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Sair do nome, ocupar o poema Luciana di Leone “a língua mãe lambe” Ana Cristina Cesar, Antigos e soltos

O que fazer perante uma escrita indócil e heterogênea como a de Ana Cristina Cesar? As respostas que a crítica encenou a esta pergunta têm sido bastante variadas, mas talvez não seja um exagero dizer que, quase sempre, nelas houve a vontade de achar um comum organizador, alguma coisa que desse um sentido a tal dispersão, uma intenção, uma identidade. A crítica se debruçou na assinatura: esse sentido adquiriu o nome de “Ana C.”. Mesmo em leituras que tentaram dar importância ao texto, ao procedimento, sempre eram os textos “de Ana C.”, os procedimentos “de Ana C.”. Mesmo


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fazendo leituras atentas ao corpo e ao desejo, atentas inclusive à desmontagem da subjetividade, acabava por recobrar importância a Ana Cristina., que estava por trás, no comando do corpo e do poema. O nome, a figura do autor, continuou – continua – imperando. Falamos em Ana Cristina Cesar, em Ana C., até mesmo em um estranhamente familiar Ana. Ana diz, Ana fez, Ana criou. A disputa pela sua consagração é – mais uma vez, na história da literatura – a disputa pelo nome. É verdade que são os próprios textos de Ana Cristina os que retornam ao tema do nome uma e outra vez, com clara consciência das armadilhas do campo, não sendo apenas uma questão da crítica póstuma. Porém, há outros traços nos seus escritos que parecem ter sido opacados, ou pouco observados, pela atenção dada à disputa do nome. Traços que, a meu ver, e hoje, nos permitem olhar a poesia de Ana C. para além dela mesma, e nos permitem ler nesses poemas um gesto político que vai muito além da perícia literária do autor, seu estilo, seu nome. Se o nome (do pai) é aquele signo que tudo organiza, classifica, identifica e responsabiliza, o corpo da mãe e a língua materna poderiam ser pensados como o espaço, não do caos, nem do instinto ou da pulsão, mas onde se dá a experiência primordial do contato, do corpo partilhado, onde tudo está sempre e performaticamente se organizando, se arrumando, se acomodando. Por se fazer. Quiçá, pensar a poesia, a partir dessa economia, dessa arrumação do espaço, da acomodação, da ocupação que se encena permanentemente nos de Ana C. – talvez apesar dela –, pode nos afastar dela – do nome de autor – mas nos aproximar de um convívio. Os poemas de Ana C., os desenhos, as suas cartas e, inclusive, seus textos críticos estão povoados de mães, de grávidas (muitas vezes falsas grávidas), de cenas de alimentação, de cenas familiares, de filhos à mesa. O primeiro texto publicado em Inéditos e dispersos (1985), por exemplo, é uma história em quadrinhos – um corpo textual já hetero-


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¹ Siscar, Marcos. Ana Cristina Cesar por Marcos Siscar. (col. Ciranda da Poesia). Rio de Janeiro: Eduerj, 2011.

gêneo e aberto – onde um conde está grávido de um rei (tem um rei na barriga). No Caderno de Portmouth (1989), um dos mais belos desenhos é o de “26 pregnant women sunbathing on the beach”. Em Cenas de abril (1979), a sequência de poemas datados – “16 de junho”, “18 de fevereiro”, etc – coloca em cena toda uma economia familiar, a rotina doméstica com seu unheimliche, e dá um especial estranho lugar à figura da mãe. Em Antigos e soltos (2008) são vários os textos que mencionam a maternidade, alguns no tom de “Conto de natal”, publicado em Inéditos e dispersos, em que, do banheiro, “mamãe nos chamou entusiasmada para vermos o troço que dava três voltas e meia na água amarela pontinha apontando pra cima” (p.83), retratando os três irmãos se debatendo sobre como reagir perante aquilo que a mamãe “acabou de fazer”. Isso sem falar do “meu filho” ao qual se endereçam – gesto recorrente de abertura como diz Marcos Siscar¹ – tantos poemas de Luvas de Pelica. Nem do papel central da mãe de Ana Cristina Cesar na construção da figura poética da sua filha, nem das diversas amigas/mães que ela criara para si. Essa forte presença de cenas de convívio, de experiência coletiva – na qual não se sabe ao certo quem é o sujeito da experiência e da qual a maternidade talvez seja o exemplo mais incontornável –, pode nos levar a pensar em toda uma poética que, em lugar de entender a poesia e a tradição literária a partir da herança patriarcal ou estilística, o faça a partir da abertura, da contaminação, do dispêndio e da dívida corporal. No já clássico poema “enquanto leio”, publicado em Inéditos e dispersos, podemos ver essa espécie de poética do corpo em convívio, ou do corpo grávido, do corpo outrado, como modo de pensar as relações literárias: I Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio. II Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no


INTIMIDADE/MOSTRAÇÃO/CONFISSÃO meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio.

Não se trata de pensar, no caso de Ana Cristina, a maternidade, a gravidez, a amamentação ou o convívio doméstico, como a monumentalização do feminino ou a sua essência. Pelo contrário. Elas também são desmontadas, junto com todos os lugares comuns do feminino, e da poesia feminina, o sentimentalismo, a intimidade e a confissão: “O projeto político-literário: despoetizar a escrita feminina. Suprimir o mito do sexto sentido, da doce e inefável poesia feminina. A falsa grávida com gases”² (CESAR, Antigos e soltos, p.31). A gravidez não é o próprio do feminino, nem o íntimo, pois uma e outro se mostram como experiências do aberto. Florencia Garramuño³ retomara o termo lacaniano “extimidade”, para definir essa intimidade estranha, não compatível com os lugares comuns do segredo, que aparece nos textos de Ana C.. A partir daí, se a intimidade é “exterior”, se em toda confissão algo fica não dito e se em todo silêncio algo é revelado, o que parece estar se expondo nos textos é, não o sujeito que monta, constrói, cria ou produz o poema, mas um sujeito que se constrói e se vira com o que tem. Um sujeito se ajeitando, como pode, na linguagem, no mundo, em si mesmo. De certo modo as vozes que povoam os poemas estão sempre se ajeitando, ensaiando posições⁴ – como os corpinhos desenhados no Caderno de Portmouth – performando o drama do corpo aberto, heterogêneo e do convívio. Ocupar o espaço do poema é uma negociação permanente entre um e o outro, o corpo de um e do outro, o pensamento anterior e o presente, “autobiografia. Não, biografia”. É essa acomodação, essa economia, o que vemos em cena mais do que a genialidade da autora. Vemos uma experiência de mais de um, do sem nome. Como na gravidez, como na alimentação. Se a língua pátria nomeia, “a língua mãe lambe”⁵ e essa baba compartilhada, que não se sabe a quem pertence, nem quem a sente, pode nos abrir a outros modos de entender o poema, a outra política do poema.

² Cesar, Ana Cristina. Antigos e soltos. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2008, p.31. ³ Garramuño, Florencia. La experiencia opaca. Literatura y desencanto. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. ⁴ Nos textos críticos é impactante a presença de figuras de posições para pensar, para ler, que nunca são fixas, além do jogo permanente de vozes em um mesmo texto. Cf. “Notas sobre a decomposição n’Os Lusíadas”, “Os professores contra a parede”, “Quatro posições para ler”, “Literatura e mulher: essa palavra de luxo”, “Pensamentos sublimes sobre o ato de traduzir”, etc, todos publicados em Crítica e tradução. São Paulo: Ática, 1999.


INTIMIDADE/MOSTRAÇÃO/CONFISSÃO ⁵ Cesar, Ana Cristina. Antigos e soltos. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2008, p.77.

Sair do nome de Ana C., talvez nos permita ver as dificuldades e as maravilhas de ver que não há mundo sem vários corpos se tocando, tentando ocupar o corpo do poema. Ocupar é reexistir.⁶

⁶ Cesar, Ana Cristina. Neologismo inscrito no meio de uma página. Manuscrito em Antigos e soltos. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2008, p.259.

Luciana di Leone Luciana di Leone nasceu na Argentina, onde se formou como bacharel em Letras, hoje é professora de Teoria Literária na Universidade federal do Rio de Janeiro. Publicou Ana C.: as tramas da consagração em 2008 (7Letras) e Poesia e escolhas afetivas em 2014 (Rocco), além de diversos artigos em torno da poesia contemporânea argentina e brasileira. junto com Florencia Garramuño e Carolina Puente, traduziu e editou a antologia crítica bilíngue, Álbum de retazos (Corregidor, Buenos Aires, 2006), que inclui a obra editada além de inéditos, cartas, fotos e desenhos de Ana Cristina Cesar.



À mercê Italo Moriconi À mercê do impossível. Escrevo meu livro sobre Ana C. Deito-me. Me pergunto se serei capaz de conjurar os fantasmas, vencer a preguiça, realizar a evocação. A face de Ana aparece, vejo suas mãos que gesticulam. Bela como Clarice, como Olga, como Hilda. A dor de atrair tantos desejos, a dor do desejo, intimidade enrodilhada em busca de um grão de verdade última, o impossível: cabra cega do desejo, cabra cega em busca do eu. Tu, leitor/a. Ela me toma pela mão. Vamos passar a noite juntos, talvez. Por que será que este texto mexe tanto comigo. A dança das teclas sapateia sobre o túmulo em que nascerei. Tudo tem que ser feito rapidamente, tem que ser decidido rapidamente. Não há tempo. Ana me avisa. O tempo está pas-


INTIMIDADE/MOSTRAÇÃO/CONFISSÃO

sando. Ela me encontra às vésperas do lançamento de seu livro e me alerta. O tempo foge, fica o texto. Não deixe de procurar as pessoas, o tempo está passando, elas envelhecem, elas morrem. A melhor maneira de não morrer é deixar o texto. O texto que não é testemunho, pois é processo de viver dificultoso, meandros do desejo incerto. O impossível é o indecidível, poesia pede filosofia. O texto com trampolim, como esforço de sair fora do casulo, de dar algum sentido ao impulso cego, ao acaso. Entre o acaso e a estrutura. Agora ela me toma pela mão, novamente. Sei que é novamente. Sei que já estivemos fisicamente juntos um dia. Na tela do sonho, aparece a tela do computador. Vejo Ana que atravessa a noite olhando fixamente para a palma de sua mão, em devoção. Oro ao ouro do texto, à letra, ao traço. O traço. Reduzir o poema ao traço sobre a página. Uma lesma prateada que percorre a página e secreta, secreta. E secreta e secreta. Anatomia do desejo. A devoção a si que se esfrangalha em traço, em linha de fuga, em trilha para o outro que se esvai, se esfuma, mas é de carne e osso, é feito de sucos, de sumos, vagina, clitóris, sangue, relação mulher com sangue que vem de dentro. A poesia queria sangrar, mas precisa enfrentar o decoro, a teoria, o medo, ai, o medo de tantos fantasmas invadindo a cena do sonho. Vejo Ana que atravessa a noite olhando fixamente para a palma de sua mão, vejo seus olhos que se fundem com os de Jean Cocteau. Traço e verso, sangue desencarnado do poeta. O sangue de uma poeta. Da mão escorre um filete [...] como se da gengiva. Fala lacunar, escrita lacunar. Preencha as lacunas, leitor/a. Preencha as lacunas, leitor/a e me toque. O impossível, teu toque. Este livro sou eu! Sou eu. Sou? É. A boquinha na palma da mão diz coisas ininteligíveis. Ana indaga da glória, da eternidade. O impossível. Para que serve a glória eterna se não estou aqui para vê-la? Ceticismo moderno frente aos valores imemoriais do poético, do sublime, do divino. Já não quero ser poeta. Quero ser traço. Siga meu traço, leitor. Estou aqui. Não estou aqui. A mão de Ana acaricia a sereia que de repente apareceu em seu quarto sob a forma de estátua. A estátua lhe dá ordens. Ana se debruça sobre a amurada do espelho. Se atira. Se mostra. Mergulha no Hotel das Loucuras Lúcidas. Ela poderá escolher em que quarto dormirá. No primeiro, a revolução. No segundo, a droga. No terceiro, a punição materna. Ana escolhe o quarto augusto.


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Olha pelo buraco da fechadura. “Curioser and curioser”, murmura, lembrando-se de Alice, rubor nas faces. Alice e suas imensas botas. O giroscópio de Man Ray! O giroscópio de Marcel Duchamp! Doce música mecânica, estou aqui, não estou aqui. Esta é a minha intimidade. Estou aqui. Não estou aqui. Fort, da, a, fort, a fortiori, a posteriori. No divã, a figura do Hermafrodita. É o monstro que luta para aparecer, sob os véus do sublime, do poético, não há divino. Há hinos. Não divinos. Divinos são os rapazes hirsutos, o monte hirsuto onde a fêmea se torna macho. O Hermafrodita manda suas chispas de ouro na velocidade de um míssil. Um revólver vem voando até as mãos agora mudas de Ana. Ela o pega e instantaneamente se lembra daquele poeta gay que faz o poeta no filme de Jean Cocteau. O poeta a poeta. Uma das melhores definições cênicas de poesia literária, tal como entendida no século 20. O poeta a poeta. Aponta o revólver para a própria cabeça , aperta o gatilho, sai uma bandeirinha. Um filete de sangue escorre pela boca refalante na palma da sua mão dizendo com a voz pastosa, “devora, devora o papel num só estirão.” Poesia, prosa, proesia: traço tipográfico de refala íntima, impossível, partitura de um inefável que já foi físico. Esvoaça, esvoaça. Teu sangue me alimenta tanto, tanto, Ana, trinta e quatro anos depois, você ainda aqui, traço que resiste às traças.

Este texto mescla um trecho de meu livro "Ana C., O sangue de uma poeta” (2ª. edição, S. Paulo, Editora Egalaxia, 2016) a trechos inéditos, que estão em itálico. O filme de Jean Cocteau aqui “vampirizado” é Le sang d`un poète, de 1930.

Italo Moriconi Professor de literatura brasileira na UERJ, poeta, crítico, curador literário. Autor de Ana C - O sangue de uma poeta e organizador das Cartas de Caio Fernando Abreu, ambos em segunda edição pela Egalaxia (S. Paulo, 2016). Organizou algumas antologias de prosa e poesia, a mais recente, também reeditada em 2016 pela José Olympio, Destino: poesia, reunindo uma seleção de poetas ligados à geração marginal e contraculural. Criou e coordena a coleção Ciranda da Poesia, da EdUerj.



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Poema óbvio Não sou idêntica a mim mesmo sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob [o mesmo ponto de vista Não sou divina, não tenho causa Não tenho razão de ser nem finalidade própria: Sou a própria lógica circundante



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Mil-folhas de Clarice em Ana, aqui se cometem crimes de amor Flavia Trocoli “Felicidade se chama meios de transporte” escreveu Ana C. no penúltimo poema de A teus pés. Seguindo esse rastro, não faltaram leitores que destacassem sua “linguagem em travessia”¹ e o “o sujeito poético sempre no trânsito entre o poema e a vida, entre o poema e seu leitor”². Isso posto, percorrerei alguns caminhos em torno de um micro-poema³ que se encontra em Inéditos e dispersos: Aqui meus crimes não seriam de amor.

O poema é uma extração de uma crônica de Clarice Lispector intitulada “Brasília”. Como um navio ancorado no ar, o verso paira sozinho e solto na pá-

¹ SANTIAGO, S. “Singular e anônimo”. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhias das Letras, 1989. ² SISCAR, M. Ana Cristina César por Marcos Siscar. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.


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gina, presentificando, assim, “o silêncio visual” de Brasília. O leitor de Clarice talvez não demore a revê-lo em seu porto: Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. – Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho.⁴

A operação feita pela poeta é de corte, de apagamento e, ao mesmo tempo, de retenção. Na página anterior, “um poema ambulante” acabara de ir irremediavelmente “ralo abaixo.” Numa espécie de ressonância desse “houve um poema”, na frase, retida e transformada em poema, pode-se ler que houve uma crônica de Clarice; nela, a escritora está às voltas com a criação de Lucio Costa e Oscar Niemeyer que ergueram o seu espanto e o deixaram inexplicado – “A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.” A escritora confunde Brasília com o mais fundo do seu sonho, fundo que ela chama de lucidez. Se Clarice, lucidamente espantada, cria uma Brasília de letras, paisagem da qual, numa fotografia, ela própria estaria subtraída, Ana C., “faca só lâmina”, cria seu poema a partir de um “roubo inicial” em que, numa espécie de apelo à memória do leitor, é a própria literatura que se faz em trânsito entre autora-leitora-poeta, do corpo clariciano ao seio de Ana C. Só depois, a poeta realizará pela cronista a fantasia de seu desaparecimento. Nem mais inteiramente na crônica de Clarice Lispector, nem mais inteiramente um poema de Ana C., que diz “perdi o trem. Não consigo contar a história completa”, o poema talvez funcionasse como uma espécie de prótese corporal que problematizasse a ideia de propriedade, de pertencimento, dando relevo às funções da literatura, ela própria sem essência e à mercê do seu trânsito entre leitores. Tanto a literatura, quanto a poesia de Ana C., são “corpos abertos à diferença”.⁵

³ DI LEONE, L. Tramas da consagração. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. A partir do arquivo de Ana C., a crítica coloca em questão o estatuto de poema daquilo que numa outra visada poderia ser “fragmentos para futuros textos” ou “simples transcrição de frases alheias.” ⁴ LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.

⁵ SISCAR, M. Ana Cristina César por Marcos Siscar. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.


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Se, em Inéditos e dispersos, Brasília indeterminou-se no “aqui”, em A teus pés, ela aparecera em camadas: Minha boca também está seca deste ar seco do planalto bebemos litros d’água Brasília está tombada iluminada como o mundo real pouso a mão no teu peito mapa de navegação desta varanda hoje sou eu que estou te livrando da verdade

Aparece primeiro como efeito na boca da poeta, aparece tombada, iluminada, como mundo real. Impossível não escutar que Clarice começa sua crônica assim: “Brasília é construída na linha do horizonte. – Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado”. No poema, da cidade e seus efeitos na boca da poeta se passa para o corpo de um outro, no qual a mão pousa. Nesse pouso, o peito passa a mapa da navegação e, enfim, a poeta diz “eu” para se endereçar ao outro e dizer a ele que hoje ela o está livrando da verdade. Seria esse um crime de amor – livrar o outro da verdade – desta vez cometido em Brasília com a boca seca? Crime que remeteria o leitor ao final do conto “Felicidade Clandestina”, de Clarice, quando a menina tem nas mãos não mais o livro desejado, sem posse, apenas emprestado, mas o amante, nesse transporte das folhas do livro ao corpo. Em um delicioso poema de 1968, Ana se endereça a Clarice (que, como a Brasília transposta, é “toda uma só e toda uma porção”) e diz de seu desejo de caminhar até sua casa e lhe oferecer um mil-folhas: E pensar mesmo é “você” E assim eu ia embora, Andar pela Av. Atlântica uma tarde úmida E você (perdão) comendo a mil-folhas de folha em folha E daí a 3 dias


CORPO/CRÍTICA/CLÍNICA Na sua crônica no JB Não havia uma referência, apenas um PS exaustivo: “Comi um mil-folhas, estou folhuda e desfolhada”⁶

O poema ilumina o gesto poético a que Ana C. terá submetido a crônica de Clarice. Gesto que coloca em cena não a referência clara, não uma narrativa do encontro (afinal o poema diz um antes e um depois, o durante é apenas esse instante em que se diz “você” e se oferta algo), mas sim um post scriptum, um acréscimo depois da assinatura. Não mais a seca Brasília, mas a úmida Av. Atlântica, fazendo dessas transposições uma via de mão dupla da crônica para o poema e do poema para a crônica – transformando o roubo inicial, que apaga a voz, em roubo final, que cria a voz? Neste momento, Ana não faz mais a assinatura de Clarice desaparecer, se endereça a ela e depois escreve como se fosse ela. Ela, que inventou uma verdadeira gramática da manducação, recebe dessa outra mulher esse mil-folhas, mastiga, se transforma em folhuda e desfolhada. Dessas mil-folhas, caberá ao leitor recolher os vestígios e fazer o seu próprio mapa de navegação, afinal desistimos de afundar navios. Ou, quem sabe, sua cartilha da cura. E, assim, eu ia embora. (perdão). Sei que voltarei.

⁶ GARRAMUÑO, F.; DI LEONE, L.; PUENTE, C. (sel., trad., e notas). Álbum de retazos. Antologia crítica bilíngue. Buenos Aires: Corregidor, 2006.


Flavia Trocoli Flavia Trocoli é professora da Faculdades de Letras da UFRJ e membro-fundador do Centro de Pesquisa Outrarte – a psicanálise entre a ciência e a arte. Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP, sua pesquisa gira em torno da cena enunciativa nos seguintes autores: Clarice Lispector, Virginia Woolf, Marcel Proust, Marguerite Duras, Roland Barthes e Jacques Derrida.



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Dentro dessas margens Roberto Corrêa dos Santos “é sempre mais difícil / ancorar um navio no [espaço” Ana Cristina Cesar, Cenas de abril, 1979

Há bem poucos e raros e diminutos livros de poemas em sentido estrito de Ana Cristina Cesar e todos poderiam guardar-se no lindo título do de maior tamanho deles: A teus pés, título a assinalar coisa diversa: indica haver um outro por lá nas páginas, um tu (em grande parte um tu que é um ela, um ela com que o pronome reto eu fala); marca alguém, um eu (em grande parte um eu vindo de um ela-Ana-verdade-e-persona; e quase em todos os lugares posto como um eu a conduzir a trama plural dos afetos nos textos grafa-


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dos); expõe uma posição (um ente a dobrar-se, quem?), estabelece uma topologia plástica (um desenho-coreografia de... dois corpos); faz mover-se a seta de pedido de piedade ou de amor – ou de socorro! (piedade, amor, socorro – para quem?); e serve muitíssimo para introduzir a lógica geral que abarcará as mil escritas de Ana em sua aí-sim-poesia em caráter expandido: cartas, papeizinhos, experimentos, estudos, rabiscos etc. etc. etc. A lógica geral de Ana C. situa-se em permanentes atos-gestos de recortar e de unir nacos intensivos; nacos de carne, de nervos, de osso (o pé das coisas; ir ao pé, ao rés de) e pelo pé, erguendo-se, sustentar-se então todo o peso humano e suas frações constitutivas; trata-se de uma obra a montar-se com frações: frações de frases, também humanas, também ósseas, também colhidas no banal mundo extraordinário da rua ela mesma, assim como também colhidos do extraordinário mundo da rua literária; de matérias dessas ruas alimenta-se a fome-escrita-arte-da-poeta-artista-Ana. Ana tem parceiros plurais, dentre eles, assinalando dois, Mario de Andrade e Carlos Drummond de Andrade; do primeiro aproxima-se no modo de dispor as sequências que formam os versos; do segundo, aproxima-se no modo de dar à lírica certo humor e, para rimar, certa dor. Eis uma poeta moderníssima, e, contudo, tantos anos depois, ainda inaugural: fala sem temor com os altos escritores modernos nossos e estrangeiros e curiosamente – essa é uma das graças preciosas de Ana – encerra (até ali ainda possível) o continuar-se no moderno, a preço de, continuando-se, tombar-se alguém, não Ana, no não mais epistemicamente vital de que artes carecem. A escrita-Ana conseguiu o não se ter caído, como continuam tantas gentes a cair (uma pena!), presas ao miúdo da beleza e da sublimidade modernas; a escrita-Ana utiliza-se apenas de vestígios já perdidos de beleza e sublimidade, ama o que usa, conhece o que usa, e desfaz-se de, por meio


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de um jeito seu e de mulher: vale-se de um quadril-verbal móvel e sutil, inviável a Mario ou a Drummond. Em textos outros, tenho afirmado que a poesia em geral (e portanto a de Ana também) integra-se aos feitos de longa duração (histórica). A tese é de que o poema quase não sofreu erosões desde seu marcar-se como tal no Ocidente: os temas, as maneiras, os recursos rítmicos alteraram-se minimamente e, contudo, cada feito de cada escritor, se escritor, move algum grão seu no sítio do diferir: Ana e seu vento íntimo espalham mais sinais de força no sensível-quando-em-letra: arrebata, gera entusiasmo, dá-se em uma entrega discreta e elíptica. O sopro-ar-poema-Ana pôde alertar mulheres de gerações futuras no Brasil que a poesia as quer; sendo de uma geração daqueles anos 70 do século XX, abre Ana a porta a mulheres-poetas-de-agora; hoje, tantas e tantas e excelentes, escrevem no seio da liberdade linguístico-ficcional que Ana acionara, e levam o escrever de Ana adiante, multiplicam-no em vívidas direções: narrares, personagens e sensações seus – postos em páginas por procedimentos plástico-discursivos a que me dedicarei – reverberam, não cessam de reverberar. Nesse seu agir poético, há crítica, muito de clínica: e algum corpo: c de Ana (C.), c de crítica, c de clínica, c de corpo.

Roberto Corrêa dos Santos Roberto Corrêa dos Santos é artista visual, escritor, semiólogo e professor de estética e de teoria da arte do Instituto de Artes da UERJ; realiza pesquisas sobre arte e teoria da arte, sobre performance e escrita contemporâneas. Entre os livros publicados, o mais recente chama-se Cérebro-Ocidente / Cérebro-Brasil: arte / escrita / vida / pensamento / clínica (Rio de Janeiro: Editora Circuito Editora, 2015)


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Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar nasceu em 02 de junho de 1952, no Rio de Janeiro. Desde os quatro anos de idade, fazia poemas que, por ainda não saber escrever, eram ditados para sua mãe. Foi licenciada em Letras pela PUC-Rio, mestre em Comunicação pela UFRJ e Master of Arts (M.A.) em Theory and Practice of Literary Translation pela Universidade de Essex, na Inglaterra. Em vida, publicou Cenas de abril (1979), Correspondência Completa (1979), Luvas de pelica (1980) e A teus pés (1982), além de Literatura não é documento (1980), fruto de sua pesquisa acadêmica. Nos anos 1970, consolidou-se como uma das principais artistas da chamada “geração mimeógrafo”, com uma extensa produção de escritos, diários, correspondência e até mesmo esboços e desenhos. Após sua morte, em 1983, outros textos seus foram lançados em diversas edições, como Poética (2013). Além de poeta, foi professora, tradutora, ensaísta e pesquisadora, tendo sempre a literatura como principal objeto de trabalho.


Poemas de Ana C.


vacilo da vocação Precisaria trabalhar — afundar — — como você — saudades loucas — nesta arte — ininterrupta — de pintar — A poesia não — telegráfica — ocasional — me deixa sola — solta — à mercê do impossível — — do real


“olho muito tempo o corpo de um poema” olho muito tempo o corpo de um poema até perder de vista o que não seja corpo e sentir separado dentre os dentes um filete de sangue nas gengivas


“Esquece essa história do corpo.” Esquece essa história do corpo. Não foi você mesmo quem disse que pintar os cabelos não está com nada? Sossega, coração. Separa dela, rápido. Esses 15 anos não valem ponto não! Ouve este blues! Irresponsabilidade existencial! A Má Literatura! Pulando definitivamente? Desobedeci? Te ligo interurbano, te digo: separa, separa já dessa mulher! Eu não posso mais, Mário, não posso mais, toca blues depressa, devagar, neste caminho trilha para a praia à noite — não, não sou como você, que diz que não acredita, eu sim fico crente, e de mau humor, e acho que tudo é de verdade, e pergunto pro teu pai: “Ele está dormindo solenemente?”. que vai ver e diz que sim. Mas então — quem — esta mulher dos desempenhos? Faz a fálica, me aconselhas, e eu dispenso o emprego com garbo depressivo, assim — Oh não, assim não — volto para os daiquiris. Aqui na cultura brasileira, filha? É aqui? esse imaginário para que os atores reproduzam, malandrinha? Vê no que que dá.




sumário Polly Kellog e o motorista Osmar. Dramas rápidos mas intensos. Fotogramas do meu coração conceitual. De tomara-que-caia azul-marinho. Engulo desaforos mas com sinceridade. Sonsa com bom-senso. Antena da praça. Artista da poupança. Absolutely blind. Tesão do talvez. Salta-pocinhas. Água na boca. Anjo que registra.


fragmento 6 aventura bruta (em versos)


meia-noite. 16 de junho Não volto às letras, que doem como uma catástrofe. Não escrevo mais. Não milito mais. Estou no meio da cena, entre quem adoro e quem me adora. Daqui do meio sinto cara afogueada, mão gelada, ardor dentro do gogó. A matilha de Londres caça minha maldade pueril, cândida sedução que dá e toma e então exige respeito, madame javali. Não suporto perfumes. Vasculho com o nariz o terno dele. Ar de Mia Farrow, translúcida. O horror dos perfumes, dos ciúmes e do sapato que era gêmea perfeita do ciúme negro brilhando no gogó. As noivas que preparei, amadas, brancas. Filhas do horror da noite, estalando de novas, tontas de buquês. Tão triste quando extermina, doce, insone, meu amor.


Estou muito compenetrada no meu pânico. Lá de dentro tomando medidas preventivas. Minha filha, lê isso aqui quando você tiver perdido todas as esperanças como hoje. Você é meu único tesouro. Você morde e grita e não me deixa em paz, mas você é meu único tesouro. Então escuta só; toma esse xarope, deita no meu colo, e descansa aqui; dorme que eu cuido de você e não me assusto; dorme, dorme. Eu sou grande, fico acordada até mais tarde. [Trecho de Luvas de Pelica]



que desliza Onde seus olho estão as lupas desistem. O túnel corre, interminável pouso negro sem quebra de estações. Os passageiros nada adivinham. Deixam correr Não ficam negros Deslizam na borracha carinho discreto pelo cansaço que apenas se recosta contra a transparente escuridão.


Tenho uma folha branca e limpa Ă minha espera: mudo convite. tenho uma cama branca e limpa Ă minha espera: mudo convite. tenho uma vida branca

e limpa Ă minha espera:

5.2.69


sou uma mulher do século XIX disfarçada em século XX


A poesia pode me esperar? Estou preparando o curso de tradução e Pound Faz censuras. A casa da mamãe é uma pensão. Não consigo falar nem escrever fluentemente (assim parece). Aula de ginástica: desfazer o rosto. Tocar nas órbitas. Recuar do ponto constante de tensão. Descolar a pele. Depois de estudar folheio este caderno cheia de superstições. Descubro que sou supersticiosíssima: (se escrever ou disser não sai). Estou ocupada. Outros tantos. Agudo. 13.6.83



Parece que há uma saída exatamente aqui onde eu pensava que todos os caminhos terminavam. Uma saída de vida. Em pequenos passos, apesar da batucada. Parece querer deixar rastros. Oh yea parece deixar. Agora que você chegou não preciso mais me roubar. E como farei com os versos que escrevi? 23.7.83




por enquanto Quando então sentada na cama de casal lembro que nela te perdes de beijos estou sem ar no ar mexo as mãos olhos força nos ombros no nariz; a garganta solapa; via estreita, nossa conversa amena; nossa amizade; até o previsto e casto adeus; o tempo se poupa; nos economiza; e teu ouvido mouco; e o troco; e enquanto isso, fora, o real constrói poema, imbatível.


mímesis quando esqueço as grandes assombrações e beijo teu regaço escuro, tua pequena pele surpreendente temo que o meu rosto se desfigure e volte a imitar os mistérios da noite e a trágica história do malabarista


faz trĂŞs semanas espero depois da novela sem falta um telefonema de algum ponto perdido do paĂ­s








Texto referente à entrevista concedida por Ana Cristina Cesar à revista Istoé 19--


Acervo Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles


Flavio Lenz Cesar e Ana Cristina Cesar com Luiz Felipe Cesar no colo 1961 Autor nĂŁo identificado/Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles


Ana Cristina Cesar no colo do pais, Maria Luiza Cesar e Waldo Cesar 1952 Autor nĂŁo identificado/Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles


Acervo Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles

Desenho da famĂ­lia 19--

Gosta de poesia?... 19--


Ana Cristina Cesar como oradora na formatura do ginรกsio no Cรณlegio Estadual Amaro Cavalcanti, Rio de Janeiro 1967 Autor nรฃo identificado/Acervo Ana Cristina Cesar/Instituto Moreira Salles


Ana Cristina Cesar no lançamento do livro A teus pés no Rio de Janeiro 1982 Autor não identificado/Acervo Ana Cristina Cesar/Instituto Moreira Salles


Ana Cristina Cesar e, ao fundo, bandeiras coloridas 1977 Autor nĂŁo identificado/Acervo Ana Cristina Cesar/Instituto Moreira Salles



Ana Cristina Cesar de รณculos escuros, sentada no banco da frente do carro 1977 Clara Alvim/Acervo Ana Cristina Cesar/Instituto Moreira Salles


A televisĂŁo 1963

Acervo Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles



Ana Cristina Cesar 1976 Cecilia Leal de Oliveira/ Acervo Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles



Ana Cristina Cesar ao lado de carro coberto de neve, lê-se a expressão Hello Brazil Londres, 1969

Autor não identificado/ Acervo Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles



Esquece essa história do corpo‌ 19--

Acervo Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles



Esquece essa história do corpo‌ 19--

Acervo Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles



Ana Cristina Cesar 19--

Acervo Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles



Ana Cristina Cesar recostada em almofadas 19--


Autor nĂŁo identificado/Acervo Ana Cristina Cesar/Instituto Moreira Salles


Ana Cristina Cesar 1954 Autor nĂŁo identificado/Acervo Ana Cristina Cesar/ Instituto Moreira Salles


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PRODUÇÃO Atelier Produtora

ASSESSORIA EM DIREITO CULTURAL Rafaella Furtado

COORDENAÇÃO DE PROJETO Ana Hortides

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PRODUÇÃO EXECUTIVA Joana d'Arc de Nantes Philipe F. Augusto

REVISÃO DE TEXTOS Easy Revisões Acadêmicas

PRODUÇÃO ADMINISTRATIVA Paulo Dejean

Marcela Freitas

CURADORIA Ana Hortides Thiago Grisolia PALESTRANTES E TEXTOS PARA CATÁLOGO Alice Santa’Anna Armando Freitas Filho Flavia Trocoli Heloisa Buarque de Hollanda Italo Moriconi Luciana di Leone Roberto Corrêa dos Santos PROJETO EDUCATIVO Ana Hortides Jessy Gonçalves EDUCADORES Filipe Machado Jessy Gonçalves Marrysta Melo

PROGRAMAÇÃO VISUAL ARQUITETURA DE EXPOSIÇÃO Rafael Balbi MARCENARIA pequenoLab ILUMINAÇÃO Paulo Denizot MUSEOLOGIA Jessica Moraes ÁUDIOS DE POEMAS Pollyana Quintella MONTAGEM Felipe Avila Gerson Porto


AGRADECIMENTOS ESPECIAIS Armando Freitas Filho Cecilia Leal de Oliveira Elvia Maria de Sá Bezerra Flavio Lenz Cesar Heloisa Buarque de Hollanda Luís Felipe Cesar Manoela Purcell Daudt D' Oliveira Companhia das Letras Instituto Moreiras Salles AGRADECIMENTOS Alice Sant’Anna Ana Cláudia Viegas Anélia Montechiari Pietrani Annita Costa Malufe Beatriz Resende Carla Ferraz Carlos Eduardo Siqueira Ferreira de Souza Dora Célia Pedrosa Clara Alvim Daniela Labra Douglas Salomão Eucanaã Ferraz Felipe Jarrusso Filipe Machado Flavia Trocoli Flora Sussekind Florencia Garramuño Ida Alves Isabel Monteiro Italo Moriconi Jane Leite Conceição da Silva Jessy Gonçalves João Batista da Silva João Moreira Salles

Julia Deccache Julia Menezes Moreira Kamila F. Augusto Katia Muricy Katya de Moraes Perez Lilian Krakowski Chazan Luciana di Leone Luciana Hortides Marcos Siscar Maria Lucia de Barros Camargo Michelle Machado Monica Nantes Simione Nantes Odette Jerônimo Cabral Vieira Paulo Dejean Pollyana Quintella Rafael Balbi Rafaella Furtado Renata Abdo Roberto Corrêa dos Santos Thiago Muniz Vitor Brito Yasmin Cohen



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