O Natal / A "Festa" nas Crónicas de Horácio Bento de Gouveia

O NATAL / A “FESTA” NAS CRÓNICAS DE HORÁCIO BENTO DE GOUVEIA Caderno de divulgação

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de dezembro 2017 de janeiro a 2018

Exposição

Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira Caminho dos Álamos, 35 | 9020 - 064 Santo António | Funchal Tel.: 291 708 400 | Email: abm.sret@madeira.gov.pt

Ficha técnica Conceção geral: Filipe dos Santos, Natércia Gouveia e Andreia Sousa Conceção gráfica: Leonardo Vasconcelos Montagem:

Serviço de Preservação, Conservação e Restauro, Ricardo Mendonça, Leonardo Vasconcelos e Roberto Faria

Retrato de Horácio Bento de Gouveia, 1923-05-14, Funchal, negativo em vidro, ABM, Photographia Vicente, 569.

EXPOSIÇÃO

O NATAL / A “FESTA” NAS CRÓNICAS DE HORÁCIO BENTO DE GOUVEIA

INTRODUÇÃO Esta exposição tem por objetivo divulgar alguns aspectos do Natal – ou da “Festa” – na Madeira, a partir da obra de Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), na sua vertente de cronista de imprensa. A mostra compreende sete crónicas colhidas na antologia O Natal na cidade, a Festa no campo, a qual, segundo Nelson Veríssimo 1, que a deu ao prelo, «constitui abundante fonte das tradições natalícias desta Região, descritas numa linguagem cuidada, embora sem o propósito explícito de registar rigorosamente para os vindouros parcela importante do nosso Património Cultural. Todavia, as crónicas e a narrativa bentiana mostram-se imprescindíveis para a compreensão das vivências insulares no tempo da Festa.» 2 De modo a enquadrar a ímpar produção literária de Horácio Bento de Gouveia, transcrevemos os excertos seguintes, retirados de estudos – entre os vários existentes – realizados por Thierry Proença dos Santos e Lizandra Ornelas Faria.

«Professor do ensino secundário, jornalista e escritor, Horácio Bento de Gouveia foi principalmente um “cronista” da ilha e do viver ilhéu, quer de ambientação rural, quer citadina. Escreveu centenas de crónicas em que figuram os traços mais originais da vida quotidiana dos madeirenses e cuja revelação constitui também o ponto fulcral da sua pesquisa literária. […]

«Daí a sua obra constituir um marco importante na história cultural da Madeira. A sua sensibilidade, de um humanismo considerável, revela uma profunda compreensão da precariedade moral ou material, bem como da insatisfação e da dor humana. É esse o material humano que o seu texto sedimenta, imbricando-se com os demais discursos em torno da construção da identidade do povo insular e dos seus hábitos sociais. Para tal, o escritor recorre, naturalmente, a uma estratégia de mobilização do imaginário e do sentir insular em prol da afirmação da cultura

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GOUVEIA, Horácio Bento de, 2001, O Natal na cidade, a Festa no campo, seleção de textos e apresentação de Nelson Veríssimo, Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura – Direção Regional dos Assuntos Culturais.

2 VERÍSSIMO, Nelson, 2001, «Nota de Apresentação», in GOUVEIA, O Natal na cidade, a Festa no campo, p. 11.

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madeirense. Desta feita, o ficcionista, legitimado pela nascença e pela opção de vida em regressar à ilha para o fazer, não cessa de problematizar, criticamente, a micro-sociedade e o indivíduo madeirenses.» 3 «No âmbito etnográfico, a crónica bentiana […] foi frutífera na exaltação das principais festividades religiosas e pagãs da ilha e, neste sentido, uma das mais mencionadas pelo cronista foi sem dúvida a “Festa”, isto é, o Natal. Não tendo quaisquer dúvidas acerca das particularidades do Natal madeirense, Horácio Bento de Gouveia faz quase sempre questão de assinalar a época natalícia com crónicas em que o grande tema era a “Festa”.» 4 As crónicas selecionadas e dadas a ler são ilustradas com iconografia de diversa tipologia e proveniência e alusiva ao Natal na Madeira.

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SANTOS, Thierry Proença dos, 2007, De Ilhéus a Canga, de Horácio Bento de Gouveia: a narrativa e as suas (re)escritas (com uma proposta de edição crítico-genética e com uma tradução parcial do romance para francês), Dissertação de Doutoramento em Linguística Aplicada, vol. 1, Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 / Universidade da Madeira, p.

483.

FARIA, Lisandra Carolina Ornelas, 2014, As crónicas jornalísticas de Horácio Bento de Gouveia. Contributos para a afirmação da identidade madeirense, Dissertação de Mestrado em Ciências da Comunicação, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, p. 79.

Rochinha – socas de cana de roca e de vimieiro e barro, trabalho de Humberto de Jesus, [século XX], Camacha, postal a partir de fotografia a cores de Rui Camacho, s.l., edição do Museu Etnográfico da Madeira.

CRÓNICAS LAPINHAS E PASTORES 5 O Natal é a época mais festiva do ano na Ilha da Madeira. Dezembro é verdadeiramente um mês de plena Primavera. Os dias são luminosos.

Há pó de oiro na fotosfera que alaga a transparência do céu. A gente da aldeia vive com um pouco mais de largueza uma vida mais despreocupada e jubilosa, por isso que os dias de vagares são mais frequentes e na salgadeira de vinhático há carne de porco em salmoira.

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Em GOUVEIA, 2001, O Natal na cidade, a Festa no campo, pp. 73-76; também em GOUVEIA, Horácio Bento de, 1933, Páginas de Jornalismo, carta-prefácio de Hernâni Cidade, Alcobaça, Papelaria e Tipografia Minerva, pp. 4-7.

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É este o período das Missas do Parto, antemanhã, que são anunciadas pelo toque cadenciado do sino da igreja e pelo estoirar de alguns morteiros. A garotada, quando ainda não são quatro horas, já vagabundeia pelas azinhagas, retoiçando e modulando as modinhas mais em voga e outras regionais, em pifes de cana-vieira e harmónios. É esta a quadra por excelência dos divertimentos: as guitarradas, o fogo de artifício, as bombas e a visita às «lapinhas» pela boca da noite, com o pretexto muitas vezes de se jogar às cartas até a desoras, sob o patrocínio da imagem de Jesus Menino, colocado no cimo de um altar armado sobre uma mesa que fica geralmente situada num ângulo da melhor sala da casa, quer seja rica ou humilde.

Em torno do altar e a cobrir quási todo o tecto, ramos de loiro, o trepador alegra-campo, as cabrinhas, o esparto, o saião das paredes e pequenos galhos de cedro formam diademas. Pelos degraus do altar há tigelas com trigo espigante.

Eis a «lapinha», a grandiosa criação de S. Francisco de Assis, no século XIII. Nestes dias de sonho, a aldeia é uma nesga do paraíso: o amor brota do peito da gente moça com mais entusiasmo, há derriços na vizinhança dos portais dos caminhos solitários e pelas imediações das fontes e há gangorras baloiçantes pelos eirados.

Na noite de Natal, depois do sino da igreja badalar pela terceira vez, o ritual das matinas realiza-se e cerca das 24 horas inicia-se, num alvoroço desbordante de fé religiosa que atinge o misticismo nalgumas almas, a cerimónia ingénua de pensar o Menino, no templo engrinaldado de jarros branquejantes, alegra-campo, esparto e fetos verdosos em profusão pelos altares e servindo de roupagem às paredes desnudas. É uma revivescência das velhas representações litúrgicas da Idade Média que ainda contém alguma coisa de emotivo e nos transporta, numa miragem doce, aos tempos memoráveis e longínquos do nascimento de Cristo.

Junto do altar-mor, o Menino Jesus repoisa deitado na cafurna de um presépio que é a miniatura de um mundo que acabou o seu ciclo de evolução na época hegemónica e crápula do império romano.

Termina a cerimónia das Matinas e principia a missa do Galo. Um anjo anunciador, incarnado numa criança, surge no púlpito a predizer em verso o nascimento do Messias.

E, em seguida, uma estridência de coros, vozes argênteas de moças louvam o Menino, em poemas impregnados de um lirismo enternecedor, que arrebata o espírito para longe da terra e aniquila a vida dos sentidos.

Depois ouve-se um rumor que vem do lado do adro. Os olhares da multidão que enche a igreja encaminham-se para a porta. Há uma curiosidade expectante. Dentro de poucos minutos, rapazes e raparigas, novos e velhos, tornados pastores, procuram apresentar, nas vestimentas e nas botas, o aspecto de quem acaba de jornadear por povoados distantes e ignorados. Este conduz uma ovelha que traz 4

Trecho de presépio, trabalho de Roberto Cunha, s.d., s.l., fotografia a preto e branco, 1953, ABM, Arquivo de Eduardo Nunes Pereira, pt. 27, n.º 49.

uma orelha esboicelada para indicar a sua proveniência das bandas da serra e canta uma trova, alusiva à oferenda, dirigida a Jesus; outro, envaidecido leva um cesto de anonas e maracujás por entre a turbamulta de fiéis que assiste ao ritual; aquele, de bordão de conto, vai ajoujado com um barreleiro de semilhas, às costas, sobre uma molhelha. As trovas improvisadas ressoam nas naves. A romaria de pastores continua desfilando, um a um, aos ranchos, numa alegria ruidosa, até dia claro.

As «lapinhas» e a representação do nascimento de Jesus, constituem um dos aspectos mais interessantes do Natal na Ilha. A conservação deste costume da romagem dos pastores, parece que desapareceu já no continente onde, também, se não realizam as Missas do Parto, em louvor da Mãe do Menino Deus.

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Presépio – Palha, âmago e barba de milho, trabalho de Conceição Ornelas, 1996, Santana, postal a partir de fotografia a cores de Rui Camacho, s.l., edição do Museu Etnográfico da Madeira.

NATAL DE JESUS 6 Natal! Que magia possui esta palavra para todo o católico espalhado pelo mundo! Não há, na realidade, quadra do ano que mais intimamente alvoroce o nosso espírito, que mais profundamente nos dê emoção, do que a dos dias da Festa que se aproxima. Para o ilhéu, de hábitos conservadores por sua natureza de insular, o Natal de Cristo é vivido com tal sinceridade interior, com tamanha devoção de alma que estou em dizer que, a despeito da situação geográfica da ilha, vivemos mais perto da terra onde Jesus nasceu do que as próprias regiões vizinhas dela. Na verdade, onde se comemorará, com a espontaneidade que é peculiar ao madeirense, a Festa de Jesus? Em parte alguma dos cinco continentes existe, por certo, esta exteriorização de sentimento religioso, esta expansão de alegria desbordante que a rua oferece aos nossos olhos deslumbrados.

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Em GOUVEIA, 2001, O Natal na cidade, a Festa no campo, pp. 13-14; também em GOUVEIA, Horácio Bento de, [2008], Escritos 3 (Horácio Bento de Gouveia 1940-1949), investigação e recolha de textos por Maria de Fátima Gouveia Soares, prefácio de Maria Elisete Almeida, “Apenas duas palavras” de João Carlos Abreu, s.l., edição de Maria de Fátima Gouveia Soares, pp. 140-141; originalmente em Comércio do Funchal, 1945-12-19.

Desde a vitrina mais modesta à mais luxuosa, a lapinha ocupa o seu lugar proeminente, ela representa um mundo minúsculo onde nasce o Senhor da Humanidade. E Jesus destaca-se deitado em suas palhinhas, reverenciado por uma multidão de pastores que afluem dos lugares mais distantes. Mas observe-se que o sentimento religioso criou incultos artistas ignorados, os barristas, que fabricam deliciosas figurinhas de argila pintada – os pastores, que são o feitiço da pupila inquieta, não só do garoto da rua mas até do adulto. A par deste aspecto único do natal português, na Madeira, há que notar a alegria do estoirar das bombas, o fogo de artifício e as gaitas. Eis, pois, uma fisionomia própria do nosso povo nesta época de Dezembro.

Uma nova psicologia, parece, distingue o madeirense na festa do Menino Jesus. É um dar-se de alma e coração em louvor de Cristo, abertamente, sem reservas, em uma ânsia de O exaltar mais e mais, na sua fé indestrutível.

Estamos quási em afirmar que em parte alguma do mundo a festa do Natal é vivida nos templos, nas casas e nas ruas com o encantamento que a caracteriza na nossa ilha atlântica. Mas, interroga-se: cada um de nós vive conscientemente a vida de Jesus? A resposta é negativa porque, se assim não fora, amanhã todos reformaríamos a sociedade.

Se, indivíduo por indivíduo, educássemos a vida interior na imitação de Jesus, é irretroquível que o Natal do novo ano seria mais humano e mais cristão que o presente, o que está agora mesmo à nossa porta.

Presépio – Palha, âmago e barba de milho, trabalho de João Egídio, 1982, Funchal, postal a partir de fotografia a cores de Rui Camacho, s.l., edição do Museu Etnográfico da Madeira.

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NATAL 7 Celebra-se, em·todo o orbe cristão, o nascimento de Jesus. Mas, se em todo o mundo as festas litúrgicas comemoram a quadra da vinda de Deus-Menino, na Madeira, a par das cerimónias religiosas, um culto profano desborda, vivíssimo, da alma de toda a gente. O qual culto se exterioriza nas «lapinhas», no estoirar das bombas, na música e nas luzes.

Porém, a «lapinha», a criação maravilhosa de S. Francisco de Assis, é o verdadeiro objecto onde o sentimento religioso se polariza e de onde brotam imagens penetradas de densa afectividade. É a «lapinha» o centro de interesse da infância e da adolescência, nela reside um espírito de fé imanente porque o Menino, que se ostenta numa furna ou em pedestal, e os pastores circunfusos representam vida concreta, material, que possui palpitação, no imaginismo cálido dos cérebros congestionados de sonho e poesia.

Porque são as ilhas, por natureza insular, as terras mais conservadoras de costumes e tradições, a Madeira sempre manteve e perpetuou a herança de seus povoadores. Mas nasceu a nossa ilha debaixo do signo cosmopolita. E o horóscopo lavrou no pergaminho do tempo que a terra seria cobiçada dos olhos que de longe ou de perto se alongassem para ela. E vieram os hábitos frandunos.

Certa vez, por noite, saíram em terra, no mês de Dezembro, o pai Natal e a árvore de Natal. A novidade foi recebida dos funchalenses que nela ficaram embelezados. E cegos, vá de profanar a «lapinha» com a árvore inexpressiva, vá de insinuar e criar na imaginação dos pequenos a ideia do pai Noel. E o fantasma do velho de compridas barbas é ídolo de mau gosto que se pretende vincular à tradição, o qual briga com a ambiência ancestral, humana e divina, que a fé propagou através das idades, ambiência repassada de sentimento e mistério, pureza de alma e coração sem mácula.

Enquanto nas aldeias a lapinha participa da vida social, dentro do período da Festa, na cidade, a família deleita-se em erguer a árvore de Natal ao lado da rochinha, donde pendem os brinquedos que atraem os olhos da gente miúda. Não queremos com isto dizer que ali, a um canto da casa, não esteja armado o presépio. Mas para a pequenada, que vive

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Em GOUVEIA, 2001, O Natal na cidade, a Festa no campo, pp. 19-21; também em GOUVEIA, Horácio Bento de, [2011], Escritos 4 (Horácio Bento de Gouveia 1950-1959), investigação e recolha de textos por Maria de Fátima Gouveia Soares, prefácio de João David Pinto Correia, posfácio de Rui Nepomuceno, [Braga], edição de Maria de Fátima Gouveia Soares, pp. 84-85; originalmente em Voz da Madeira, 1953-12-24.

Presépio de caixa da capela de N. Sr.ª do Desterro – Cera / Fajôco / Musgos / Papel / Pano / Barro / Búzios e Conchas / Fio de metal prateado, [século XIX], s.l., pertencente a Juvenal Rodrigues de Araújo, postal, s.l., edição da Secretaria Regional do Turismo e Cultura – Direção Regional dos Assuntos Culturais.

dos sentidos e pelos sentidos, o que a interessa, fundamentalmente, são os carrinhos, os balões, os bonecos suspensos por cordéis dos ramos do pinheiro, e o presépio ocupa em seu espírito lugar secundário como se fora minúsculo diamante quase sumido entre pratas doiradas.

Quando devia de ser o Menino a encher inteiramente o cérebro da infância que desabrocha para a vida, é a árvore que lhe fala aos olhos e ao coração. É o pai Natal com o saco a rebentar de coisas e loisas.

Para nós, madeirenses, estas inovações são uma afronta ao nosso sentimento religioso.

Armemos a lapinha, coloquemos uma rochinha sobre a mesa, construamos o presépio e esbulhemos para longe a árvore que não é nossa, que não faz parte da nossa tradição. E quanto ao velho barbaçudo remetamo-lo para as regiões do sol da meia-noite.

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PASSOU O NATAL 8 Com a entrada do ano novo parece que deixámos para trás um caminho que não voltamos a percorrer. Foi mais uma longa viagem que fizemos, que vivemos, na qual houve dias de prazer e horas de aborrimento. Mas o percurso não se efectuou em linha recta. A estrada apresentou-se, para uns com muitas curvas e para outros muito estreita, de difícil trânsito, pois o conseguir romper através dela não se tomou possível sem roçar nos muros.

Todavia, por bom ou mau caminho, quem chegou ao fim da jornada esqueceu pelo menos durante um dia as agruras da comprida marcha de longos meses. É que nesse dia viveu entregue à paz do lar, na doçura de um ambiente propiciatório às recordações que se acham impregnadas de saudade.

Comparo esta nossa viagem, até o Natal, à jornada da Alma que depara uma estalagem onde se gozam as delícias do paraíso, segundo reza o Auto de Gil Vicente.

A «Festa» madeirense não é exactamente o que as necessidades da época vieram trazer: as festas do fim do ano com a orgia das luzes e do fogo da meia-noite. Não se trata das inovações da noite de São Silvestre: os cartazes de turismo roubados a Vulcano que têm muito de psicologia prática. A «Festa» madeirense é a que se perpetua em continuidade de uma tradição essencialmente religiosa, à qual se juntou o elemento profano. É a que tem carácter individual, bem que um individual com manifestações comuns. É a «Festa» que há umas centenas de anos as famílias colonizadoras introduziram com a lapinha de escada que ostenta no topo o Menino Jesus.

E, na cidade espontaneamente, os fósforos de cores, os potes, as estrelinhas começaram a enfeitiçar a noite, queimados às janelas das casas, de compita com as bombas estralejando aqui e além.

Este aspecto profano também conta na tradição religiosa porque anda associado a ela. Mas não se circunscreveu ao Funchal. Por todas as povoações o fogo de artifício é complemento jubiloso da «Festa» do Menino Jesus.

Assim se exterioriza a alma da nossa gente confiante n’Ele.

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Em GOUVEIA, 2001, O Natal na cidade, a Festa no campo, pp. 41-43; também em GOUVEIA, Horácio Bento de, 1966, Canhenhos da Ilha, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, pp. 175-177 e GOUVEIA, Horácio Bento de, [2014], Escritos 5 (Horácio Bento de Gouveia 1960-1969), investigação e recolha de textos por Maria de Fátima Gouveia Soares, prefácio de Nelson Veríssimo, [Braga], edição de Maria de Fátima Gouveia Soares, pp. 26-27; originalmente em Diário de Notícias, 1962-01-08.

Menino Jesus – Madeira de cedro pintada, trabalho de Francisco Ferreira, o Caseiro, [século XIX], Madeira, postal a partir de fotografia a cores de Rui Camacho, s.l., edição do Museu Etnográfico da Madeira

Passou o Natal. Vão guardar-se os pastores e os presépios, as lapinhas de escada, desvairo dos olhos ingénuos das crianças.

Sim, não tenhamos hesitação em asseverar que, na lapinha em cima de uma mesa, ourelada com laranjas e peros e tigelas de trigo espigante, reside a maior vivência evocadora do nascimento de Jesus, para a família que se reúne no dia de Natal e nos sequentes, em serões.

Em todas as freguesias, do Norte e do Sul, a tradição da lapinha de escada não desapareceu, embora a rocha de soca de cana-vieira procure substituí-la.

Ainda é frequente no norte da ilha a visita às lapinhas, por toda a quadra da «Festa». São as crianças, os adolescentes e os adultos que têm os olhos presos a elas e as vêem, dando largas à sua expansão sentimental, à sua fé de cristãos.

Nos arredores de nossa cidade, houve não há muitos anos uma lapinha que se tornou célebre porque era um pequeno mundo: a Lapinha do Caseiro.

Mas passou o Natal. Vamos ao encontro de outro. Prossigamos o roteiro até que, de novo, tenhamos a pousada do nascimento do Menino.

E lá diz o Anjo à Alma: Vedes aqui a pousada verdadeira e mui segura a quem quer vida.

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O NATAL NA CIDADE, A FESTA NO CAMPO 9 É oportuno este velho tema: O leitor contentar-se-á com ele mesmo. Para quê concentrar a atenção no que se vai seguir ao título, se o espírito afeito à periodicidade da quadra do nascimento do Menino já contém, como sala expositora de fotografias, as representações de tudo que foi vivendo a partir da infância! Lá persistem na memória os dias de folgares em que, à noite, os olhos buliçosos e receptivos a mais não por sua natureza hipersensível traduzirem um estado geral de exaltamento interior procedente da experiência perpetuante de tradições, que penetraram na vida, porque nela mergulham e a ela alimentam – os olhos não se cansam de ver.

E os olhos são as janelas da vida.

A infância e a adolescência vivem do que por elas entra em cor e em forma. Do sobrecéu das ruas entornam-se brilhos de luzes em feitiçaria de cambiantes, e nos mostruários das lojas há uma profusão de coisas a concitar o espasmo dos olhos.

Dentro do período que se vive, na corrida vertiginosa dos dias que vão passando com a envoltura do tempo a algemar-nos para não fugirmos a ele, afogueia-se a imaginação; em uns, pela novidade das sensações; em outros, pela novidade que já foi.

E a cidade, porque vaidosa de sua categoria social, entraja-se para comemorar o advento do Menino. Amanhece tarde e anoitece cedo. Mas logo que o arraiar do dia se pressente no dealbamento do horizonte, ao mercado convergem a criada e a dona de casa. Abastecem-se mais copiosamente os que podem. Em torno do mercado uma chusma de barreleiros com seus vigias, aguarda o comprador.

Mas se a abundância regala a vista, o garoto da rua, descalço e de camisa rota percorre, gulosamente, com a água a crescer na boca, de olhos ávidos, os cestos das laranjas e das maçãs e das anonas. Leva ele cinco tostões no fundo da algibeira! Cinco tostões, para quê?

E a gente queixa-se da carestia com tamanha abundância. É o Natal na cidade: luzes, músicas, mostruários de lojas cheios de brinquedos, cestos abarrotando de fruta…

Tudo aparência, visões especiosas para os olhos ingénuos da gente nova, mas não de toda.

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Em GOUVEIA, 2001, O Natal na cidade, a Festa no campo, pp. 45-48; também em GOUVEIA, 1966, Canhenhos da Ilha, pp. 131-133, GOUVEIA, Horácio Bento de, 1994, Crónicas do Norte, coordenação e prefácio de José António Gonçalves, S. Vicente, Câmara Municipal de S. Vicente, pp. 118-120 e GOUVEIA, [2014], Escritos 5 (Horácio Bento de Gouveia 1960-1969), pp. 27-28; originalmente em Diário de Notícias, 1962-12-23.

Figuras de barro de presépio moderno não identificado, s.d., s.l., fotografia a preto e branco, [década de 1950], ABM, Arquivo de Eduardo Nunes Pereira, pt. 27, n.º 46.

Escadinha – barro policromado e madeira, trabalho de Humberto Jesus, [século XX], Camacha, postal a partir de fotografia a cores de Rui Camacho, s.l., edição do Museu Etnográfico da Madeira.

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No campo, nas freguesias rurais, donde não se vê a cidade, porque a montanha a encobre com seus refolhos, pelas azinhagas, no adro da igreja, à porta de casais não se ouve falar do Natal e sim da «Festa», a Festa do Menino Jesus. A palavra Natal posto que inda não entrasse em uso, não seja termo comum, não se generalizasse, já pretende substituir a «Festa», mormente na convivência da gente grada e mais letrada com a privança dos jornais e senhores de torna-viagem, naturais da cidade e seus arredores. Fala-se da «Festa», do porco da «Festa». E a vizinha Gertrudes armou uma bonita lapinha na «Festa».

Não há iluminações, mostruários a desafiar os olhos do rapazio e de gente grande, mas há frisos de luminárias, archotes de cana-vieira na assomada das lombas, quando amortiça a luz do céu. E essas archotadas anunciam a festa de igreja no dia imediato.

Na cidade compram-se pinheiros, verduras para embrincar os presépios. Na aldeia vai-se às abas da serra buscar o alegra-campo e galhos de loiro, e das paredes rústicas trazem-se os fetos-cabrinhas para alindar a escadinha dos pastores e do Menino. Todos se provêem de frutas. Rico e pobre. A laranja e o pêro não custam dinheiro. De resto, pede-se e dá-se. E na «Festa», há festa de igreja com três padres e cantores de fora. A festa profana é feita de pifes, gaitas e machetes.

Acabou-se, este ano, infelizmente, por virtude da conturbação dos tempos, com a nota ruidosa, álacre, comunicativa, do estoirar das bombas que se perde na noite das arraigadas, vivificadoras tradições madeirenses. Ao abrir de Novembro, nas freguesias do Norte da ilha, estrugiam, retinindo no coração das montanhas, o grito seco das bombas.

Mas o que é tradicional da «Festa» só temporariamente poderá faltar.

Para o ilhéu da Madeira, a «Festa» é a quadra por excelência do bemestar do corpo e do espírito.

No campo e na cidade, passado o dia de Reis, já se pensa na «Festa» que há-de vir, já se fazem projectos: – Para a Festa, quem lá chegar…

– Para a Festa terás o que prometi!

– Mãe, quando se compra o porquinho para a Festa?

– E a lapinha, mãe? Vai-se guardar o Menino Jesus…

– Sim, agora para a Festa…

E o ano tem a «Festa» como fundamento de marcação do tempo: – Faz 5 anos para a Festa; foi 1 mês depois da Festa; faz dois anos, 3 meses antes da Festa. E a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo.

Meditemos na legenda a inscrever nela e que nos sirva de padrão até à outra «Festa».

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«Vender e comprar na certa», fotografia a cores de José Pereira da Costa, [anos 60 do século XX], Funchal, in Porto Santo e Madeira / Anos 60 – Álbum fotográfico, 2004, Funchal, Press Factory, p. 173, pormenor.

Diário de Notícias, 1962-12-23, p. 1.

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TRINTA ANOS DEPOIS 10 Esse ano, a noite de Natal prometia ser a reconstituição, no tempo e no espaço, do nascimento do Menino na gruta de Belém. A aldeia, começado Dezembro, vivia em alacridade incontida, a notícia que, na prática de um domingo, revelara o sr. vigário. Como seria, como não seria, era o comentário corrente no adro da Igreja, à saída das Missas do Parto. E a imaginação dos paroquianos, mais fecunda que terreno de erva daninha, não sobrestava nem de noite nem de dia. Era grande a ansiedade.

Sabia-se que o sr. professor andava empenhado no espectáculo litúrgico, de saibo retintamente medieval. O sr. vigário tinha conseguido a melhor colaboração que era possível na área do Concelho.

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Em GOUVEIA, 2001, O Natal na cidade, a Festa no campo, pp. 81-85; também em GOUVEIA, 1966, Canhenhos da Ilha, pp. 187-190 e GOUVEIA, [2014], Escritos 5 (Horácio Bento de Gouveia 1960-1969), pp. 32-34; originalmente em Voz da Madeira, 1965-12-22.

Exposição de barros de presépio, figurando trajos regionais da sua época, meados do século XIX, s.d., s.l., fotografia a preto e branco, [ant.

1966], ABM, Arquivo de Eduardo Nunes Pereira, pt. 27, n.º 26.

Falava-se em romagem de pastores e propalou-se, nas vésperas do dia de Natal, por todos os sítios, que dos bairros serranos das Lombadas desciam ranchos para homenagear o Menino. À ilharga do telheiro do Açougue, passante das duas horas da tarde, ao débil calor da luz voluptuosa do sol a escorregar em céu de safira para as bandas do Porto do Moniz, o velho João Moleiro, barrete a cobrir a cabeça, donde espreitava uma franja de cabelo branco, dizia para a Angica do Corgo: – P’lo q’atremei, o sr. vigairo e o sr. professor vão fazê coisa bonita na igreja!

– Nunca se ouviu dezer que se ia fazer ua festa assim!

– Ca idade que tenho inda vua ver o que nunca vi!

Açodados, caminho da igreja, rapazes e raparigas transportavam molhadas de jarros e feixes de alegra-campo.

De quando em quando, estoiravam bombas e estalavam foguetes.

Estava-se na «Festa».

Do lado dos Enxurras, a brisa trazia nas asas harmónios a tocar.

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Subia o fumo dos casais, por entre os esqueletizados galhos das figueiras.

Ouvia-se o bramido rouco do mar.

Dos espigões da serra, a noite se anunciou. E foram-se diluindo as formas sob a rasoira do escuro.

Cortam o ar as badaladas jubilantes do sino como se fora concerto; depois, compassadamente ressoam três, em timbre significativo de aviso: é a primeira chamada para os fiéis. Luzes mortiças de lanternas começam de assomar à Boca do Lanço e na Roça. Descem a rua, aos grupos, as famílias de mais longe. Estralejam castanholas e zunem as cordas dos braguinhas.

Dentro em pouco, é um falario pelas azinhagas que convergem ao caminho principal. E, de novo, a voz da montanha repetia, espaçadamente, três badaladas do sino. O adro da igreja está coalhado de gente. Há toques e estoiram bombas. E o santuário vai-se enchendo.

Os arcabuzes, debaixo dos plátanos que ladeiam o adro, disparam pela terceira vez. As cerimónias religiosas vão iniciar-se. O interior do templo tinha-se engalanado de flores nos altares, e as paredes laterais ostentam colgaduras de alegra-campo.

No coro, o organista é de fora e os cantores são da terra. Reboam os primeiros cânticos. Uma criança vestida de anjo, no púlpito, anuncia o nascimento de Jesus. Do coro parte um fio que se prende ao altarmor e por ele desliza, lento e lento, uma luminosa estrela de papel.

Delira a multidão, deslumbrada. A estrela, que norteia os Reis Magos, aponta o Presépio.

Jesus nasceu. Os padres que participam do ritual assistem agora à evocação da romagem dos pastores. Aquele, de bordão de conto, leva às costas um cesto com carne de porco e inhame. Ao entrar a porta da igreja lança a trova: Quem nasceu na manjadoira Foi o Menino Jasus, Eu p’ra o ano se for vivo Trago um prato de cuscuz.

E surge um rapazelho segurando uma cabra amarrada a folhas de espadana: Ó mê Menino Jasus Que nasceu num curralinho, Aqui trago esta alembrança Que comprei ao mê vezinho.

Segue-se um rancho da Terceira Lombada. As mulheres vêm de xaile ao ombro e calçam botas de cordovão. Cada uma vai oferecer uma cesta cheia de laranjas e peros. Os homens com barreleiros de semilhas, em cima de molhelha, cantam com as companheiras ao som de harmónio: Do bairrinho da Lumbada Só vem este comerzinho, 18

Presépio de caixa antigo de coleção particular não identificada, s.d., s.l., fotografia a preto e branco, [ant. 1957], ABM, Arquivo de Eduardo Nunes Pereira, pt. 27, n.º 27.

Mas é de baua vuntade Qui ofrecemos ao Menino.

E até o romper da manhã, há teatro de ingénua feição medieval. * No termo da adolescência, deu-se a dispersão, mas a «Festa» de aldeia, mesmo sem consoada, não se deliu da memória.

Um ano, de regresso ao mundo que já fora, a velha casa afigurou-seme mais velha. Em despensa térrea fui deparar com três degraus da «escadinha» forrada de papel de ramagens. As tábuas, o caruncho as tinha corroído. Ainda existia o topo, onde se colocava o Menino Jesus.

Não era preciso mais nenhum vestígio para que uma verdadeira rede de lembranças acorrentasse outra e outra que se iam sobrepondo no tempo, referenciando-se a este e àquele marco de experiência intimista, que nunca mais o esquecimento há-de escurentar porque eles não se dissociarão das sensações da idade de oiro da vida, abrindo-se como manhã vermelha.

Os quais degraus da «lapinha» espertaram a real imagem dela na mesa da sala, com renques de laranjas circumpostos, «feitas» verdes e tijelas de trigo espigado. Outro mundo remoto, cópia imaginada que também se extinguiu com as mãos que o ordenavam para regalo dos olhos, mensageiros da emoção, hoje lembrança mais intelectual do que afectiva.

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A CRIANÇA E O DESENCANTO DO NATAL 11 Desencanto, sim, porque o encanto se não se extinguiu, vai-se perdendo com a aquisição quotidiana do brinquedo que, para além de trinta anos, os pais só pela «Festa» satisfaziam o desejo dos filhos pequenos, comprando-o. Era este o costume avoengo de muitos séculos, precipuamente nos campos. E então, exultava a gente da primeira infância e mesmo da segunda, com a ideia pertinaz dos presentes que constituíam quase a mais forte ocupação da vida dos sentidos. Passa-se o período jubiloso do Natal e já uma esperança nascia e se avolumava a fim de realizar-se no outro ano o concreto de um sonho que não foi embalde.

A tradição tem um fundo permanente que jamais se altera com a lei do constante devir. Assistimos e participamos do mesmo transformismo, porque somos elementos de um todo. Absorvidos no social, isolar-se dele é existir mas não viver. E assim, como os carneiros de Panúrgio, não podemos reagir individualmente porque somos vencidos pela força que sobre nós exerce a imagem em movimento.

Não queremos dizer que a quadra da «Festa» madeirense perdesse em atractivo o fascínio que faz delirar a imaginação da criança com as rochinhas, as primitivas lapinhas. Esse aspecto mantém-se, e conservar-se-á na alma cristã dos pequenos. Mas se associarmos o presépio aos brinquedos que noutro tempo eram dádiva daquela época, chegamos hoje à realidade de que durante toda a roda do ano oferecem os pais aos filhos os objectos que estão em seu apetecimento. Isto nas freguesias rurais, mais distantes da cidade, nas quais os velhos costumes se achavam profundamente enraizados. Nas aldeias, vêem-se nas prateleiras das vendas e nas montras, em todo o tempo, carrinhos de diversas dimensões e cores e as mais variadas coisas de plástico a concitar a pupila ingénua da gente miúda.

Desta sorte, as crianças já não sentem alvoroço por chegar ao Natal, para terem brinquedos. É também de observação quotidiana o fenómeno outrora habitual, quanto a determinadas iguarias, que pelo Natal tinham lugar, e apenas naquele período. Exceptuada a «Festa», as refeições diárias consistiam nos comeres, produtos da terra sem guano. A manteiga, o queijo, as azeitonas, mesmo nas casas de lavradores de abastança apareciam à mesa só nos dias da «Festa». Estas guloseimas que faziam aguçar o

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Em GOUVEIA, 2001, O Natal na cidade, a Festa no campo, pp. 69-71; também em GOUVEIA, Horácio Bento de, [2016], Escritos 6 (Horácio Bento de Gouveia 1970-1983), investigação e recolha de textos por Maria de Fátima Gouveia Soares, prefácio de Thierry Proença dos Santos, posfácio de Carlos Lélis, [Braga], edição de Maria de Fátima Gouveia Soares, pp. 105-106; originalmente em Diário de Notícias, 1970-12-06.

«Pião», s.d., s.l., doação de Sara de Portugal, fotografia a cores de Rui Camacho, 2003-10-06, in Brinquedos tradicionais – DRAC, CD-R, ABM, 859MM, IMG_3895.

apetite em novas sensações gustativas, criavam o desejo latente por que os meses, morosos, céleres corressem. E levava-se o ano quase inteiro nas comidas saudáveis da terra, com a substancial sopa de couve acompanhada da carne de porco, uma que outra vez.

Mudaram os costumes. Hoje não há família em qualquer aldeia da Ilha que, uma vez por semana, não compre carne de vaca para a refeição do dia santo ou do domingo.

Lembra-me a transformação do actual regime alimentar, a frugalidade dos romanos antes de conviverem com os gregos, de adoptarem seus hábitos, após a conquista da Grécia. De sóbrios passaram a intemperantes.

Mas pergunta-se: Foi o nível de vida nos campos que se modificou?

Não. Há um complexo de causas. E, de entre elas, uma é evidente: a tendência inata de o homem de plano subalterno querer igualar-se ao superior, viver como ele, imitar seus hábitos, porque também é de carne e osso. A maneira de viver a família abastada evoluiu. O contacto frequente com a cidade teve a sua influência. O habitante da freguesia foi assimilando o do centro urbano. E o da cidade, o do Continente e o turista que percorre ceca e meca.

Desta arte, o desencanto do Natal constitui um facto para a criança.

Quer na aquisição dos brinquedos que não lhe faltam sempre que a ardência de seu espírito os deseja, quer na variedade das refeições sem novidade de aperitivo.

«Cavalo de pau com rodas», s.d., s.l., doação de Sara de Portugal, fotografia a cores de Rui Camacho, 2003-10-06, in Brinquedos tradicionais – DRAC, CD-R, ABM, 859MM, IMG_3892.

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