Revista Rede Edição 18

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Revista Institucional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Ano VI- Edição 18- Agosto de 2010

Políticas públicas

o povo no comando

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Revista Institucional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Editada pela Assessoria de Comunicação Social – Núcleo de Imprensa Coordenação Procurador de Justiça Fernando Antônio Fagundes Reis Coordenação Assessoria de Comunicação Social Miriângelli Rovena Borges Editora Executiva Neuza Martins da Cunha Jornalistas Eduardo Curi, Fernanda Magalhães, Flávio Pena, Giselle Borges, Meire Ana Terra e Neuza Martins da Cunha Repórter fotográfico Alex Lanza Projeto gráfico, arte e diagramação Rúbia Oliveira Guimarães Revisão Oliveira Marinho Ventura

Administração Superior Procurador-Geral de Justiça Alceu José Torres Marques Corregedor-Geral do Ministério Público de Minas Gerais Márcio Heli de Andrade Ouvidor do Ministério Público de Minas Gerais Mauro Flávio Ferreira Brandão Procurador-Geral de Justiça Adjunto Jurídico Geraldo Flávio Vasques Procurador-Geral de Justiça Adjunto Administrativo Evandro Manoel Senra Delgado Procurador-Geral de Justiça Adjunto Institucional Waldemar Antônio de Arimateia Chefe-de-Gabinete Paulo de Tarso Morais Filho Secretário-Geral Paulo Roberto Moreira Cançado Diretor-Geral Fernando Antônio Faria de Abreu

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Nossa capa Participação popular: o cidadão constrói sua história e controla as ações do Estado Foto: Stoch.XCHNG


Editorial Cidadão: o protagonista da história. Essa afirmação deveria corresponder à realidade, especialmente depois de promulgada a Constituição de 1988. Foi a inovadora Carta Magna do nosso país que estabeleceu o controle social por meio dos princípios da descentralização e da participação popular, e criou, para tanto, instrumentos para que a sociedade possa exercer o seu papel, participando e controlando as ações do Estado na busca do bem comum e do interesse público. Um leque de normas legais e infralegais visando à implantação de mecanismos de democracia participativa vem sendo oferecido para este fim. Inúmeros artigos e livros são publicados sobre o tema. E muitos autores destacam que, na utilização desses instrumentos, há problemas traduzidos numa lacuna entre o controle social idealizado pelo ordenamento jurídico e o efetivamente praticado pela sociedade. Outros acreditam que a participação popular é escassa e paradoxal, porque rica no plano normativo e pobre no plano da vivência efetiva da participação. Paulo Modesto, membro do Ministério Público da Bahia, em artigo publicado e exposto na 2ª Conferência Estadual dos Advogados Sergipanos, reforça a necessidade de se estudar as normas estimuladoras da participação cidadã com o entusiasmo dos que desejam a sua plena realização, mas com a serenidade dos que têm consciência de haver ainda muito terreno a percorrer no plano dos fatos. Diante da relevância do tema e da importância da prática da participação popular nas políticas públicas é que a coordenação da revista Rede pautou o assunto, para que houvesse real reflexão e divulgação de ações que vêm ampliando o controle social. Em entrevista exclusiva para esta edição, a cientista política, professora e pesquisadora do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj) Thamy Pogrebinschi mostra o resultado da pesquisa que coordenou no instituto, a qual analisa 80 conferências nacionais de políticas públicas realizadas no Brasil entre 1988 e 2009, e seu impacto na atividade legislativa do Congresso Nacional durante o mesmo período. Pesquisa do arquiteto, político e ativista social Francisco Whitaker Ferreira revela que, a cada dez

anos, o Brasil dá um passo em relação à participação popular nos projetos políticos. Bom exemplo de conquista de iniciativa popular, segundo o ativista, foi a aprovação da Lei Ficha Limpa, cujo projeto contou com mais de 1,6 milhão de assinaturas. O promotor de Justiça em Minas Gerais e vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe), Edson Resende, também realçou a importância da iniciativa popular para a aprovação da Lei Ficha Limpa e de outras leis que visaram a reduzir a impunidade e combater a corrupção no país. A edição da Rede ouviu também membros do Ministério Público e representantes da sociedade civil organizada. Eles demonstraram as ações que vêm sendo desenvolvidas na parceria entre a Instituição e os movimentos sociais para, por exemplo, garantir moradia e alimentação a todos os cidadãos, promover a reforma agrária e combater a marginalização da pobreza e o preconceito pela orientação sexual. Na área ambiental, reportagem aborda a atuação dos promotores de Justiça e as várias ações realizadas em conjunto com a sociedade civil organizada para garantir proteção dos recursos naturais, desenvolvimento sustentável e melhores condições de vida para todos os povos e para as futuras gerações. Outra reportagem desta edição trata de temas como a proteção do patrimônio cultural pelo Ministério Público e os resultados das conferências nacionais com os objetivos de discutir a cultura brasileira nos seus aspectos da memória, produção simbólica, gestão e participação social. Na área de comunicação social, a Primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) também mereceu reflexão da revista. Além disso, representante do Ministério Público Federal falou da criação de um grupo de trabalho para democratizar a comunicação na Instituição. A atenção ao orçamento do Estado é fundamental para o sucesso dos pleitos da sociedade. Esse tema foi tratado pela revista, especialmente no que diz respeito à aplicação dos recursos na área da proteção à criança e ao adolescente. Foram ouvidos promotores de Justiça, parlamentares e representantes da sociedade civil.

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Sumário 22 Promotores de Justiça e representantes da sociedade mostram ações conjuntas na defesa do meio ambiente

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Reportagem reflete

sobre aplicação dos recursos orçamentários na área da proteção da criança e do adolescente 4


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Entrevista

Cientista política analisa 80 conferências nacionais de

políticas públicas realizadas no Brasil entre 1988 e 2009

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Chico Whitaker diz que o Brasil, a cada dez anos, dá um passo

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Edson Resende avalia poder da mobilização popular para

em relação à participação popular nos projetos políticos

propositura de projeto de lei

Especialistas contam como andam as políticas públicas

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para garantir moradia, alimentação e reforma agrária, e para combater o preconceito pela orientação sexual

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Matéria aponta estratégias para fortalecer a cultura como centro dinâmico do desenvolvimento sustentável

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Conferência Nacional de Comunicação coloca em debate os

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meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital

Nívia Mônica compara questão orçamentária do Brasil

Entrevista

com outros países e o fala do papel do MP para garantir políticas públicas

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Entrevista

Conferências nacionais

e o experimentalismo democrático brasileiro Cientista política, Thamy Pogrebinschi revela que o Brasil está à frente em práticas participativas de escala nacional Por Neuza Cunha

Em entrevista à revista Rede, a cientista política, professora e pesquisadora do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj) Thamy Pogrebinschi apresenta o resultado da pesquisa que coordenou no instituto, intitulada Entre Representação e Participação: as conferências nacionais e o experimentalismo democrático brasileiro, a qual analisa 80 conferências nacionais de políticas públicas realizadas no Brasil entre 1988 e 2009 e seu impacto na atividade legislativa do Congresso Nacional durante o mesmo período. 6


Durante a coordenação dos trabalhos, identificaram-se, em outubro de 2009, 3.750 projetos de lei no Congresso Nacional que guardavam afinidade com 1.937 diretrizes resultantes das conferências. “O Brasil está à frente em práticas participativas de escala nacional. O processo – que se inicia com a realização de conferências locais, estaduais ou regionais, com a convocação governamental, mas sob demanda da sociedade civil – é característico da política brasileira e não encontra similar em outros países”, afirma a acadêmica. A pesquisa patrocinada pelo Ministério da Justiça, por meio de cooperação com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), foi apresentada na sede do Iuperj, no Rio de Janeiro, no dia 16 de abril deste ano.

Divulgação

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A senhora acaba de realizar uma pesquisa sobre conferências nacionais. O que representa esse instrumento para a democracia brasileira? Encontra-se em curso no Brasil um processo grandiosamente democrático de formulação de políticas públicas que infelizmente ainda é pouco conhecido até mesmo pelos estudiosos das instituições políticas: as conferências nacionais de políticas públicas. Estas consistem em instâncias de deliberação e participação destinadas a prover diretrizes para a formulação de políticas públicas em âmbito federal. São convocadas pelo Poder Executivo, por meio de seus ministérios e secretarias, organizadas tematicamente, e contam com a participação paritária de representantes do governo e da sociedade civil.

Na prática, qual é a sistemática dessas conferências? As conferências nacionais são em regra precedidas por etapas municipais e estaduais ou regionais. Os resultados agregados das deliberações ocorridas nessas etapas são objeto de deliberação na conferência nacional, de que participam delegados das etapas anteriores e da qual resulta, em regra, um documento final contendo diretrizes para a formulação de políticas públicas na área objeto da conferência. Entre 1941 e 1988 foram realizadas no Brasil 12 conferências nacionais. Entre 1988 e 2008, de acordo com a metodologia da minha pesquisa, foram 80. Dessas, 73 tinham claro caráter deliberativo e normativo – isto é, tiveram como resultado a elaboração de um documento a servir de base para a formulação de políticas pelo governo. Apenas no ano passado mais dez conferências nacionais foram realizadas e para este ano são previstas outras sete.

Qual foi o principal objetivo da sua pesquisa Entre representação e participação? Sob minha coordenação, a pesquisa, intitulada Entre representação e participação: as conferências nacionais e o experimentalismo democrático brasileiro, teve por objeto a análise de 80 conferências nacionais de políticas públicas realizadas no Brasil entre 1988 e 2009, e por objetivo, a mensuração de seu impacto na atividade legislativa do Congresso Nacional durante o mesmo período.

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Como estudiosa de ciência política, como a senhora avalia a realização de conferências na elaboração de políticas públicas? Há um resultado concreto, ou seja, uma contribuição real para os projetos de governo? Definitivamente, sim. O mais recente exemplo é o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3). Ele explicitamente contemplou demandas apresentadas em mais de 50 conferências nacionais ocorridas durante sete anos de governo Lula. Não apenas as resoluções das conferências específicas de direitos humanos foram levadas em consideração, mas também, e especialmente, aquelas resultantes das conferências que em nossa pesquisa enquadramos no grupo “minorias”: direitos das pessoas idosas, direitos das pessoas com deficiência, direitos da criança e do adolescente, políticas públicas para mulheres, povos indígenas, promoção da igualdade racial. Ainda na rubrica minorias, merece especial destaque a inovadora conferência sobre gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Isso sem mencionar as várias conferências de assistência social, desenvolvimento rural, meio ambiente, educação e segurança pública, segurança alimentar e nutricional, que tem um plano nacional construído por meio do processo conferencial.

Sabemos que o tema direitos humanos, por ser muito amplo, é de difícil discussão. Como foi esse processo para a aprovação do PNDH-3? O PNDH-3 é tão transversal quanto o tema dos direitos humanos é por sua natureza. Por isso estão contidas nele políticas públicas relativas a supostamente outras áreas e conferências. Assim, sob a rubrica direitos humanos, o PNDH-3 traz políticas


públicas para mulheres, indígenas, negros, quilombolas, mas também para segurança pública, desenvolvimento agrário, educação e cidades. Certamente esta transversalidade do conteúdo – ou a multidimensionalidade dessa política pública – torna o consenso sobre ele mais difícil. No entanto, pode-se dizer que o governo

foi bastante bem-sucedido ao tentar obtê-lo. O PNDH-3 foi longa e amplamente debatido e negociado com a sociedade civil em diversas conferências nacionais – em particular na 11a Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2008 –, bem como no âmbito do governo, com todas as pastas envolvidas.

Quais foram os resultados das negociações? O plano é assinado por mais de 20 ministros de Estado. O Ministério da Defesa negociou detidamente com a Secretaria Especial de Direitos Humanos. Chegou-se a um consenso. No entanto, depois da reação dos setores

militares, o ministério da Defesa recuou, e instaurou-se a polêmica acerca de algumas questões pontuais, como a Comissão da Verdade. Não houve erro, portanto, uma vez que se supunha atingido o consenso.

Pode-se dizer que a estratégia do governo foi eficiente? O governo poderia ter agido estrategicamente, de forma mais cautelosa, antecipando-se às resistências em relação a esse ponto, não o inserindo no plano, de modo a não comprometê-lo como um todo. No entanto, se assim fizesse, desconsideraria justamente as

resoluções das conferências nacionais de direitos humanos, nas quais havia sido aprovada, entre as suas diretrizes, a Comissão da Verdade. Cabe lembrar que o PNDH-3 traz mais de 200 policies e apenas sobre duas ou três delas instaurou-se conflito.

E quanto às áreas mais institucionalizadas? Que papel as conferências têm tido junto a elas? Áreas mais institucionalizadas, como assistência social e saúde, têm suas políticas públicas amplamente discutidas nas conferências, que se tornaram periodicamente regulares. Além disso, diversas políticas setoriais implementadas pelos ministérios e secretarias nos últimos anos por meio de portarias, resoluções e outros atos normativos vêm sendo feitas com base nas resoluções das

conferências. Muitos dos conselhos nacionais, que organizam significativa parte das conferências, monitoram constantemente a implementação das demandas expressas nas resoluções finais, com ativa participação da sociedade civil. E até aqui estamos apenas no plano do Poder Executivo. Há ainda um significativo impacto na agenda do Poder Legislativo, conforme os dados da nossa pesquisa revelam.

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E quais foram esses dados? Entre 1988 e 2009, a atividade legislativa do Congresso Nacional foi significativamente influenciada pelos temas debatidos nas conferências nacionais: no fim de 2009, um total de 2.629 projetos de lei (PLs), ou 19,8%, deles, e 179 propostas de emenda à Constituição (PECs), ou 48,5% delas, então em trâmite no Poder Legislativo, possuíam algum tipo de pertinência temática com as diretrizes oriundas desses processos participativos.

Cruzando-se dados sobre as demandas deliberadas pela sociedade civil nas dezenas de conferências nacionais realizadas desde 1988 com dados relativos às proposições legislativas em trâmite no Congresso Nacional em 2009 e no ano subsequente à realização de cada uma das conferências nacionais analisadas, observou-se que estas devem ser compreendidas como uma prática participativa que fortalece a democracia representativa no Brasil e impulsiona a atividade legislativa do Congresso Nacional.

Há uma complementaridade entre os mecanismos de participação popular e as instituições representativas? As conferências nacionais de políticas públicas servem como forma de mediação política que corre paralela às eleições e aos partidos, mas que, como eles, convergem na realização da democracia por meio das instituições representativas. A participação da sociedade civil e as deliberações por ela ope-

radas em conjunto com o governo nas conferências nacionais resultam em instituições mais representativas e em uma representação política fortalecida pelos novos incentivos recebidos pelos parlamentares para iniciar o processo legislativo em determinadas direções.

Como analisar essa representação política? O banco de dados da pesquisa, composto de 1.937 diretrizes advindas das conferências nacionais e 3.750 proposições legislativas que receberam trâmite no Congresso Nacional, revela informações relevantes para

se entender as relações entre participação social e representação política, desfazendo o mito de que práticas participativas constituem uma ameaça às instituições democráticas representativas.

Das conferências pesquisadas em seu trabalho, em quais áreas ou temas realmente houve mais avanço nas políticas públicas, e em quais períodos? Entre 1988 e 2009, foram realizadas no Brasil 80 conferências nacionais, distribuídas entre 33 áreas de políticas públicas variadas, como aquicultura e pesca, assistência social, cidades, cultura, desenvolvimento rural sustentável, direitos da criança e do adolescente, direitos da pessoa idosa, direitos

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da pessoa com deficiência, direitos humanos, economia solidária, educação básica, educação profissional e tecnológica, esporte, juventude, medicamentos e assistência farmacêutica, meio ambiente, políticas públicas para mulheres, povos indígenas, promoção da igualdade racial, saúde e segurança pública.


Os dados mostram que, desse universo de 80 conferências nacionais realizadas no período, duas (ou 2,5%) se deram no governo Collor, seis (ou 7,5%) na gestão de Itamar Franco, 17 (ou 21,3%) durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, e 55 (ou 68,8%) ao longo dos sete primeiros anos do governo Lula. Observa-se, assim, que a prática de convocar conferências nas quais governo e sociedade civil discutem conjuntamente diretrizes para a formulação de políticas públicas inicia seu processo de institucionalização no governo de Fernando Henrique Cardoso, passando a ser efetivamente consolidada e incorporada à agenda política do país sob o governo Lula.

Como a senhora analisa o crescimento do número de conferências no atual governo Lula? Estudos já demonstraram que as experiências participativas no Brasil dependem do governo e, em particular, têm tido o seu sucesso associado aos governos do PT. Isso para começar com o orçamento participativo, primeiro em Porto Alegre, depois em outras capitais como Salvador, Recife e Belo Horizonte. Os conselhos e as conferências já existiam antes do governo Lula, mas é inegável que desde 2003 sofrearam um impulso avassalador e começaram definitivamente a ter impacto na política do país.

Como a sua pesquisa confirma essa tendência? Levantamos 80 conferências nacionais, entre 1988 e 2009, que podem ser chamadas de deliberativas e normativas. Ou seja, produziram um documento final depois de processo de deliberação e votação. Dessas conferências, 56 foram realizadas entre 2003 e 2009, durante o governo Lula. Uma média de oito conferências por ano. Até o fim deste ano de 2010, devem ocorrer mais sete ou oito conferências. Dos 33 temas tratados em conferências nacionais

em 21 anos, 22 foram propostos pelo governo Lula, que cobriu todas as 33 áreas de políticas que até hoje foram objeto de conferências. Os governos anteriores basicamente convocavam conferências de saúde, direitos humanos, criança e adolescente e assistência social.

Parece indiscutível o fortalecimento da sociedade civil organizada com a realização dessas conferências. Mas um desafio se impõe: como tornar mais legítimo esse instrumento de participação popular? Novos temas encontram nas conferências espaço privilegiado para sua discussão. Há um espaço público autônomo se formando, e os movimentos sociais saem de qualquer forma fortalecidos e mais capazes de articular suas demandas. Algumas conferências se institucionalizaram de forma tal que sua permanência parece não depender do governo. As de assistência social, direitos humanos e direitos da criança e do adolescente já ocorrem bianualmente desde antes de o PT entrar no governo. E tudo indica que continuem. No caso da assistência social, por exemplo, trata-se de previsão legal. A Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) determina a realização de conferências nacionais bianuais para monitoramento da política nacional de assistência social. Várias outras conferências mais recentes trouxeram sua institucionalização como demandas explícitas. E, em alguns casos, estas foram atendidas por medidas dos conselhos. Mas seria interessante que, a exemplo do que ocorre com assistência social, a continuidade das conferências fosse assegurada por lei e não apenas por atos administrativos.

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As conferências podem firmar cooperação entre o Estado e a sociedade civil? As conferências têm sido instrumento político para potencializar as demandas dos movimentos sociais. Com as conferências e os conselhos, o Estado abraçou a sociedade civil de forma sem precedentes na história brasileira. Esse é um fenômeno muito importante a ser analisado, pois a alteração no padrão de relação Estado-Sociedade influencia diretamente na forma da democracia, algo que ainda resta ser analisado e compreendido. Por mais que estejamos, com esse modelo, adotando eventualmente, por exemplo, políticas

liberais, está em jogo uma alteração no modelo liberal de democracia. O que observamos empiricamente hoje no Brasil envolve questões teóricas profundas, que ainda levaremos alguns anos para compreender. Muitas democracias avançadas mantêm ainda uma separação nítida entre Estado e sociedade civil, mantendo as mediações convencionais, como as eleições e os partidos etc. No Brasil tal separação vem deixando de ser nítida por conta das conferências e conselhos, que trouxeram a sociedade civil para dentro do Estado.

Essa cooperação pode implicar cooptação? Não se pode dizer que houve a tal “cooptação”, tese que é endossada por alguns movimentos sociais insatisfeitos por não estarem representados em algumas conferências e, sobretudo, nos conselhos nacionais. Por outro lado, entre os movimentos sociais que estão dentro do Estado, ouve-se a reclamação oposta: acreditam que, por

terem tido tantas demandas atendidas nos últimos anos, estão perdendo o caráter combativo e militante que sempre os caracterizou como movimentos sociais. Mas isso é minha opinião apenas. Nossa pesquisa não analisa a dinâmica participativa das conferências, sua composição, etc., mas apenas seus impactos.

Em que grau a senhora considera estar a autonomia dos movimentos sociais, e qual a influência real deles na condução de políticas públicas? Olhando para a maioria das conferências, percebemos que, além de a sociedade civil se manter autônoma em face do Estado e, em muitos casos, ter mais representantes do que ele – normalmente a composição é bipartite, mas há algumas tripartites que acabam fazendo com que a sociedade civil conte com mais delegados do que o Estado –, ela é definitiva na sua organização e condução, embora seja o Estado que ofereça todas as condições para que elas aconteçam. Como exemplo, cito as conferências dos direitos humanos, pois basta analisar a dinâmica

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das três últimas conferências para ver como os movimentos sociais mantiveram a sua autonomia. Na 9a conferência, em 2004, Estado e sociedade civil romperam. A 10a conferência, em 2006, foi organizada praticamente sem ingerência do Estado. O Executivo estava fora. Foi o Legislativo que organizou com os movimentos sociais. Já a 11a conferência, em 2008, selou a reunificação dos dois segmentos. Ou seja, por mais que os movimentos estejam dentro do Estado, eles preservam sua autonomia, sua capacidade organizativa, seu caráter de movimento, em movimento.


A realidade dos movimentos sociais é bastante dinâmica e eles reclamam que nem sempre as teorizações têm acompanhado esse dinamismo e, ainda, que suas demandas ficam represadas. O que pensa a respeito?

Não estão represadas. E jamais foram tão atendidas como nos últimos anos, seja pelos conselhos ou pelas conferências. Basta olhar os documentos resultantes das conferências para ver que as demandas são ao mesmo tempo muito específicas e abrangentes. Algumas são quase emendas particulares com demandas de movimentos sociais específicos, outras são extremamente amplas, genéricas e normativas, quase uma utopia em forma de texto. São demandas que impõem custos altos para o Estado e para qualquer governo. No entanto, estão ali, na forma de subsídios para elaboração das políticas públicas nacionais.

Thamy Pogrebinschi é bacharel em direito, mestra em teoria do Estado e direito constitucional e mestra e doutora em ciência política. Antes de ingressar no corpo docente do Iuperj em 2008, foi professora da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Divulgação

da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Publicou sete livros: três como autora individual (O Enigma do político: Marx contra a política moderna, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009; Pragmatismo: teoria social e política. Editora Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2005; A obediência em Thomas Hobbes. Edusc, São Paulo, 2003), dois como coautora (Onde está a democracia? Editora UFMG, Belo Horizonte, 2002; Teoria política contemporânea: uma introdução. Editora Campus/Elsevier, São Paulo, 2010) e dois como coorganizadora: Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. EdiPUCRS, Porto Alegre, 2008; e Perspectivas atuais da filosofia do direito. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2005. Publicou também, até o presente momento, mais de três dezenas de artigos em periódicos científicos ou livros de coletânea.

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Entrevista A batalha para aprovar a Lei Ficha Limpa, que assegura que o registro de candidaturas leve em conta o comportamento ético dos candidatos, foi árdua, mas vitoriosa. É um exemplo de conquista de iniciativa popular, que contou com mais de 1,6 milhão de assinaturas, cuja campanha iniciou-se em 2008, frente ao sucesso também de iniciativa popular do projeto contra a corrupção eleitoral, que se transformou na Lei 9.840/99. Pesquisa do arquiteto, político e ativista social Francisco Whitaker Ferreira revela que o Brasil, a cada dez anos, dá um passo em relação à participação popular nos projetos políticos.

Projetos de iniciativa popular: a cada dez anos,

um passo Chico Whitaker, como gosta de ser chamado, é ainda membro do Secretariado Internacional do Fórum Social Mundial (FSM), como representante da Comissão Justiça e Paz, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Mundialmente conhecido e respeitado por suas ideias, Whitaker fala das diferentes formas de participação popular na gestão pública, como os conselhos em várias áreas governamentais, e também da possibilidade da participação no processo legislativo, previstas na Constituição de 1988, representando, segundo ele, um salto qualitativo. Também, explica, “traduziu mais diretamente a aceitação, pelo sistema político brasileiro, da contribuição popular nas decisões que conformam a estrutura jurídica e a atividade dos cidadãos e do governo”. 14


Renato Araújo/ABr

Chico Whitaker

O poder emana do

povo

“Constituinte sem povo não cria nada de novo”. Foi com esse slogan que os constituintes de 1986 inovaram, na história das instituições políticas do Brasil, quando estabeleceram, no parágrafo primeiro do primeiro artigo da Constituição de 1988, que “o poder que emana do povo” – melhor

Puro

teria sido se tivessem dito ‘o poder que pertence ao povo’ – será exercido tanto por seus representantes eleitos como diretamente, por meio do referendo, do plebiscito e da iniciativa popular de lei. Ou, em outras palavras, que nossa democracia não seria unicamente representativa”, afirma Whitaker.

entusiasmo

Whitaker recorda que, entre as intensas mobilizações sociais que marcaram a elaboração da Constituição de 1988 – levando-a ser batizada de Constituição Cidadã –, teve relevo aquela estimulada pelos Plenários Pró-Participação Popular na Constituinte. Depois de perderem uma primeira batalha por uma Constituinte exclusiva, em vez da Congressual – adotada já dentro da lógica da legislação em causa própria –, eles se centraram no processo de elaboração da Constituição, com a bandeira “Constituinte sem povo não cria nada de novo”. E foi nesse embate, segundo Chico Whitaker, que os deputados constituintes conseguiram que o Regimento Interno da Constituinte previsse a possibilidade de “emendas populares” ao projeto de Constituição. Foi, no entanto, estabelecida – para evitar surpresas – uma condição que parecia difícil: cada emenda, apresentada por três entidades da sociedade civil, teria que ter o apoio de pelo menos 30 mil eleitores. “Ora, essa oportunidade de participar foi plenamente assumida pela sociedade, no clima de entusiasmo com a abertura democrática do país: 122 emendas recolheram um total de 12 milhões de assinaturas”, diz.

Whitaker ressalta que essas emendas, entretanto, não tiveram todas a mesma sorte, na dependência do acompanhamento que lhes foi dado. Mas três delas, entre outras, foram bem-sucedidas, explica Chico. Elas receberam juntas mais de 400 mil subscrições, e propunham especificamente a introdução de um instrumento como as emendas populares no corpo da Constituição – bem como o referendo e o plebiscito. E deram origem ao parágrafo primeiro do artigo primeiro.

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Limitações

impostas

Chico Whitaker questiona se foi tudo somente um jogo de cena, como usual em democracias unicamente representativas. “Tendo constatado a capacidade de mobilização social para as emendas populares, os constituintes limitaram o uso dos novos instrumentos. A competência para autorizar e convocar plebiscitos e referendos ficou exclusivamente para o Congresso; e as exigências para Iniciativas Populares de lei as tornaram quase inviáveis: as assinaturas, acompanhadas do número dos títulos de eleitores, teriam que corresponder a

pelo menos um por cento do eleitorado nacional, e estar distribuídas em pelo menos cinco Estados – bem mais, portanto, do que as 30 mil das emendas populares...”, esclarece. O ativista social afirma que muitos hoje se empenham em regulamentar o uso desses instrumentos diminuindo suas limitações, para colocá-los efetivamente ao alcance da sociedade. “Mas, apesar das dificuldades, a sociedade organizada e os cidadãos com motivações pessoais começaram logo a fazer valer esse direito”, avalia.

As primeiras iniciativas populares de lei A primeira iniciativa popular de lei, pela criação de um Fundo Nacional de Habitação Popular, chegou ao Congresso já em 1991, por iniciativa de movimentos de moradia. Chico Whitaker conta que nessa ocasião já se constatou que ela só poderia tramitar como iniciativa parlamentar, pois seria impossível verificar em tempo hábil o número e a autenticidade das assinaturas. “Um deputado a encaminhou, mas o resultado foi pouco animador: o projeto levou 13 anos para se transformar em lei”, ressalta Chico. Nos anos 90, conforme descreve Whitaker, chegaram ao Congresso dois outros projetos subscritos por cidadãos, por iniciativa de pessoas moti-

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vadas por crimes cometidos contra seus familiares. O primeiro foi apresentado em 1993 pela conhecida escritora de novelas Gloria Perez, depois do assassinato de sua filha Daniela. A proposta era que o homicídio qualificado entrasse no rol da Lei dos Crimes Hediondos. O projeto foi assumido pelo Executivo e alterou em 1994 a lei vigente. Com a mesma motivação, os pais de Ives Ota, menino de oito anos assassinado em 1997 em São Paulo, percorreram o Brasil coletando assinaturas – e difundindo uma mensagem de paz e perdão – para a criação da prisão perpétua agrícola. Em 1999 entregaram esse projeto, com mais de dois milhões de assinaturas, ao Congresso, onde ainda tramita.


Iniciativa popular contra a corrupção eleitoral Em 1999, quase dez anos depois da primeira iniciativa popular, um segundo projeto de lei vindo da sociedade organizada foi apresentado ao Congresso. Segundo Whitaker, a iniciativa enfrentava dois problemas da corrupção eleitoral. Primeiro: a oferta de bens e favores aos eleitores. Segundo: o uso eleitoral da máquina administrativa. Whitaker lembra que a compra de votos já era considerada um crime na lei eleitoral vigente. “No entanto, a lentidão do processo penal, a ser seguido por se tratar de crime, fazia que praticamente ninguém fosse condenado, menos ainda antes do fim do mandato obtido mediante qualquer das práticas delituosas”, disse. Whitaker esclarece que esse problema tinha sido levantado na Campanha da Fraternidade de 1996, da CNBB, como uma das piores distorções de nossa democracia representativa, que deslegitimava o processo eleitoral. Ele foi então objeto de uma pesquisa, por iniciativa da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), da CNBB, que mostrou como em todo o país era usual aproveitar-se das carências dos eleitores para captar seus sufrágios. De acordo com Chico, diante desse grave problema, a CBJP solicitou a um grupo de juristas que estudasse como coibir a prática com mais eficácia. O projeto de lei que elaboraram modificava a Lei n.º 9.504/97, dando ao crime de compra de votos também a condição de infração eleitoral, o que permitiria uma punição imediata pela Justiça especializada. Ficou estabelecido, conta Whitaker, que essa punição – assim como a do uso eleitoral da máquina administrativa – fosse a cassação do registro do can-

didato, sem prejuízo da ação criminal a que estivesse sujeito. “Sabendo que a iniciativa popular de lei – como as emendas populares da Constituinte – tinha importante função pedagógica, a CBJP propôs o uso desse instrumento para encaminhar o projeto ao Congresso”, diz. Chico Whitaker afirma ainda que, com o apoio da CNBB, decidido em sua Assembleia-Geral de 1997, assim como o da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e, em seguida, de mais de 60 organizações da sociedade civil, lançou-se a coleta do milhão de assinaturas necessárias. “O processo levou ano e meio para se completar, ajudado, a partir de certo momento, pelos grandes meios de comunicação de massa. Uma vez entregue o projeto ao Congresso, as entidades promotoras estavam obrigadas a transformá-lo em iniciativa parlamentar, para começar imediatamente a tramitação”, recorda. Ele acrescenta que obtiveram então, com base na experiência da primeira iniciativa, que ainda tramitava no Congresso, que ela fosse assumida não por um único parlamentar, mas por um conjunto deles, cada um de partido diferente, com seus nomes em ordem alfabética – para evitar disputas descabidas. “Com esses cuidados e acompanhamento mais cerrado da tramitação do projeto – acrescidos do peso político do milhão de assinaturas e das entidades que o apoiavam –, os parlamentares obtiveram sua aprovação nesse mesmo ano, no prazo recorde de sete semanas”, frisa o político. Um resultado nesse prazo, segundo Chico, era essencial para que a nova lei já pudesse vigorar nas eleições do ano 2000.

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Função

pedagógica Para Whitaker, a dificuldade para coletar tantas assinaturas tinha uma contrapartida positiva: seu tema era amplamente discutido em todo o país, antes de o projeto chegar ao Congresso. A começar pelos que coletavam as assinaturas, que tinham de saber explicar o que estavam propondo. “Por sua vez o slogan “Voto não tem preço, tem consequências”, adotado nessa campanha, valorizava o voto e desvendava as distorções da democracia representativa no Brasil. Assim, embora esse trabalho exigisse uma enorme persistência, sua função pedagógica era inegável”, destaca. O ativista social acredita que, além desse efeito pedagógico, havia o efeito organizativo, na medida em que o trabalho de coleta de assinaturas reunia as pessoas num processo que se estendia capilarmente país afora. “Isso ficou evidente quando, uma vez aprovada a lei, os participantes da coleta constituíram os chamados “Comitês 9840” – referência ao número recebido pela lei – para fiscalizar sua plena aplicação”.

Controle de aplicação da lei Chico disse que o efetivo cumprimento da Lei 9.840/99 de fato exigia o acompanhamento das eleições. “Ninguém tinha mais interesse nisso do que os próprios cidadãos que haviam assinado o projeto de lei. Os Comitês 9840 começaram então a cumprir esse papel, até porque nem juízes nem promotores de Justiça eleitorais tomaram imediatamente consciência do poder que lhes fora atribuído para assegurar a lisura do processo eleitoral”, comenta. Whitaker relata que se abriu, assim, uma segunda etapa na pedagogia de educação política iniciada com a coleta de assinaturas: era necessário entender as exigências da produção de provas e o funcionamento da Justiça, em particular o da Justiça Eleitoral. Os Comitês 9840 transformaramse, assim, em instrumento de diálogo dos cidadãos com o Poder Judiciário. Nesse processo viveram, nas eleições do ano 2000, muitas incompreensões e frustrações. Mas nos anos seguintes o controle da aplicação da lei se fortaleceu, especialmente a partir do empenho explícito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao qual começaram a chegar os recursos dos prejudicados. Atualmente, observa Chico Whitaker, os próprios candidatos também se fiscalizam mutuamente, o que altera o comportamento de cada um, como o dos próprios eleitores. “Depois de cinco eleições sob a vigência da nova lei, ocorreram mais de 700 cassações de registros de candidatos e de diplomas de eleitos, nos poderes Legislativos e Executivos municipais, estaduais e federal. E já se tornou usual dizer que a Justiça Eleitoral ganhou tanta eficácia com a nova lei que sua atuação conheceu duas fases: a antes da Lei 9.840 e a depois da Lei 9.840”, afirma.

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Movimento de combate à

corrupção eleitoral Chico informa também que o trabalho dos Comitês 9840 foi apoiado por roteiros, cartilhas e outros materiais produzidos pelas entidades promotoras da iniciativa popular. Em agosto de 2001, elas realizaram um primeiro Seminário Nacional de Juízes e Promotores Eleitorais, para colher experiências da aplicação da lei na eleição de 2000 e preparar a atuação em 2002. “Com a abertura do seminário pelo então presidente do TSE, ministro Nelson Jobim, ficou demonstrada a importância dada à lei por esse Tribunal. Outros seminários foram realizados em 2004, 2006 e 2008, já com a participação também de advogados eleitorais”. Nesse processo, explica Chico, foi criado o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que reúne hoje 43 entidades nacionais, com uma pequena estrutura administrativa sediada em sala oferecida pelo Conselho Federal da OAB em Brasília. Seguiu-se a criação da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe), voltada para a plena aplicação da legislação eleitoral, com especial ênfase na Lei 9.840.

Lei das

inegibilidades Chico Whitaker lembra ainda que em 2008 o MCCE, frente ao sucesso da iniciativa popular contra a corrupção eleitoral, decidiu, com o apoio da Abramppe, propor uma nova iniciativa popular, dessa vez voltada para a Lei das Inelegibilidades. O que se pretendia era assegurar que o registro de candidaturas levasse em conta o comportamento ético dos candidatos: dispor de uma “ficha limpa” teria que ser condição para o exercício de um mandato eletivo. “Aliás, não era outro o objetivo de emenda à Constituição feita em 1994, ao determinar, no parágrafo 9º do artigo 14, que a lei complementar das inelegibilidades deveria considerar a “vida pregressa do candidato”, para proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato”, observa Chico. Nas eleições de 2008, segundo Whitaker, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) já tinha recusado, com base nessa emenda constitucional, o registro de 25 candidatos a vereador. Mas, por recurso apresentado ao TSE, foi anulada essa decisão. Dúvidas como essa tornavam clara a necessidade de regulamentar a questão. Chico completa que “a CNBB, uma das principais animadoras da iniciativa que resultara na Lei 9.840, levou a proposta à consideração de sua Assembleia-Geral de 2008, que a apoiou por unanimidade. A OAB, a CNBB e os demais membros do MCCE empenharam-se na nova batalha, que conseguiu, ao fim, não 1 milhão, mas 1,6 milhão de assinaturas”.

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Campanha da

ficha limpa Lançada a Campanha da Ficha Limpa, esta ganhou rapidamente muita adesão. Para Whitaker, a receptividade popular denotava o descrédito dos políticos eleitos. No entanto, segundo ele, a iniciativa de um dos membros do MCCE, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), criou de início um mal-entendido. “Com a mesma preocupação com a vida pregressa dos candidatos, essa entidade tornou pública, quando se lançava a campanha, uma relação, chamada de lista da “ficha suja”, de políticos brasileiros com processo na Justiça. Como a abertura de processo contra o opositor é

uma prática corrente na atividade política, grande número de eleitos se viram incluídos nessa lista e se colocaram contra a iniciativa popular, por considerá-la injusta”, informa. Segundo Chico, muitos eleitores, por outro lado, concluíram que a lei proposta impediria as candidaturas de muitos bons políticos que estão sendo processados, ou até de lideranças populares vítimas de perseguição. Passou a ser então necessário dissipar esse mal-entendido, já que o projeto proposto considerava as condenações e não os processos.

Resistência Chico Whitaker ressalta ainda que outras propostas do projeto levantaram resistências ainda mais difíceis, em especial duas delas, que se combinavam. A primeira dizia que o projeto desrespeitava o princípio constitucional básico da presunção de inocência, segundo o qual nenhum acusado pode ser considerado culpado até o julgamento de seu último recurso contra a sentença condenatória (o chamado “trânsito em julgado”). “Essa dúvida, que já provocou muita discussão entre juristas, durante a coleta de assinaturas, seria resolvida se fosse considerado que o princípio da presunção de inocência se aplica ao Direito Penal, mas não a outras áreas do direito, como a do Direito Eleitoral. A segunda dúvida surgia com a superação da primeira: a inelegibilidade por condenação somente em primeira instância, como estabelecia o projeto, poderia dar margem a injustiças. Melhor seria

considerar uma condenação por órgão colegiado”, enfatiza o político. Apesar de todos esses percalços, chegou-se ao número de assinaturas necessárias, também depois de um ano e meio de coleta, ressalta Whitaker. O projeto foi levado ao Congresso em 29 de setembro de 2009, exatamente no dia em que se comemorava, em sessões no Senado, pela manhã e à noite no TSE, o décimo aniversário da promulgação da primeira lei de iniciativa popular aprovada pelo Congresso. “A novidade dessa vez foi a rapidez com o início da tramitação do projeto. Quase imediatamente depois do ato-festa em que o presidente da Câmara dos Deputados recebeu as pilhas de assinaturas, 33 deputados o subscreveram – sempre em ordem alfabética, como na iniciativa anterior – e o protocolaram na Mesa no fim da tarde, recebendo o número 518/2009”, conclui.

Sobre a lei A nova lei torna inelegíveis aqueles que tenham sido condenados por decisão colegiada da Justiça, ou seja, por mais de um juiz, e estabelece o chamado efeito suspensivo, também em caráter colegiado. Assim, um político condenado por colegiado terá seu pedido de efeito suspensivo julgado por outro colegiado. Entre as novidades, a lei prevê que não serão

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mais preservados os direitos políticos de quem renuncia ao mandato para escapar de eventual cassação depois de denúncia. A inelegibilidade, segundo a nova lei, alcançará o acusado desde o momento em que for aceita a ação, tornando o político inelegível pelo período remanescente do mandato e pelos oito anos seguintes ao término da legislatura.(Ed. Neuza Cunha)


Iniciativa popular de leis demonstra o interesse do cidadão pelos rumos do país

O 3º vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe) e coordenador do Centro de Apoio Operacional Eleitoral (Cael) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), promotor de Justiça Edson de Resende Castro, também faz uma reflexão sobre as mobilizações populares para propositura de projeto de lei. Para Edson Resende, “num Estado democrático, em que o poder pertence ao povo, nada mais natural que o cidadão exerça esse poder não apenas votando para eleger seus representantes no Executivo e Legislativo, mas também tomando a iniciativa da proposição de leis ao Parlamento. Essa iniciativa popular de leis é um interessante instrumento de exercício da democracia, inclusive porque revela o interesse do cidadão pelos rumos do país, que não pode ficar entregue unicamente aos representantes eleitos”. O promotor de Justiça cita exemplos dessa conquista popular. Ele relata que a história recente do direito eleitoral brasileiro registra duas iniciativas populares que se converteram na Lei n.º 9.840/99 e na Lei Complementar (LC) n.º 135/2010, dando um sinal inequívoco do desejo de se aperfeiçoar os mecanismos de escolha dos candidatos. “A primeira deu à Justiça Eleitoral a possibilidade de cassar o registro ou diploma do candidato que comprar votos ou usar a máquina administrativa, enquanto a segunda (LC n.º 135), denominada ‘Ficha Limpa’, impede a candidatura dos que ostentem vida pregressa incompatível com a moralidade e probidade administrativas.” Aos poucos, segundo o representante da Abramppe, “à medida que a democracia brasileira se afirma, o eleitor vai-se conscientizando de que é necessário assumir responsabilidades, mobilizando-se para a aprovação de uma lei, fiscalizando as campanhas eleitorais, denunciando infratores e escolhendo candidatos a partir da análise de seu histórico de vida.”

“O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), constituído de diversas entidades da sociedade civil, é um bom exemplo do que pode e deve ser feito para que os anseios do cidadão sejam levados em conta pelas instâncias formais de poder”, acredita o promotor de Justiça Edson Resende, que é professor de Direito Eleitoral e autor do livro “Teoria e Prática do Direito Eleitoral” e organizador do livro “Legislação Eleitoral”, ambos da Editora Mandamentos.

Alex Lanza

Edson Resende

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O futuro do Planeta em nossas mãos

MPE e comunidades defendem proteção dos recursos naturais, desenvolvimento sustentável e melhores condições de vida para todos os povos Por Meire Ana Terra

Nos últimos anos a atenção da população mundial tem-se voltando para a questão ambiental. As últimas conferências do setor, especialmente a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, editada em 1992, buscaram estabelecer um novo estilo de vida, um novo tipo de presença do homem na Terra, por meio da proteção dos recursos naturais e da busca do desenvolvimento sustentável e de melhores condições de vida para todos os povos. A participação da população mundial para tentar mudar o atual e caótico cenário tem sido fundamental. Essa mobilização popular pode se dar de várias formas. As conferências e as audiências públicas são as mais conhecidas delas. 22


Serra da Canastra Foto: Alex Lanza

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O promotor de Justiça Paulo César Vicente de Lima e outros membros do Ministério Público de Minas Gerais acreditam que a efetividade dos sistemas municipais de meio ambiente vai potencializar a eficácia do princípio da participação pública no processo decisório ambiental, sem abrir mão, é claro, de todos os outros instrumentos para garantir a sustentabilidade ambiental. Entendem que, via de regra, as soluções locais são mais sustentáveis, pois quem está mais próximo do conflito tem a possibilidade de considerar as questões ambientais em toda a sua complexidade.

Apesar dos instrumentos de participação social disponíveis à população, de nada eles adiantarão se não houver uma consciência de preservação da Terra para as próximas gerações, bem como a ampliação de garantias jurídicas e administrativas aos órgãos de proteção ao meio ambiente e ao próprio governo. O Ministério Público é uma das instituições que vêm nos últimos anos, especialmente após a Constituição de 1988, revolucionando sua atuação na defesa do meio ambiente. Mas é preciso que haja a integração de todos os órgãos e da sociedade, e também que cada um faça sua parte para fortalecer ações que assegurem a vida do Planeta.

Meio Ambiente e a população no Mundo Nos últimos 30 anos do século 20, houve dois momentos em que as Nações Unidas se reuniram com o objetivo de buscar soluções para os problemas de ordem ambiental no Planeta: 1972, em Estocolmo, e 1992, no Rio de Janeiro. A Conferência de Estocolmo contou com representantes de 113 países, de 250 organizações não governamentais (ONGs) e dos organismos da Organização das Nações Unidas (ONU). Ao fim do evento, produziu-se a Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, um protocolo de princípios de comportamento e responsabilidade que deveriam governar as decisões concernentes a questões ambientais. Outro resultado formal foi um Plano de Ação que convocava todos os países, os organismos das Nações Unidas e todas as organizações internacionais a cooperarem na busca de soluções para uma série de problemas ambientais. Em 1992 a Conferência da ONU no Brasil propiciou um debate e mobilização da comunidade internacional em torno da necessidade de uma urgente mudança de comportamento visando à preservação da vida na Terra. A conferência ficou conhecida como “Cúpula da Terra” (Earth Summit), e realizou-se no Rio de Janeiro, contando com a presença de 172 países (apenas seis membros das Nações Unidas não estiveram presentes), representados por aproximadamente 10 mil participantes, incluindo 116 chefes de Estado. Além disso, receberam credenciais para acompanhar as reuniões cerca de 1.400 ONGs e 9.000 jornalistas. Como produto dessa Conferência foram assinados cinco documentos: Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Agenda 21, Princípios para a Administração Sustentável das

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Florestas, Convenção da Biodiversidade e Convenção sobre Mudança do Clima. Em 2009 foi realizada em Copenhague, na Dinamarca, a Conferência das Partes (COP-15), a reunião anual que congrega as nações signatárias da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima das Nações Unidas (United Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC). O encontro, aguardado com grande expectativa por diversos governos, ONGs, empresas e pessoas interessadas em saber como o mundo iria resolver a ameaça do aquecimento global à sobrevivência da civilização humana, atraiu mais de 45 mil pessoas e era esperado como um dos mais importantes da história recente dos acordos multilaterais ambientais, pois tinha como objetivo estabelecer o tratado que substituiria o Protocolo de Kioto vigente de 2008 a 2012. Ao fim dos trabalhos, frustrando todas as expectativas, foi assinado um documento, anunciado como Acordo de Copenhague, o qual não prevê a sua conversão em tratado que vincule os países signatários do protocolo. Segundo comunicado da UNFCCC, o resultado dessa conferência foi que 75 países estabeleceram metas de redução ou limitação do crescimento das emissões de gases do efeito estufa até 2020. Além disso, 111 países, assim como a União Europeia (integrada por 27 países), expressaram apoio ao acordo. O documento estabelece o objetivo de limitar a dois graus o aumento da temperatura média do planeta, mas não fixa os meios para alcançar a meta. O Acordo de Copenhague prevê uma ajuda de US$ 30 bilhões de dólares aos países mais vulneráveis em três anos (2010 a 2012). Esse valor deve ser progressivamente aumentado até alcançar os US$ 100 bilhões anuais em 2020.


Jefferson Rudy/MMA

Redução do desmatamento é uma das demandas da sociedade que viraram meta do governo federal

Questão ambiental brasileira é pautada pela sociedade No Brasil, o governo federal tem trabalhado a questão ambiental de forma participativa e com grande foco na pauta social. “Não dá para desvincular a questão ambiental da social. Por isso o tema tem sido tratado transversalmente e com participação popular”, afirma a secretária de Estado de Articulação Institucional e Cidadania Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, Samyra Crespo, que é doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e atua há 22 anos na área ambiental. Além disso, Samyra foi pesquisadora titular do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e é autora da pesquisa nacional O que os brasileiros pensam do meio ambiente e desenvolvimento sustentável. A secretária lembra, ainda, a participação efetiva da sociedade na discussão sobre mudanças climáticas em 2008, quando foi realizada a 3º Conferência Nacional do Meio Ambiente, que envolveu mais de 400 mil pessoas. “Essa conferência e toda a participação popular advinda dela culminaram com o Plano Nacional de Mudanças Climáticas, com as definições de metas de redução do desmatamento e com o Fundo Amazônico”, diz. Entre os avanços apontados por Samyra Crespo estão o monitoramento e as políticas contra o desmatamento de biomas

antes esquecidos, como os da caatinga, do cerrado e, agora, do Pantanal. “Temos também a mudança do projeto da usina de Belo Monte, retraçados de gasodutos e outras obras que tiveram seus projetos alterados por meio da participação popular nas audiências públicas”, salienta. Outro programa que merece destaque é o Agenda Ambiental da Administração Pública (A3P), realizado pelo governo federal em parceira com o Ministério Público e que vem apresentando ótimos resultados. “Este programa vem internalizando a gestão ambiental responsável nos órgãos públicos. Já organizamos uma rede de mais de 400 instituições, em todo o Brasil, envolvidas em construção e reforma de prédios públicos com eficiência enérgica, economia de água, destinação adequada dos resíduos sólidos e compras públicas sustentáveis”, afirma a ativista ambiental. Existem outras formas de a sociedade participar das decisões governamentais no que se refere ao meio ambiente: por meio do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), das consultas públicas realizadas pelo Ministério do Meio Ambiente ou do envolvimento nas campanhas do ministério visando à mudança de velhos hábitos de consumo.

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A secretária cita o exemplo da campanha “Saco é um saco. Para nós, para a cidade, para o planeta e para o futuro”, do Ministério do Meio Ambiente, lançada em julho de 2009 (foto). A peça publicitária busca conscientizar a população a trocar o saco plástico (de supermercado e de outros estabelecimentos comerciais) por outras formas de transportar compras ou acondicionar lixo. Em um ano a campanha evitou o uso de mais de 800 milhões de sacolas plásticas. “A sociedade tem de perceber que com pequenas mudanças de hábitos, como a exigência de carne com rastreamento de procedência, uso de madeira certificada, ou mesmo fechar uma torneira, já estará participando dos vários projetos do governo”, destaca Samyra Crespo. Mas, para a secretária, o principal problema ambiental do país hoje são os resíduos sólidos, associados ao tratamento de esgoto. “Considerando que 80% da população brasileira vivem em cidades, os tratamentos do lixo e do esgoto fazem parte da agenda sustentável do país e se refletem nas bases econômica e social do Brasil. Cerca de 40% do lixo urbano no Brasil são recicláveis, e menos de 10% das cidades brasileiras possuem coleta seletiva”, analisa. Segundo a ambientalista, o governo federal vem concentrando todos os esforços para aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, que há 20 anos tramita no Congresso Nacional. “Essa lei vai promover um novo patamar para a gestão ambiental, de forma a reforçar o pacto federativo, integrando municípios, Estados e União para solucionar a problemática de resíduos sólidos”, afirma.

Jefferson Rudy/MMA

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Para a secretária, a política de resíduos sólidos está em harmonia com a Lei do Saneamento e com a Lei de Consórcio Público e vai tratar de todos os tipos de resíduos, ao mesmo tempo que incentivará a coleta seletiva, destacando que os principais pontos do projeto são relativos à educação ambiental, logística reversa e responsabilidade compartilhada. Com a aprovação do projeto, serão elaborados os planos nacional, estaduais, regionais e municipais de resíduos sólidos. “O governo já está implantando alguns instrumentos, como o convênio que fizemos com o setor empresarial para realizar, nos próximos quatro meses, um inventário sobre o lixo eletrônico no Brasil. Hoje não se sabe quanto o Brasil produz de lixo eletroeletrônico e como ele é descartado. Esse estudo será pioneiro, uma vez que o país está entre os maiores produtores de lixo eletrônico do mundo”, ressalta. Samyra Crespo destaca, ainda, a criação da política de preços mínimos aos produtos reciclados, assim como foi feito com os produtos da sociobiodiversidade. Essa política beneficiará 1 milhão de catadores. “Este mecanismo depende apenas de regulamentação do Conselho Monetário Nacional (CMN) para entrar em vigor. O conselho deve votar qual o preço mínimo para cada produto reciclado. Ela vai funcionar para balizar esse mercado, uma vez que, quando o valor de mercado ficar abaixo do estipulado, o governo pagará a diferença, em uma espécie de subsídio. Este será pago diretamente à cooperativa de catadores ou ao comprador, que será ressarcido”, explica.


Em Minas, a atuação preventiva é inovadora Em Minas Gerais, o Ministério Público Estadual (MPE) tem aprimorado sua atuação na área ambiental. “No último ano, a grande inovação que houve na área de meio ambiente foi uma atuação mais preventiva do MPE”, afirma o coordenador do Centro de Apoio das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente (Caoma), promotor de Justiça Luciano Badini. “O MPE passou a atuar no processo de licenciamento ambiental de forma mais qualificada com a implantação do Núcleo de Licenciamento Ambiental”, diz. Esse núcleo, criado em dezembro 2009 pela resolução do procurador-geral de Justiça n.º 65, oferece suporte à atuação do MPE junto às Unidades Regionais Colegiadas (URCs), órgão integrante do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), do qual o MPE faz parte como conselheiro, e tem abrangência em todo o Estado. “Hoje o licenciamento é descentralizado. Cada URC é responsável pelo licenciamento do empreendimento minerário da região de sua competência”, salienta.

Segundo Luciano Badini, o MPE tradicionalmente tem atuado nesses licenciamentos, só que agora é feito o acompanhamento mais próximo ao processo de licenciamento. “Por exemplo, na nossa avaliação, a licença prévia, por ser a primeira, é a mais importante. É ela que define a viabilidade ambiental e locacional dos empreendimentos. Quer dizer, avalia se determinado empreendimento pode ser implantado em determinado local, com as características que apresenta, da forma como se propõe instalar”, explica. “O MPE, na avaliação dos promotores de Justiça que atuam na área, não estava fazendo o acompanhamento tão qualificado quanto estamos tentando fazer hoje com esse núcleo”, afirma. Todos os licenciamentos ambientais e estudos de impacto ambiental apresentados pelas empresas passam por avaliação de equipe técnica designada pelo MPE. “Temos feito um controle da legalidade desses licenciamentos ambientais”, destaca.

Alex Lanza

As reuniões prévias que temos feito com a sociedade têm sido fundamentais” Luciano Badini 27


Sociedade e MP juntos Mas qual a relevância da primeira licença? Luciano Badini explica que é a partir dela que se define se vai haver ou não a implantação de um empreendimento em determinado local. Aí é que entra a importante participação da população, auxiliando nas decisões do MPE. Além das audiências públicas, já previstas na legislação, o MPE tem feito reuniões independentes, setorizadas, com as comunidades e cidadãos que são mais afetados por essas intervenções. “As reuniões prévias que temos feito com a sociedade têm sido fundamentais”, salienta.

Um dos casos mais delicados que passaram pelo Caoma recentemente foi o da futura instalação da Mina Apolo, na Serra da Gandarela, localizada entre Rio Acima, Santa Bárbara, Caeté e Ouro Preto (próximo à Serra de Catas Altas – outro refúgio ecológico), um dos maiores empreendimentos da Vale no país e que deve custar mais de R$ 4 bilhões. A região é uma das mais relevantes e intactas de Minas, contendo remanescentes da mata Atlântica primária, dezenas de sítios arqueológicos e cavernas. A preservação ambiental da região é importante para o abastecimento de água de vários municípios.

Dimas Corrêa

Serra da Gandarela fica numa região considerada uma das mais relevantes e intactas de Minas

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De acordo com Luciando Badini, o Caoma criou uma equipe composta de professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e Universidade de São Paulo (USP) que está avaliando todos os estudos que a Vale apresentou ao MPE. “Além disso, quando tivermos essa análise mais qualificada, esse estudo de impacto ambiental, nos reuniremos com as co-

munidades diretamente afetadas - nesse caso, especificamente, Nova Lima, Caeté, Rio Acima e Raposos - para discutir o que a equipe técnica terá apurado, quais as sugestões apresentadas com base no estudo que já foi apresentado pela Vale”, explica. “Na verdade, estamos legitimando, por meio desse contato com a sociedade, esses estudos que já estão sendo feitos por essas equipes técnicas”, conclui.

Acordos entre empresas e comunidades “Nesse caso vai haver um parecer da Superintendência Regional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Supram) Central Metropolitana e um parecer da equipe técnica do MPE”, explica Luciano Badini. Qual é o interesse das empresas nisso? Segurança quanto à legalidade do empreendimento, basicamente. “Pelo menos as grandes empresas têm procurado o MPE a fim de buscar uma solução definitiva para a questão ambiental, evitando que esta se alongue no Judiciário. Ressalte-se que essas empresas procuram a Instituição mesmo depois de elas terem licença concedida por órgão ambiental competente, como a URC. Então isso tem sido feito em todos os grandes casos de mineração”, diz. Esse tipo de atuação teve início em 2009, quando o MPE assinou um acordo inédito com o Estado de Minas Gerais e com a Gerdau Açominas S/A. Pelo avençado, a mineradora deve promover ações para preservar a Serra da Mo-

eda, explorada pela empresa em sua atividade minerária. “Antes de assinar o acordo, fizemos uma reunião com os moradores e com as ONGs de Moeda e Itabirito. Durante o encontro, expusemos todo o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que seria assinado com a empresa, obtendo dos presentes aprovação unânime para o documento”, destaca Luciano Badini. “Nós estamos levando esses eventuais acordos que envolvem casos de maior gravidade, maior repercussão social, para avaliação popular”, completa. Outros casos estão recebendo a mesma atenção, como os do empreendimento da mineradora Anglo Ferrous, em Conceição do Mato Dentro, e de todos os empreendimentos minerários em Congonhas. Nesse município, inclusive, “pela primeira vez está sendo feita uma avaliação ambiental integrada de todos os empreendimentos minerários. Trabalho realizado por uma equipe definida pelo MPE”, ressalta Luciano Badini.

Preservação das riquezas naturais Uma das grandes preocupações do MPE atualmente tem sido as atividades minerárias na Serra da Moeda. De acordo com Luciano Badini, a serra inspira cuidados não apenas pela relevância paisagística e pela presença de sítios arqueológicos e espeleológicos: ela abriga boa parte dos mananciais de água que abaste-

cem a região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). É também nessa região que vivem hoje pequenos agricultores descentes de escravos. São 13 comunidades na área rural de Brumadinho que cultivam a agricultura de subsistência, plantando arroz, milho, mexerica, feijão.

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Eu não sou contra o progresso. Sou a favor dele. Mas há outras maneiras de alcançá-lo. Gostaria que tivessem respeito com o nosso povo” Antônio Cambão

Foto: Alex Lanza

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Cultura quilombola em risco Entretanto, não só o cultivo da terra faz a riqueza da região. Também a cultura das comunidades que nela vivem se revela rica. Os agricultores se reúnem na Festa da Colheita e mantêm tradições antigas ligadas às raízes africanas. Aliás, por manter intactas essas tradições, uma das 13 comunidades da região, a de Sapé, foi reconhecida como área quilombola, enquanto as demais se encontram em processo reconhecimento. Mas os moradores dessas comunidades têm temor de ver suas culturas, sua história e sua economia de subsistência desaparecerem com a exploração do minério na região. De acordo com eles, há projetos da mineradora Ferrous Resources do Brasil para explorar a região. O que mais preocupa os moradores é que, embora esses projetos nunca tenham sido apresentados com clareza às comunidades, há rumores de que seria construída uma barragem de rejeitos numa área que atingiria três das comunidades rurais, dizimando tudo. “São comunidades de tradição cultural mesmo, que vão passando de pai para filho os costumes, como congado, moçambique, rezas em latim, coisas que não se encontram em outros lugares. Há, entre as comunidades, uma reconhecida como quilombo e outras três em vias de reconhecimento”, resume o padre Walterson José Vargas, da paróquia de São José do Paraopeba, que reúne as comunidades de Colégio, Martins e Ribeirão, situadas numa região que seria o coração do projeto da Ferrous. Ao falar sobre o assunto, o líder comunitário, Antônio Cambão, morador da comunidade de Marinhos, não esconde a emoção. “Eu não sou contra o progresso. Sou a favor dele. Mas há outras maneiras de alcançá-lo. Gostaria que tivessem respeito com o nosso povo”, diz. “Lá nós temos uma propriedade que chamamos de Fazenda dos Martins, mas que eu aprendi com meu avô a chamar de Fazenda dos Escravos. Lá estão os meus antepassados. É onde eles sofreram. Há na fazenda o sinal de onde exatamente eles foram enterrados. Imagine acabar com tudo isso”, lamenta.

Alex Lanza

Walterson José Vargas

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União sustentável A união e a organização dessas comunidades rurais surpreendem qualquer um que chegue ali. Em 2000 foi criada a Associação Água Cristalina, união de oito comunidades e da Igreja Católica que resultou na construção de poços artesianos com recursos próprios, cada um doando o pouco que podia. Há também o chamado “Grupo da Roça Quem Planta e Cria Tem Alegria”, criado na década de 80, reunindo cerca de dez famílias carentes que plantam para consumo próprio. Ao fim da colheita, realiza-se uma

festa cujas sobras são doadas para asilos. “É uma mão lavando a outra e as duas, o pescoço”, diz Antônio Cambão. Várias outras manifestações culturais podem ser encontradas naquela região, como a produção de artesanato feito pelo Grupo Verde Marinho, composto apenas de mulheres de duas comunidades locais. A Universidade Federal de Viçosa (UFV) também está investido no local oferecendo cursos de homeopatia e de plantio orgânico. Isso prova o grande potencial da região.

Alex Lanza

Participantes do “Grupo da Roça Quem Planta e Cria Tem Alegria”, em área quilombola, na região de Brumadinho

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Alex Lanza

Assinatura de convênio firmado entre o MPE, IEF e Anoreg, visando a demarcação de áreas de preservação em propriedades rurais

Reserva Legal: atitude “legal” de manutenção ambiental Reuniões em outras áreas também têm sido feitas com a comunidade para verificar as demandas em relação ao Ministério Público. Em 800 ligações recebidas pelo Caoma, mais de 40% são sobre reserva legal. “O cidadão tem interesse de averbar a reserva legal porque, dessa forma, ele tem acesso a crédito rural, regulariza ambientalmente a sua propriedade e pode, inclusive, licenciar um empreendimento rural”, salienta Luciano Badini. A dificuldade hoje para averbar as reservas legais, segundo Luciano Badini, reside no fato de o órgão ambiental, no caso a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), não dispor de um quadro de servidores em número suficiente para realizar esse trabalho. Uma estimativa da própria instituição mostra que, com os recursos humanos que ela possui hoje, necessitaria de 140 anos para averbar todas as reservas legais do Estado em todas as cerca de 550 mil propriedades rurais do Estado. Ciente dessa demanda, o MPE firmou, em fevereiro deste ano, um convênio com o

Instituto Estadual de Florestas (IEF) e com a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg) que prevê ações integradas para agilizar a demarcação e a averbação das áreas destinadas por lei, em cada propriedade rural, à preservação da biodiversidade, ao fluxo de fauna e à recarga hídrica. A partir desse acordo, o trabalho em campo passou a ser feito não só por técnicos do IEF (órgão ambiental competente), mas também por técnicos credenciados pelo MPE, chamados peritos das Promotorias, e por demais técnicos do Sistema Estadual de Meio Ambiente (Sisema), como o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam). O convênio autorizou, também, que houvesse um credenciamento, em todo o Estado, de técnicos com anotação de responsabilidade técnica para fazer esse trabalho. “Isso aí foi ouvindo a sociedade, ouvindo as demandas, ouvindo as reclamações, as dificuldades, muitas vezes encaminhadas pelos próprios promotores de Justiça”, destaca Luciano Badini.

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Fundif: recursos para reparação de bens lesados O Conselho Estadual de Direitos Difusos (Cedif) e o Fundo Estadual de Defesa dos Direitos Difusos (Fundif) foram criados pela Lei Estadual n.º 14.086/2001, que os vinculou à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) . A lei previa que o Poder Executivo a regulamentasse em 90 dias, mas isso não ocorreu até o ano de 2008. Em 2007, a Promotoria de Patrimônio Público de Belo Horizonte instaurou procedimento, encaminhado pelo Caoma, questionando as razões do não funcionamento do fundo. O Decreto Estadual 44.751/2008 regulamentou a lei que criou o Fundif, possibilitando que em 2009 ele fosse reestruturado por meio de acordo assinado entre o MPE e o Estado de Minas Gerais.

Gil Leonardi/Secom-MG

Ana Lúcia Gazzola

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O Fundif tem por finalidade promover a reparação de danos causados ao meio ambiente, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, cultural, urbanístico e paisagístico. A reestruturação do fundo trouxe duas grandes conquistas: beneficiar projetos desenvolvidos na área ambiental – meio ambiente cultural, artificial e natural – e atender, prioritariamente, a região onde houve o dano. Os recursos do Fundif são aplicados na recuperação do bem lesado, na promoção de evento educativo e científico, na edição de material informativo, bem como na estruturação e no aparelhamento dos órgãos e instituições que atuam na defesa dos direitos difusos.

Olhar da população Depois de reestruturado, o Fundif passou a ter a participação não só de órgãos do Estado, como a Sedese, a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) e a Secretaria de Estado de Fazenda (SEF), e do MPE, que atualmente ocupa três assentos, mas também de ONGs. “A participação popular, garantida seja pela presença das entidades civis no rol de conselheiros, seja pela apresentação de projetos, traz para o Estado um olhar diferenciado, de quem conhece os problemas de perto”, destaca a secretária de Estado de Desenvolvimento Social, Ana Lúcia Gazzola, que, nessa condição, é também gestora do Fundif. Hoje todos os recursos de compensação ambiental e os provenientes de multa ou de pena pecuniária aplicadas pelo Juizado Especial Criminal devem ser revertidos para esse fundo por orientação da própria Corregedoria do MPE.


De acordo com Luciano Badini, o Fundif tem uma vantagem em relação aos demais fundos e que era a maior queixa dos promotores de Justiça e do cidadão: os recursos chegavam aos fundos e não voltavam para as comarcas. Hoje isso mudou. “A população tem a garantia legal do retorno prioritário dos recursos aos municípios ou microbacias onde ocorreu o dano ambiental”, ressalta Ana Lúcia Gazzola.

Medidas compensatórias “Vamos falar de um caso concreto, o de Brumadinho. Uma medida compensatória de um pouco mais de R$ 2 milhões depositados no fundo por empresa causadora de dano ambiental naquele município. Hoje existe a garantia de que o fundo deve analisar projetos eventualmente apresentados pelas ONGs de Brumadinho ou pelo próprio município antes de qualquer outro. Vai haver uma nota de corte, ainda a ser definida. Se esse projeto estiver acima dela, vai ser aprovado na frente dos outros, mesmo que estes tenham nota maior. Tudo isso porque o recurso tem de ser aplicado prioritariamente na comarca onde houve o dano”, explica Luciano Badini. Os procuradores e promotores de Justiça podem realizar a destinação dos recursos oriundos de medidas compensatórias no momento em que acessarem o Sistema de Registro Único (SRU). Ao registrar o TAC, há opção expressa de direcionamento dos recursos para o fundo. O SRU gera automaticamente o Documento de Arrecadação Estadual (DAE) e expede certidões de quitação ou débito. Dessa forma, procuradores e promotores de Justiça têm informações imediatas sobre a quitação ou não das medidas compensatórias e a destinação dos recursos arrecadados. “Hoje garantimos o retorno desses recursos e o carimbo deles é feito pelo SRU, que gera o DAE”, afirma . De acordo com Luciano Badini, nas audiências públicas em que participou tanto em Minas quanto em outros Estados, uma das maiores críticas ao Ministério Público era a definição do destino dos recursos das medidas compensatórias sem submeter a um colegiado. Por meio do Fundif a sociedade, o poder público e o MPE definem, num órgão colegiado e paritário, que projetos devem ser contemplados. “Estamos efetivando a transferência de cerca de R$1,5 milhão para entidades de todo o Estado que foram contempladas. É importante porque demonstra que os recursos voltaram para os municípios. Esse é o grande mérito desse fundo”, conclui Luciano Badini. Em 2009 foram quase 20 projetos beneficiados pelo Fundif, conforme dados do Caoma. O promotor de Justiça do município que tiver projeto aprovado recebe ofício comunicando a aprovação juntamente com cópia do projeto para a fiscalização da utilização desses recursos. O exemplo recente ocorreu na cidade de Grão Mogol, que teve projeto aprovado para reconstruir o imaginário da igreja local. “Temos um projeto de meio ambiente natural do Ibama de criatório de animais silvestres, um de meio ambiente urbano de revitalização estética de cidades”, diz. Essa revitalização estética, por exemplo, pode ocorrer em pequenas cidades próximas a Diamantina e Ipatinga, com reestruturação das fachadas. Existe uma ONG que faz um trabalho de esclarecimento com a população, apresenta o projeto, mostra como estava a casa e como vai ficar a fachada dela. “Eles recebem os recursos, fazem esse trabalho junto com à comunidade e revitalizam esteticamente essas vias. Isso é importantíssimo até pelo valor que tem o turismo em Minas. É fundo que tem efetivamente a participação popular”, ressalta.

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Sistema de Gestão Ambiental no Norte de Minas tem participação efetiva da sociedade Em 2008 um convênio assinado entre o MPE, por meio do Fundo Especial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (Funemp), e a Fundação Santo Agostinho de Montes Claros (Fundasa) permitiu a implantação do Programa Gestão Ambiental Municipal do Norte de Minas (PGANM). Esse programa visa a fomentar e oferecer alternativas de proteção e resolução de problemas ambientais aos 87 municípios da área de abrangência da Coordenadoria-Regional das Promotorias de Justiça da Bacia do Rio São Francisco. O objetivo geral é estimular ações que deflagrem processos de Gestão Ambiental Sustentável (ambiente natural, artificial e cultural) com o fortalecimento dos sistemas municipais locais. Em 2005 a Fundasa, em parceria com o MPE, por meio da Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Rio São Francisco, realizou um diagnóstico sobre a situação dos Sistemas de Gestão Ambiental dos municípios abrangidos pela bacia do rio São Francisco, situados naquela região. Esse diagnóstico buscou informações acerca da legislação ambiental, do licenciamento ambiental, do Plano Diretor Municipal, das Unidades de Conservação e da situação dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente. O diagnóstico, realizado por meio de questionário, foi respondido por 50 municípios. O resultado

foi surpreendente: 88% deles não concediam licença ambiental, 68% não possuíam política ambiental definida em lei específica, 98% não possuíam Fundo Municipal de Meio Ambiente, 84% não possuíam secretaria ou departamento próprio de meio ambiente, 94% não tinham plano diretor, 70% não tinham unidade de conservação e 76% não possuíam Conselhos Municipais de Defesa do Meio Ambiente (Codemas) em funcionamento. A partir dessas informações, a Fundasa, o Instituto Grande Sertão (IGS) e a Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Rio São Francisco iniciaram uma série de contatos com o Núcleo de Ciências Agrárias/Universidade Federal de Minas Gerais (NCA/UFMG), com a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), com a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais (Emater/MG), com a Prefeitura Municipal de Montes Claros, com o Núcleo de Apoio às Regionais do Copam (Narc/Copam) Norte, com a Associação dos Municípios da Área Mineira da Sudene (Amams) e com a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do Rio São Francisco e Parnaíba (Codevasf), com objetivo de estreitar parcerias e, de forma sinérgica, traçar estratégia conjunta para sanar o grave problema ambiental que é a inexistência de um sistema municipal de gestão ambiental efetivo no Norte de Minas.

Parcerias fundamentais Diante desse quadro, a Fundasa, em parceria com o Núcleo Interinstitucional de Estudos e Ações Ambientais do Norte de Minas (NIEA-NM), formado por professores do Núcleo de Ciências Agrárias da UFMG e da Unimontes, apresentou ao Funemp projeto técnico com o objetivo de promover a qualidade ambiental da Bacia do Rio São Francisco por meio da instalação e do fortaleci-

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mento dos Sistemas Municipais de Meio Ambiente nos 87 municípios da área de abrangência da Coordenadoria das Promotorias da Bacia do Rio São Francisco. A partir da elaboração desse projeto técnico, as entidades parceiras da Fundasa se dispuseram a contribuir com esses municípios de acordo com suas possibilidades e áreas de atuação técnica.


A equipe do PGANM já efetuou mais de 50 atendimentos a municípios, com capacitação de equipes em gestão ambiental, vistorias técnicas de verificação de cumprimento de TACs, diagnósticos da legislação municipal ambiental, fortalecimento dos Sistemas Municipais de Meio Ambiente (Sismumas) e apoio na elaboração de projetos técnicos de revitalização ambiental. Além do atendimento in loco aos municípios, o PGANM criou um grupo de discussão na internet, o PGA-online composto de órgãos municipais, estaduais e federais e por representantes da sociedade civil organizada, cuja função é promover o intercâmbio de informações das questões relevantes na temática ambiental. “Acreditamos que a parceria com os municípios tem um papel fundamental no processo de gestão ambiental, pois é no nível local que se encontram os recursos naturais e muitos dos conflitos que envolvem sua apropriação”, afirma o coordenador das Promotorias de Justiça da Bacia do Rio São Francisco, promotor de Justiça Paulo César Vicente de Lima.

No período de janeiro a dezembro de 2009, foram realizadas diversas atividades em conformidade com o plano de trabalho: capacitação de recursos humanos das prefeituras municipais e da sociedade civil para atuarem nos órgãos gestores e nos Conselhos de Defesa do Meio Ambiente nos municípios; assessoria técnica, que possibilitou a criação de estruturas de gestão ambiental municipal; acompanhamento de projetos encaminhados a programas de financiamentos de recuperação ambiental nas esferas municipal, estadual e federal; estimulação dos protagonistas locais a criarem suas próprias soluções ambientais com efetiva participação popular para a elaboração e a execução da política ambiental municipal; manutenção do canal de informação on-line para promover a troca de experiências entre a equipe do PGANM e os municípios participantes; levantamento de informações sobre o funcionamento e a evolução dos Sismumas e dos órgãos municipais de meio ambiente e elaboração do Congresso Regional de Codemas.

Divulgação

Sociedade se capacita para atuar nos órgãos gestores de defesa do meio ambiente

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Ações pioneiras “A parceria entre o Ministério Público do Estado de Minas Gerais e o NIEA-NM, por meio da Fundasa, proporcionou a geração de uma estrutura organizacional dentro dos municípios nunca antes presenciada em termos de gestão ambiental municipal no território brasileiro. As ações desenvolvidas, que culminaram na criação e no fortalecimento de Sismumas, proporcionaram a descentralização das discussões ambientais, anteriormente focadas no âmbito dos Estados e da União”, explica Paulo César de Lima. Já são 53 Codemas em funcionamento no Norte de Minas. Em outros 15 municípios, eles

se encontram em fase de estruturação, seja na aprovação de legislação específica, capacitação da comunidade local ou adequação de condicionantes de TACs. “Este foi um trabalho em conjunto que mobiliza diversos setores, mas que não pode parar, pois a meta é buscar a estruturação de todos os municípios que compõem a Coordenadoria das Promotorias da Bacia do Verde Grande e Pardo de Minas”, diz Paulo César de Lima. “Os conselhos municipais são fóruns essenciais para a participação da comunidade, para que o cidadão possa exercer seu dever constitucional de contribuir para a sustentabilidade ambiental”, conclui.

Alex Lanza

A parceria com os municípios é fundamental no processo de gestão ambiental, pois é no nível local que se encontram os recursos naturais e muitos dos conflitos que envolvem sua apropriação” Paulo César Vicente de Lima 38


Catadores de Materiais Recicláveis: verdadeiros agentes de defesa socioambiental Já com o Movimento de Catadores de Materiais Recicláveis existe um trabalho socioambiental feito pelo Caoma juntamente com a Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais (Cimos) do MPE. Inicialmente dez municípios — Juiz de Fora, Araxá, Varginha, Poços de Caldas, Itaúna, Nova Lima, Pirapora, João Monlevade, Paracatu e Arinos (os dois juntos)

e Diamantina — foram selecionados para esse trabalho de estímulo à coleta seletiva. Essa seleção foi feita entre os cerca de 140 municípios que tinham, ainda de forma incipiente, o sistema de coleta seletiva. Os dez escolhidos se encontram em estágio mais avançado.

Inclusão social “O que eu acho fundamental nesse projeto, além do benefício ambiental, é a inclusão social do catador. Esse trabalho vai viabilizar a inserção social desses trabalhadores, até com a definição de vestimentas próprias para eles, aquisição de veículos elétricos próprios para coleta de lixo nesses dez municípios. Vai ser feito um investimento muito interessante na construção da imagem do catador como agente ambiental”, diz Luciano Badini. O Movimento dos Catadores de Materiais Recicláveis é nacional, mas tem uma organização no Estado de Minas Gerais. O movimento tem o apoio de ONGs, do MPE, das Secretarias de Estado, do Centro Mineiro de Referência em Resíduos, de universidades. “É com esse

apoio que o movimento quer dar um novo passo para a organização dos catadores: serem reconhecidos como trabalhadores, com justa remuneração pelo serviço prestado”, explica o representante do movimento e coordenador técnico da Associação dos Catadores de Papelão e Material Reaproveitável (Asmare), José Aparecido Gonçalves. Segundo José Aparecido, o movimento vai começar a visita aos dez municípios selecionados e conversar com os prefeitos sobre a decisão política para essa incorporação. Em seguida a prefeitura vai assinar um termo de adesão para então começar a ser aplicada

Alex Lanza

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a metodologia do diagnóstico, da organização dos catadores, da mobilização. A previsão é de que até o fim do ano as prefeituras comecem a contratação das associações para coleta seletiva. “Depois de implantado o projeto nesses dez municípios, vamos iniciar a construção dos indicadores para que o movimento tenha condições de disseminar essa nova modalidade de gestão das associações nas demais regiões do Estado”, ressalta José Aparecido. A importância desse projeto vem se mostrando pelo reconhecimento dos catadores como agentes fundamentais na coleta seletiva, associando-se a isso a tecnologia desenvolvida por eles no processo de mobilização e de educação ambiental. A contratação dos serviços desses agentes vai ajudá-los a agregar ganho ao seu trabalho e a qualificar os seus empreendimentos nas associações e nas cooperativas. “Hoje, com o que eles ganham, só conseguem ter um salário para dar uma vida melhor para a família, mas a qualidade do serviço e as condições de trabalho ainda são muito ruins”, afirma José Aparecido. De acordo com o coordenador técnico da Asmare, um catador que participe de alguma associação ou cooperativa recebe cerca de um salário mínimo por mês. Já entre os que não fazem parte de nenhuma associação ou cooperativa, esse valor cai consideravelmente e varia de R$ 50 a R$ 200 por mês. Cerca de 140 municípios no Estado já têm organização de catadores. Só em Belo Horizonte são aproximadamente 2.000 pessoas que sobrevivem da catação.

Maiara Monteiro

José Aparecido Gonçalves

Maior desafio é romper o preconceito “Nossa proposta é ampla e se organiza em três etapas. A primeira: organização dos catadores de materiais recicláveis para terem a prestação de seu serviço reconhecida. A segunda: articulação entre as diversas associações para comercializar em rede e, dessa forma, potencializar o valor da matéria-prima no mercado de fornecimento ou de venda. A última: criação de uma central virtual para venda coletiva, o que também faz agregar valor ao ganho dos catadores”, destaca. Porém, ressalta José Aparecido, a principal dificuldade enfrentada pelo catador é o preconceito que os nivela ao lixo gerado pela cidade.“Esse é o grande desafio que nós temos de vencer”, diz. “Catador não é um mendigo, não é um marginal no contexto urbano. Ele é um prestador de serviço. E essa prestação de serviço gera para os cofres públicos significativa economia, que precisa reverter-se em favor desse segmento”, completa.

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Respeitar a cultura de trabalho do catador, o jeito dele de trabalhar e apoiar na agregação de valor a essa tecnologia da qual é precursor é outro desafio apontado por José Aparecido. Romper com os atravessadores, que ficam com o lucro da produção e impedem os catadores inclusive de ter sua autoestima valorizada, também é outra problemática a ser enfrentada. “Os catadores trabalham muito e, sendo explorados pelos atravessadores, acabam ganhando muito pouco. Isso reflete na autoestima desses trabalhadores”, diz. “É importante destacar a integração dessas diferentes forças em apoio ao catador tentando encontrar caminhos que potencializem a inclusão pelo trabalho, rompendo com as práticas assistencialistas, porque as pessoas precisam ter a sua sobrevivência garantida pelo trabalho, até para que elas tenham sua autoestima de fato erguida”, finaliza.


A luta

por moradia e alimentação Por Flávio Pena

É obvia a constatação de que toda pessoa precisa de alimentação e de moradia para sobreviver. Mas aqui no Brasil, em 2006, cerca de 14 milhões de pessoas conviviam com a fome e mais de 72 milhões estavam em situação de insegurança alimentar. O levantamento foi divulgado, na época, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já quando o assunto é moradia, o problema do Brasil também é enorme. Uma pesquisa feita pelo governo federal, em 2009, indicou que o país tem um déficit de 8 milhões de residências. É fato que esses dois problemas não são recentes. Basta fazer uma pesquisa rápida para confirmar que essa situação vem ocorrendo há décadas, talvez, séculos. É certo também que algumas ações estão sendo desenvolvidas para minimizar esse quadro social. 41


Uma tentativa, por exemplo, de resolver essa situação pode ser vista no texto constitucional. O artigo 6º da Constituição Federal afirma que tanto a moradia quanto a alimentação são direitos sociais de todos que residem no Brasil. Porém, entre a garantia constitucional desses direitos e a sua efetivação, existe um longo caminho a percorrer. Uma das prerrogativas do Ministério Público é fazer que os preceitos constitucionais sejam colocados em prática. Mas, para que isso ocorra, muitas vezes a Instituição tem que cobrar na Justiça o efetivo cumprimento da legislação. Em outros casos, a solução passa pela mobilização de setores populares. O objetivo dessa ação é fazer que a sociedade civil organizada e os movimentos sociais reivindiquem dos poderes instituídos o cumprimento da lei e, também, a elaboração de novos instrumentos de inclusão social. Para atuar dessa forma, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) possui órgãos que tratam de questões relacionadas a direitos humanos, mobilização social e conflitos agrá-

rios. Além disso, áreas da Instituição trabalham diretamente com setores excluídos da sociedade, tentando promover a inclusão social. O trabalho desses órgãos pode ser visto, por exemplo, na Constituição Brasileira, que este ano foi emendada e teve o item alimentação incluído em seu artigo 6°. A inclusão do termo significa que o direito a alimentação passa a ser uma garantia constitucional dos brasileiros. Isso representa uma vitória da sociedade civil organizada, dos movimentos sociais e dos órgãos de inclusão e mobilização sociais do MPMG. Eles estiveram juntos em conferências e reuniões realizadas em várias partes do Brasil. O objetivo dessa mobilização foi incluir o item alimentação no texto constitucional. Participaram das discussões os Centros de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos (CAO-DH) e o de Conflitos Agrários (Caoca), a Procuradoria-Geral de Justiça Adjunta Institucional (PGJAI) e a Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais (Cimos).

Movimento pela reforma agrária e urbana: o mais efetivo e articulado do país Além de cobrar do poder público a criação de instrumentos de inclusão social, o Caoca trabalha para a resolução de conflitos ligados à moradia e à alimentação, que são garantias constitucionais. Mas a busca por esses direitos envolve uma lógica capitalista perversa e divergências entre governos, Justiça, proprietários de terra e movimentos sociais. Para o coordenador do Caoca, procurador de Justiça Afonso Henrique Miranda, os movimentos sociais que reivindicam moradia e terra apenas cobram dos governos o cumprimento de garantias constitucionais e a realização de políticas públicas que possam “amenizar os quadros de sofrimento da população carente”. A luta pela reforma agrária e urbana é “a mais efetiva e articulada do país, e por isso, tanto incomoda”, afirmou Miranda. Segundo ele, é necessário que o poder público ouça as reivindicações desses grupos. E uma forma

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de se fazer isso seria por meio de Audiências Públicas. “O MPMG faz Audiências Públicas em alguns locais do Estado. Lá colhemos solicitações e impressões e, também, observamos situações concretas de ofensa a direitos e garantias fundamentais. E, por meio de uma política institucional de inclusão social, estabelecemos parâmetros de atuação voltados para o que a sociedade prioriza”, disse. Para Miranda, essa é uma forma de dar voz à população. Entretanto, é apenas uma parte da solução dos problemas, pois, segundo ele, várias políticas sociais dependem, para que sejam implantadas, de vontade política dos governos federal, estaduais e municipais. “Enquanto não houver um compromisso do Brasil com a moradia e com a alimentação – que são direitos fundamentais primários –, nós não teremos efetividade naquilo que colhemos nas Audiências Públicas”, destacou Miranda.


Reivindicações dos movimentos sociais Indagado se o poder público tem escutado os movimentos sociais, o coordenador do Caoca foi enfático: “Muito pouco. E quando ouve fica apenas nisso, não transformando as demandas em políticas públicas”. Para ele, o Brasil possui instrumentos jurídicos para resolver alguns problemas sociais, mas “é preciso vontade de fazer. O direito à moradia, à educação e à alimentação está previsto na Constituição. Deveríamos, então, criar políticas para resolver essas questões”. Ainda sobre o assunto, Miranda afirma que o poder público escuta os movimentos sociais com “ouvidos de mercador”. Segundo ele, os grupos são recebidos, por exemplo, pela administração federal, mas nada de concreto é realizado. “No governo anterior havia uma visão direta de que eles não eram ouvidos e de que pouco ou nada se fazia. No governo atual, fala-se que eles têm voz e são ouvidos, mas nada é feito. Nesse tempo tivemos pouquíssimas alterações entre um governo liberal, como o anterior, e esse, que possui chamamento popular. A diferença é que atualmente os trabalhadores têm pelo menos possibilidade de se manifestar, mas isso ainda não resultou em políticas públicas efetivas”. Segundo Miranda, a alternativa para alguns problemas brasileiros está, em parte, na mobilização social. “O que conseguimos nesses séculos de existência tem a ver com a mobilização, principalmente a dos trabalhadores rurais”. Para ele, os movimentos sociais dão exemplo nessa luta organizada. “Se alguém está fazendo alguma coisa para a transformação do campo e da cidade, essas pessoas estão nos movimentos sociais”. Ele ressalta que uma dessas lutas está ligada à agricultura familiar, e adverte: “Se não ocorrer reforma agrária no Brasil, em breve não haverá pessoas com aptidão e vontade de plantar”. Afonso Henrique estima que 80% dos alimentos que chegam às mesas dos brasileiros advêm da agricultura familiar. Uma solução para o problema do êxodo rural e da monocultura seria, segundo ele, reservar 20% das áreas de agronegócio para a agricultura familiar. Sobre a tentativa de criminalização dos movimentos sociais que lutam por terra, Miranda declarou que esses grupos apenas reivindicam moradia e alimentação, que são garantias constitucionais. “Para mim, criminosos são aqueles que destroem o meio ambiente e o ser humano na busca por riqueza. Além disso, pessoas que cobram direitos fundamentais não podem ser criminalizadas”. De acordo com Miranda, isso ocorre porque os integrantes dos movimentos conhecem os direitos constitucionais e são os únicos que lutam contra “um crescimento insustentável que tem levado o Brasil a situações ambientais e sociais horrorosas”.

Alex Lanza

Se não ocorrer reforma agrária no Brasil, em breve não haverá pessoas com aptidão e vontade de plantar” Afonso Henrique Miranda

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MP atua para garantir direitos iguais a todos os cidadãos A Constituição Brasileira é incisiva ao afirmar que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Embora o texto constitucional seja claro nessa afirmação, o que se vê aqui no Brasil são grupos e pessoas sofrendo com a negação de direitos, com o preconceito pela orientação sexual e com a marginalização pela condição social. O segmento Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis (GLBT), por exemplo, vem cobrando há algum tempo do poder público o reconhecimento da união estável entre pessoas de mesmo sexo, do casamento homoafetivo e de garantias previdenciárias aos casais homossexuais. Para resolver essas e outras questões do segmento GLBT, o CAO-DH tem atuado na tentativa de conseguir para os homossexuais direitos e garantias que deveriam ser de todos.

Alex Lanza

Rodrigo Filgueira

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Um exemplo desse empenho pode ser visto numa liminar conseguida, este ano, na Justiça, pelo CAO-DH. A Ação Civil Pública (ACP) proposta pelo órgão do MPMG cobrou direitos previdenciários iguais ao companheiro ou companheira de servidor público que possuir relacionamento homossexual estável. Na decisão, a Justiça acatou as alegações do CAO-DH e determinou que o Instituto de Previdência dos Servidores Militares (IPSM) e o Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (Ipsemg) reconheçam e concedam essas garantias legais aos casais homoafetivos. O objetivo da ação é fazer que o poder público respeite a Constituição e aja igualitariamente com todos os cidadãos, respeitando a orientação sexual de cada um. A ação proposta pelo CAO-DH foi motivada por denúncias feitas pelo Centro de Referência de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (CRGLBTTT) e pelo Escritório de Direitos Humanos de Minas Gerais. Representantes dos dois órgãos informaram ao MPMG que tanto o IPSM quanto o Ipsemg vinham negando aos casais homossexuais estáveis o direito a pensões e benefícios previdenciários. A justificativa usada pelos institutos era a de que não existe lei que regulamente a matéria. Mas, para o promotor de Justiça Rodrigo Filgueira, coordenador do CAO-DH e autor da ACP, a união entre pessoas do mesmo sexo é uma realidade e, diante disso, inúmeros países vêm estabelecendo formas de reconhecer e proteger as relações afetivas e patrimoniais do casal. “A premissa dessas iniciativas é que os homossexuais devem ser tratados igualitariamente em dignidade e direitos. A recusa estatal em reconhecer a união deles e, consequentemente, os direitos que dela exsurgem, implica não só discriminá-los e privá-los de uma série de direitos patrimoniais e extrapatrimoniais, mas também importa menosprezo à identidade, ao afeto e à dignidade dos homossexuais”, declarou Filgueira.


Por uma política pró-homossexuais Para lutar contra a discriminação sofrida pelo segmento GLBT, o Estado de Minas Gerais instituiu, em 2002, um centro de referência para tratar de assuntos relacionados a esse público. A lei que o criou também prevê punição a quem praticar atos discriminatórios contra os homossexuais. Artigos da legislação estabelecem penas de advertência, multa, suspensão, interdição, entre outras, contra estabelecimentos públicos e privados que praticarem atos discriminatórios. Outro instrumento jurídico que aborda o tema é o Decreto Presidencial n.º 7.037 de 2009. Um trecho da do decreto afirma que o governo federal “promoverá ações para fomentar a criação de redes de proteção dos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT)”. Em outro ponto, o regulamento prevê apoio do governo federal para que Estados e municípios criem órgãos de Direitos Humanos e de prevenção e combate à homofobia. Em Minas, o CRGLBT T T é um exemplo de luta contra o preconceito e contra a discriminação ao segmento GLBTTT. Vinculado à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social, o órgão atua para promover os direitos humanos e implementar políticas públicas voltadas a esses grupos. Em 2009, o centro promoveu reuniões em seis regiões-polo do Estado para coletar informações e demandas do público GLBT. Os fóruns regionais ocorreram em Alfenas (Sul de Minas), Uberlândia (Triângulo), Montes Claros (Norte de Minas), Ipatinga (Vale do Aço), Juiz de Fora (Zona da Mata) e Belo Horizonte. Segundo estimativas dos organizadores do evento, mais de 1.100 pessoas participaram das reuniões, levando demandas e sugerindo soluções para problemas enfrentados pelo segmento GLBT.

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Alex Lanza

Walkiria La Roche

A diretora do CRGLBTTT, Walkiria La Roche, que esteve à frente dos fóruns regionais, informou que mais de 300 municípios mineiros se envolveram nas discussões sobre o assunto. “Eu me pautei por executar o trabalho dessa forma [escutando o segmento GLBT] porque, como transexual, nunca fui ouvida pela academia ou pelo poder público”, desabafa La Roche. Os fóruns regionais abordaram os temas saúde, educação, emprego, cultura, segurança pública, entre outros. O que mais se ouviu nas reuniões foram demandas relacionadas “à negação de direitos, violência e evasão escolar de homossexuais”, disse La Roche, complementando com a afirmação de que esses problemas levam o público GLBT à marginalidade. As demandas apresentadas pelo público GLBT durante os fóruns regionais foram reunidas num documento. Este ano, o centro enviou essas reivindicações às pastas do Poder Executivo estadual, ao Ministério Público e a outras instituições, segundo informou La Roche. De acordo com ela, o centro vem agendando, desde o início de 2010, reuniões com esses órgãos e instituições. O objetivo é encontrar alternativas aos problemas suscitados nas discussões. O MPMG, de acordo com La Roche, recebeu a demanda do caso Ipsemg-IPSM. O CAO-DH, conforme mencionado, conseguiu, por meio de liminar, resolver provisoriamente a questão na Justiça. Essa parceria não foi a primeira. O MPMG, de acordo com La Roche, foi a primeira instituição a colaborar com o CRGLBTTT. A união deles proporcionou, em 2007, a criação de uma cartilha com informações sobre Direitos Humanos, homofobia, violência, união homossexual estável, legislação e endereços de organizações não governamentais (ONGs), movimentos, grupos e associações que defendem o segmento GLBT. Ainda segundo La Roche, o Ministério Público atuou também

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favoravelmente aos homossexuais ao enviar uma notificação aos cartórios de notas de todo o Estado, recomendando a realização do registro dos contratos de união estável entre pessoas de mesmo sexo. Além de reivindicar ações do poder público, o centro de referência trabalha para conscientizar a sociedade sobre a discriminação que o segmento GLBT sofre. A finalidade, de acordo com La Roche, é combater o preconceito contra os homossexuais e discutir meios de evitá-lo. As informações coletadas pelo órgão em 2008 e 2009 durante debates e discussões tomaram forma e culminaram com o plano Minas Sem Homofobia. A ação foi sugerida também em duas conferências GLBTTTs, uma em Minas e outra em Brasília, realizadas em 2008 para tratar de assuntos ligados ao segmento. Para ilustrar os problemas enfrentados pelos homossexuais, o centro divulgou um relatório com os atendimentos realizados em 2009. Foram quase mil, e os assuntos se referiam a agressão física (23,41%), discriminação (21,72%), retificação de registro civil (10,87%), contrato de parceria civil (19,75%), trabalho (6,75%) e pesquisas diversas (17,50%). Outro problema enfrentado pelo segmento GLBT está relacionado à violência que os homossexuais sofrem por estarem encarcerados juntos com presos heterossexuais. A questão foi levantada depois que a equipe do centro de referência visitou presídios do Estado. Depois de ouvir os homossexuais encarcerados, uma solução encontrada foi tentar transferir os travestis, transexuais e gays efeminados para alas específicas. A primeira transferência — para um presídio localizado em São Joaquim de Bicas (região metropolitana de Belo Horizonte) e cujas acomodações obedecem aos protocolos de direitos humanos de que o Brasil é signatário — ocorreu em 2009. A opção pela transferência é sempre feita pelo homossexual preso.


Alex Lanza

Cultura popular ou o povo na cultura Por Eduardo Curi

Apenas os seres humanos produzem cultura. E todos os seres humanos produzem alguma forma de cultura. O termo “cultura” vem do verbo latino colere, que significava cultivar a terra. Com o passar do tempo, esse verbo foi ganhando sentidos menos literais, relacionados à alma e ao intelecto. Hoje, a palavra “cultura” possui inúmeros significados e seu sentido muda de acordo com a área de conhecimento que a usa. Na antropologia, cultura é o conjunto de práticas que uma comunidade possui, como a língua, a culinária e a religião. Ou seja, é a identidade de um povo. Na imprensa, a seção de Cultura de um veículo de comunicação está relacionada ao entretenimento e à economia que gira em torno de produtos culturais que podem ser consumidos. Trata-se da chamada Indústria Cultural, que deriva de um processo de capitalização das identidades culturais moldadas ao longo dos anos, realimentando-o. 47


Em ambas as abordagens, no entanto, há o fator coletivo na produção e difusão desse conhecimento. Rituais, costumes, culinária e língua, por exemplo, são construídos ao longo dos anos e se modificam de acordo com as circunstâncias que uma sociedade enfrenta. Já para a fabricação de produtos culturais consumíveis, é necessário que haja uma cadeia produtiva que englobe diversos aspectos, inclusive logísticos, para que ela possa chegar ao consumidor final. Ao longo dos anos, a produção e o consumo de cultura foi uma forma de divisão de classes sociais e, até mesmo, de dominação e colonização. O acesso que se tinha a certas formas de cultura era (e, se pensarmos bem, ainda hoje é assim) determinado pela condição social do indivíduo. No Egito antigo, por exemplo, os escribas eram os únicos a dominar a escrita. Na Idade Média, a grande maioria da população era analfabeta. Já no século 20, a União Soviética obrigava o ensino da língua russa em todas as suas repúblicas, quando todas elas possuíam línguas próprias.

Cultura no

Há, também, a divisão entre “erudito” e “popular”. Se pensarmos bem, a cultura popular é a que está acessível a todos. A cultura erudita é uma modalidade de cultura popular, mas que possui acesso restrito, seja pelo critério econômico, social ou étnico. Quanto mais gente participando dos processos de produção cultural, mais ricos eles se tornam. Hoje, com a facilidade de comunicação à nossa disposição, a criação de redes culturais é um processo cada vez mais simples e barato, na mesma proporção que é eficiente. Outra característica da cultura é a sua capacidade de se fundir com outras formas de cultura, gerando culturas híbridas. Países que passaram por processos de colonização por nações estrangeiras são bons exemplos dessa capacidade que o ser humano possui de absorver e processar a cultura que recebe. Chega-se a extremos de serem criadas novas línguas, baseadas na língua do colonizador e na do colonizado, como uma das 11 línguas oficiais da África do Sul: o africâner, uma mistura de holandês e inglês.

Brasil

A produção cultural brasileira começou muito antes de os portugueses atracarem aqui. Os povos que ocupavam as Américas possuíam línguas, religião, costumes e culinária próprios. Quando os portugueses chegaram, trouxeram também sua língua, costumes, religião e culinária. Com a escravidão e processos migratórios posteriores, mais ingredientes foram adicionados a esse caldeirão, e o resultado é a cultura brasileira como percebemos hoje: híbrida, mesclada e, ao mesmo tempo, única no mundo. O Estado brasileiro, principalmente nos períodos autoritários da República, sempre teve preocupação especial com a cultura, usando-a como forma de moldar uma identidade brasileira que lhe conviesse. A prática da censura foi o maior expoente do direcionamento do Estado sobre o

que deveria ou não ser absorvido pela população. Representou, também, o maior indício da falta de vontade estatal de que a população participasse da construção de uma identidade cultural brasileira. Com a redemocratização e o fim da censura, isso começou a mudar. Uma das mudanças significativas foi alcançada com a Constituição Federal de 1988, que deu à sociedade um defensor dos direitos coletivos, o novo Ministério Público (MP) brasileiro. O promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda, coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico, explica que “o MP deixa de ser um órgão mais voltado para a persecução penal e é alçado a defensor dos direitos da sociedade”, entre eles, o direito ao patrimônio cultural.

Fotos: Beto Novaes/Jornal Estado de Minas; Gabriel Caram, divulgação; Walmir Monteiro; Stock.XCHNG

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Divisor de

Águas

A publicação da Lei Rouanet, também conhecida como Lei Federal de Incentivo à Cultura, marcou a abertura do período em que o Estado se tornaria um fomentador cultural no país, sem interferir diretamente (e explicitamente) na produção. O advento da internet no Brasil também foi outro divisor de águas no processo de democrati-

Participação

zação cultural brasileiro. Graças a ela, foi possível criar novos espaços para produção e distribuição de cultura, além de interligar todo o país com uma ferramenta de comunicação ágil e dinâmica. Por causa da internet, movimentos surgidos espontaneamente ganharam força e representatividade, chegando a ter participação direta na elaboração de políticas públicas para o setor.

social

A Conferência Nacional de Cultura (CNC), que teve a sua segunda edição em março de 2010, é a prova do reconhecimento pelo Estado da necessidade de a população participar do processo de construção das políticas públicas que norteiam o setor. Realizada no início de março deste ano, em Brasília, a II CNC teve como objetivos discutir a cultura brasileira nos seus aspectos da memória, produção simbólica, gestão e participação social. O evento também discutiu estratégias para fortalecer a cultura como centro dinâmico do desenvolvimento sustentável; para universalizar o acesso dos brasileiros à produção e à fruição dos bens e serviços culturais; para consolidar os sistemas de participação e controle social na gestão das políticas públicas de cultura; para implantar os Sistemas Nacional, Estaduais e Municipais de Cultura, bem como o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais; para implementar, acompanhar e avaliar o Plano Nacional de Cultura e para recomendar metodologias de participação, diretrizes e conceitos para subsidiar a elaboração

dos Planos Municipais, Estaduais, Regionais e Setoriais de Cultura. Além disso, a CNC buscou aprimorar e propor mecanismos de articulação e cooperação institucional entre os entes federativos e a sociedade civil, buscou ainda fortalecer e facilitar a formação e funcionamento de fóruns e redes de artistas, agentes, gestores, investidores e ativistas culturais e promover o debate entre artistas, produtores, conselheiros, gestores e investidores da cultura, valorizando a diversidade das expressões e o pluralismo das opiniões. A II CNC também avaliou os resultados da primeira edição da conferência. A I CNC aconteceu em 2005 e mobilizou 1.192 municípios. Na segunda edição 3.071 cidades se mobilizaram, realizando suas conferências municipais para eleger os delegados que foram a Brasília. Em Minas Gerais, o número de municípios mobilizados mais que dobrou, saltando de 170, em 2005, para 350, em 2010. Isso fez do Estado a unidade federada com maior número de municípios participantes.

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Cultura e

democracia

“A II CNC, diferentemente do que ocorreu na primeira edição, elegeu prioridades que estão no plano de consolidação dos marcos regulatórios da política de cultura brasileira. Isso quer dizer que a agenda legislativa em tramitação no Congresso Nacional representa grande parte das preocupações dos participantes”, avalia João Batista Rubens Filho, coordenador executivo da II CNC. “O processo político funciona para a cultura assim como para qualquer área social. Os

Circuito

cultural

Uma outra forma de participação popular direta na cultura brasileira é um fenômeno que se espalhou pelo Brasil: os coletivos culturais, que podem ser definidos como agremiações que reúnem pessoas interessadas na área cultural, mas que buscam novas formas de pensar e empreender a cultura. Esses coletivos surgem de maneira espontânea e crescem à medida que o trabalho é desenvolvido e os resultados são atingidos. Graças à facilidade de comunicação existente hoje no país, os coletivos de diferentes cidades se mantêm em contato, tro-

Fotos: Alex Lanza

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agentes de cultura têm de tomar cada vez mais ciência de que são agentes de políticas, independentemente de qual lado estão inseridos - poder público ou sociedade civil. A cultura entrou para o eixo de desenvolvimento democrático do país, tornando-se amálgama de processos diversos. Isso, além de inédito, traz consigo uma beleza histórica para o país”, comemora Fred Furtado, coordenador do coletivo cultural 77 de Barbacena, único delegado da cidade na II CNC.

cando experiências, serviços e informações, bem como formando redes que sustentam um circuito cultural que cresce a cada dia. Um expoente desse fenômeno é o Circuito Fora do Eixo, que surgiu em 2005, reunindo coletivos de Cuiabá (MT), Uberlândia (MG) e Rio Branco (AC) e hoje se estende por 25 unidades federadas (apenas os Estados do Maranhão e do Piauí não estão integrados à rede). Além disso, o circuito possui redes regionais e estaduais que trabalham de forma integrada e vêm atingindo resultados importantes. É o povo na cultura.


Ministério Público e a defesa do patrimônio cultural “O patrimônio cultural é o conjunto dos bens, materiais ou imateriais, que são portadores de uma referência à memória dos diversos povos que constituíram a sociedade brasileira”, explica o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda. E é obrigação do Estado preservar o patrimônio e dar condições à população de usufruir dele. Para garantir o direito ao patrimônio cultural, o Ministério Público de Minas Gerais foi o primeiro no Brasil a criar uma Promotoria de Justiça dedicada à sua defesa, a Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Turístico e Cultural. E, como em toda atividade cultural, a atuação da Promotoria também é feita de forma solidária com outros órgãos do Estado e com a participação popular. “Há um princípio que informa a defesa do patrimônio cultural: o princípio da solidariedade, ou seja, a missão de proteger o patrimônio deixou de ser uma missão solitária do poder público e passou a ser uma missão solidária do poder público, em todos os níveis, e da sociedade. O cidadão hoje deixa de ser um mero espectador das

políticas de defesa do patrimônio cultural para tornar-se um agente transformador da realidade. Mesmo porque ele é o maior interessado e tem a melhor condição de ser o guardião do seu patrimônio”, diz Marcos Paulo. Para garantir a participação popular no trabalho da Promotoria, existem vários canais diretos de comunicação abertos. Além disso, a Promotoria Estadual participa de congressos e seminários buscando trocar experiências e, também, fornece material para capacitar a população na defesa da sua história. Marcos Paulo considera essa articulação importante, pois, com a difusão de informação sobre o assunto, é possível evitar a atuação judicial, considerada como último recurso para proteger o patrimônio. “Realmente, sozinho, por mais bem aparelhado, por mais eficiente que seja, o MP não tem condições de tomar todas as providências necessárias para que se tenha uma política sustentável de proteção e preservação do patrimônio cultural”, conclui.

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Comunicação social tem seu primeiro debate público Conferência Nacional de Comunicação discute meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital Por Fernanda Magalhães

“Deve-se partir do princípio fundamental de que a comunicação social, numa sociedade democrática, é matéria de interesse público, isto é, pertinente ao povo, não se podendo, portanto, admitir nenhuma forma direta ou indireta de controle particular sobre os meios de comunicação de massa.” Fábio Konder Comparato

Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)

Conferência Estadual de Comunicação, na sede da Assembleia Legislativa de Minas Gerais Foto: Paula Kimo

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Em dezembro de 2009, realizou-se em Brasília a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), cujo tema central foi “Comunicação: meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital”. De acordo com o documento-referência elaborado pelo Ministério das Comunicações, o objetivo da Confecom era “elaborar propostas orientadoras para a formulação da Política Nacional de Comunicação, através do debate amplo, democrático e plural com a sociedade brasileira, garantindo a participação social em todas as suas etapas”. Para tanto, reuniram-se em Brasília 1.684 delegados, representantes da sociedade civil, de empresas do setor e do poder público, que apresentaram, discutiram e aprovaram propostas, reunidas posteriormente em um caderno com 218 páginas.

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Esses delegados foram eleitos nas conferências estaduais. A Conferência Estadual de Minas Gerais, por exemplo, aconteceu em novembro de 2009, na Assembleia Legislativa, com a participação de 458 representantes dos três segmentos. Desse universo saíram os 144 delegados mineiros que participaram da etapa nacional. Antes disso, entre agosto e outubro, foram feitas cerca de 60 conferências municipais e intermunicipais em todo o país. Em Minas Gerais, cidades como Governador Valadares, Juiz de Fora e Uberlândia tiveram suas conferências, cujas propostas foram encaminhadas para a etapa estadual. O subsecretário de Comunicação Social de Mi-

nas Gerais e presidente da Comissão Organizadora da etapa estadual da conferência, Sérgio Esser, diz que a comunicação social era o único tema que ainda não tinha sido objeto de conferência no Brasil. De acordo com ele, o momento atual é muito rico para discutir essa questão. “De um lado, temos um cenário de novas tecnologias e de interação entre as pessoas usando essa tecnologia, que cria novas possibilidades. De outro lado, temos um ambiente, que vem sendo construído ao longo do tempo no país, de uma mídia muito forte. É um mundo novo, no qual todo o arcabouço legal, cultural e tecnológico precisa ser colocado em discussão. A sociedade muda e a legislação tem que se adequar a essas mudanças”.

Demanda da sociedade Renato Cobucci

Washington Mello

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Uma análise do documento resultante desse processo mostra que, de diversas formas, a democratização da comunicação é a grande demanda da sociedade. Criação de conselhos de comunicação, descriminalização das rádios comunitárias, incentivo à produção independente e regional, mecanismos de controle social nas políticas e serviços de comunicação e direito de antena são algumas das reivindicações populares. O direito de antena – que já existe, por exemplo, na França, na Holanda, na Espanha e em Portugal – consiste em assegurar a grupos políticos ou sociais relevantes a utilização de canais de radiodifusão por algum período. No entanto, por motivos óbvios, essas demandas não costumam ser bem recebidas pelos empresários. Algumas das principais empresas de comunicação do país e grandes associações do setor não participaram da Confecom, e, quando se fala em regulamentação dos artigos da Constituição Federal que tratam da comunicação social, a posição das empresas varia de acordo com os interesses em jogo. Em maio deste ano, por exemplo, empresários do setor de comunicação reuniram-se em Brasília para discutir a fiscalização dos portais de notícia. Associações de jornais e de emissoras de TV pediram que o Ministério Público assegurasse a aplicação do artigo 222 da Constituição Federal para os sites de notícia na internet. O artigo restringe a participação de capital estrangeiro em empresas jornalísticas e de radiodifusão e diz que o controle editorial é privativo de brasileiros, o que, segundo entidades do setor, não está sendo cumprido.


As mesmas empresas que defendem a fiscalização desse item resistem à regulamentação de outros artigos da Constituição Federal, que privilegiam a participação popular e o controle social da comunicação. Veja-se a notícia veiculada pelo Jornal da Globo no dia 15 julho de 2008: “As ameaças à liberdade de expressão e o fortalecimento da democracia foram temas do segundo dia do Congresso Brasileiro de Publicidade, em São Paulo. O vice-presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho, disse que ainda existem ameaças à liberdade de expressão no Brasil. Por trás delas, está uma visão paternalista do cidadão, que seria visto como incapaz de decidir o que é melhor para si. E citou como exemplo a legislação eleitoral, que limita a cobertura jornalística em rádio e TV, o uso da Justiça para coibir a publicação de notícias e a imposição de horários na classificação indicativa em programas de televisão”. Apesar dos impasses entre sociedade e empresariado, a realização da 1ª Confecom representa, no mínimo, um avanço no debate sobre a comunicação social. O jornalista Washington Mello, atualmente secretário de

Estado de Cultura de Minas Gerais, participou das etapas estadual e nacional e acredita que o mais importante da conferência é o poder de mobilizar agentes da área e diversos setores da sociedade civil e do poder público. “Tivemos quatro dias intensos de trabalho em Brasília. Todo o diálogo e mobilização resultantes do esforço conjunto daquele encontro são grandes passos no caminho da democratização e do progresso da comunicação no país. A Confecom foi a base para futuras iniciativas para projetos de lei e para balizar políticas públicas ou ações de interesse de toda a sociedade, cada vez mais demandante de uma comunicação livre, democrática e acessível”. Esser concorda que a mobilização das pessoas para refletir sobre o tema já é um ganho. “Na etapa mineira foram cerca de 500 pessoas, representativas de segmentos sociais, que provavelmente levaram para suas associações e entidades o que aconteceu. Então, hoje em Minas Gerais, podemos ter certeza de que muita gente vê a comunicação de forma crítica. Ao longo do tempo, numa visão de processo, isso vai melhorando as coisas”.

Da discussão à implementação Para o jornalista Gustavo Machala, associado do Intervozes, “historicamente, no Brasil, a comunicação e suas políticas públicas sempre foram compreendidas como assunto do governo e de quem tem interesse econômico direto, isto é, dos empresários do setor. Na maioria dos casos, a sociedade civil foi apenas coadjuvante do processo. Com a 1ª Confecom, deu-se um passo importante em outra direção: a comunicação foi trazida para o debate público e, pela primeira vez, o Estado brasileiro instituiu um mecanismo formal de consulta à sociedade sobre os rumos que devem ser seguidos no setor”. O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social é uma associação civil sem fins lucrativos, em atividade desde 2002 e com representação em 17 Estados brasileiros, que trabalha pela efetivação do direito à comunicação. Segundo Machala, o coletivo “parte do pressuposto de que o pleno exercício da cidadania e da democracia é indissociável do direito de todos à comunicação, isto é, do direito de as pessoas participarem ativamente – com suas vozes, seus textos e suas imagens – da esfera pública, da ágora contemporânea”.

Mas, ainda que o debate represente um avanço significativo, a implementação das propostas nem sempre é possível ou fácil. Para Mello, “muitas delas podem ser efetivadas, como a criação do Conselho Federal de Jornalismo, do Conselho Nacional de Comunicação e do Observatório de Mídia. Temos outras que são mais polêmicas, mas não menos relevantes. E vai ser com a mesma determinação e mobilização demonstradas nas conferências que o setor poderá conquistar o que foi pleiteado no encontro nacional, garantindo um amplo e democrático debate no Congresso Nacional, onde o país todo se faz representado”. Para Machala, a implementação das propostas da Confecom exige dos movimentos sociais um trabalho contínuo e envolve a criação de uma agenda comum de prioridades, ações e mobilizações. “Há que se cobrar dos poderes Executivo e Legislativo o acolhimento das propostas discutidas e aprovadas na Confecom. O Intervozes acredita que os Conselhos Nacional e Estadual de Comunicação são demandas que podem ser implementadas em breve. Mas o fato é que conquistas concretas só ocorrerão por meio de um processo de luta permanente”.

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MPF cria grupo de trabalho para democratizar a comunicação Em 2003, o Ministério Público Federal (MPF) criou o Grupo de Trabalho (GT) Comunicação Social, vinculado à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC). Os GTs do MPF funcionam da seguinte forma: os procuradores da República que tenham uma atuação mais contundente em determinada área são convidados a participar dos grupos de trabalho, que se reúnem periodicamente para debater e propor metas e procedimentos para a atuação coordenada em todo o país. Além do GT Comunicação Social, a PFDC possui outros oito: Alimentação Adequada, Direitos Sexuais e Reprodutivos, Educação, Inclusão para Pessoas com Deficiência, Previdência e Assistência Social, Reforma Agrária, Saúde e Sistema Prisional. O GT Comunicação Social foi criado a partir do reconhecimento de que a comunicação é um direito fundamental garantido constitucionalmente. Sendo assim, segundo o MPF, “é papel institucional da PFDC ter conhecimento do panorama social e jurídico dos principais problemas enfrentados na área com vistas a tomar providência para promover a democratização da comunicação”.

Célia Néri / MPF-MG

Fernando de Almeida Martins

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O grupo atua em frentes como adequação de conteúdo – monitoramento da classificação indicativa e discussão sobre a publicidade voltada para o público infantil –; democratização da comunicação; descriminalização da radiodifusão comunitária, desde que a emissora opere em frequência compatível e segura e não seja usada para fins ilícitos; acompanhamento da criação do Conselho Nacional de Comunicação Social, com participação da sociedade civil e de empresas do setor e regulação da internet que assegure a liberdade no fluxo das informações, como é da natureza da rede mundial, mas disciplinando certas condutas que possam ser ofensivas aos direitos humanos. O procurador da República Fernando de Almeida Martins, que participa do GT Comunicação Social desde sua criação, explica que o grupo tem enfatizado algumas questões, como a descriminalização das rádios comunitárias. “A lei é muito severa com as rádios comunitárias que não têm autorização para funcionar, mas o próprio poder público leva anos para analisar um processo de autorização. Ou seja, criminaliza uma conduta e, quando as pessoas tentam se regularizar, não conseguem. É uma forma de não permitir que a comunidade se expresse por meio desses canais comunitários”. Outro ponto que tem sido muito discutido é o controle do merchandising para o público infantil. “A publicidade infantil já é proibida em boa parte dos países desenvolvidos, imagine o merchandising infantil?”, ressalta Martins. A Alemanha, por exemplo, veda a inserção de publicidade durante programas dirigidos ao público infantil. Segundo o procurador da República, o principal objetivo é a democratização dos meios de comunicação. “Não é fácil, mas esta fortaleza está ruindo pela evolução da tecnologia. A internet talvez seja a essência da democratização da comunicação. Nos países desenvolvidos as pessoas estão abandonando as TVs e migrando para os computadores. Ela está fazendo estruturas seculares de poder dos meios de comunicação ruírem, e permitindo que as pessoas realmente possam ter um espaço de comunicação social. A internet traz uma nova feição para a comunicação como um todo”. A esse respeito ele diz que, recentemente, o Ministério da Justiça convocou algumas entidades, inclusive o GT Comunicação Social, para discutir o marco regulatório da internet. “A essência da internet é a democratização, todos falando para todos, mas o Estado tem de exercer algum tipo de controle para coibir condutas criminosas naquele meio”.


Regulamentação e censura Quando se fala em controle social ou regulamentação da comunicação social, costumam vir à tona argumentos contrários, segundo os quais essas práticas representariam uma forma de censura e de cerceamento da liberdade de expressão, e favoráveis, dos que creem que a falta de normas e de critérios privilegia os interesses políticos, culturais e, principalmente, econômicos de determinados grupos em detrimento da diversidade de ideias e opiniões. O procurador da República Fernando de Almeida Martins diz que a comunicação social em nosso país é um dos segmentos menos democráticos em virtude da extrema concentração dos veículos de comunicação na mão de poucas pessoas. “Hoje, no Brasil, seis famílias têm liberdade de expressão. Estamos colhendo frutos de anos e anos de grande concentração dos meios de comunicação, que começou na época da ditadura. Essa grande concentração é totalmente incompatível com a Carta de 1988. Então, o Estado tem que entrar para corrigir essa distorção histórica”. Enquanto em regimes ditatoriais a comunicação social é controlada pelos governos, nos países democráticos esse espaço é privatizado, muitas vezes objeto de oligopólio da classe empresarial. Por isso, a intervenção do Estado torna-se essencial para a democratização do setor. Não se trata de censura, prática expressamente vedada pela Constituição brasileira, mas da instituição e do cumprimento de regras, muitas delas já adotadas por outros países democráticos. Segundo Martins, a Constituição Federal exige que o Estado regulamente quando prevê, por exemplo, que as emissoras deem preferência a finalidades artísticas e educativas ou quando prevê a defesa da criança e do adolescente. “A Constituição não diz que deve haver libertinagem nos meios de comunicação. Ou seja, o Estado se ausenta de forma total e as empresas de comunicação fazem o que quiserem. Nenhum país desenvolvido e democrático dá liberdade total para as concessionárias, pois, aí sim, ocorreria censura, por permitir que determinados segmentos muito restritos tenham o domínio total de um espaço que é público. Isso sim é censura. O Estado tem que regulamentar para garantir a democracia nos meios de comunicação. Se ele se ausentar totalmente, instala-se uma censura privada”. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Federal Communications Comission (FCC), criada em 1934, é responsável pela seleção dos concessionários de emissoras de rádio e de televisão a partir

de critérios que levam em conta o interesse público, a programação proposta, a garantia da diversidade, a valorização do regional, entre outros. O cumprimento das obrigações assumidas é avaliado para a renovação da concessão e a não renovação é uma hipótese real, podendo ser, inclusive, resultado de pedido feito por cidadãos, que apresentam à FCC os motivos pelos quais entendem pela não renovação da licença. Além disso, a agência pode impor outras penalidades, como advertência e multa. Na Inglaterra, papel semelhante cabe à Independent Television Comission. Esses órgãos reguladores, ainda que possuam vinculação estatal, são formados por pessoas de diversos setores da sociedade e representantes de todos os poderes, para que a política de comunicação social não fique nas mãos de um único segmento. De acordo com o procurador da República, o órgão que deveria exercer algum tipo de controle, o Ministério das Comunicações, não o exerce. Por isso, o Ministério Público tem um papel importante. Ele conta que as Ações Civis Públicas contra as concessionárias estão se multiplicando e vão acabar trazendo um parâmetro de observância ou não dos preceitos constitucionais. “É um parâmetro que o próprio Executivo deveria criar, mas de qualquer forma o Ministério Público está entrando nesse espaço porque as concessionárias vêm agredindo diuturnamente os direitos dos cidadãos”. Ele cita como exemplo a implantação da TV digital, que estava sendo feita com uma série de irregularidades. “Da forma como a TV digital iria ser implantada, o segmento privado tomaria conta de todo o espectro. A sociedade e as TVs governamentais não teriam a menor possibilidade. Mas conseguimos, depois de muita luta, reverter esse quadro, garantindo o espaço no espectro para outros segmentos que venham a se desenvolver: a sociedade, por meio de canais comunitários, ou o governo”. Fernando Martins explica que o GT Comunicação Social já teve que entrar com algumas ações, mas o objetivo é exaurir as possibilidades de negociação dos pontos de conflito. “Os resultados têm sido excelentes. O papel do Ministério Público é exatamente o de lutar para garantir que a sociedade tenha voz, seja por meio da TV digital, da rádio comunitária, da internet. A sociedade tem que ocupar os espaços da comunicação social, para que esse espaço seja realmente democrático no Brasil”, conclui.

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Participar para fazer valer

Representação política e popular garante aplicação do orçamento público em Minas Por Giselle Borges

Mais de 40 bilhões de reais. Exatamente R$ 41,11 bilhões. Esse é orçamento do Estado de Minas Gerais para o ano de 2010. É desse montante que estão saindo todos os recursos para investimentos sociais e econômicos para a manutenção e o incremento de projetos e políticas públicas, para as transferências constitucionais aos municípios, para o pagamento de despesas com pessoal e encargos sociais, para o custeio operacional dos órgãos e entidades da administração pública e tudo mais relacionado a receitas e despesas do Estado. Mais da metade desse montante é fruto da arrecadação de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). 58


Garantir que esses recursos sejam aplicados adequadamente em projetos que atendam às necessidades da população não é tarefa das mais simples. Uma das dificuldades é o fato de o orçamento anual ser apenas autorizativo e, dessa forma, permitir, mas não impor o seu exato cumprimento. Então, como ter certeza, por exemplo, de que um medicamento estará disponível na rede de saúde ou que um adolescente autor de ato infracional poderá cumprir uma medida socioeducativa eficaz? Ou ainda, como assegurar que um recurso destinado à pavimentação de rodovias ou outro para a capacitação profissional de jovens sejam gastos de fato nesses projetos? A participação e o acompanhamento popular são um bom caminho. 59


De acordo com a secretária executiva da Frente de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (FDDCA), Maria Alice da Silva, o único órgão do Estado que tem acesso aos dados da execução orçamentária é a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), que os divulga por meio do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi). “Nosso orçamento não é transparente. A frente parlamentar é fundamental para

nós porque acessa esses dados. Há equipe técnica tanto da Assembleia quanto da assessoria do presidente da frente parlamentar e da Comissão de Participação Popular (CPP), deputado estadual André Quintão. Eles elaboram os dados e fazem uma nota técnica legível já com certa análise. Além disso, qualificam o movimento, abrem audiências públicas regionalizadas para levantamento de demandas e para a indicação das emendas parlamentares necessárias”, afirma Maria Alice.

Acompanhamento de perto Maria Alice se refere ao trabalho da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Assembleia Legislativa, grupo composto de deputados estaduais para monitorar o orçamento público das políticas de atendimento à criança e ao adolescente e propor a ampliação dos investimentos por parte do Executivo. Além disso, a frente faz uma ponte entre os poderes Legislativo e Executivo e os movimentos sociais, com destaque para a FDDCA, formada por entidades da sociedade civil. Esse grupo vem trabalhando diretamente na Assembleia para alocar mais recursos do orçamento nessa área e garantir que todos os projetos previstos sejam de fato executados.

As duas frentes, a parlamentar e a da sociedade civil, trabalham em parceria. O deputado estadual Carlin Moura, membro da frente parlamentar e também da CPP da ALMG, espaço para a ação direta da sociedade, explica que as frentes de defesa da criança e do adolescente acompanham as execuções orçamentárias. Elas atuam, ainda, na elaboração do Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) propondo emendas populares no chamado Orçamento Criança e Adolescente. “Por exemplo, garantimos orçamento específico para treinamento de conselheiros tutelares, aquisição de veículos para os conselhos tutelares e instalação de vara especializada. Conseguimos, também, aumentar os valores destinados a políticas públicas para combate ao trabalho infantil”, ressalta.

William Dias/ALMG

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Comissão de Participação Popular debate o balanço das emendas populares relativas às políticas de atenção aos direitos da criança e do adolescente


Parlamentares e sociedade: parceria dinâmica Além disso, as duas frentes realizam atividades permanentes de conscientização e mobilização em datas como o Dia de Combate ao Trabalho Infantil e o aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Nessas oportunidades a gente ouve a sociedade e especialistas, faz o levantamento do que avançou e do que precisa avançar. É uma experiência muito interessante essa junção. Percebemos que a frente parlamentar só consegue agir e ter dinamismo com o respaldo da sociedade civil”, afirma Carlin Moura. Para o deputado, pelo que ele tem conhecimento, a frente da Assembleia de Minas é a única que funciona com esse dinamismo, “tendo uma institucional e outra da sociedade, cada qual com autonomia, mas sempre com um trabalho sintonizado. Eu vejo, por experiência própria de atuação, em outras frentes parlamentares, que muitas vezes elas são constituídas para cumprir determinado papel em questões específicas, mas não têm um dinamismo constante. Na sistemática da criança e do adolescente é o parlamento em sintonia com a demanda popular. E esta em sintonia com o parlamento. Esse diferencial faz que a frente seja uma das mais atuantes e que alcance resultados muito significativos”.

William Dias/ALMG

Carlin Moura

Incidência popular no orçamento Proposto pelo Poder Executivo e aprovado pelo Poder Legislativo sob a forma da Lei Orçamentária Anual (LOA), o orçamento deve seguir as orientações propostas previamente na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) do ano correspondente. A LOA organiza a ação governamental, explicitando as metas e as prioridades do governo na alocação dos recursos públicos, sempre perseguindo os objetivos estabelecidos no PPAG definido a cada quatro anos. Em Minas Gerais, há ainda outra lei que compõe o sistema de planejamento do setor público: o Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado (PMDI), de 2008 a 2023. Ele estabelece um plano estratégico, de longo prazo, para o Estado, perpassando, assim, por vários governos.

Para assumir o comando do orçamento estadual, a FDDCA vem atuando desde 2000. O grupo acompanha a proposição da LDO, da LOA e do PPAG tanto no momento da elaboração quanto durante as revisões periódicas. É nesses momentos que faz a chamada incidência no orçamento, por meio de emendas parlamentares. “A gente pega todo o orçamento e faz um recorte de ações que são exclusivas para crianças e adolescentes e das ações que lhe são indiretamente afetas. A partir do estudo das metas físicas e financeiras dos projetos existentes, que são lidos um a um, observamos se o que está orçado é suficiente ou se a gente precisa acrescer”, explica Maria Alice.

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O deputado Carlin Moura explica que é da competência da CPP o acompanhamento da participação popular no PPAG. “Quando vota o plano, a gente faz audiências públicas pelo interior do Estado para colher as emendas populares. Uma dessas emendas resultou no chamado monitoramento de seis em seis meses, em junho e dezembro. Antes disso, o plano era

revisto apenas anualmente. Isso fazia que, aprovada uma emenda, uma rubrica, só fosse possível verificar que não foram executados nem 20% do orçamento previsto quando chegava o mês de dezembro. A essa altura já não havia tempo para exigir do poder público uma melhor execução orçamentária”, avalia o parlamentar.

Falta estrutura Um exemplo da má execução orçamentária é justamente em um dos graves problemas enfrentados na defesa dos direitos da criança e do adolescente, segundo a Frente de Defesa: a efetivação das medidas socioeducativas. De acordo com Maria Alice, há superlotação e falta a estruturação dos programas.

Alair Vieira/ALMG

Maria Alice da Silva

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Ela conta que menos de 22% da rubrica do orçamento de 2009 para a construção de centros socioeducativos foram executados. “Esse dinheiro é transferido para outra coisa. Perdemos. Saiu da área da infância”, lamenta. E completa: “Hoje em dia temos feito alguns contatos com gestores para discutir esse orçamento. Às vezes é o gestor que precisa da gente para fazer as emendas populares”. A agenda das frentes é construída de forma conjunta. Em audiências públicas preparatórias para votação na Assembleia, são colhidas informações para a elaboração de proposição de emendas. Qualquer pessoa ou órgão pode apresentar uma proposição por escrito que, se aprovada, será incluída no PPAG. Hoje em dia há redes e fóruns especializados nas várias temáticas da área dos direitos da criança e do adolescente. Foi criado, assim, o Interfóruns, espaço que reúne a FDDCA e vários outros fóruns de atuação para deliberar ações conjuntas para a incidência no ciclo orçamentário com a proposição de emendas e com o acompanhamento da execução orçamentária. Cada fórum com sua especificidade, apontando as suas prioridades, mas encaminhando as proposições em conjunto. Importante ressaltar que o monitoramento orçamentário é feito também em outras áreas, como a segurança alimentar e a educação, mas ainda sem os resultados conquistados na área de defesa dos direitos da criança e do adolescente. Com a mobilização constante, a sociedade conseguiu destinar, nos últimos seis anos, R$ 24,31 milhões a mais para a área, dentro de um total de R$ 46,25 milhões destinados a políticas públicas nas áreas de assistência social, segurança alimentar e nutricional, educação, direitos humanos, saúde, economia popular solidária, comunidades indígenas, além da própria área da infância. Só no orçamento de 2010, foram mais de R$ 2,5 milhões de novos recursos para a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.


Ministério Público na elaboração e revisão do orçamento A Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude de Belo Horizonte acompanha a incidência popular no orçamento mineiro. Para a promotora de Justiça Maria de Lurdes Santa Gema, a área de direitos difusos e coletivos está diretamente ligada às políticas públicas que, para serem implementadas, dependem de recursos, em sua maioria, de origem do próprio tesouro. “Onde vamos buscar esses recursos públicos? No caso de Minas Gerais, com o Poder Executivo e na Assembleia Legislativa porque lá são discutidos, analisados e votados o PPAG, a LDO e a LOA, e acompanhada a execução do orçamento. É também a Assembleia que faz o monitoramento, mas esse monitoramento não deve ser feito só pelos deputados. Ele deve ser feito também pelos organismos sociais e pelo Ministério Público (MP)”. Para Maria de Lurdes, o MP precisa intensificar a atução diretamente nesse espaço de elaboração e revisão do orçamento. “Essa é uma área da qual a gente ainda não se tinha apropriado e hoje vemos que é muito importante. Primeiro porque você obriga o poder público a ser transparente, afinal de contas o recurso é de todos nós, cidadãos. Segundo porque faz esse monitoramento. E terceiro porque, na medida em que a Assembleia passou realizar audiências públicas, ficou ainda mais necessária a presença do MP para dar respaldo à própria população”. Ela defende a atuação do MP em movimentos sociais. “Mas não é estar sempre ajuizando Ação Civil Pública (ACP). É para ser um incentivador, articulador, mediador entre a sociedade e poder público. É isso que fazemos no PPAG”. Maria Alice, da Frente de Defesa, conta que antes desse monitoramento, a peça orçamentária era elaborada e aprovada sem grandes preocupações por parte do governo ou da ALMG. “Ao fazer a proposta, o governo deveria já ter ouvido o Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente de Minas Gerais (CEDCA/MG) para saber quais seriam as prioridades elencadas no orçamento. Como isso não vem acontecendo, a gente atua nesse processo. A gente tem-se apropriado cada vez mais da linguagem e de como é organizado. Aí vamos em cima. E, de quatro em quatro meses, é feito um relatório em que a gente avalia qual a porcentagem de gasto”. O CEDCA/MG é também um órgão em cuja composição a lei garante a participação popular. Ele é formado paritariamente por representantes do governo e da sociedade civil. Foi criado em 1991 como órgão responsável pelas políticas e ações em todos os níveis

de atendimento aos direitos da criança e do adolescente no Estado. O presidente do conselho, advogado Ananias Neves Ferreira, conta que o órgão tem trabalhado para estabelecer a obrigação de se garantir recursos no PPAG para diversas ações priorizadas para a área. Ele reconhece também a importância da participação popular nesse trabalho. “As ações dos conselhos não excluem as organizações da sociedade civil voltadas para a infância que têm atuado junto às frentes parlamentares de defesa da criança e do adolescente de Minas Gerais. De maneira articulada, essas organizações têm obtido emendas parlamentares destinadas a subsidiar ações a favor da população infantojuvenil. Como exemplo, cita-se a participação de representantes da sociedade na CPP da Assembleia Legislativa. Interagindo com os parlamentares, esses representantes têm conseguido resultados significativos na incidência de previsão de recursos para políticas de atendimento a crianças e adolescentes”. A atenção ao orçamento é fundamental para o sucesso dos pleitos da sociedade. Segundo Maria de Lurdes Santa Gema, está na hora de avançar. “A gente se desgasta com ações que chegam à Justiça, mas sem ter a preocupação de verificar se foi pedido que, na decisão, o juiz determinasse a inserção do recurso ainda não disponível no próximo orçamento. Estamos procurando sair da mesmice, do processo em si. É importante, é uma função primordial nossa. Mas, para defender a sociedade, temos também de lutar para que ela tenha os direitos realizados naquilo que está garantido na Constituição”, diz Santa Gema. Para a promotora de Justiça, não adianta a lei dizer que todo cidadão tem direito à saúde e, quando ele chega à Promotoria de Justiça precisando de uma

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cirurgia de alto risco, não haver vaga. “O que adianta isso estar na lei? A lei vai me remeter a outras questões, como a lutar para que o PPAG preveja verba para isso, porque, até que essa pessoa tenha uma decisão favorável, ela já morreu. É preciso cada vez mais nos aperfeiçoar. Quando a Constituição nos deu

essa responsabilidade de velar pela sociedade, não é só a questão de ver a letra fria da lei. Você tem que procurar os movimentos sociais, conversar com eles, ouvir o que eles têm a dizer, porque há neles muita gente com conhecimento aprofundado”, defende a promotora de Justiça.

Ações beneficiadas A revisão do PPAG 2008-2011 para o exercício de 2010 foi aprovada em dezembro de 2009 sob a forma do Projeto de Lei (PL) n.º 3.808. Esse projeto recebeu 315 emendas, sendo 99 apresentadas pela CPP, 163 por parlamentares e 53 pelo relator. As emendas da participação popular são resultado das audiências realizadas em todo o Estado para colher sugestões da população. Foram destinados recursos às áreas de defesa social, turismo, educação e saúde. Também foram beneficiadas as populações indígenas e quilombolas. Há ainda verbas para o aumento da capilaridade do Corpo de Bombeiros em Minas; para a construção de unidades voltadas para atendimento a medidas socioeducativas; instalação de feiras de economia popular solidária; implantação do Centro de Tradição Cultural do Jequitinhonha em Itaobim; cofinanciamento para implantação do Serviço Único de Assistência Social (Suas) em municípios; apoio às associações e cooperativas de catadores de resíduos sólidos e ações relativas ao Centro Internacional de Educação, Capacitação e Pesquisa Aplicada em Águas (Hidroex), como criação de fundação e de fundo previdenciário. Já o orçamento de 2010, aprovado também em dezembro passado, como o PL n.º 3.809, destinou recursos novos para a rubrica Criança e Adolescen-

te. Foram R$ 100 mil para a capacitação continuada de conselheiros tutelares nos municípios; R$ 600 mil para apoio aos Conselhos de Direitos e Tutelares da Criança e do Adolescente; R$ 900 mil para apoio à implantação de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) para atendimento a jovens usuários de drogas; R$ 130 mil para as medidas socioeducativas, especificamente para a construção de unidades de internação e aprimoramento das medidas em meio aberto; R$ 54,1 mil para a educação básica a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa; R$ 240 mil para o reordenamento de abrigos; R$ 400 mil para apoio às ações do Protocolo de Investigação de Denúncias de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e ao Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil (PAIR); R$ 100 mil para o Comitê Gestor Estadual para Políticas Públicas para a Criança e o Adolescente do Semiárido Mineiro. Além de terem sido importantes para garantir recursos novos, as emendas populares ajudaram a definir ações com alguns recursos já previstos para a área, como o investimento de R$ 300 mil na expansão do projeto de combate ao trabalho infantil intitulado Reciclando Oportunidades, e R$ 80 mil para a capacitação de coordenadores e monitores do programa Poupança Jovem.

Execução orçamentária A Rede de Proteção Social de Minas Gerais recebeu em junho R$ 11,6 milhões para viabilizar sua expansão no Estado. A verba é destinada à construção de 65 novos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), a porta de entrada para a população à rede; 12 Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), que prestam serviços especializados às famílias ou aos indivíduos que têm seus direitos violados, e 60 Centros de Atendimento Socioinfantil (Casi), para atendimento a crianças e adolescentes de seis a 15 anos com objetivo de proporcionar ambiente propício à interação, aprendi-

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zagem, sociabilidade e proteção social. Ao todo, 129 municípios foram contemplados. Especificamente na área da criança e do adolescente, a Rede de Proteção Social vai intensificar a campanha Proteja as Nossas Crianças, com recursos previstos no orçamento para o estabelecimento do Protocolo de Investigação de Denúncias de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Em seu terceiro ano de atuação, a campanha tem conquistado resultados expressivos: desde o seu início, o número de denúncias recebidas pelo Disque Direitos Humanos (0800-031-1119) aumentou mais de 100%.


Combate à exploração sexual infantil Foram entregues 75 veículos e 146 kits de informática para Conselhos Tutelares instalados em 208 municípios. Esses bens foram adquiridos com recursos do Fundo da Infância e da Adolescência (FIA) do Estado, e do orçamento da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), num total de R$ 1,8 milhão. Também foram assinados convênios com o Sindicato do Comércio Varejista de Derivados do Petróleo do Estado de Minas Gerais (Minaspetro) para facilitar a divulgação da campanha em 2.000 postos de combustíveis associados e com o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para dar mais eficiência à investigação de crimes contra crianças. O Crisp fará pesquisa para identificar o caminho que denúncias sobre abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes tomam depois de recebidas pelo Disque Direitos Humanos. A pesquisa vai oferecer subsídios para a criação de protocolo estabelecendo fluxos e procedimentos para aumentar a eficácia das investigações, a responsabilização dos agressores e o melhor atendimento às vitimas. Para a coordenadora do Centro de Apoio das Promotorias de Justiça de Defesa da Infância e da Juventude (CAO-IJ), promotora de Justiça Andrea Mismotto Carelli, que assinou o convênio em nome do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, não basta incentivar a sociedade a denunciar. “Essas informações têm que receber um tratamento adequado e, para isso, é preciso uma rede de serviços tanto na área de proteção social quanto na do sistema de Justiça. O que menos se tem aperfeiçoado é a responsabilização do violador dos direitos da criança. Um levantamento do CAO-IJ mostra que, a cada 100 denúncias feitas, apenas quatro se convertem em processo criminal. Com essa pesquisa pretendemos verificar o que não está funcionando direito”. O trabalho da sociedade na incidência orçamentária é contínuo e, neste ano de eleições, o Interfóruns pretende dialogar com os candidatos a governador do Estado para que incluam, em suas plataformas de governo, itens essenciais ao desenvolvimento de políticas públicas para crianças e adolescentes.

O que menos se tem aperfeiçoado é a responsabilização do violador dos direitos da criança” Andrea Mismotto Carelli

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Comissão parlamentar consolida projetos de iniciativa popular

O poder de participação da sociedade fica claro quando se toma o exemplo da incidência no orçamento mineiro. Para o deputado Carlin Moura, a ALMG é vanguardista nesse processo. “A CPP daqui, tendo sido criada em 2003, é uma das primeiras nos parlamentos estaduais. Conseguimos avançar em questões importantes. Por exemplo, um projeto de iniciativa popular não mais necessita de número mínimo de assinaturas previsto na Constituição Federal. Qualquer entidade legalmente constituída pode apresentar o seu projeto”, conta. Está em tramitação na ALMG uma proposta de emenda constitucional para garantir essa prerrogativa, evitando que uma futura mudança na direção da Casa venha a alterar esse instrumento de participação popular. “Está garantida a amplitude de temas. O único critério é que essas demandas não partam de nós parlamentares. A comissão funciona em função da demanda popular. A sociedade civil, por meio de suas entidades representativas, vem à comissão e apresenta seus temas. A partir daí a comissão dá o desencadeamento”, esclarece.

É também a participação da sociedade que mantém atuações como a da FDDCA. De acordo com a secretária executiva da frente, o que mantém as pessoas e as entidades atuantes é a vivência no atendimento em situações de grandes violações de direitos. “Ao fazer esse atendimento, a pessoa se depara com a precariedade dos trabalhos e das políticas. Mas quem atua na área acaba se apaixonando por esse público e sabe qual é a importância do trabalho”. Maria Alice disse que hoje em dia o processo de mobilização social está fragilizado. “Nós tínhamos um contingente de militantes que foi absorvido pelo poder público quando a esquerda assumiu o poder. Não estou condenando a absorção dessas pessoas que, convidadas pelo governo, aceitam fazer parte de uma administração que acreditam valer a pena. Eu compreendo e acho correto, mas essas pessoas não precisavam ter perdido a militância. E o que se percebeu foi isso: mudaram-se as relações, a posição, o olhar. Quando esses militantes entraram para a administração, ficaram com grandes dificuldades, inclusive, de fazer alguma crítica ou de se posicionar, porque é como se criticassem a si mesmos”, desabafa.

Avanços na inclusão social Maria Alice aponta também a falta de recursos como uma das dificuldades encontradas pelas entidades para a organização popular. Entretanto, esses entraves não impediram os avanços conquistados ao longo do tempo. Se há vinte anos se buscava a efetivação de políticas públicas, hoje é possível dizer que, pelo menos nas grandes cidades, a maior parte das políticas já foi implantada. Se houve uma época em que se lutava por vagas nas escolas, hoje as vagas já existem e o que se busca é a qualidade desse serviço.

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Para o deputado Carlin Moura, as conquistas são claras. “Eu tenho a convicção de que, nos últimos sete anos, houve grandes avanços nas políticas públicas de inclusão social no Brasil. O governo federal conseguiu colocar isso como política de Estado, como prioridade. O Ministério do Desenvolvimento Social foi um exemplo reconhecido internacionalmente. As políticas de inclusão como políticas públicas levaram à redução da pobreza. Caiu de 17% para 7%. Incluímos no mercado de consumo mais de 32 milhões de brasileiros”, defende.


O deputado credita a mudança no perfil da militância, apontada pela secretária executiva da FDDCA, ao bom funcionamento do Estado, que diminuiu a pressão popular. “Eu vejo isso como um ponto positivo. Porém, não podemos partir do princípio de que está tudo resolvido. Pelo contrário, ainda temos um país de desi-

gualdades gritantes. O projeto do Brasil hoje é estar entre as cinco maiores economias do mundo em 2022. Mas também precisa apresentar indicadores sociais adequados. Para isso, é preciso diminuir as desigualdades e aumentar o nível de escolaridade e a capacidade crítica da população”, analisa.

Promotor da justiça social A Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude de Belo Horizonte tem papel decisivo na incidência do orçamento mineiro. Segundo a promotora de Justiça Maria de Lurdes Santa Gema, as entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente perceberam que só estavam atuando no momento das votações, quando os acordos parlamentares já estavam firmados. “Quando ia a plenário, era um desgaste muito grande. Então, em 2007, ano anterior ao da discussão do PPAG, fomos até a CPP da ALMG para dizer que chamaríamos várias instituições na área da infância e da juventude. Com elas debateríamos o que a população gostaria que o plano contemplasse nas áreas de infância e juventude, educação, saúde, lazer, cultura, convivência familiar e comunitária. Porém, o que mais causava preocupação era a área das medidas socioeducativas”. Dessa forma, foram chamados o Fórum de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, a Rede de Medidas Socioeducativas, o Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador, o Fórum de Educação Infantil, o Fórum de Abrigos, a FDDCA e outros. “Participamos desse debate e percebemos que precisávamos privilegiar a instância máxima na área da infância e da juventude em Minas: o CEDCA/MG. Então os movimentos sociais pautaram o conselho sobre o que o governo deveria inserir no PPAG”, relata Maria de Lurdes. O CEDCA/MG avaliou as propostas e expediu sua primeira resolução para ser colocada no PPAG. “Isso foi um avanço muito grande porque, pelo ECA, quem dita as normas e políticas públicas para a criança e o adolescente não é exclusivamente o governo do Estado, mas também o Conselho de Direitos. Depois de expedida a resolução, nós a apresentamos ao governo em uma Audiência Pública que pedimos especificamente para esse fim. Muitas metas foram incluídas no PPAG. Para as que não foram, tivemos que organizar todo mundo novamente e ir para as Audiências Públicas apresentar as emendas”.

Minas Gerais é o Estado onde os movimentos sociais mais se apropriaram da questão do orçamento” Maria de Lurdes Santa Gema Alex Lanza

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Processo pioneiro A promotora de Justiça conta que mais de metade das emendas populares foi apresentada pela Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude de Belo Horizonte em parceria com os movimentos sociais. “Com isso conseguimos um excelente resultado incluído no orçamento de 2008: R$ 4,9 milhões. E até 2011, conseguimos R$ 19,3 milhões. Esse processo foi muito importante porque o MP passou a ter dois documentos na área da infância e da juventude: a resolução do CEDCA/MG com as diretrizes a respeito da política na área e a previsão dos recursos no PPAG. Hoje o MP, ao ajuizar uma ACP requerendo que o governo construa um abrigo, uma escola, um centro, sabe que pode buscar no orçamento, porque

a ALMG já disse o que quer para a área”. Maria de Lurdes destaca a importância desse processo, pioneiro no país. “Minas Gerais é o Estado onde os movimentos sociais mais se apropriaram da questão do orçamento. Desde de 2000 a gente sabe tudo que o Estado gasta na área da infância e da juventude. Os desafios são lutar para que verbas sejam inseridas em determinadas políticas públicas, e assumir a responsabilidade da fiscalização. Não é só lutar para que haja verba orçamentária. É preciso que saibamos se, depois de executada, ela foi eficaz. Não adianta investir nesse ou naquele programa se não houver resultado. O promotor de Justiça vai ter que acompanhar a execução da obra, se for o caso”.

Qualidade na gestão pública A coordenadora do Centro de Apoio das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude de Minas Gerais (CAO-IJ), promotora de Justiça Andrea Mismotto Carelli, também afirma que esse é um trabalho fundamental. Ela acredita que hoje em dia o desafio não é mais propor alteração da norma jurídica para a inclusão de direitos, pois a Constituição de 1988, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já fizeram isso. “O desafio hoje é o de trabalhar pela consecução desses direitos, para que eles saiam do papel e sejam efetivados em caráter universal, o que requer, indubitavelmente, qualidade na gestão dos negócios públicos. A cobrança pela efetivação de direitos, portanto, tem que deixar de ser uma mera interpelação para ser realmente um debate fulcrado em índices técnicos sobre a competência da gestão por parte do Executivo”. Para Andrea Carelli, esse debate só será possível na medida em que exista acompanhamento sistemático do orçamen-

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to. “Por meio da análise da peça orçamentária, sobretudo do aspecto da execução, consegue-se se aferir de forma clara qual a prioridade do governo, que política está sendo adotada, quais são as ações escolhidas e, o principal, se o gestor está atuando bem e no tempo adequado para propiciar que os recursos disponibilizados sejam realmente utilizados”. Esse acompanhamento, segundo a coordenadora do CAO-IJ, gera para o Ministério Público informações cruciais, que podem ser usadas nas Ações Civis Públicas. “Considerando que muitas vezes o Judiciário se vale do famigerado argumento da conveniência e oportunidade do administrador, a juntada da peça orçamentária pode demonstrar para o julgador que foi o próprio gestor quem escolheu aquela ação para investimento, que foram alocados os devidos recursos, mas, por inépcia da gestão, a política pública pertinente, por meio da qual o direito seria exercido, não foi executada”.


William Dias/ALMG

Andrea Carelli debate emendas populares dirigidas aos direitos da criança e do adolescente apresentadas ao PPAG

Ela acredita que cabe à Instituição garantir o acesso dos vários atores sociais às informações relativas ao orçamento, e mobilizar a sociedade para esse tipo de controle. Andrea Carelli percebe a elevação do nível do debate entre a administração e a sociedade. Per-

cebe, também, o aumento da transparência, mas acredita que ainda falta algum aperfeiçoamento. “Pelo menos na área que acompanho, vejo que os gestores ainda são muito refratários às cobranças, não veem que esse diálogo pode ser importante para o aperfeiçoamento de suas ações”, avalia.

Análise do orçamento pelo MP A ideia da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude é que todos os promotores de Justiça recebam as análises do orçamento. “Aqui há verba de várias áreas: pessoa com deficiência, portador do sofrimento mental, habitação. Se o promotor de Justiça precisar, por exemplo, ajuizar uma ACP ou propor um Termo de Ajustamento de Conduta, o Estado não vai poder dizer que não tem orçamento para isso, porque estaremos com o documento na mão e poderemos dizer que a Assembleia já votou, que está no orçamento e que queremos a execução. Se não houver acordo, temos como exigir que a Justiça, ao se pronunciar, fale de onde vai sair a verba. Isso vai evitar desgaste. O orçamento é difícil de ler, por isso hoje temos técnicos que conseguem extrair dele os dados de que precisamos. Esse é o

mecanismo que faltava para o MP defender ainda mais os interesses da sociedade”, analisa Maria de Lurdes. Para ela, atuação do promotor de Justiça é primordial nesse processo de apropriação do orçamento público. “Há várias coisas que podemos fazer, porém o mais importante é que o promotor de Justiça não pode mais ser promotor de gabinete. Se ele não sair para procurar as instituições, os movimentos sociais, não vai ter conhecimento de suas demandas e vai deixar a desejar. A gente tem que separar um tempo do nosso trabalho para tentar conciliar, tentar ser um promotor da justiça social. Aí,sim, vamos estar desempenhando nossa função da forma como Constituição Federal determinou”, conclui.

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Entrevista

A relação entre

direito, política e economia na concretização dos direitos fundamentais

Por Giselle Borges

Estudo da promotora de Justiça Nívia Mônica analisa a questão orçamentária no Brasil em comparação a outros países e o papel do MP na garantia da execução orçamentária em consonância com a demanda social

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Foto: Maiara Monteiro

A promotora de Justiça de defesa dos direitos da criança e do adolescente em Belo Horizonte Nívia Mônica da Silva apresentou, na PUC-Minas, no primeiro semestre deste ano, dissertação de mestrado em que aborda a relação entre direito, política e economia na concretização dos direitos fundamentais. O estudo foi motivado, segundo ela, pela necessidade de se aprimorar a atuação judicial e extrajudicial em prol da concretização dos direitos fundamentais, partindo da perspectiva do Ministério Público. Além disso, a questão orçamentária no Brasil foi outro fator que motivou as pesquisas da promotora, pois, em geral, os orçamentos são vistos pelos administradores e administrados como mero instrumento contábil, ineficaz para garantir a realização das políticas públicas prioritárias. “Não temos um orçamento capaz de vincular a atuação do administrador, tampouco de balizar suas escolhas político-administrativas. Tal como têm sido utilizados no Brasil, os orçamentos não cumprem sua função de garantir que a eleição das prioridades em torno da concretização de direitos fundamentais balizem a gestão dos recursos públicos arrecadados pelo ente estatal. Os orçamentos têm servido, em muitos casos, ao contrário, para afastar do ente estatal o dever de concretizar alguns direitos fundamentais cujas políticas não tinham ingressado nas disposições orçamentárias. Deve-se pensar que, em relação às políticas públicas regularmente deliberadas durante o processo orçamentário, o gestor não tem mera possibilidade de empregar os recursos, mas o dever de agregar esforços para concretizá-las quando da execução orçamentária”, afirma a promotora de Justiça, que resolveu aprofundar-se no estudo do assunto direcionando sua pesquisa para o relacionamento entre direito, política e economia que se materializa na realização dos direitos fundamentais. Em entrevista à revista Rede, ela conta um pouco de sua dissertação e da respectiva aplicação no cotidiano da Promotoria de Justiça. 71


Na atuação do Ministério Público na área da infância e juventude o descompasso entre a demanda de concretização de direitos e a disponibilização de recursos orçamentários também surge como um óbice ao desempenho das atribuições do promotor de Justiça? Sim. Essa questão aparece sempre que um programa visando a atender os direitos da criança e do adolescente deixa de ser executado pelo ente estatal em razão da falta de recursos financeiros. Isso, na verdade, nada mais é do que o reflexo da falta de investimentos nas políticas sociais. Salvo engano, no ano de 2005 foi proposta uma Ação Civil Pública com vistas a ampliar a rede de abrigos em Belo Horizonte, uma vez que a situação estava caótica, e havíamos esgotado todos os recursos extrajudiciais disponíveis. Apesar de a liminar ter sido deferida em primeira instância, essa decisão foi suspensa quando do julgamento do recurso pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), ao argumento de que não

caberia ao Judiciário, naquele momento, intervir nas escolhas da administração pública. A questão orçamentária também foi tangenciada, uma vez que não havia uma rubrica específica para o programa. A mera alegação do administrador de que os recursos existentes foram utilizados em outra área, entretanto, já se torna uma boa matéria de defesa para ser suscitada nos recursos. Surge, então, a pergunta: Não caberia ao administrador o dever de zelar pela execução das políticas públicas que se destinam a concretizar direitos fundamentais de prioridade reconhecida, inclusive, no âmbito constitucional, como é o caso das políticas de atendimento aos direitos da criança e do adolescente?

Há algum modo de fazer inserir no orçamento público a previsão de recursos destinados a uma política pública específica? Extrajudicialmente, a atuação do Ministério Público pode ser expressiva e eficaz para que se incluam no orçamento programas específicos ou, caso eles já existam, para que haja oferta de cobertura em número suficiente para atender às demandas. Por exemplo, a atuação extrajudicial do Ministério Público no monitoramento da escolha das políticas prioritárias, ainda no âmbito do ciclo orçamentário, e, num segundo momento, no acompanhamento da execução do orçamento correspondente, pode fazer valer as prioridades identificadas num determinado contexto socio-

político. Quando a via extrajudicial não surte os efeitos esperados, há também a possibilidade de acionar o Judiciário por meio de demandas que tenham por objetivo, por exemplo, fazer incluir recursos no orçamento do exercício seguinte destinados à realização de políticas públicas cujo déficit e necessidade prioritária tenham sido constatados. Nesse último exemplo, sustentamos a tese de que a demanda e a premência de uma política em relação à outra devem ser aferidas junto às instâncias interessadas e politicamente incumbidas de deliberar sobre as políticas públicas.

E quais seriam essas instâncias? As decisões legítimas dos conselhos deliberativos – conselhos de direitos da criança e do adolescente, conselho de assistência social, conselho de saúde, etc. – são um bom meio para se identificar qual a política prioritária em cada contexto sociopolítico. Os fóruns de debate, as conferências e as organizações sociais também

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podem funcionar como um termômetro para se aferir qual política foi eventualmente preterida pelo administrador, embora fosse de notória relevância para o segmento social a que se destinava e merecesse, portanto, ser incluída no planejamento estatal e realizada com a devida prioridade.


E quanto ao Ministério Público? As ações do Ministério Público esbarram na falta de vinculação do administrador às disposições orçamentárias. Não postulamos que o orçamento tenha caráter vinculativo de modo a engessar a administração pública, uma vez que as necessidades são mutantes e diversificadas, e os recursos, finitos. Todavia, na conclusão dos nossos trabalhos, defendemos o posicionamento de que o ciclo orçamentário deve se

estabelecer legitimamente – e isso torna explicita a necessidade de participação social, direta ou por meio dos conselhos, movimentos sociais, organizações não governamentais (ONGs), etc. – e que, em seguida à formulação e aprovação da Lei Orçamentária Anual, toda a discussão em torno das políticas públicas prioritárias seja considerada pelo legislador quando da execução desse orçamento.

Na sua opinião, qual a função dos orçamentos no Estado democrático de Direito? O valor de planejamento estatal, segundo o qual se pode, progressivamente, concretizar os direitos fundamentais e, passo a passo, contribuir para que os indivíduos se tornem cidadãos. Sustentamos que o orçamento público pode ser considerado uma aquisição evolutiva da sociedade. Isso porque sua constitucionalização permitiu que o sistema político estabelecesse pontos de contato com a economia e com o direito, pelo compartilhamento de suas prestações. A política econômica do Estado de Direito que se pretenda democrático deve

levar em consideração o primado das escolhas feitas com base em deliberações políticas – nas quais se pressupõe a participação social – e, ao mesmo tempo, avaliar o que se mostra mais vantajoso conforme a conjuntura econômica do momento. E, como conditio sine qua non para sua validade perante o sistema jurídico, essa política econômica deve ter em vista o maior nível de implementação das políticas concretizadoras de direitos fundamentais. Todavia, em vez disso, o que se percebe são entendimentos em sentidos diversos.

O que o seu estudo demonstrou nesse sentido? Em inúmeros julgados, por exemplo, os orçamentos parecem funcionar como meros óbices à execução de políticas nele não contempladas expressamente. A “cláusula da reserva do possível” ou da “reserva orçamentária”, sustentada em defesa do Estado nos mais variados tipos de omissão, tem sido mal compreendida, na perspectiva adotada na nossa pesquisa. Ela se tornou, muitas vezes, uma justificativa para

a negligência estatal na realização das políticas públicas mais relevantes num determinado contexto. Por outro lado, quando se pretende a realização de uma política já inserida no âmbito orçamentário, o ente estatal alega que não se vincula ao orçamento, ou seja, embora prevista a realização de uma dada política pública, a efetividade desse dispositivo se condicionaria à “vontade política” do administrador público.

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Então há dois pesos e duas medidas? Há, por assim dizer, dois pesos e duas medidas. Ora o orçamento é impeditivo à realização de uma política pela ausência de previsão; ora o orçamento é apenas um norte que, não raro, é desprezado pelo administrador, que se sente avalizado a executá-lo conforme a tendência política predominante. Nesse último caso, o orçamento serve tão somente como uma “autorização para gastar”, de modo que o investimento social se torna mera possibilidade a ser concretizada ou não pelo gestor, sem que ele tenha de se preocupar sequer em justificar a desconsideração da disposição orçamentária. Não se pode esquecer que os orçamentos têm uma função

essencial para o funcionamento da democracia, no equacionamento das demandas e necessidades sociais em relação ao potencial arrecadador do Estado e à inevitável limitação dos recursos. Isso, no entanto, deve ser compatibilizado com os fundamentos da República, em razão dos quais as políticas sociais merecem maior ênfase. Em países de democracia consolidada há séculos, um candidato ao governo pode definir uma eleição com base na proposta de orçamento para os anos seguintes ao da provável eleição. No Brasil nem o governo nem os governados parecem atribuir o devido valor ao orçamento público.

Sua dissertação revelou essa diferença de olhares sobre o orçamento no Brasil e em outros países, sob os aspectos históricos e/ou culturais? Trabalhamos com a noção de orçamento desde seu surgimento, que, pelas nossas pesquisas, teria ocorrido na Inglaterra. O orçamento como peça que deve orientar a gestão dos recursos públicos, entretanto, teria surgido como decorrência das revoluções que marcaram o início da Idade Moderna, tais como a Revolução Francesa e a Americana. Nesse período foi deflagrado o processo de constitucionalização dos direitos fundamentais, e surgiu a noção do orçamento como uma garantia do administrado sobre como o administrador pretendia empregar os recursos públicos. Relativamente ao Brasil, abordamos a evolução do conceito jurídico de orçamento público desde a Constituição Imperial de 1824, que inaugura a história orçamentária brasileira. Na nossa primeira Carta Política, o orçamento surge, ainda que de modo acanhado, como mecanismo de controle recíproco entre os poderes Executivo e Legislativo. Entretanto, é com a Constituição de 1946 que há certa estabilização acerca da formulação da lei orçamentária, e o orçamento

volta a ser resultado da coparticipação dos poderes: o Executivo elaborava o projeto de lei e o encaminhava para discussão e votação nas Casas legislativas. Foram consagrados princípios estruturantes do orçamento, tais como a unidade, a universalidade, a exclusividade e a especialização. Consagrou-se, ainda, o detalhamento das atribuições do Tribunal de Contas, que já se havia instituído desde a Constituição de 1891. Na Constituição de 1988, há um grande avanço no sentido da democratização dos orçamentos públicos. Fortalece-se a noção de orçamento como peça essencial ao planejamento estatal e como fator de operacionalização das políticas públicas deliberadas no âmbito político próprio. O ciclo orçamentário, então, é desdobrado em três etapas: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). Toda política pública, como programa de ação governamental financiado com recursos públicos, deve ter seu lugar bem definido nesses três momentos político-deliberativos.

Então, direitos fundamentais e orçamento devem caminhar juntos? Realmente a noção de orçamento com feição moderna surgiu concomitantemente ao processo de constitucionalização dos direitos fundamentais. Atualmente, num cenário de demanda pela concretização de tantos direitos essenciais, como se vê no

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Brasil, por exemplo, essa relação nos parece ainda mais evidente. Isso porque há inúmeras demandas sociais básicas não atendidas, sobretudo nesse contexto em que o Estado Social não se efetivou no cotidiano da população. Apesar disso, não se


pode esquecer que os recursos são limitados. Logo, se sabemos que a concretização de direitos, sejam eles de que natureza forem, é onerosa, isso significa que escolhas devem ser feitas. E é exatamente nos orçamentos que essas decisões devem ser materializadas para que as políticas correspondentes sejam executadas de modo a permitir que as demandas havidas como prioritárias para a sociedade sejam progressivamente atendidas. No Brasil é tradicional a participação ativa do Legislativo nas disposições orçamentárias en-

caminhadas pelo Executivo. O que não temos é a cultura cotidiana, na esfera social, de acompanhar esse processo e nele incidir, atribuindo visibilidade aos interesses mais relevantes para cada segmento da sociedade. Talvez um dos papéis do Ministério Público seja o de fomentar essa cultura participativa, que traz consigo a valorização do orçamento como peça fundamental do planejamento estatal. Isso pode ser levado a efeito, por exemplo, com iniciativas judiciais e extrajudiciais que visem tornar efetivas as intervenções decorrentes dessa participação.

Por que os níveis de participação social são tão baixos no Brasil? No estudo usamos o conceito de esfera pública para avaliar a relevância da participação social na formulação das políticas públicas e nas deliberações orçamentárias correlatas. Esfera pública, no sentido aqui empregado, corresponderia, grosso modo, àquela camada da sociedade que capta as demandas e pretende ter voz na vida política de uma comunidade, levando os anseios de um e outro segmento às barras dos diversos ramos do poder público. Muitos avanços sociais foram alcançados em países de tradição democrática por meio da atuação de uma esfera

pública atuante que conseguiu fazer representar os mais variados segmentos sociais existentes naquela comunidade política. Uma das questões com que nos deparamos foi a constatação de que, no Brasil, não há, tradicionalmente, uma esfera pública capaz de representar e fazer valer a voz do público que mais carece de políticas sociais direcionadas e formuladas com vistas à redução da desigualdade socioeconômica. Por outro lado, ao que nos parece, o mundo inteiro anda às voltas com a questão do desinteresse da população em participar da vida política do país.

Como a senhora avalia esse desinteresse popular pelas políticas públicas? Há pesquisas na Europa e nos Estados Unidos que apontam para um decréscimo no nível de participação popular. No Brasil, entretanto, o peso desse descrédito na capacidade participativa dos indivíduos talvez seja maior, porque nós não vivenciamos um período histórico-político em que as demandas sociais mais básicas, como acesso à saúde, educação e assistência social, foram atendidas, a exemplo do que aconteceu nos países centrais na segunda metade do século passado. Tudo se complica quando se percebe que uma coisa depende da outra: se nós não formamos cidadãos, ou seja, brasileiros com acesso minimamente satisfatório aos direitos fundamentais sociais, teremos menos participação. Tampouco se poderá esperar por

uma participação política dos grandes estratos sociais que tanto necessitam das políticas sociais. Em decorrência disso, quanto menor é o interesse do público interessado, menores são as chances de se ampliar os recursos para as políticas públicas de maior repercussão para a concretização da cidadania. O desafio é interromper esse ciclo vicioso e torná-lo virtuoso. A incidência popular nos processos orçamentários, em nosso entendimento, pode ser um dos caminhos para que mais recursos sejam destinados às políticas públicas mais relevantes para a ampliação progressiva dos níveis de cidadania no Brasil. Isso certamente faria despertar o interesse pela participação e, com o tempo, essa participação poderia se tornar mais qualificada.

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Como deve ser a participação da sociedade? A participação deve ser qualificada no sentido de que as pessoas devem ter conhecimento do assunto que está sendo discutido, dos limites e demandas envolvidos e das repercussões dessa decisão para o cotidiano de cada segmento social. Como vivenciamos grandes entraves à participação, em especial dos setores que mais carecem da atuação estatal, torna-se fundamental a atuação do Ministério Público para fazer valer as decisões tomadas com a participação popular, seja no âmbito dos conselhos deliberativos das políticas públicas em nível setorial, seja durante o processo orçamentário, quando, por exemplo, os

movimentos sociais apresentam emendas que passam a integrar o orçamento. O Ministério Público pode e deve, em nosso entendimento, fazer valer as decisões com repercussão orçamentária que tenham sido legitimadas pela participação popular. Há várias Ações Civis Públicas motivadas pela inobservância dessas deliberações e, aos poucos, o entendimento que se tem firmado é o de que o desrespeito às instâncias políticas que legitimamente deliberam sobre a formulação e execução de políticas desafia a intervenção do Judiciário (Recurso Especial n.º 493.811, DJ de 15.3.2004 e Suspensão de Liminar 228, STF, DJ de 21.10.2008).

De que forma essas ações têm contribuído? Isso tem possibilitado que o Ministério Público obtenha maior êxito nas demandas e, dessa forma, atue para se fortalecer e encorajar a participação popular nessas instâncias. Na área da infância e da juventude, é relativamente comum a atuação da sociedade de modo organizado, por meio de movi-

mentos e ONGs, por exemplo. Cabe ao Ministério Público oferecer o respaldo necessário para motivar e multiplicar a participação política. O orçamento é um processo, uma sequência de deliberações políticas, e é importante que nós mostremos para o cidadão que ele deve participar.

Como o MP pode intervir para garantir políticas públicas? O Ministério Público pode favorecer a formação de um contexto participativo atribuindo valor às iniciativas de participação coletiva. Para isso, pode atuar, por exemplo, para fazer que as emendas populares nos orçamentos sejam sempre observadas, acompanhando a entrada e a movimentação da receita durante a respectiva execução. Defendemos a posição segundo a qual o administrador não pode, arbitrariamente, definir se vai ou não executar determinada política, nas hipóteses em que a demanda ainda exista e para cuja execução haja recurso alocado. A preterição, salvo justificativa plausível do gestor, desafia as medidas judiciais

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e extrajudiciais cabíveis. Em algumas execuções orçamentárias acompanhadas pelo Ministério Público, algumas políticas “preferenciais” chegam a atingir a execução em valores três vezes maior do que o previsto, o que não raro ocorre em programas de divulgação institucional. Por outro lado, há políticas de extrema relevância social, que já constam do orçamento e para as quais houve destinação e arrecadação de recursos, em que o nível de execução é baixíssimo. Significa que a política não se torna real porque esses recursos não são destinados à sua realização por decisão do gestor ao longo do exercício orçamentário.


É possível o controle social sobre o orçamento? Em um contexto em que se vislumbra a preterição de políticas públicas essenciais para uma sociedade que pretende crescer e se desenvolver, cabe sim uma maior investigação, da qual a sociedade pode e deve participar, sobre o critério de seletividade para escolher em que empregar os recursos públicos. O orçamento, ao contrário do que se propaga, não é mera autorização para gastar. Há nele a eleição de prioridades, que, salvo motivo justificado, deve

ser seguida. Entretanto, o controle social deve incidir também sobre a execução orçamentária, que pode ser acessada por qualquer cidadão. É a partir dos relatórios apresentados pelo ente estatal ao longo do exercício que o público interessado poderá constatar se os recursos que ingressaram nos cofres públicos estão sendo destinados às políticas públicas em conformidade com as demandas existentes e com a previsão orçamentária.

Nas Ações Civis Públicas é comum a alegação de que o Ministério Público e o Poder Judiciário não podem interferir nas decisões do Executivo sobre a destinação dos recursos arrecadados? É muito comum. Geralmente, esse entendimento decorre de uma leitura conservadora da teoria da separação dos Poderes. Muitas vezes se esquece de que há instâncias competentes para deliberar sobre a definição das políticas prioritárias fora do Poder Executivo. Esquece-se, também, que a participação popular é respaldada pelo texto constitucional e que os conselhos, por exemplo, são instâncias com poder de deliberação política. De fato, não cabe ao promotor de Justiça ou ao juiz de Direito deliberar qual é a política que merece prioridade na execução. O Ministério Público deve intervir para constatar,

junto às instancias competentes, que política ou o programa merece atendimento prioritário. Tudo deve se dar com base no interesse da população que vai ser beneficiada, sem se desconsiderar que há uma escolha. Ou seja, se os recursos são limitados, é necessário que essa escolha atenda aos interesses mais relevantes. Para isso os conselhos têm um papel que pode ser bastante significativo, pois são eles que debatem e analisam as políticas e os programas existentes num determinado setor. São eles, também, que podem aferir onde a demanda é mais expressiva e deve ser sanada preferencialmente.

Como a atuação do Ministério Público pode ser aprimorada na área das políticas públicas? Pode-se investir no planejamento institucional. A própria classe pode eleger suas prioridades de atuação e, conforme as peculiaridades de cada área, contar com uma assessoria eficiente. Direcionamento institucional e assessoria são dois pontos importantíssimos para o Ministério Público avançar para conhecer as políticas públicas do ente estatal e dotar-se de aparato técnico e conhecimento empírico que viabilize uma intervenção adequada na escolha, formulação e execução das políticas públicas que visam a concretizar os direitos fundamentais. Aqui há algumas iniciativas nesse sentido. A Central de Apoio Técnico, por exemplo, dispõe de profissionais que podem auxiliar no acompanhamento

da execução orçamentária. No nosso ponto de vista, conhecer, intervir e monitorar os orçamentos públicos são tarefas essenciais ao bom desempenho das funções do Ministério Publico. Entretanto, é muito importante que haja assessoramento técnico, como assessoria contábil, análise da política pública – cobertura, público atendido, alcance. O aperfeiçoamento e a divulgação de metodologias que permitam uma leitura mais eficiente e rápida do orçamento, direcionando-a para a área de atuação de cada promotor de Justiça, inclusive – e principalmente – no interior do Estado, onde a cumulação de atribuições dificulta a especialização técnica do membro do Ministério Público.

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Esse preparo leva ao fortalecimento da atuação extrajudicial? É imprescindível o apoio técnico para a atuação do promotor de Justiça surtir efeitos, sobretudo antes da judicialização da questão. Caso não se encontre uma solução extrajudicial, claro que a ação correspondente deve ser proposta. Todavia, quando essa ação é precedida de um Inquérito Civil ou de peças de informação contendo dados que permitam um exame mais aprofundado da questão, ao apreciar o caso, o Judiciário tende a levar em conta todos os argumentos postos pelo Ministério Público – políticos, orçamentários, relativo à demanda decorrente da omissão estatal, etc. –, afastando as alegações sem fundamento eventualmente apresentadas pela defesa, como falta de recursos, inexistência de demanda, etc. Com a disponibilização

desse tipo de instrumento, afasta-se, por exemplo, o argumento de que a intervenção do Judiciário seria ingerência indevida no Executivo. Demonstra-se, a toda evidência, que a escolha pela execução de determinada política não coube ao promotor de Justiça ou ao juiz, mas à instância política legítima que a deliberou e deve ser fortalecida por meio da ação judicial. Afinal, um Poder deve controlar o outro. Torna-se mais fácil para um juiz ou um tribunal garantir que algum serviço continue a ser ofertado pelo Estado quando se visualiza a existência de recursos e de um planejamento anterior para que isso acontecesse. E, assim, a atuação do Ministério Público é fortalecida, pois a necessidade de produção de provas durante o processo torna-se mais restrita.

Quem deve definir as prioridades para o orçamento? É a população que elege suas prioridades, seja participando diretamente dessas escolhas, seja por meio dos membros do Legislativo e do Executivo que ela elegeu para esse fim. Entendemos que o orçamento deve ser um espaço de escolhas políticas

realizadas com participação social no mais amplo espectro possível. Isso não se restringe ao orçamento participativo, sobretudo quando as opções abertas à deliberação popular são restritas a investimentos de pequena monta e pequena relevância.

Com o trabalho na área da infância já é possível notar avanços na participação popular? Percebemos que houve sim alguns avanços, menores do que desejávamos, mas significativos. Alguns movimentos sociais se têm fortalecido e adquirido mais autonomia para apresentar suas demandas e acompanhar as iniciativas do Legislativo e do Executivo. Também os movimentos pela transparência têm obtido maior expressão no cenário belo-horizontino. Se observarmos como os orçamentos eram e como passaram a ser, perceberemos que as ações estão mais detalhadas, que a linguagem se tornou mais acessível e que há mais publicidade. Hoje, quando se fala em orçamento, já se sabe que há pessoas atentas. Isso tem um efeito positivo. A partir do momento em que a participação popular gera uma mudança de postura política do administrador, ela é fortalecida e se sente mais

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motivada. Vemos o tema com otimismo, embora saibamos que há muito para avançar. Há muito para entender e para conscientizar. No entanto, não há outro caminho para o fortalecimento do processo democrático e para a progressiva generalização dos direitos fundamentais que não esse de a sociedade levantar a sua voz até o poder público e dizer que demanda é prioritária, que ação pode atender as necessidades de um número maior de pessoas por mais tempo, que grupo de público merece, de fato, prioridade na destinação das políticas públicas. Ao Ministério Público, que tem a função essencial de zelar pela defesa do regime democrático e pelos interesses sociais, incumbe atuar a fim de fazer que a sociedade se motive para a participação na vida política do país.


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