FUTURAS EM ARTE
E COMUNIDADE
Hugo Cruz

No espaço final deste livro procuram-se fazer algumas leituras-síntese não conclusivas pelo carácter indefinido e aberto da Arte e Comunidade, que esbocem os principais pontos convergentes identificados nos diferentes contributos dos vários autores. Procura-se não recorrer à repetição de aspectos abordados, mesmo sabendo que na arte a repetição é um instrumento fundamental, exactamente para que se possam gerar outros olhares sobre as mesmas matérias. Pelo contrário, este texto final tenta investir num exercício de síntese integrada do que se poderiam definir como as características fundamentais deste campo no presente contexto temporal e espacial, procurando desde aqui, perspectivar projecções futuras. ¶ Importa, desde já, clarificar que este exercício não é uma tentativa de construção de uma espécie de “guião” a seguir para quem, de uma forma ou de outra, se envolve em projectos artísticos comunitários. Pretende-se apenas que funcione como uma inspiração baseada num levantamento possível mas, seguramente incompleto, de questões pertinentes que promovam princípios de reflexão para quem tem interesse e acção nesta área. Como defende Zizek, a tarefa filosófica da actualidade não é a de transformação do mundo, mas sim, a possibilidade de o reinterpretar. Esta é, exactamente, a ideia base desta proposta de síntese, ser um ponto de partida para a reinterpretação das teorias e práticas artísticas comunitárias e não necessariamente promover a transformação das mesmas. ¶ Neste sentido, um dos primeiros aspectos a ter em consideração é a relevância determinante da ligação do trabalho em Arte e Comunidade ao lugar onde acontece e é construído. A forma como durante todo o processo se estabelece o diálogo entre a dimensão contextual do espaço comunitário, com todos os significados, histórias, pessoas associadas a ele, permitem uma construção personalizada e única. É esta aproximação ao lugar que garante um efectivo envolvimento dos protagonistas e a autenticidade nas motivações a partir das quais e pelas quais se geram estes projectos. Fala-se aqui da oportunidade de olhar um lugar de outros pontos de vista, de perceber o que ele conta e revela e que é, muitas vezes, invisível a um primeiro olhar, perspectivando desde aí o seu futuro enquanto lugar complexo e infinito de possibilidades. Este foco permite gerar interferências na vida quotidiana das pessoas-habitantes-cidadãos de um lugar. Provoca uma reacção desconcertante gerada a partir da revelação de pormenores da arquitectura e da dinâmica humana, componentes indissociadas, da qual todos os dias se faz parte, porque transformados em linguagem poética. É um trabalho centrado no local, susceptível a leituras globais, intimamente ligado à memória individual e colectiva geradora de inícios para os percursos.
Nesta dimensão lugar, destaque especial para os espaços públicos, como espaços privilegiados para construção destes processos, concretizando-se esta relevância em momentos de ensaios públicos, apresentações de espectáculos teatrais, pinturas colectivas ou realização de concertos. O espaço público da comunidade como arena central do exercício da cidadania, acessível a todos, assume-se como fundamental numa proposta
que se pretende democrática e baseada numa relação criativa, colaborativa e horizontal. A apropriação de espaços como as ruas, escolas, mercados, praças, que são por excelência espaços de uma comunidade, facilita e enriquece o exercício da transposição entre o real e o imaginado, exactamente porque o processo acontece nos espaços onde se deseja que aconteçam as mudanças. O espaço público, também por ser onde se expressa e representa o desejo colectivo, onde se cruzam e circulam todo o tipo de pessoas com as mais diversas características, e por ser possivelmente o lugar mais ecléctico das cidades, mesmo que estas se organizem na maior parte dos casos em guetos associados a determinados padrões de vida. A ideia do espaço público como um espaço de excelência está ligada à vocação da Arte e Comunidade para provocar encontros inusitados, criar condições para que se cruzem pessoas que noutras circunstâncias da sua vida provavelmente nunca se cruzariam, porque se derrubam fronteiras invisíveis ao longo dos processos. ¶ Seguindo esta lógica, é essencial que os grupos de pessoas de uma comunidade que participam nestes projectos procurem ser sustentados na transversalidade. Fala-se, assim, de grupos com características, como por exemplo, idade, género, profissão, nível sócio-económico, religião, orientação sexual, diversificadas espelhando exactamente a multiplicidade da comunidade em questão. Este convite à reunião de grupos heterogéneos e diversos contraria a organização social dominante que define um lugar específico para cada pessoa na sociedade (e.g.: a criança na escola, o idoso no lar, os adultos no trabalho, etc.). Esta segmentação artificial da sociedade provoca o desconhecimento do outro, competição, isolamento, discriminação e determinismo numa realidade tão variada e rica em formas e conteúdos como é a vida. Este campo de acção poderá ser uma hipótese geradora de um espaço onde as pessoas como diferentes se podem cruzar e esbater distâncias, contrariando a vivência de espaços contaminados pela rigidez, desconfiança e falta de solidariedade. Neste sentido, os espaços propostos pela Arte e Comunidade não devem ser vistos como meros espaços de lazer e de entretenimento, embora também possam cumprir essa função, mas valorizados e assumidos como espaços de exercício de cidadania onde a comunidade se pode ver, rever e criar práticas e discursos alternativos.
A dramaturgia, em sentido mais lato, construída é, eminentemente comunitária, quer isto dizer que se baseia nas memórias, histórias, identidades, culturas, em suma, nas características específicas que tornam única e irrepetível uma comunidade. É a partir desta matéria que colectivamente se desenha a dramaturgia de determinado objecto artístico. No caso específico do teatro e da sua dimensão textual, o processo segue a mesma lógica, ou seja, os textos são criados a partir do que as pessoas querem e como querem dizer, evitando recorrer a um texto previamente escrito. Segue-se exactamente a mesma lógica do processo, no caso da escrita, tendo em consideração os baixos níveis de literacia dos envolvidos, os textos são recorrentemente trabalhados e relidos até se encontrar um mesmo nível de entendimento. Tendo em conta que a palavra e o seu não
domínio é um dos principais factores de exclusão da nossa sociedade é extremamente importante integrar esta dimensão nos projectos de Arte e Comunidade, indo mais além no seu devir. ¶ Uma criação neste âmbito é inevitavelmente e, por tudo o que foi de forma transversal apresentado ao longo deste livro, uma criação colectiva. O que implica padrões de relação com base na colaboração, definição de regras claras, momentos de acção e reflexão, com a presença da premissa de “desafio óptimo” e uma relação processoresultado final em constante equilíbrio. Acima de tudo, o ponto de partida deverá ser o de que qualquer pessoa tendo a oportunidade tem a capacidade, se não de criar um objecto artístico, pelo menos de desenvolver um processo estético, e neste sentido de contribuir activamente para uma criação colectiva. ¶ Outra característica fundamental é, o efectivo envolvimento da comunidade em todas as fases dos processos de criação, garantindo que os seus protagonistas se apropriam dos meios de produção artística. Ou seja, é imperioso que as pessoas da comunidade tenham realmente um papel activo no processo de criação que se define como colectivo e em que cada um tem um contributo específico, mas essencial para o todo. Esta ideia não invalida que não se encontrem diferentes formas de participação permitindo que as pessoas se envolvam em diferentes tarefas consoante os seus interesses e motivações (exs.: figurinos, cenografia, produção, escrita de texto, pesquisa, etc.). Estas diferentes formas de participar estão também conectadas com diferentes disponibilidades emocionais e temporais dos envolvidos, por exemplo, mas não deixam de ter o seu impacto no processo, contribuindo para a sua riqueza. Funcionam ainda, muitas vezes, como “ensaios” para quem tem poucas referências de participação em processos colectivos, e por isso mesmo, com um forte potencial de evolução. Mais do que valorizar as formas mais óbvias de participação, é possível em processos criativos revelar outras formas de participação, desde que, consonantes com os objectivos comuns.
A forma como as pessoas participam nestes processos e garantem as melhores condições para que tal aconteça deve ser encarada como uma preocupação central. Assim sendo, é relevante que a participação seja voluntária e que não recorra a qualquer tipo de selecção. Estas premissas base garantem os princípios da inclusão inerentes a uma abordagem comunitária, abrindo oportunidades a todos para a participação. A forma voluntária como as pessoas devem participar nestes processos está em sintonia com ma abordagem longe de hierarquias verticais e de processos centrados exclusivamente no resultado final com ganhos e leituras ambíguas. Concretizando-se, situações como: incluir a obrigatoriedade de participar nestes projectos no plano de Rendimento Social de Inserção, fazer depender a atribuição de apoio alimentar desta participação ou a ameaça de se fazerem avaliações negativas em situações que se encontram a ser acompanhadas em Tribunal, são graves e discutíveis. Desde logo, porque falamos aqui de desrespeito de direitos fundamentais de cidadãos que não é compatível com este tipo de abordagem. Assim como também poderá ser discutível, a um outro nível e com uma outra profundidade, a selecção de pessoas
da comunidade com base em determinadas características que servem determinado resultado final de um processo (espectáculo), sem qualquer participação e voz activa das mesmas no processo.
Outra característica transversal à Arte e Comunidade, embora controversa, está ligada à continuidade e autonomia dos grupos que se envolvem neste tipo de projectos. A natureza do processo criativo é em si mesmo motor de empoderamento e de autonomia, sendo que, a continuidade deve ser decidida e assegurada pelos próprios grupos segundo a sua energia motivacional, as vivências processuais e as dinâmicas vividas na própria comunidade. A criação artística não passará a ser o único pólo central da actividade de uma comunidade, nem será o que se pretende. O que, no entanto, não impede que o pensar e o construir destes projectos não contemple dimensões que estimulem esta autonomia e continuidade, assim seja a decisão tomada pelas pessoas, como possibilidade de enriquecimento da vida comunitária. ¶ É incontornável perspectivar as práticas artísticas comunitárias como acções que não se baseiem num equilíbrio frágil, mas essencial, entre ética, estética e o empoderamento que a vivência de experiências desta natureza pode despoletar nos mais diversos actores que as integram. O processo criativo deve ser visto como um motor que pode fortalecer a identidade de uma comunidade, nunca como gerador exclusivo dessa identidade, evitando desta forma uma ideia de descoberta de uma solução mágica para as crises identitárias actuais das comunidades. Neste sentido, o processo criativo, pelo seu carácter, encerra em si mesmo, o potencial de empoderamento, não necessita, por isso, de estar ao serviço de outro tipo de objectivos que não os artísticos e comunitários. ¶ Deve-se também olhar para este campo como um espaço vocacionado para o cruzamento de linguagens, sendo esta uma das suas características estruturantes. Ou seja, um projecto que envolve teatro, dança, música é um projecto que privilegia a contaminação como uma mais-valia para a criação e que funciona como uma metáfora de outras formas de viver o pulsar comunitário, em muitos casos rigidamente sectorizado. Assim, ao analisar processos em Arte e Comunidade é importante fazê-lo segundo diferentes pontos de vista e níveis, desde logo o individual, passando pelo colectivo até ao institucional. Sabendo que a tónica central está no colectivo, é relevante perceber quais os impactos a outros níveis e qual a contaminação verificada noutros contextos de vida dos indivíduos, como fundamental para a organização de acções concretas que vão para além dos projectos e por isso podem perdurar no tempo e no espaço. ¶ O recurso ao jogo, como base da aprendizagem humana que permite chegarmos ao que de mais espontâneo existe em nós, é fundamental. O jogo amplia o nosso potencial criativo, e desta forma, pode responder a situações novas ou de maneira diferente a situações já conhecidas. As propostas artísticas comunitárias são necessariamente desafios de criação colectiva que partem destas potencialidades do jogar, intrínsecos ao ser humano. É a partir do jogo, de forma descomprometida, simples e informal que simbolicamente se pode chegar às expectativas,
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memórias, histórias, tradições de um lugar. É a partir do fazer espontaneamente provocado pelo jogo, que buscamos o movimento, a forma de dizer genuína. Neste sentido, a improvisação assume um papel central nas práticas artísticas comunitárias, como uma das técnicas mais ancestrais do teatro.
De destacar também o carácter lúdico, de celebração, festivo, de confraternização, vivência comunitária e ritualista deste tipo de manifestações que, de alguma forma, se conectam com as origens ancestrais das comunidades. Este tipo de elementos deve ser potenciado e não pelo contrário rejeitado, como se fez durante muito tempo, nomeadamente nos anos 80 e 90. Qual a leitura actual que o tradicional e popular pode ter em cruzamento com o contemporâneo? É um confronto que a Arte e Comunidade deve ter presente, não evitar, mas pelo contrário estimular. O desafio será o de perspectivar este tipo de práticas como uma alargada paleta onde se inclui diversidade nas concepções, assumindo o seu carácter de mutação constante, respeitando o tempo e espaço em que se desenvolvem na sua dimensão social, artística, política e estimulando a identidade e sentido de pertença das comunidades.
As práticas artísticas comunitárias sentem um forte impulso pela procura de processos de identificação sendo fundamental, a partir dessa base, provocar o distanciamento entre o real e o poético, o local e o universal, o individual e colectivo e o factual e o imaginado. É nesse distanciamento que a Arte e Comunidade opera, contando-se histórias que deixam de ser nossas a partir do momento que são contadas, e lhe são atribuídos outros significados pelo grupo mais alargado. Daí a relevância da função simbólica da arte, dimensão eminentemente humana, e que permite a “representação da representação”, distinguindo o significado do significante. Este é o terreno por excelência onde estas manifestações se desenvolvem e que permite a construção de outras realidades possíveis. A relação com o público é uma variável igualmente importante a ter em conta. A vontade de ultrapassar a ideia de que actividade cultural se reduz a uma relação linear em que artistas transmitem um património ao público, sem que se contemple a sua acção enquanto seres sensíveis e construtores da realidade, é neste âmbito concretizada duplamente do ponto de vista da criação e da recepção. A lógica da Arte e Comunidade enquadra uma percepção do indivíduo não como mero consumidor cultural, mas com um papel emancipado de produtor, neste processo. Acrescente-se a este facto o envolvimento das comunidades de uma forma activa e crítica nos processos de criação. Em muitos casos, perspectiva-se uma relação com o público de carácter aberto, considerando-o como parte integrante do espectáculo, pertencendo ele à comunidade envolvida ou não, na génese da criação. ¶ Nesta abordagem os projectos são abertos a todos e não só a alguns, como já foi referido, as suas características e o seu potencial transformador reside também na relação que já existe entre as pessoas de uma comunidade para além do espaço criado por um projecto

artístico comunitário. Ou seja, é extremamente relevante que se tenham em consideração as implicações que as dinâmicas comunitárias instaladas têm neste tipo de processos e que estas sejam elas próprias matéria-prima dos mesmos. Neste sentido, para além do “saber fazer” artístico é muito importante ter noções de gestão comunitária, que só por si, sem uma visão artística também são insuficientes. É igualmente fundamental que no seio do grupo as regras de funcionamento sejam assentes em princípios comunitários (claros e estáveis). Contraria-se, desta foram, o que acontece fora desse contexto caracterizado pelo individualismo, a competição, o perseguir do sucesso ou uma postura defensiva e por isso pouco criativa com base na falta de confiança em si e no outro. Esta possibilidade de viver no espaço do ensaio a experimentação de outras formas de ser e estar é, provavelmente, um dos factores mais reveladores e surpreendentes de um processo criativo. Não é por isso positivo prescindir dele e permitir que se instale uma reprodução dos padrões habituais de relação.
Ao centrar a discussão nos temas abordados em projectos desta natureza é interessante verificar que eles ganham uma dimensão intemporal. Os temas são recorrentes, independentemente da época em questão, assumem-se como temas universais, como inquietações ancestrais inerentes à natureza humana. Os assuntos significativos e por isso abordados são os de sempre, os de agora e talvez os do futuro. Questões centrais como a ódio, o amor, a vida, a morte, as relações de poder são o substrato, enquanto dilemas à procura eterna de solução, das criações. O desafio será no decorrer destes processos reinterpretar estes temas, de sempre, à luz do que a comunidade vive no aqui e agora. É incontornável que se promova um processo baseado em temas significativos para a comunidade, mas que nem sempre são consensuais, o que exige o estímulo constante do respeito pelo outro e do diálogo intercultural. Usar a metáfora, por exemplo, de nos permitirmos estar em silêncio quando o outro actua porque ele está a ser generoso, está a oferecer algo de precioso que tem que se tratar como uma dádiva. Perceber como podem estar presentes estas metáforas na vida e na forma como vivemos a essência das nossas comunidades poderão ser caminhos possíveis.
O levantamento dos temas está também muito ligado à utilização de objectos reconhecidos pelo grupo e o próprio público. Estes objectos mediadores assumem-se como despoletadores de memórias em momentos iniciais do processo que permitem a pesquisa de elementos individuais e colectivos. Em muitos casos ganham até, um espaço próprio nas apresentações finais, para além da cenografia, funcionando como uma espécie de prolongamento que integra a interpretação. Estes objectos mediadores revestem-se, assim, de uma dupla função de forte identificação com os protagonistas dos processos e com o próprio público que assiste e que reconhece esses mesmos objectos como património seu. Esta identificação, o reconhecer coisas que são familiares, aprofunda o carácter imprevisto,
12 aberto, interactivo e de mensagem circulante que um objecto artístico pode encerrar em si. ¶ É fundamental ter em consideração algumas características, decorrentes dos pontos apontados anteriormente, que são cruciais que o agente que dirige um projecto artístico comunitário, seja ele um artista exterior à comunidade ou da própria, ou alguém do seio de grupo que emergiu naturalmente, deve reunir. Na direcção de uma proposta dessa natureza é fundamental gerar uma postura colaborativa, ao contrário de paternalista e especialista, assumir-se como mais um elemento do grupo com uma função própria. Ao contrário do que se pensa, muitas vezes, este é um trabalho que exige estrutura e planeamento, ou seja, é muito importante atribuir intencionalidade às propostas que são feitas. Tudo pode ser um pretexto, o que obviamente não deve invalidar, o estímulo ao jogo e à improvisação, antes pelo contrário. ¶ Outro aspecto central é permitir que o tempo possa respirar. Respeitar o tempo do processo e do grupo, mantendo um diálogo nem sempre fácil com os tempos dos projectos, nomeadamente, dos seus financiadores e promotores. Em Arte e Comunidade, pela sua base absolutamente colectiva, é imperioso o trabalho em equipa, a partilha de dúvidas e de impasses. Um processo criativo é, pela na sua essência, uma travessia com momentos de indecisão, em que não é nítido o seguir determinado caminho. Aceitar a natureza indefinida e em constante construção destes processos é crucial. ¶ Centrando o olhar na dinamização dos ensaios nos comentários aos exercícios realizados deve existir um cuidado grande, diferenciando-se o que é relevante do que é acessório, num processo desta natureza. Destaca-se que o princípio é o de considerar que, mais do que um trabalho de formação de artistas, este é um contributo na formação para a cidadania. As críticas devem evitar a personalização, o “bom” e o “mau”, ou serem de “aprovação” ou “desaprovação”. Esta bipolaridade da realidade não é criativa e não acrescenta muito ao processo de desenvolvimento pessoal e colectivo. Assim, os comentários devem provocar a integração de informação, promover reflexão com base na acção e constituírem-se como momentos de avaliação contínua do processo.
Perante momentos de desequilíbrio grupal, é importante privilegiar exercícios que promovam o emocional, a espontaneidade e a reacção, esbatendo o bloqueio racional que muitas vezes se constitui como um obstáculo fortíssimo neste tipo de relação grupal. O conflito deve ser encarado com normalidade, sendo ele próprio e a sua resolução, promotor de desenvolvimento do processo criativo.
Outro aspecto a ter em conta, é garantir que a linguagem utilizada, nomeadamente na explicação das ideias e dos exercícios, é uma linguagem compreendida por todos os envolvidos para que efectivamente possam também todos participar. A linguagem deve ser a da comunidade ou a mais aproximada possível. O que não quer dizer que noutros momentos não se abra espaço a outro tipo de linguagens e ou experiências, eventualmente em momentos mais avançados do processo é importante e estimulante.
Neste contexto, devem-se gerar condições para que a vivência dos exercícios propostos possa acontecer num espaço de criação livre que contrarie a habitual dinâmica formatada da realidade fora dos ensaios. Assim, as propostas de exercícios devem procurar uma relação de equilíbrio óptimo não sendo demasiadamente fáceis, para que as pessoas se motivem e se envolvam neles, mas também não serem inacessíveis, perante as características dos grupos e o momento do processo.
Qualquer grupo humano, como qualquer ser humano, é um grupo susceptível a mudanças de humor que instalam determinadas dinâmicas nos grupos. O respeito pelas mudanças de humor, consiste em não negá-las, mas inclui-las no processo como variáveis fundamentais e que permitem chegar a lugares mais elevados na própria criação. A crença que o grupo desenvolve uma função contentora relativamente a estas alterações e as converte em matéria-prima da própria criação exige tomadas de decisão claras, algum afastamento do centro para a margem para que se crie espaço para essas resoluções. O que é, seguramente, muito diferente de deixar o grupo em plena autogestão. O uso do sentido de humor como desbloqueador de tensões é uma excelente e universal aproximação ao grupo e ao público. A hipótese de nos podermos rir de uma forma relaxada, nomeadamente de situações que na nossa rotina nos provocam tensão, porque desagradáveis, é outra das características a ter em atenção nestes projectos. Muitas vezes é também importante introduzir algum desconforto, propondo lógicas de criação antagónicas ao que se vive no quotidiano, pautado pelo individualismo e falta de atenção aos pormenores, e que permitem a elevação a outros patamares de auto-reflexão e análise crítica da realidade. Neste sentido, é central que o processo de trabalho estimule a “mistura” de todos os envolvidos, remetendo para a integração e obrigando a romper vícios instalados nas relações cristalizadas do quotidiano. ¶ Em Arte e Comunidade a avaliação deve ser transversal a todo o processo e em coerência com as suas práticas, ser ela mesma criativa, optando pelas mais diversas formas de o fazer (exs.: escrever, desenhar, pintar, cantar, estátuas humanas, etc.). Esta dimensão deve ser muito valorizada e tida como premissa base destes projectos, assumindo desejavelmente uma carácter externo, e por isso, recorrendo a outras entidades não associadas aos promotores dos mesmos. ¶ Numa época em que os mais variados agentes (exs.: artistas, programadores, políticos, financiadores, investigadores, críticos, etc.) procuram contextualizar a Arte e Comunidade e se multiplicam as investigações nesta área, assim como a formação de agentes que actuem na mesma, é relevante apontar algumas características que devemos ter em conta, sem com isso desvalorizar o que cada uma delas requer e exige. De destacar, a oferta formativa que tem surgido no âmbito do ensino superior em Portugal1 e na Europa, nos últimos anos dirigida a esta área. Neste contexto, é importante valorizar também a formação dirigida aos agentes líderes locais e não centrar apenas a oferta a destinatários da academia e por isso nos que têm oportunidades de acesso à mesma. ¶
Em Arte e Comunidade é absolutamente central que se goste e acredite em grupos, no funcionamento colectivo e no sentido de comunidade em geral. Consequência deste gostar é desenvolver uma postura genuína e empática que potenciará o envolvimento de todos no processo. Dentro do que são as características pessoais é inquestionável perceber qual a base teórica, a grelha de análise com qual se identifica para que sirva de base a uma acção que se pretende consequente. Só com a segurança e a estrutura destes pontos de partida é possível a criação. A existência destas balizas permitem o experimentar em liberdade, até que seja para propor o seu rompimento. Qualquer dos agentes, seja de fora da comunidade ou da própria, com base de formação em diferente áreas, ou um agente líder local comunitário com características específicas é crucial que tenha capacidade de “pensar” continuamente o projecto com base na coerência, o respeito, a disponibilidade e a contenção, a capacidade de síntese e integração como características associadas. Estes são no fundo condições que permitem a criação e o estar em grupo / comunidade que se aliam nesta intersecção de Arte e Comunidade. ¶ A ideia de que os agentes envolvidos nestes processos são diversos, muitos, actuam em diferentes níveis e por isso mesmo complementares, e com base nisto convocar de forma abrangente a sua participação, é uma preocupação constante e que permite olhar para estes processos como realmente alternativos na forma como nos posicionamos no mundo. ¶ Perante a falência das instituições, tal e qual como as conhecíamos no passado, a forma de criar e de ser cidadão, está ela própria, em redefinição. É possivelmente este desejo de sermos outros com outras redes a ligar-nos, que dá o maior impulso e espaço ao desenvolvimento da Arte e Comunidade. É esta a convocação que o tempo e o espaço do agora nos faz, de nos recriamos como humanos e na maneira como nos inscrevemos na relação com os espaços que habitamos. Procurando evitar pensamentos e práticas ingénuas, é bom afirmar que todos os contributos são necessários, que a construção é constante e que os actoresprotagonistas em Arte e Comunidade somos todos nós. Neste sentido, este livro procura ser apenas mais um destes contributos que suporte o situar, que estimule a concordar e a discordar, a querer que seja diferente, a permitir sentir a satisfação e a insatisfação e, mais do que isso, a expressá-la no sentido da construção colectiva. ¶ Registados os variados contributos deste livro que reflectem dimensões sociais e culturais diversas, é a hora da acção, é hora de continuar a fazer para transformar, olhando a transformação como algo que acontece a cada momento e como uma forma de estarmos vivos. Para que as ideias não paralisem os corpos e os corpos possam seguir o seu impulso de mudança, precisamos de citações e inspiradoras premissas mas, precisamos mais ainda, de acções concretas e coerentes e de as valorizar enquanto tal. No campo da arte existem possibilidades infinitas, com base na escuta, na procura do essencial, na disciplina, na transgressão e na disponibilidade, cabe-nos a responsabilidade de as concretizar, sendo os líderes dos nossos próprios destinos. ¶ Como diz João Mota o teatro, neste caso generalizando, a arte “tem que criar líderes e não seguidores”.