LYRA FILHO Da cama ao comício

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NOEL DELAMARE

DA CAMA AO COMÍCIO poemas bissextos


NOEL DELAMARE é o pseudônimo literário de Roberto Lyra Filho, que o adotou, não para esconder-se, mas para separar a produção de ensaísta, poeta e tradutor de poesia, dos trabalhos de filosofia e sociologia jurídicas – mediante os quais se tornou uma das personalidades mais conhecidas, criativas, e polêmicas da atualidade. Como poeta, além de freqüentar, há perto de 40 anos, os suplementos e revistas, publicou um volume de traduções e participou de outro – igualmente como especialista em versão de poemas estrangeiros. Sua poesia original tem duas características principais: na temática, a substância confessional e erótica (traço comum dos poetas bissextos) é transfigurada pelo enquadramento político, fazendo de seu caso particular um símbolo da luta pela libertação, em todos os terrenos (o que é mais raro, em um bissexto, e já se afirma no título desta coletânea); do ponto de vista formal, por outro lado, a espontaneidade do “sentimento” é organizada com especial requinte, demonstrando erudição e amadurecimento, a nível técnico e de pesquisa (o que já permite afirmar que o autor só é um bissexto, no sentido da escassez de produção; ainda aqui, menos por falta de material rascunhado, que do excesso da autocrítica, votando-o, na maior parte, ao ineditismo). Da Cama ao Comício assume, clara e corajosamente, a autenticidade humana do transexual, mas nem por isto o confina à poesia de gueto. Noel pretende, antes de tudo falar “ao macho da glória de ser Homem” e às “fêmeas amigas” dum “jeito enternecido/de gostar dele, das suas vaidades./Inseguranças, grandezas/ Passageiras”; e, mais – convoca homens e mulheres, para a tarefa de construir o mundo “sem patrões, nem preconceitos”. Como transexual, Noel Delamare é, portanto, “a vivandeira das contestações” e, nele,a defesa das minorias eróticas representa a participação de todos, na criação da “igualdade em terra e sol e sexo”, já que “o teto, o pão e a liberdade / não são favores, são direitos”. Com tudo isto, a raiz e a tônica sociais de nenhum modo prejudicam a lição poética que, nos poemas de amor, ilustra o democrático manifesto, com toda a força expressiva do que é “amar um Homem” (e, nele, a libertação, tanto pessoal, quanto sócio-econômica e política). Aqui, a união é favorecida pela natureza transexual do autor e produz, na realização estética, dois defeitos notáveis: o encontro de homem e mulher, no itinerário libertador, sem guerra dos sexos, sem


aprofundar, intelectual e sensualmente, a sua virilidade; nenhuma Mulher, bem mulher, os lerá, sem descobrir, nos mesmos versos, a imagem da sua própria condição feminina). Em Noel Delamare a transexualidade não isola; integra, porque a poesia é “pessoal-totalizada” e, desta maneira, alcança a fidelidade abrangedora, assinalada na epígrafe de Clarice Lispector: uma libertação sexual, como aspecto da transformação do mundo, para o socialismo não-autoritário. Noel Delamare não teme “expor-se cruamente nas livrarias”; desdenha o “escândalo” dos poderes repressivos; transfunde a confissão franca, num documento político; e confere ao erotismo o seu valor moral, denunciando as “moralidades”, que admitem qualquer transa “discreta”, com o selo da hipocrisia.

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Criativo, inovador, a questão do intelectual em Roberto aparece em seus escritos com uma relação inseparável da prática política. A contestação política estava em toda parte em Lyra Filho, por isso, nesta luta, o intelectual independente estava entre as poucas personalidades de sua época preparada para resistir e lutar contra os estereótipos, valores e a conseqüente morte das coisas genuinamente vivas. Essa figura do intelectual em Roberto como um ser colocado à parte – marginalizado – foi capaz de desabrochar no homem, a rosa cheia de espinhos: um ser eloqüente e extremamente doce, fantasticamente corajoso e revoltado, para quem nenhum poder do mundo foi demasiado grande e imponente para ser criticado e questionado de forma incisiva. Lyra foi Lyra, a mesma pessoa que se opôs à presença dos militares, de uma classe burguesa e de valores ditos universais. Não herdou dos pais seus hábitos de vida: casamento, religião, filhos, uma vida mais ou menos assim... Reparamos nele o rompimento de laços burgueses, a começar com os próprios pais, parecendo menos um filho – Lyra “Filho” –, desafiando a rotina, atacando a mediocridade e os clichês, reivindicando novos valores – sentimentos –, não àqueles ditos “racionais” ou “progressistas” por uma classe burguesa política. Mas pelo menos não resta dúvida de que quando se apaixona,1 a imagem do verdadeiro intelectual em Roberto Lyra Filho, permanece atraente, insinuante, sedutora e erótica. Neste livro de poemas, Roberto, faz do seu caso particular – que é a revelação de sua transsexualidade – um símbolo da luta pela libertação, em todos os terrenos. A espontaneidade do sentimento é organizada com especial requinte, fazendo-o ver além do objeto, questionando, duvidando das coisas, sendo guiado pela emoção, estando no mundo da razão sensível, sendo antes de tudo um poeta. Nem se estranhe a invasão poética num discurso jurídico e político – o poeta é, etimologicamente, o criador, o que faz, não o que devaneia; apenas faz, com vista à

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Setenário de Londrina (4 a 10/12/1983).


superação das obstruções emergentes e ligado àquela concepção da política como arte do impossível:2 Ser político, no sentido de pólis, de participação ativa na comunidade, do compromisso e deveres sociais, é recusar a desintegração do homem, numa teoria alienada, servindo uma práxis reacionária. Mas ser político não é ser sectário; é orientar a conduta, em cada etapa e conjuntura, pela análise que determina a viabilidade dos passos presentes, com vistas ao objetivo final, ainda distante, mas que polariza toda a práxis vanguardeira (...) Dialeticamente, direi que política é tornar possível o "impossível", isto é, o objetivo final de toda ação, mediante a "evolução revolucionária", constituída por sucessivas aproximações, que pressionam e dilatam as barreiras da reação e do conservantismo, com vista à transformação do mundo e, não a adaptação ao mundo da dominação instituída.

Manifestando todo seu lirismo, liricamente, cantando emoções e sentimentos íntimos como um lírio que nasce ao som da lira novamente encordoada, num “Lirismo de Lyra”;3 na mesma circunstância, o verso toma o aspecto da oratória política; a recitação, da cama ao comício. Não é possível negar que a poesia lyriana tem seus colapsos estéticos; é o defeito, correspondente às suas qualidades. Mas haverá discurso poético mais enfibrado que estes versos?

João C. Galvão Jr. Rio, setembro de 2006

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LYRA FILHO, R. Direito do Capital e Direito do Trabalho, Porto Alegre: S. A. Fabris, 1982, p. 27. Lirismo de Lyra, Poemas e Poesias, um dos links do site do Núcleo de Pesquisa Lyriana – NPL (www.nplyriana.adv.br). 3


Para Alayde Sant’Ana, Ione Marques de Oliveira e Marília Muricy

três flores da amizade, três companheiras de luta contra o dogmatismo, nas idéias; a opressão, na política; os recalques, em qualquer terreno.


“ – Você acha que eu ofendo a estrutura social Com a minha enorme liberdade? - Claro que sim, felizmente. Porque você acaba de sair da prisão como ser livre. O sexo e o amor não te são proibidos. Você aprendeu enfim a existir. E isso provoca o desencadeamento de muitas outras liberdades – o que é um risco para a tua sociedade”. CLARICE LISPECTOR.


I IMPLOSÕES

Uma Sátira Desesperada, Apresentando Vinte Poemas de Amor (1983).

“Onde não há jardim as flores nascem de um Secreto investimento em formas improváveis” CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Primeira Parte

SÁTIRA DESESPERADA

“A contração de três nervos do abdômen Não produz o Nirvana perpétuo” EZRA POUND


Se o teu beijo existisse, Acabaria. Amor eterno É feito de saudade Ou frustração sublime: Abelardo, capado; Wérther, morto; Dante nunca trepou com Beatriz. Os luares desbotam na cozinha, Tédio guisado, Cafezinho, bocejos diante da TV, Remoendo os silêncios incomunicáveis Ou diálogo mole Com despistamentos e chavões. Há muito já cansaram de foder, Não há mistério, Não há excitação, Nem mesmo a técnica varia, Para jogar um molho apimentado Sobre as metidas domésticas E triviais. O par se deita, Cada qual para seu lado. Encostam bundas E fabricam, roncando, Os sonhos divergentes: Troca de parceiros? Transar com Vera Fischer? Levar atrás, pensando no Aritana? Ou, chupar o galã da tela mágica Por foto-fantasia?


Madame Bovary tentou Rodolfo E não deu certo. Amor, mito de encontros: Todo ouro Vira bosta no rastro das rotinas Porres, caçadas, música, luz negra, Que burocracia Na mecânica dos inferninhos! Acordo, tendo ao lado O ex-príncipe desconhecido, Se já não me fugiu de madrugada, Levando umas lembranças que não dei. O lençol sujo Não se lava com poemas, Com lendas metafísicas Dum certo uísque, marca Kierkegaard. O espelho diz “Pequena burguesia, cinqüenta e sete anos de tesão teimoso Fugas impossíveis e modo de morrer”. Mas não posso esperar que a terra mude, Para buscar os meus alívios. Até Marx derrapou na governanta, Como eu nos felinos de aluguel. Entre pausas da prática política, Amor bruto, que outro não me deram Ou foi tão mal fingido Que nem ficou saudade da mentira.


Existe, houve, é claro, imitação Que empina peitos, pênis, funga e fala: “Duas pílulas de romantismo Entre o cu da noite E amanhecer na canga do trabalho”. Para sustento, Artes de Ovídio, Kama Sutra, Nas adaptações do greco-industrial Gay Guide. E mais caralhos e mais ilusões Antitérmicas, Analgésico – estupefacientes, Que acabam se amarrando Num sorriso, num bíceps - Máscara do vácuo Sentimental, Mental: símios insossos, Embora (convenhamos) bonitinhos. Há trâmites compridos, Que encapam os caninos do cowboy. É o caso, É o orgasmo colorido, É a transa do sábado deserto Debitada na conta corrente: Juros altos, Cartão de crédito sexual, Que não se acaba nunca de pagar - Como, aliás, no velho matrimônio, Este michê instituído, Com tabelas mercenárias, Usurárias, Irritações, Prisões, Grilhões: Para acabar, inventário, partilha; Dividem-se Os bens, os filhos e talvez Umas lembranças murchas. Amor já não existe a partilhar. Mas ninguém é bom mesmo, Ninguém é peste sem remédio, Somos todos vítimas das engrenagens. A putaria é só seu avesso Menos hipócrita, inclusive, Dispensando escrituras e sermões.


No xibiu da velha rica, O garotão fatura seu carango; O velho paga a pulseira Natan Na voragem do rio das piranhas. Bicha depende da sorte: Aperta os tubos, solta a nota preta Ou se estrepa n´algum latrocínio, A vingança machista De quem não desdenha rabos-trampolim, Mas destrói os seus corpos de delito Contra a farsa moral, que não contesta, Mas infringe e disfarça. Jornais muito solenes Defendem a família Na primeira página E, nos classificados, Anunciam toda sacanagem. O lúmpen apenas imita Com pressa, com raiva, O comércio elegante; E então se desafoga, estrangulando Os míseros degraus Duma ascensão pela trepada. Gorou na Rússia o velho socialismo Burocrático-policial; Em Cuba, há hoteizinhos Hétero-convencionais; E os velhos, que fiquem na punheta, Como os veados, no campo de concentração. É isto aí: O facão da ordem prepotente Ou o estilete dum rato de esgoto Do capitalismo ocidental, Com seu big stick, Seus quintais latino-americanos. Hollywood acabou. O canastrão aposentado Mora hoje na Casa Branca, Fala do russo, pelo Afeganistão, Mas devora Granada, Pondo o olho grosso Na Nicarágua.


Gatos rondam Na praça mercantil, Merda na cuca, Recalques, Consumismo, loto, loteria, Boca rica. Então, quem sabe? Talvez um pistolão, Emprego público, De bater ponto na cama, Pela ordem de serviço horizontal. Antigamente, O grão-senhor pagava seus amantes, Agora inclui no rol das mordomias O penico de ouro da libido. Para executivo, expense account; O funcionário gordo tem a burra do Estado. Não sou, não fui a bela adormecida, Não vi, não há o príncipe encantado, Somente quebra-galhos, Fome inexorável De envelhecer contando amores lindos, Que acalmam as angústias renitentes.

Cultivo abismo em terra de carência, O espírito entre as pernas: Humorismo de Madre Natureza, Que nos põe a cagar nossos tormentos, Mijar as águas duma solidão Pelos mesmos orifícios Que recebem a força penetrante Ou desprendem o gozo rapidíssimo, Sem paina, sem ternura E, apesar de tudo, Indispensável. O racional é frio, encabulado, O passional me arde e descontenta; No meio, tira férias o desbunde


E Deus arrepiou-se, Desmoralizado Pelos que matam no Seu nome Ou simplesmente o avacalham, Pondo Igrejas na carroça Da classe dominante. No entanto, Sei como é preciso, Não apenas trocar modos de produção, Mas transformar o mundo inteiramente, Desimpedir todas as liberdades Sem adiá-las para a festa de São Nunca, Pelo mito pós-bélico das classes, Digerido na pança autoritária Do socialismo de fato Inexistente, Reino de Partido, burocratas, Tiras, Torquemadas Com hábito vermelho. Aqui, não há melhor: Debaixo da prata De imperialismos e banqueiros, Nós, imprensados Pelo dogma violento das patrulhas, Vamos pagando, além da mais-valia, O preço da segunda maldição. Eles cospem nos sonhos dos veados, Pisam na sua cara escarnecida.

Pois rompa o grito: “Sou transexual E não respeito as cortinas de ferro, Dólar ou bambu”. Atiro fora a roupa e a bengala, Planto no chão a trêmula carcaça E mostro às vítimas do açoite Os sete mares da libertação. Correm ávida, a noite e os instantes Fugidios, que não se recupera. A mocidade gasta seus momentos, A velhice não tem alternativa; Qualquer conquista é esmola Do tempo contraído.


E só por isso foi que eu te inventei, Meu Guaraci, meu índio feiticeiro, Num protesto Contra a dizimação das tribos brasileiras E contra a fuga das minhas primaveras. ]a idade tem mofo, As carnes pendem, Não morre o desafio Que vai dizer do fogo subsistente, Despedi-me do cântico-esperança E, no entanto, sobra a rebeldia, A força desespero Que se transforma em luz-reunião. Meu discurso não é apenas meu, Falo ao macho da glória de ser Homem. A vocês, fêmeas amigas, Alaydes, Iones e Marílias, Lembro este nosso jeito enternecido De gostar dele, das suas vaidades, Inseguranças, grandezas Passageiras. Misturo idade, sexo, Aurora, decadência No almíscar lírico escorrendo Sobre as contradições da humanidade, A sordidez, o êxtase, a agonia, O puro amor total dos corpos livres, O egoísmo, o surto generoso, O rebrilhar fugaz da plenitude Na carne e na meiguice, A poesia, a força, o desamparo, A violência e o beijo. Alma à flor dos sentidos, Eu me entrego e consolo Na brutalidade das violações, Que desatam orgasmos fraternais. São meus irmãos, eu os cobiço, Dane-se a repressão!


Porque me deixo possuir, Sou como Whitman, Porém mais consciente Das liberdades em combate, Suas raízes, carrascos E prisão. No meu afã de lutador andrógino, A semente que lançam no meu corpo Faz-me parir o amor-revolução. O peito seco amamenta com poemas O guerreiro mais belo. Sou a vivandeira Das contestações. Nunca, Drummond, eu só conseguiria “Dinamitar a ilha de Manhattan” Mas combato o genocídio, A fome, o sofrimento Do meu povo, Presa de abutres, Pasto de gringos E seus criadinhos nacionais; E desafio toda ditadura, Capitalista, pós-capitalista, No mesmo ato em que me ponho nu Para dizer: “eu quero amar um Homem Que me realize e recomponha Todo o dilacerado resplendor Da mulher que carrego prisioneira”. Faço poemas (não sei fazer melhor), Faço discursos (que são armas também), Assim tão pessoais-totalizados, Pela igualdade em terra e sol e sexo. O meu amado será líder. Pús nas suas flechas Todo o curare da revolta Que atinge o cerne da opressão. Estremecem as barbas centenárias, Sexi-fajutas De Marx. Mas não importa: dele, Fica o melhor, o que ensina a lutar


Para não ser mercadoria, Que ainda somos, Nesta sociedade constritiva, Trucidados Nos altares do lucro e da polícia, Nós, trabalhadores, Índios, mulheres, negros, bichas, Ovelhas abatidas No Grande Matadouro do Sistema. É o jogo das múltiplas facetas Em que até as grinaldas são vendidas. Nada é gratuito, O casamento, o livro, a refeição, A casa, a foda, o filho, a morte. Temos de inventar juntos Outro socialismo, Que não vai nascer Por decreto da velha ditadura. Segue a práxis, envelheço, E já não tarda o fim do itinerário Minúsculo, cinzento. Que fazer do meu resto de vida, Senão dom aos que lutam, Erram, corrigem, perdem, recomeçam? Quando a noite nos toca A recurvada espinha, Somos todos iguais, Homo, hétero, trans-desesperados. O velho pede uma ninfeta, A velha trêmula escondeu as rugas Entre as pernas de Apolo. Doces, elegíacos veados Lambem humildemente Os culhões do taxi-boy. Cães e cadelas no susto, Fodendo, fodendoi, Para espantar a morte. As súplicas implícitas resumem-se Na perfeição do índio Guaraci.


Se o teu beijo existisse, Acabaria. Mas, não havendo, A vida vale a pena? Existem, cultivadas, belas Pérolas delusas, Entre os anseios da minha finitude E a carícia da tua compaixão. O Absoluto, nós é que inventamos. Porra! Amor é isto. Beija-me a boca, índio, Sei que não te vendes, Mas a tranqüila oferta de ti mesmo Transformaria o grito-desventura Num gemido de prazer. Se o teu beijo existisse, Acabaria. Mas, sem ele, Faltam as delícias, Que, noutro instante, podem reviver O momento volátil, consumado, Que então pousa, rebrilha, permanece Na eternidade das recordações. Por Goethe, Proust, Petronius Árbiter, Por Frankl, Heidegger, Bérgson; Pelos que cultivaram a memória Como reservatório de alegria Para as horas fatais da deserção; Pelo amor de Eduardo Segundo, Guardado em versos de Marlowe, Que não assustaram Bertold Brecht; Pelos vínculos de Jônatas e Davi, Que em nós se realizem, carnalmente, Como não ousaram Etienne e Montaigne: Mente bonito, que eu te faço eterno, Te faço estátua, música, poema, Diante da Ilha Feliz Do para sempre agora e nunca mais.


Segunda Parte VINTE POEMAS DE AMOR

“Construamos aqui um singular afeto; Amor (a rosa verde), outono, chama Travaram, cá, o sue combate, eis um lugar de assombro; Onde estiveram, permanece o solo consagrado”

EZRA POUND


1 És por Vésper, Vésper´(á) vida. Ardem - (Ar de m) era esp´era, Rei tão meu das v´esperanças Ancas, danças te busc´ando, Sol tu índio romp´es (feras) Por fl´amante qu´entregolpes N´angranua des´alteras Vésper´ânsias - tanto am´a (r)do, Venusino Leopardo.


2 Varaneblina hoje solclarim, Fremeflanco a montada. Nítidonu, de tanta seiva, Cavalgas este dorso luzidio. Bêbado de mocidade´desafio, A caralisa rindo, rindo, Cortasvento Engatado na égua´adoração. Meu cavaleiro matinal, Peleveludo sobreaço De músculocarícia, Dur´macio, bravidoce: No diassim de vid´exaur´estrelas Quasetransbordas para a MORTE AZUL.


3 Corp´estanque longeperto Quem serás? Eu, quem serei? Procissão dos des´encontros Brevimortos no silêncio - Ch´aves? Aves abatidas Na fortaleza de gelo.


4 Guaraci Preamar Carnivertente Estame audaz Tu Andorprimavero Sonh´apogeu que mais Terniprocura Mitoaventura Tão Re (mim) nascente


5 Tu, rochedo, Eu, medusária form´à´flor dum´ águaviva, Passageiros com´sumindo Suas lendas por´ventura: Murolismo deslizantes, O milímetro implacável, Áporo, intransponível Cort´afã dos deslimites. Amor, estátua de pedra.


6 Junto à foz da vida, nasce, Ondeamor se faz sem medo, Fá-lo ousado, que me pasce Nas delícias, em segredo: Gomo tenro, seda´flecha, Lança d´êxtase e procura, Istmo tenso, fogo à mecha Desta íntima ternura; Húmus alvo, no delírio Sobredunas violadas, Vert´esplende, morno círio, Mantand´ores traspassadas, Ébrias, nuas, orvalhadas.


7 Parte-se o riso nos cristais nervosos, Tomba, soluço; rompe, gargalhada, Diamantes, por gumes luminosos, Ferem carne da vida subjugada. Presas, olhar de tâmara, mordida Rendem-me no tremor da treva quente: Rapin´alada, frágua consentida, Rasga-me o seio o açor adolescente; E logo me tem dócil à miragem Rediviva na luz de sua face, E me destrói no átimo selvagem, Raiz deamor cravad´em céu rapace. Versos, fagulhas, últimos apelos Correm-me pelas ondas dos cabelos.


8 Pelo torpente contacto, Pela música visível, Pelo sabor dos perfumes, Tranco´absorvo teu reflexo: Amor tem alma no sexo, Amor inventa eternidades.


9 Amor, Súbito amor violento e doce, Rompe, Luzabrindo. No céu de ônix, fluxos do prazer, Leque de fogos d´artifício, Chuva inversa Do corpo em riste ao Setestrelo. Sobe, tomba, Vênus toute entiére À as proie attachée. Tu, lampejo, me desatas As represadas lágrimas do ventre; E te persigo, r´astro cúmplice Na noite alumbramento Do meu corpo, Suas vias desertas, Seus vulcões renascidos.


10 Quebro sóis, devoro chamas; Nas ciladas das entranhas Dançam livres meus desejos; Ruge ´salta o coração. Afrodite ergueu a espada: Mergulhamos repentinos Em verões fosforescentes. Teu assalto me transmuda N´esperança suicida De encontrar-me por perder-me, Não mais eu, tão coisa tua, Não mais tu, meu seqüestrado, Rompediques matamortes Plenamor de tudo NÓS.


11 As confidências do tato - Garras no meu dorso provaria - Nossos flancos justapostos -, As confidências caladas, Úmidas, Do beijo. Há paz no des(a)tino, Fluxo (teu) pássaro: sou relva, Pousas (re)pouso. Ternos corpos enlaçados Transpiram A passagem feliz Do gozo ao sono conjunto.


12 Bálsamo´álamo TU Fecundação E soute e ésme, Fluemrios Do âmago delícia, âncora´n´ânfora, Réptil, Me desprendes a fêmea acorrentada Que concebeu de tia a primavera, Parindamor ao índio feiticeiro.


13 Suspiro tênue, Boca a boca, Alma que tive Exalada Pelos teus lábios - Morte pequenina De trocavida: Perpassar dum beijo.


14 Nas minhas veias navegas, No rubor da facequeterrendo, Meu indolente forasteiro Todo feito de chama e de acalanto. Os impossĂ­veis desfalecem.


15 De ti nasce o poema, Do gládio que me feredoce Na integração do amor. Dentro da noite imprevista, Par per´feito, Nexo de Himeneu. A fantasia bêbada se eleva Às Plêiades grávidas, Para anunciar As brandas tréguas do abismo. Pus mãos ao alto, Índio meiguiceiro, E te rendi a fonte descoberta Da vid´inteira.


16 Tu braçosrei (anel) me apertasmanso, Frontecabelos deito sobrelargo De paz´arfante do teu peito´alfombra, Meu guarani dos olhos de topázio.


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O instante existe, Existes, Eros repentino. Enguirlando os cabelos Que outras mãos tocaram E me acalma o perfume Incorruptível. Outras mãos deslizaram Pelo teu flanco nu Que guarda, entanto, Um estremecimento úniconosso. Noutros lábios amadureceste A boca astuciosa E, nada obstante, destinada Apenas ao meu beijo. O instante existe, Existes, Eros repentino, Escala prodigiosa, cais macio. Eterna, foge a areia na ampulheta Para fazer plenitudes Com as nossas próprias insuficiências E fugacidades. Forever is composed of nows.


18 Calmadormindo, quero-te Nudez. A fatigada luz me desgrilhoa, Pousadesmaia sobre forma grácil De Guaraci. Meu índio sonhavolta a sermenino, As mãos abertas próximas pedindo Tule casta Que rond´envolve a tenr´inesperada Fragilidade do guerreiro. Vagas auras de música giram Na plus que lente, valsa à Debussy E me penetras calmo, sem tocar-me, E te dissolvo em mim, na posse etérea. O inviolado hálito destila - Noite sem beijo O teu perfume branco De infância, refrigério, Sobre o nácar Deste acalanto de Jocasta.


19 Não houve mais do que pretextos E superfícies, Das Vergangene geht - O que passou se vai Sombra de fatos e figuras, Ouro de alquimista: Das Gewesene steht - E fica (apenas) o realizado... Mas Guaraci é naufrágio; Não reaparece Na constelação de Julieta, Pelo orgulho da fêmea desposada. Lentibaixando em mares d´esquivança Estendo braços (mãos me deceparam), Duel´inútil só demim comigo E maisamor se perde ao fim da tarde.


20 A vida – árvore tombada; Folhas, ramos, gumes, cavidades Pedem Como velho sexo murcho. Não há mais telefones e projetos. É tarde para a últimaprimeira Chamada que não te fiz. Os semideuses, máscaras rompidas, Desaparecem – restos contrafeitos Dos meus delusos respledores. Um silêncioausência grita Bocadentro E mastigo, mastigo, esta saudade Do guarani que apenas inventei


21 Envio Não me lamento, porque canto, Faço do canto manifesto. Sequei as águas do meu pranto Nos bronzes fortes do protesto. Acuso a puta sociedade, Com seus patrões, seus preconceitos. O teto, o pão, a liberdade Não são favores, são direitos.


II SETENÁRIO DE LONDRINA (4 a 10/12/83) 7 poemas de 7 sílabas com duas vezes 7 versos, escritos em 7 dias para os 7 encantos dum rapaz de Londrina, que é 7 vezes dono deste Setenário.4

“Amanhecem de novo as antigas manhãs Que não vivi jamais, pois jamais me sorriram” CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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O Setenário tem a realidade dos sonhos, não dos fatos; e o rapaz de Londrina existe, realmente, mas nem suspeita das transas imaginárias, que o envolvem na minha fantasia. Esta ressalva é feita, para que não o incomode à toa a estupidez repressora e quadrada.


1 Não sei dizer o que sinto, Não posso ter o que quero; Se digo a verdade, minto, Verbo veraz do não-vero; Vera é só a primavera, Rompendo algemas do inverno. Pelos campos da quimera, Hojes dão o som eterno. Com palavras, mito espesso; Com vida, esta luz obscura De saber quem não conheço, Por nudez, beijo e loucura: Resto eu – o sem-sentido, Fim do não acontecido.


2 Juventude rescendente, Cedro, cipreste e maça, Teus perfumes beduínos Me entontecem e torturam, Porque existes, na beleza Descoberta, inacessível. Noite quente de Londrina, Mantos, tapetes de trevas Cingem-me os anos, as carnes, Fomes, rugas, pranto e sonho: Transpiro tudo o que sou, Vivi, não tive e me torno Relva mansa no jardim Do teu Cântico dos Cânticos.


3 A tua voz tem ciladas, Põe o sexo no sotaque Do teu norte – Paraná. Tu mastigas devagar As cavernas do meu nome. Como sofrer a atração Da boca que não se beija? As tuas roupas insultam As maravilhas elásticas Furtadas ao desejo. Sinto gana de rasgá-las. Araque em minhas veias, Teu vulto adensa-me o sangue. Estou bêbado de ti.


4 Prostituíram-me o corpo Tantos bárbaros que amei. Estas graxas, estas cãs São despojo dum seqüestro No clã dos desesperados; Mas existe âmago virgem Nestes lábios que procuram Tua boca adolescente. As pétalas arrancadas Voltam bailando à corola; Uma a uma recompõem Sua promessa vermelha, Sua rosa de Saron, Doce rei dos pinheirais.


5 Os teus olhos me perdoam, Vertem carícias, desejos, Espantam vespas do medo Na suave compaixão. Velha valsa à madrugada, Desce a paz com um orgasmo Da minha alma possuída. Penetraste docemente No coração que te dei. Meu amor pousa leve Sobre o cetro que estremece No regaço do meu rei.


6 Luz, Amor, Londrina, dia De repente nos domina, És com Eros que irradia Tua força matutina. Correu noite na boêmia, A boêmia não termina; Em transa de macho e fêmea, Toda hora é purpurina. Sou mulher, como queira Minha sede, minha sina Libertada, que rendi à Tua glória masculina: Tenra, nua, toda treme a Carne dada à carne gêmea.


7 Febo, efebo das delícias, Meu senhor, meu bem amado, Nas saudades há carícias Do abandono iluminado; Em cada hora se inscreve Tua garra incomparável. Nosso encontro foi mais breve; Meu amor, interminável; Sigo a luz d’único astro, Meus caminhos são só teus; Minhas lágrimas, teu rastro; Não te sei dizer adeus. Sonho assim, que se perdeu, Tu, em mim, és sempre meu.


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