Enquanto Caminho - Bete Gouveia

B BE ET TE E G GO OU UV VE EI IA A

B E T E

G O U V E I A

19 DE ABRIL A 18 DE JUNHO DE 2022

Sobre a carta escrita na beira-mar e sua leitura durante um outro caminhar por ORIANA DUARTE 1

Preciso me lançar à superfície, e quando nela estiver,

das descrições epistolares, ou seja, compactuando

colocarei um pé bem próximo à frente do outro

minuciosamente as impressões corporificadas dos

para em seguida, como experiência primeira, sentir

momentos vividos. Passei a observar as pinturas

alegria ao alargar do passo – esse foi meu pensar

que surgiam sobre papéis comumente saturados de

alto quando convidada a esta escrita. Mas, enquanto

tintas à base de água, sobretudo guache e aquarela.

perseguia a primeira palavra, entendi ser antes

Permaneci atenta as micro percepções inscritas

preciso me levantar e sair, ir para a beira, operar o

nos volumes em formas dispersas, no apuro da luz

fora e, tal como Bete nos mostra, imergir no caminhar.

refletida e oscilante, na paisagem sem predomínio de horizonte e na sutil abstração da transversalidade

“Caminhar é fazer a experiência dessas

compositiva. A mim, a princípio, cabia ler a carta

realidades que insistem, sem fazer ruído,

(imaginária) através de fragmentos do seu olhar

humildemente – a árvore nascida no meio

pictórico, e neles havia o excesso próprio das

das pedras, o pássaro alerta, o riacho que

sobras, daquilo que bem podia não mais estar.

segue seu curso – e sem nada esperar.” 2

Porém, repentinamente, das microformas surgidas como resíduos de um naufrágio em abandono de

Quando, durante uma caminhada na beira-mar Bete me contou sobre seu trabalho, apreendi a proposta como se fosse uma carta sendo escrita. Enquanto escutava o relato do seu processo em curso, senti desperta a intuição de que seu corpo artista não suportaria tal intensidade senão pelo dizer próprio

1

maré, passei a escutar um murmúrio, ou melhor, o soletrar de nomes de fantasmas, nomes daquilo tudo que estamos deixando em meio ao intensificar das mudanças do macro ambiente terrestre. Neste sentido, a contenção do gesto desenho amplifica a catástrofe desses pedaços de coisas, comumente

| Artista visual, professora do departamento de design da Universidade Federal de Pernambuco. Tem como foco de estudo os modos

de vida artista a partir do conceito filosófico “estética da existência”, proposto por M. Foucault.

2

| Gros, Frédéric. Caminhar, uma filosofia. São Paulo: Ubu Editora, 2021.

emboladas por fina areia. Já pela amplidão do

em andanças pelas praias portuguesas de Ericeira,

gesto pintura, irrompe a transfiguração extática da

São João da Caparica, Praia das Maças, do Meco,

paisagem, agora captura de uma imagem mental, um

Galapos, em Bagnols Sur Céze na França, praia de

enigma em plano aberto, cuja artificialidade desvela

Piedade, na ocasião, sua morada brasileira, entre

o achatamento da vertigem distópica: um cão me

outras tantas águas. Bete me conta que cada qual

olha e um avião desvia meu olhar à cegueira do azul

desses lugares compactuam com o que há de fluído

– a cor que flutua – e assim, em seu estranho tempo,

no desbotar dos traçados em aquarela, bem como

permanece o cão a me olhar.

alimenta o seu interesse ao que entende ser próprio desta relação com o ambiente: o descontrole técnico

A condição espaço temporal expressa no título

– aspecto que busca como que em desafio a própria

da exposição pela conjunção “enquanto”, em sua

maestria. Não à toa, também acessamos o registro

fluidez, abre uma via de apreendermos as obras

em vídeo de momentos de seu processo enquanto

em sua extensão processual. Disto, suponho, vem a

pinta aquarelas em passeios de barcos - ambiência

significativa horizontalidade da série de aquarelas

de corpo solto. E não será tal desprendimento a

que delimita o painel presente na antessala do espaço

expressão de disponibilidade a experiência do agora,

expositivo - campo de deslizamento à sua saída para

que é mesmo a vivência do enquanto? Arrisco afirmar

fora enquanto faz doutoramento em Belas Artes na

este descontrole técnico também como a chave

cidade de Lisboa, sobretudo na sua finalização, entre

conceitual operada ao seu caminhar de beira-mar,

2017 e 20183. Também, no painel há o registro do

quando do evanescer dos rastros emergem as formas

estar fora experienciado em seu retorno ao Brasil,

estranhas e delicadas de uma iminente finitude.

enquanto mantém o delinear propositivo da obra,

Exemplo disto é o operar vertiginoso de um ponto de

finalizada neste ano de 2022. O processo como obra,

vista que de tanto fixar o olhar para baixo se desdobra

aqui se faz enquanto partilha de situações criadas

em sobrevoo cartográfico, cujo efeito dificilmente

pela atitude-viajante: registros de passeios, travessias

não sentimos: o chão como pele em aderência na

por caminhos possíveis, paradas para contemplar

retina. São várias obras que acionam esse olhar que

o escorrer de horizontes no aparente eterno das

chega muito perto, tão perto ao ponto de capturar

umidades moventes - mar, rio, mata. É quando insere

rastros que animam coisas e evocam o acaso

aquarela na sua prática pictórica, agora fora do ateliê,

fortuito dos encontros surrealistas, inclusive em sua

3

| Doutoramento em Belas Artes, na especialidade de pintura com a tese defendida em 2019, “NEM LUZ NEM SOMBRA: considerações

sobre a instabilidade da penumbra e uma trajetória em pintura”, onde apresenta estudo sobre a penumbra, tendo ao final realizado a exposição da série de pinturas dos trabalhos decorrentes da sua investigação teórica.

aspiração de reencantamento de mundo. Importante

Entre essas, particularmente uma muito me afetou,

ressaltar que a força poética e desestabilizadora

ao ponto de lhe operar como lente as minhas

do surrealismo também está presente em suas

reflexões sobre o caminhar de Bete: vem dos estudos

pesquisas acadêmicas, nas quais amplia percepções

paleontropológicos a certeza de que os passos

sobre pintura investigando conceitos como infra-

característicos de uma deambulação ereta deixados

minces de Duchamp e das Unheimliche, “o estranho

por um Australopithecus afarensi`vs adulto e seu filho

inquietante” de Freud, conceito já tomado como “a

há 3.700.000 anos, são o testemunho mais antigo

expressão íntima da imagem surrealista” .

da existência humana 6. E foi assim, imaginando

4

5

as marcas de um percurso solidificado no lodo Impulsionada por esse intenso processo, retomei a

vulcânico de Laetoli, na Tanzania, que não somente

pesquisa sobre o caminhar para além do reconhecido

atravessei os quadros espaciotemporais da história,

legado das suas práticas no campo da arte do século

como também descobrir um modo de lidar com a

XX, legado ao qual, decerto a presente exposição

nossa complexa contemporaneidade. Presentificado

agora faz parte. Busquei outros lugares, sobretudo

enquanto caminho pela obra de Bete, trata-se, tão

porque, atualmente, o caminhar vem sendo foco

somente de sentir o mundo com alegria - modo outro,

de atenção em diversas áreas de estudo, de modo

aqui possível, no reafirmar da arte enquanto prática

que a sua história é contada em várias versões.

libertadora das nossas materialidades liquefeitas.

4

| Este conceito foi investigado na sua dissertação de mestrado em Poéticas Visuais pela UFPB/UFPE. VER: Gouveia, Bete. Os micropla-

nos de Montez Magno & os infra-minces de Marcel Duchamp: a hipersensível vastidão de um ínfimo intervalo. Olinda, PE: Gráfica Flamar, 2015.

5

| Lowy, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. 2ª.ed. – São Paulo: Boi-Tempo, 2018.

6

| Trata-se da descoberta da paleoantropóloga Mary Leaky ao final dos anos 70 do século XX. Citado em: Careri, Francesco. Walksca-

pes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G.Gilli, 2013.

BEGO11_APG042022 2022 ENQUANTO CAMINHO Lápis de cor e guache s/papel 76x57 cm

BEGO15_APG042022 2021 Lápis de cor e guache s/papel 57 x 76 cm

BEGO14_APG042022 2021 Lápis de cor e guache s/papel 57x76 cm

BEGO16_APG042022 2021 Lápis de cor e guache s/papel 29,7 x 42 cm

BEGO21_APG042022 2021 Lápis de cor e guache s/papel 21 x 28,7 cm

BEGO17_APG042022 2021 Lápis de cor e guache s/papel 29,7 x 42 cm

BEGO20_APG042022 2021 Guache s/papel 29,7 x 42 cm

BEGO18_APG042022 2021 Lápis de cor e guache s/papel 29,7 x 42 cm

BEGO13_APG042022 2022 Lápis de cor e guache s/papel 76 x 57 cm

BEGO12_APG042022 2021 Técnica Lápis de cor e guache s/papel 76 x 57 cm

BEGO22_APG042022 2021 Lápis de cor e guache s/papel 29,7 x 21 cm

BEGO19_APG042022 2021 Lápis de cor e guache s/papel 29,7 x 42 cm

BEGO23_APG042022 2021 Guache e acrílica sobre papel 42 x 29,7 cm

BEGO25_APG042022 2020 Guache sobre papel 29,7x 42 cm

BEGO24_APG042022 2022 Lápis de cor e guache s/papel 57 x 76 cm

BEGO27_APG042022 2020 Guache sobre papel 42 x 29,7 cm

BEGO26_APG042022 2020 “Visão Desde uma Mesma Janela” Guache sobre papel 42 x 29,7 cm

BEGO28_APG042022 2020 Guache sobre papel 42 x 29,7 cm

BEGO29_APG042022 2021 Lápis de cor e guache s/papel 42 x 29,7 cm

BEGO30_APG042022 2022 Acrílica sobre tela 150 x 190 cm

BEGO33_APG042022 2021 Sem título Guache sobre papel 14,8 x 21 cm

BEGO31_APG042022 2021 Sem título Guache sobre papel 14 x 24 cm

BEGO32_APG042022 2021 Sem título Guache sobre papel 21 x 14,8 cm

ARTISTA

CURADOR

Bete Gouveia

Oriana Duarte

FOTOGRAFIA E TRATAMENTO DE IMAGEM

IDENTIDADE VISUAL

Eric Gomes

Tel: (81) 3424-4431 - Wpp: (81) 98861-7198 Rua da Moeda, 140, Bairro do Recife - PE www.artepluralgaleria.com.br