Uma Nova Idade Média - Nikolai Berdiaev

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UMA NOVA IDADE MÉDIA



NICOLAI BERDIAEV

UMA NOVA IDADE MÉDIA REFLEXÕES SOBRE O DESTINO DA

RÚSSIA E DA EUROPA

Tradução de

TASSO DA SILVEIRA


© Novoe Srednevekov'e: Nikolai Berdiaev, 1924, 2017 © Tradução: Tasso da Silveira, 1936 © Tradução do apêndice: Evandro Ferreira e Silva, 2017

Ficha Catalográfica Berdiaev, Nicolai Alexandrovich, 1874–1948 Uma nova idade média, edição de Jefferson Bombachim e Luiz Cezar de Araújo. – Curitiba, PR: Arcádia, 2017. 200 pp. ISBN: 978-85-92855-01-7 1. Ensaios. 2. Filosofia política. 3. Filosofia russa. I.Título.

Editor: Jefferson Bombachim Luiz Cezar de Araújo Coordenador Editorial: Daniel Fernandes Revisão: Ademir Júnior Sousa Amaral Capa: Matheus Bazzo

Os direitos desta edição pertencem à Editora Arcádia Rua Fioravante dalla Stella, 262 – Cristo Rei, – CEP: 80050-150, Curitiba-PR E-mail: contato@arcadiaeditora.com.br – Site: www.arcadiaeditora.com.br

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Apoio Institucional:



ÍNDICE

Fim do Renascimento

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A nova Idade Média

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Reflexões sobre a revolução russa

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O socialismo, a democracia, e a teocracia

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O espírito burguês

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FIM DO RENASCIMENTO



I

A divisão clássica da história em antiga, medieval e moderna cairá breve em desuso; será excluída de nossos livros de estudos. A história contemporânea chega ao termo, e se inicia uma era desconhecida, à qual será preciso dar um nome. Saímos, na verdade, do quadro da história. É um fato, este, de que tivemos a aguda sensação quando irrompeu a guerra mundial. Para os que, então, viam mais longe, se fez evidente que seria coisa impossível um retorno à existência burguesa e aprazível de antes da catástrofe. Muda o ritmo da história: vai-se tornando catastrófico. Os homens que pressentiam o futuro tinham de há muito percebido que havia catástrofes iminentes e lhes discerniam dos sintomas espirituais sob as aparências de uma vida tranqüila e bem ordenada. É que os acontecimentos se desenrolam na realidade do espírito antes de se manifestarem na realidade exterior da história. Algo se abalou e destruiu na alma do homem moderno antes de se haverem abalado e destruído os seus valores históricos. E o fato de haver hoje entrado todo o universo em dissolução não deve surpreender os que estavam atentos aos movimentos do espírito. Em nossos dias, parece que os velhos, os seculares fundamentos do mundo europeu estremecem. Tudo o que, na Europa, estava como que estabilizado pelo hábito, se desloca. Em parte nenhuma, seja o que for de que se trate, sentimos firme a terra sob os pés — o terreno é vulcânico e todas as irrupções são possíveis, no material como no espiritual. O velho

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mundo, a Europa central, se deixa atrair por um mundo novo: o ExtremoOcidente, ou seja a América; o Extremo-Oriente, ou seja o Japão, para nós misterioso e quase fantasmagórico, e a China. E do fundo da velha Europa se erguem elementos desencadeados que derruem os fundamentos sobre que repousava a sua cultura caduca sempre em continuidade com a antigüidade. Fôra preciso ser bastante míope para negar que a civilização européia estava a pique de atravessar uma crise que ia assumir, historicamente, importância mundial e cujas conseqüências se perderiam em longínquo e indeterminável futuro. Teria sido pueril e superficial imaginar-se que se poderia reter por meios exteriores esse vertiginoso movimento de devastação a que se acha entregue nosso velho mundo pecador, e voltar, à custa de pequenas modificações, à vida passada de antes da guerra e da revolução russa. Penetramos no reino do desconhecido e do ainda não vivido, e nele penetramos sem alegria, sem radiosa esperança. O futuro é sombrio. Não podemos crer mais nas teorias do progresso que seduziram o décimo nono século e em virtude das quais o futuro próximo deveria ser sempre melhor, mais belo, mais amável do que o passado que se vai. Inclinamo-nos, antes, a julgar que o melhor, o mais belo e o mais amável se encontra não no porvir, porém na eternidade, e que existiu igualmente no passado enquanto o passado comungava com a eternidade e suscitava o eterno. Ainda está por explicar-se esta crise da civilização européia, iniciada de há muito por diferentes faces e que hoje atinge o apogeu de sua manifestação. A história moderna que termina foi concebida na época do Renascimento. Nós assistimos ao fim do Renascimento. As cumiadas da cultura, tudo o que era humana criação, na esfera da arte como na do pensamento, faziam de há muito adivinhar um esgotamento do Renascentismo, qualquer coisa assim como o fim de toda uma época mundial. Esta procura desenfreada de novos filões criadores era sem dúvida uma prova do fim do Renascimento. Mas o que sucede no pináculo

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da vida repercute em baixo. No próprio fundo da vida social também se preparava o fim do Renascimento. Porque o Renascimento significava um tipo completo de “sensação do universo” e de cultura, e não apenas um conjunto de criações eminentes. A vida do homem, a vida dos povos é um organismo hierárquico completo, no qual as funções superiores e inferiores são inseparavelmente ligadas. Há uma correspondência entre o que se passa nas alturas da vida espiritual e ao fundo da vida material da sociedade. Por isto mesmo, o fim do Renascimento é o fim de toda uma era histórica — de toda a história contemporânea —, e não apenas a extinção de tais ou tais formas criadoras. O fim do Renascimento é precisamente o fim desse humanismo que lhe servia de base espiritual. Ora, o humanismo não significava simplesmente um renascimento da antigüidade, uma nova moral e um movimento das ciências e das artes; era ainda um novo sentimento da vida e uma relação nova com o universo, aparecidos, estes últimos, à aurora dos tempos modernos para reger-lhe a história. Acontece que este novo sentimento da vida e esta nova relação com o universo chegaram ao seu termo, tendo-se-lhes esgotado todas as possibilidades. Caminhou-se até ao fim das vias do humanismo e das vias do Renascimento; não se pode ir mais além por essas vias. No fundo, toda a história moderna foi uma dialética imanente de auto-revelação, depois de auto-negação dos mesmos princípios que haviam motivado o seu aparecimento. Há muito que o sentimento humanista da vida perdeu o seu frescor; caiu em estado de decrepitude e não pode mais ser experimentado de maneira tão patética quanto nos dias da moça efervescência do humanismo. No interior do humanismo estalaram contradições destrutivas, minou-lhe a energia um mórbido cepticismo. A fé no homem e nas forças autônomas que o sustinham está abalada até o fundo. Regera ela a história moderna, mas a história moderna se encarregou de a

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desmantelar. A livre vagabundagem do homem que não conhece mais nenhuma autoridade superior não deu firmeza à sua fé em si mesmo; muito pelo contrário: enfraqueceu irremediavelmente essa fé e comprometeu a consciência que ele tinha de sua identidade. O humanismo não fortaleceu, debilitou o homem — tal é o término paradoxal da história moderna. Através de sua auto-afirmação, o homem perdeu-se ao invés de se encontrar. Se o homem europeu entrou na história moderna cheio de confiança em si mesmo e em suas capacidades criadoras; se tudo, à aurora desta época, lhe pareceu depender de sua arte, para a qual não via nem fronteiras nem limites, presentemente ele dela sai para penetrar numa época inexplorada, num grande abatimento, a fé em pedaços — a fé que ele tinha em suas próprias forças e no poder de sua arte —, ameaçado do perigo de perder para sempre o núcleo de sua personalidade. Ah, não é nada brilhante o homem saído da história moderna, e que trágica dissimilhança entre o começo e o fim desta história! Partiram-se muitas esperanças. A própria imagem do homem acha-se inteiramente obscurecida. E espíritos dotados de alguma intuição remontariam de boa vontade à Idade Média para pedir-lhe outra vez as verdadeiras origens da vida humana — para, numa palavra, pedir-lhe outra vez o homem. Nosso tempo é um tempo de decadência espiritual, não de reabilitação. Não seriamos nós que poderíamos repetir as palavras que, à aurora da história moderna, pronunciava Ulrich von Hutten: “Os espíritos despertaram. É bom viver!” A história moderna é uma empreitada que não resultou bem, que não glorificou o homem, como o fizera esperar. As promessas do humanismo não foram cumpridas. O homem experimenta uma fadiga imensa e está pronto a apoiar-se sobre qualquer gênero que seja de coletivismo, em que definitivamente desaparecesse a individualidade humana. O homem não pode suportar seu abandono, sua solidão.

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II

Com o Renascimento, as forças humanas se desbridaram e seu jogo impetuoso criou uma nova cultura, fundou uma nova história. Quer dizer que toda a cultura desta época mundial que, nas escolas, é chamada história dos tempos modernos, foi a experiência da liberdade humana. O homem novo quis ser autor e ordenador da vida, sem o socorro do alto, indiferente às sanções divinas. O homem se arrancou ao centro religioso ao qual permanecera submissa toda a sua vida durante a Meia Idade; quis andar por uma estrada livre e independente. Ao se meter por essa via, ao europeu dos tempos modernos pareceu que pela primeira vez se havia descoberto o homem e o mundo humano, comprimidos pela Idade Média. E muitos ainda, em nossos dias, cegos pela fé humanista, imaginam que é ao humanismo, ao começo dos tempos modernos, que se deve o descobrimento do homem. Nossa época, todavia, porque levou até a última acuidade todas as antinomias da vida e entrou no conhecimento de suas próprias origens, começa a compreender que na segurança do humanismo havia um fatal desvio e um abuso de si mesmo, e que, à raiz da fé humanista, se escondia uma auto-negação virtual do homem e de sua queda. Quando o homem, como acabamos de dizer, rompeu com o centro espiritual da vida, arrancou-se à profundidade e passou à superfície. Seu afastamento do centro

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espiritual tornou-o cada vez mais superficial. Tendo perdido o centro espiritual do ser, perdeu, ao mesmo tempo, seu próprio centro espiritual. Tal descentração da essência humana era a mina da sua constituição orgânica. O homem deixou de ser um organismo espiritual. E, então, à periferia mesma da vida, surgiram centros falaciosos. Tendo-se libertado de sua relação orgânica com o centro verdadeiro, os órgãos subordinados da vida humana se proclamaram a si mesmos centros vitais. Em conseqüência disto, o homem se tornou de cada vez mais superficial. Em nosso século, atingido o pináculo da era humanista, o homem europeu se ergue num estado de vacuidade terrível. Não sabe mais onde é o centro de sua vida. Sob seus pés não sente profundidade. Vota-se a uma existência mais que vulgar, vive sobre duas dimensões como se habitasse exatamente a superfície da terra — ignorando o que está acima dele e o que está abaixo. Há, pois, formidável distância e formidável contradição entre o começo da era humanista e o seu fim. Bem ao princípio, a efervescência da liberdade nas forças do novo homem, na Europa, se assinala por admirável, deslumbrante floração de obras de gênio. Quando se vira no homem, com efeito, um ímpeto criador tão vivo como o desses primeiros tempos do Renascimento? Afirmava-se, então, a livre criação do homem, a liberdade de sua arte. Mas é que ele ainda estava próximo das fontes espirituais de sua vida, ainda se não havia afastado tanto em seu movimento para a superfície. O homem do Renascimento é um homem desdobrado, pertencente a dois mundos. É o que faz a complexidade e a riqueza do seu poder criador. À hora atual não mais se pode tomar o início do Renascimento por simples reprodução da antigüidade e simples retorno ao paganismo. O que é verdade é que a esse tempo muita coisa subsistia de elementos cristãos e de princípios medievais. Um homem característico do décimo sexto século como Benvenuto Cellini, vindo ao poente do Renascimento, não era um pagão apenas, mas

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também um cristão. Não, o Renascimento não era e não podia ser inteiramente pagão. A gente do Renascimento nutria-se da atmosfera da antigüidade, procurava nela a fonte da livre criação do homem, tomava-lhe de empréstimo a forma perfeita de suas imagens, mas nem por isso tinha o espírito antigo. Tratava-se de homens na alma dos quais bramia a tempestade nascida da colisão dos princípios pagãos e cristãos, antigos e medievais. Em sua alma não podia haver essa clássica nitidez e essa unidade perdida para os séculos, e sua arte não podia engendrar formas absolutamente acabadas ou determinadas, classicamente perfeitas. A alma cristã está envenenada pelo sentimento do pecado, sedenta de redenção, inclina-se para um outro mundo. Foi isto que matou o velho mundo pagão. Preparava-o para o cristianismo uma fatalidade interna. Na história, um renascimento é possível, se este vocábulo significa uma retrospecção dos modos antigos de criação, mas nenhum renascimento pode ser uma volta para traz, isto é, a restauração de uma época já vivida. Os princípios criadores das épocas passadas para os quais se voltam os renascimentos agem em novo meio complexíssimo, entram em relação igualmente complexíssima com princípios novos, e criam tipos de cultura inteiramente diferentes dos antigos tipos. Assim, o movimento romântico do começo do décimo nono século também não será um retorno à Meia Idade; com efeito, os princípios medievais para os quais se orientava o romantismo tinham sido quebrados na alma do homem enquanto ele percorria uma história nova; os resultados que poderão produzir agora serão inteiramente estranhos à Idade Média. Pode Friedrich Schlegel proclamar a sua filiação medieval; porventura assemelha-se ele a um homem da Idade Média? Os homens do Renascimento também não se pareceram com os homens da antigüidade, nem com os gregos, nem com os romanos. Tinham sido batizados, e a água do batismo não podia mais ser excluída por nenhum retorno à antigüidade, por coisa alguma do que lhes trazia um paganismo superficial. No cristianismo da

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Europa, jamais o paganismo poderia ser um paganismo profundo. Poderia, acaso, complicar a alma do europeu, porém nunca estabelecer nela a sua unidade. A alma dos homens do Renascimento era tão complexa, efetivamente, que deles jamais se fariam bons pagãos. É fácil estudar esta dualidade, esta complexidade na arte e na vida de uma figura central do Quattrocento como Botticelli. O Renascimento existia já nas profundezas da Meia Idade e seus móveis primeiros foram puramente cristãos. A alma medieval, a alma cristã despertou à vontade de criação. Este acordar toma corpo nos séculos doze e treze. Assinala-se por um florescimento perfumado de santidade, que é bem a mais alta elevação a que possa atingir o espírito criador do homem. Faz-se acompanhar de um surto da mística e da filosofia escolástica. O Renascimento medieval inspira a arte gótica e a pintura dos Primitivos. O Renascimento dos Primitivos italianos é um renascimento cristão. São Domingos e São Francisco, Joaquim de Fiore e Santo Tomás de Aquino, Dante e Giotto, eis o verdadeiro renascimento do espírito humano, da criação humana, e ao qual não faltam ligações com a antigüidade. À época do Renascimento medieval e cristão havia já, no modo de criar, uma relação com a natureza, com o pensamento do homem, com a arte, com a totalidade da vida. O que se entende pelo primeiro Renascimento italiano, o Trecento, é a maior época da história européia, seu ponto culminante. A ascensão das forças criadoras do homem era, então, como que a réplica de uma revelação humana à revelação divina. Tal era o humanismo cristão concebido segundo o espírito de São Francisco e de Dante. Mas não serão tão cedo realizadas as imensas esperanças e profecias que se fundam sobre esse primeiro Renascimento cristão. Muitas coisas, nele, adiantavam-se aos tempos. Era preciso ainda que o homem passasse por um estado de desdobramento ou de separação. Devia o homem fazer, não apenas a experiência de suas forças, mas ainda a de sua impotência.

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O Quattrocento é essencialmente uma época de desdobramento. Foi então que se deu, repito-o, a violenta colisão dos princípios cristãos e pagãos, a qual se traduziu na ordem inteira do Fazer. Não é qualquer coisa de completamente acabado que encontramos nas obras dos quattrocentistas; elas parecem mostrar-nos força maior nas intenções do que nos resultados. Mas há um encanto singular nessa própria falta de perfeição ou de remate. Prova, este desdobramento dos quattrocentistas, a impossibilidade dum Renascimento puramente pagão no mundo cristão. E a derrota dos quattrocentistas é uma derrota grandiosa. As formas realizadas pelas obras do século seguinte, refiro-me ao magnífico Renascimento romano, dão a impressão de um acerto mais completo. Não serão, todavia, essa perfeição formal e essa consecução, senão aparências de classicismo. No mundo cristão, nada de verdadeiramente clássico, de perfeitamente realizado sobre a terra é possível. Não foi por acaso que a arte do décimo sexto século se deixou conduzir para um academismo sem vida e assim degenerou. Do ponto de vista espiritual, com o décimo sexto século italiano, o desdobramento se tornou uma decadência, uma desagregação da alma cristã. Os humanistas da época do Renascimento absolutamente não romperam com o cristianismo, nem se ergueram contra a Igreja, mas foi de frieza e indiferença o seu ânimo religioso. Esperavam descobrir o homem em se voltando deliberadamente para este mundo e em se desviando do outro. Eis por que perderam a profundeza. O homem por eles descoberto, o homem da nova história, não será profundo, será constrangido a errar à superfície da vida. À superfície livre de toda ligação com a profundeza, procurará o homem experimentar as suas forças criadoras. Produzirá abundantemente, mas acabará por esgotar-se e por perder aquela fé que depositara em si mesmo. Não era por efeito do acaso que a individualidade do homem, no décimo sexto século, teimava em manifestar-se por odiosos crimes. Libertou, talvez, o humanismo as energias humanas; mas não se pode dizer que tenha espiritualmente elevado o homem: esvaziou-o.

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Estava esta conseqüência inclusa em seu princípio. À base da história do homem lia uma ruptura do homem com a profundidade do seu espírito, uma ruptura da vida com o seu sentido. Que relações existem entre São Francisco ou Dante e os séculos décimo sexto e décimo sétimo? Executou o Renascimento numerosas grandes coisas, integrou muitos valores preciosos na cultura humana; contudo, fracassou, porque o problema que propunha era insolúvel. O primeiro Renascimento cristão não fructesceu, o mesmo tendo acontecido com o Renascimento pagão. Ora, o movimento da história moderna data do Renascimento. Constata-se sempre na história uma trágica divergência entre a proposição teórica e a realização prática. Na história moderna, o que se realizou foi inteiramente diverso do que tinham sonhado os primeiros humanistas e os pais do Renascimento. Previam eles, acaso, que as conseqüências do seu novo sentimento da vida, da ruptura com as profundezas espirituais e com o sentido espiritual da Idade Média, de sua iniciativa criadora, seriam o décimo nono século e suas máquinas, seu materialismo e seu positivismo, seu socialismo e seu anarquismo, o esgotamento da energia espiritual criadora a que deu lugar? Leonardo, que foi talvez o maior pintor do mundo, é responsável pela mecanização e a materialização de nossa vida, pelo seu desalento, pelo abandono que se fez de seu mais alto sentido. Ele próprio não sabia o que elaborava. O Renascimento trazia nas entranhas tudo o que era preciso para explodir. Liberou as forças criadoras do homem e exprimiu a potência mais elevada de sua arte. Nisto, estava com a verdade. Mas foi também ele que afastou o homem das fontes espirituais da vida; negou o homem espiritual, que não pode deixar de ser criador, para em seu lugar afirmar exclusivamente o homem natural, escravo da necessidade. O triunfo do homem natural sobre o homem espiritual na história moderna devia levar-nos à esterilidade criadora, isto é, ao fim do Renascimento, auto-destruicão do humanismo.

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O Renascimento foi uma empreitada grandiosa que consistiu em procurar as forças do homem em seu livre jogo. O homem imaginou que a vida toda podia ser submetida à sua arte. Voltou-se o homem para essa natureza que na Idade Média ele sentia mergulhada no mal. Na natureza, procurou as fontes da vida e da criação. E, ao início de suas relações com ela, sentiu que revivia e se regenerava. Foi levantado o anátema contra a natureza. Deixaram de ser temidos seus demônios, que tanto apavoravam a gente da Idade Média. O homem penetrou, insensivelmente quanto a si mesmo, no turbilhão da vida natural, mas não se uniu à natureza pelo interior. Submeteu-se espiritualmente à sua materialidade, mas permaneceu separado de sua alma. O Renascimento continha em si mesmo a semente da morte, isto porque em seus fundamentos repousava a contradição destrutiva do humanismo, desse humanismo que, de um lado, engrandecia o homem e lhe atribuía forças ilimitadas e, de outro lado, não via nele senão um ser limitado e dependente, ignorante da liberdade espiritual. Para engrandecer o homem, o humanismo privou-o da similitude divina e sujeitou-o à necessidade natural. Estabelecido sobre o humanismo, o Renascimento descobriu as forças criadoras do homem enquanto ser natural, porém não espiritual. Arrancado, porém, ao homem espiritual, o homem natural não possui fontes inesgotáveis de criação; destina-se a esgotar-se, vem à superfície da vida. Demonstraram-no os últimos frutos da história moderna, que conduziram ao fim do Renascimento, à auto-negação do humanismo, ao vazio de uma existência superficial e descentrada, ao recenseamento da capacidade criadora. Não podia durar infinitamente o livre jogo das forças humanas. E no décimo nono século este jogo criador termina, não se tem mais a sensação da abundância, mas da miséria; aumentam a dificuldade e o peso da vida. Em todo o curso da história moderna a antinomia fundamental do humanismo se agrava e denuncia.

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Faz passar do humanismo ao seu contrário. O humanismo de Feuerbach e Augusto Comte, apóstolos da “religião da humanidade”, já quase nada de comum apresenta com o do Renascimento. Vai mais longe, cava a antinomia do humanismo; contudo, não achamos mais nele esta floração de forças criadoras, antes, pressentimos a catástrofe que encobre. A Meia Idade salvaguardara as forças criadoras do homem e preparara a esplêndida floração do Renascimento. O homem penetrou no Renascimento com a experiência medieval, com a preparação medieval. E tudo o que houve de grandeza autêntica no Renascimento ligava-se de qualquer modo à Idade Média cristã. Hoje penetra o homem num futuro desconhecido com a experiência da história moderna e sua preparação. E entra nesta época, não cheio de seiva criadora, como na época do Renascimento, mas esgotado, debilitado, sem fé, vazio. Tudo isto incita à reflexão.

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III

Foi em sua primeira manifestação que o humanismo se mostrou mais fecundo e mais belo. E toda a arte que ele gerou procede do Renascimento, pode ser chamada “renascentista”. Em sua manifestação inicial, recorreu o humanismo às fontes eternas da arte humana — à antigüidade. Não nos é mais possível, contudo, pensar que a arte do Renascimento é o fruto de um retorno ao paganismo, de uma reincidência do paganismo no interior do mundo cristão. Seria dar provas de uma visão superficial e enganadora. Nutria-se o humanismo da antigüidade, é claro, mas era um fenômeno novo, um fenômeno de história moderna e não antiga. A atividade criadora do homem estava já em plenitude no catolicismo. E toda a grande civilização européia, antes de tudo latina, era em seus fundamentos uma cultura cristã e católica. Pusera raízes no culto cristão. O próprio catolicismo já se achava saturado de antigüidade, todos sabem a que ponto ele adotara a cultura antiga. Na Idade Média, a cultura antiga estava viva no catolicismo, e este foi o veículo que a conduziu através dos tempos. Foi por tudo isso possível um Renascimento histórico. E o Renascimento não foi, como a Reforma, dirigido contra o catolicismo. No catolicismo havia uma colossal atividade humana, que se manifestava na soberania do Papa, na dominação do mundo pela Igreja católica, na criação de uma imensa cultura medieval. É o que distingue o catolicismo da ortodoxia oriental. O catolicismo não somente conduzia o homem ao céu,

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como também suscitava a beleza e a glória sobre a terra. Está nisto o seu grande segredo. A tendência para o céu e a vida eterna gera a beleza e produz a força na vida terrena temporal. O ascetismo do mundo católico medieval era uma excelente preparação para o trabalho. Salvaguardou, concentrou as energias criadoras do homem. A ascese medieval era uma extraordinária escola para o homem; dava-lhe ao espírito uma têmpera sublime. E o homem europeu de toda a história moderna viveu do que tinha espiritualmente adquirido nessa escola. Tudo deve ao cristianismo. Nenhuma outra escola de espiritualidade pôde jamais prova-lo e disciplina-lo. O homem europeu gastou suas forças, prodigou-se, esgotou-se. E, se continua espiritualmente vivo, é unicamente devido aos fundamentos cristãos de sua alma. O cristianismo continuou a viver nele sob uma forma secularizada e preservou-o, assim, da decomposição. Em seus inícios, o humanismo estava ainda próximo do cristianismo, abeberava-se em duas fontes: a antigüidade e o cristianismo. E só era criador e resplandecente em seus resultados na medida de sua proximidade com o cristianismo. Quando ele se arrancou ao fundo espiritual e passou à superfície, começou a degenerar. Não foi do primeiro golpe que ele se pôs a representar o homem sem Deus e contra Deus. Não foi este o humanismo de Pico della Mirandola, de Erasmo e de diversos outros pensadores do Renascimento. Mas no humanismo ocultava-se uma semente de negação e dela foi que saiu este humanismo dos tempos modernos, de que nossos dias viram os últimos frutos, que são propriamente a negação do homem. Só esse humanismo que se enraizava no cristianismo, e que constitui como que uma mais completa explicação da revelação cristã, afirma o homem e cria a beleza. Só ele está ligado à antigüidade. O humanismo que rompe com o cristianismo rompe a um só tempo com a antigüidade e destrói o homem duas vezes, corroendo-lhe as bases antigas e cristãs. Tornase isto patente nos últimos frutos do humanismo. A tradição sagrada da

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cultura prende-se por mil fios à tradição sagrada da Igreja cristã e uma completa ruptura com esta tradição conduz à queda da cultura, rebaixando-lhe a qualidade. O esgotamento do Renascimento na história contemporânea, o enfraquecimento de sua energia criadora são a conseqüência do seu afastamento do cristianismo e da antigüidade, e todos esses renascimentos parciais que marcaram nossa história foram um retorno ao cristianismo e à antigüidade. O novo homem europeu, ou se nutre de princípios antigos e medievais, ou, senão, se esgota, esvazia e cai. O desdobramento do Renascimento, a mutilação interior sofrida pelo homem do Renascimento, constitui o tema da história moderna. É ela um desenrolar de idéias e de fatos nos quais vemos o humanismo destruir-se por sua própria dialética, porque a posição do homem sem Deus e contra Deus, a negação da imagem e da semelhança de Deus, no homem conduzem à negação e à destruição do homem; a afirmação do paganismo contra o cristianismo conduz à negação e à destruição da antigüidade. A imagem do homem, a imagem de sua alma e de seu corpo, é obra da antigüidade e do cristianismo. Rompendo com o cristianismo, o humanismo dos tempos modernos desvia-se dos dados antigos da imagem humana e altera esta imagem. A Reforma foi outro aspecto desse processus da nova história que nos deu o Renascimento; também ela foi gerada pelo movimento humanista, pela revolta do novo homem da história moderna. Causou-a, porém, o temperamento de outra raça; o temperamento da raça germânica, nórdica, pobre de sol, privada de dons pictóricos e plásticos, mas dotada espiritualmente de uma profundeza original. O sopro de uma nova espiritualidade é insuflado pela raça germânica na cultura européia. Por si mesmo, o Renascimento não tinha sido uma revolta e um protesto, mas uma manifestação do espírito criador. Está nisto a beleza do Renascimento, está nisto a sua significação eterna. A Reforma, pelo contrário, será mais uma revolta, um protesto, do que uma criação religiosa, será dirigida contra a tradição religiosa. A mística alemã foi criadora, é uma maravilhosa manifestação do

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espírito, mas da Reforma, que religiosamente foi estéril, não se pode afirmar o mesmo. De começo havia na Reforma muita coisa de Catolicismo; representava ela um acontecimento que se passava no interior do catolicismo. Lutero foi um monge católico insurrecto; borbulhava nele um sangue católico. Tudo o que havia de profundo, de autenticamente religioso, na Reforma, prendia-se à eterna verdade do cristianismo, era uma sede de purificação, de renovação, de regeneração no seio do próprio catolicismo. Houve em Lutero um instante, mas um só instante de alta verdade: essa necessidade, nele, de liberação espiritual. Infelizmente, foi a negação que o fez sair de seu caminho. A revolta e o protesto inerentes à Reforma engendraram esta evolução da história moderna que terminou nas “luzes” do décimo oitavo século, no racionalismo, na Revolução, em seus últimos efeitos: o positivismo, o socialismo e o anarquismo. As “luzes” não passam de pálido reflexo do Renascimento, de uma última forma da auto-afirmação humanista. Não há, porém, mais nelas espírito criador, o Renascimento esgotou-se. Quanto ao racionalismo do décimo oitavo século, seja embora um fenômeno essencialmente distinto do espírito criador próprio ao Renascimento, é, contudo, em sua gênese, ainda ligado a este. As “luzes” são o castigo temporal do Renascimento, o resgate dos pecados do orgulho humanista, dessa autoafirmação que traiu as fontes divinas do homem. Assim, artisticamente, a escola de Bolonha tinha sido a condenação de Michelangelo e de Rafael, porque o espírito que predominara no décimo sexto século devia trazer a morte. Por sobre tais estradas, o espírito criador se resseca. Savonarola foi a advertência erguida nas vias falaciosas do Renascimento. O Renascimento esgotou as suas forças criadoras em provocando um violento movimento histórico no qual não aparecerão mais as possantes criações. A Revolução francesa, o positivismo e o socialismo do décimo nono século são as conseqüências do humanismo do Renascimento, ao mesmo tempo que os sintomas do esgotamento do seu poder criador.

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IV

Para chegar-se ao Renascimento, tinha sido necessário que as forças criadoras do homem profusamente se acumulassem. Ao primeiro instante foi uma floração magnífica, depois dissolveu-se por todo o curso da história dos tempos modernos. Ao ascetismo medieval, contudo, é que devia o homem semelhante profusão. Mostrou-se ingrato, não obstante, o homem moderno para com o espírito que lhe havia salvaguardado as energias. A história moderna viveu sobre uma profusão de forças criadoras, e as forças do homem com o tempo se gastaram. Ao homem da moderna Europa coube esgotar todas as ilusões humanistas até o fim, para chegar, no pináculo de sua história, à auto-destruição, ao estremecimento dos próprios fundamentos da identidade humana. Tudo leva a pensar que o caminho terrestre da história do homem não lhe é mais do que uma provação espiritual, uma preparação para outra vida. Todas as realizações da história representam outras tantas derrotas formidáveis. O Renascimento falhou, a Reforma falhou, as “luzes” falharam. Falharam igualmente revoluções inspiradas pelas “luzes”; desvaneceram-se as esperanças que elas continham. Falhará da mesma forma o socialismo em ação. Na vida histórica da humanidade, nunca é o que o homem se tinha proposto como fim, que se realiza. Criam-se, porém, sem que ele saiba, valores enormes que ele jamais teria previsto. O Renascimento falhou, não chegou à perfeição, ao cabo no domínio da beleza e da alegria

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terrestres, com o seu intuito de ressuscitar a antigüidade; todavia, os valores que produziu são formidáveis e as suas próprias derrotas trazem o signo de uma beleza imortal. Tais foram os do Quattrocento, época de desdobramento, como dissemos. O Renascimento foi o ponto de partida da história dos tempos modernos. Mas a Reforma e as “luzes”, e a Revolução francesa, e o positivismo do décimo nono século, e o socialismo e o anarquismo, tudo isso é a decomposição do Renascimento, a revelação das contradições intrínsecas do humanismo e o progressivo empobrecimento das energias criadoras do homem. Quanto mais se afasta do Renascimento o homem europeu, tanto mais se alteram as suas energias criadoras. Seus momentos de mais grandiosa elevação permanecem ligados a um retorno à Meia Idade, reconduzemno às fontes do cristianismo, como aconteceu, por exemplo, no princípio do décimo nono século com o movimento romântico, e ao fim da mesma centúria, com o movimento neo-romântico e simbolista. Temos fortes razões para crer que as forças criadoras do homem não se podem regenerar nem a identidade do homem se restabelecer senão por uma nova época de ascetismo religioso. Só uma época assim, que retorne às fontes espirituais do homem, poderá centrar-lhe as energias e impedir que se reduza à poeira a sua identidade. Chegado ao cume da sua história nova, o homem se vê rodeado de demônios, que de todos os lados ameaçam pulverizá-lo mais ainda. Não se deve contar com nenhuma espécie de novo Renascimento após tal esgotamento e dilapidação das energias espirituais do homem, após tais extravios nos desertos da vida, após tão radical quebrantamento da identidade humana. Se fôra preciso estabelecer uma analogia qualquer, deveríamos dizer que nos aproximamos, não de um Renascimento, mas de um obscuro começo de Idade Média, e que vamos ser obrigados a passar por uma nova barbárie civilizada, por uma nova disciplina, por um novo ascetismo religioso, antes mesmo de romper a aurora de novo e inimaginável Renascimento.

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Tudo está, porém, de tal modo gasto na história humana, que a nós mesmos nos perguntamos se as energias criadoras do homem não despertarão, porventura, desta vez orientadas para um outro mundo. As forças naturais têm limites; a confiança do homem natural em si mesmo arrastao à queda, porque ele renegou as fontes da vida. O homem natural, desprendido do homem espiritual, se cria uma vida de fantasmas, deixa-se seduzir por ilusórios bens. É mister admitir-se a lei de que o homem, numa existência terrestre, limitada e relativa, não é susceptível de criar nada de belo e precioso senão quando crê noutra existência, ilimitada, absoluta, imortal. A exclusiva relação do homem com esta existência mortal e limitada termina por derruir sua energia criadora, condu-lo à satisfação de si mesmo, torna-o vão e superficial. Só o homem espiritual pode ser um verdadeiro criador, porque mergulha as suas raízes na vida infinita e eterna. Mas o humanismo renegou o homem espiritual, abandonou o eterno ao temporal, assentou o homem da natureza sobre a superfície limitada da terra. E este ser, que pretendeu confiar inteiramente em si mesmo, encontra-se agora sem firmeza em meio dos elementos desencadeados e dos espíritos da natureza que o sitiam. Não pode a face do homem ser conservada pelas energias do homem natural; ela postula o homem espiritual. Sem as correntes de ascetismo religioso que distinguem, que impõem distâncias, que submetem o inferior ao superior, torna-se impossível a subsistência da personalidade. A história moderna, porém, foi construída sobre a ilusão de que a personalidade poderia desenvolver-se sem o auxílio das grandes correntes de ascetismo religioso. A história moderna, surgida do Renascimento, desenvolveu o individualismo, mas o individualismo foi, de fato, a ruína da individualidade do homem, a destruição da personalidade, e hoje assistimos ao término cruel do individualismo privado de base espiritual. O individualismo esvaziou a individualidade humana, privou da forma e da consistência a personalidade, pulverizou-a. É lei geral que a individualidade do homem só é forte,

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florescente e consistente quando admite as realidades e os valores supraindividuais e sobre-humanos e quando a eles se submete; a individualidade do homem se paralisa, se esvazia, deperece desde o instante em que os nega. O individualismo deixa sem objetivo todo o sentido da vontade da individualidade humana, que fica sem direção precisa, sem finalidade nenhuma; e foi o humanismo enganador que conduziu o homem a esta vacuidade; transformou a alma humana num deserto. Havia sido, no entanto, proposto pelo humanismo um problema colossal, cujo tema era o homem. Através da trágica dialética da história moderna, eu vejo que se descobre esse tema. E a própria aparição do humanismo não pode ser considerada como derrota pura, como puro mal. Seria um ponto de vista estático. Também a experiência humanista apresenta uma significação positiva. Estava, o vivê-la, no destino do homem. O homem devia passar pela liberdade e, na liberdade, aceitar Deus. Estava nisto o sentido do humanismo.

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V

As fases do humanismo que marcam a segunda metade do décimo nono século e o começo do vigésimo correspondem a uma extinção definitiva do Renascimento, a um esgotamento definitivo de suas energias criadoras. Chegou ao seu termo o jogo livre e impetuoso das desbordantes energias do homem. Não há mais traço nenhum do espírito renascentista; tudo o que é espiritualmente significativo e criador ao fim do décimo nono e no vigésimo século, se volta para as fontes religiosas, propriamente cristãs, do homem. As correntes pagãs desse período são superficiais e seria supérfluo procurar nas mesmas o espírito da antigüidade. O homem que abusou da cultura não é o homem de um renascimento, mas de uma decadência. A decadência é uma das formas do fim do Renascimento. O homem chegou ao cume da cultura da nova história num estado de esgotamento e de quebrantamento, curvando-se ao peso de uma história que se tornou excessivamente complicada em virtude da ruptura com o seu centro religioso. O homem não pode suportar o isolamento em que o precipitou a época humanista. Desagrega-se devido a esta solidão, inventa pretensas comunhões espirituais e vínculos espirituais, cria falsas igrejas. O extremo sociologismo constitui justamente o reverso da profunda separação e da solidão enorme do homem. Os átomos separados no interior tendem a unir-se exteriormente. Em sua acepção filosófica, o extremo sociologismo não é mais do que a outra face do individualismo extremo,

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da atomização da sociedade humana. A individualidade do homem que começava a sublevar-se na época do Renascimento subsistia ainda nas unidades espirituais orgânicas e delas se nutria. Não apresentava o aspecto de um átomo isolado. Agia livremente, criava, tendo sob ela uma base espiritual. Ainda se não tinha entregue por esta forma à socialização para fugir à sua solidão e escapar à sua fome espiritual e material. A socialização transformada em religião é o término incontestável do Renascimento, o esgotamento dessa individualidade humana que se tinha sublevado na época do Renascimento. O individualismo extremo e o socialismo extremo são duas formas deste desenlace. E, tanto numa como noutra, a individualidade do homem se vê comprometida, se entenebrece a identidade humana. O humanismo abstrato, separado das bases divinas da vida, da concreção espiritual, deve conduzir à destruição do homem e de sua identidade. Como toda realidade autêntica, a identidade humana só é conferida na concreção espiritual que imprime o selo da unidade divina sobre toda a multiplicidade humana; desaparece na abstração e no isolamento. É processo do humanismo nos tempos modernos fazer passar o homem da concreção espiritual, onde tudo é organicamente religado, para a abstração divisória, em que o homem se transforma em átomo isolado. Nessa passagem do concreto para o abstrato espera o homem da nova história obter a sua liberação, afirmar a sua individualidade, adquirir uma energia criadora. Quis o homem libertar-se, desembaraçar-se dessa graça divina que havia edificado a sua imagem e que espiritualmente o alimentava. O humanismo abstrato é a cisão contra a graça, a vida só é concreta na graça; a vida fora da graça é uma vida abstrata. Todas as ilusões do humanismo assentam neste terreno. Tudo o que ao homem parece libertação, recobramento da individualidade e da energia criadora, não passa de sujeição do seu ser espiritual ao turbilhão natural, de desagregação da personalidade. Verifica-se isto de modo definitivo ao termo do processo da história moderna. O humanismo

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tomou o homem fora do concreto, não com os seus liames espirituais e seus cruzamentos, mas de maneira abstrata, como se tratasse de um átomo da natureza encerrado em si mesmo. Tal tendência não se afirmou de um só golpe à época do Renascimento, mas se foi progressivamente determinando no curso da nova história. Devia essa tendência conduzir inevitavelmente a um individualismo extremo e a um socialismo extremo, que são duas formas da atomização, da decomposição abstrata da sociedade e da personalidade. Dois homens, que dominam o pensamento dos tempos novos, Friedrich Nietzsche e Karl Marx ilustraram com genial intensidade essas duas formas da auto-negação e da auto-destruição do humanismo. Em Nietzsche, foi sob sua forma individualística que o humanismo a si mesmo se renunciou e destruiu; em Marx, foi sob sua forma coletivista. O individualismo abstrato e o coletivismo abstrato são gerados por uma só e mesma causa, a subtração do homem às bases divinas da vida, a cisão com o concreto. Nietzsche é o filho e a vítima do humanismo dos tempos modernos. Paga pelos seus pecados. No destino de Nietzsche, o humanismo se torna em seu contrário. Nietzsche sente que o homem é “vergonha e humilhação”. Tem sede de vê-lo ultrapassar-se a si mesmo; aspira a sua vontade ao super-homem. A moral de Nietzsche não admite o valor da personalidade humana; rompe com o humano, prega a dureza em relação ao homem, em nome dos fins super-humanos, em nome do futuro e do longínquo, em nome da sublimidade. Em Nietzsche, o super-homem substitui o Deus perdido. Ele não pode, não quer manter-se no humano, no apenas humano. Com o individualismo super-humano de Nietzsche, perece a imagem do homem. Da mesma forma perece o homem no super-humano coletivista de Marx. Marx saiu, espiritualmente, da religião humanista de Feuerbach. Mas também nele, embora de outra maneira, o humanismo se torna em

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seu contrário, se transforma em anti-humanismo. Sente Marx a individualidade humana como a herança de um velho mundo burguês, exige que ela a si mesma se ultrapasse no coletivismo. A moral de Marx não admite o valor da personalidade humana; também ele rompe com o humano, prega a dureza em relação ao homem, em nome da coletividade, em nome do Estado futuro, do Estado socialista. Em Marx, a coletividade substitui o Deus perdido. Ele, igualmente, não pode e não quer manter-se no humano; há, na verdade, no coletivismo de Marx, algo de inumano, de antihumano; a personalidade do homem desaparece, a identidade do homem se obscurece. O coletivismo de Marx não admite a individualidade humana, com a sua vida interior infinita, que não há muito admitia e glorificava o humanismo de Herder e de Goethe. Marx é também um filho legítimo da história nova, exatamente como Nietzsche. Num e noutro se consuma o fim do Renascimento, mas diferentemente. Nietzsche volta-se para o Renascimento, quer viver o impulso criador do Renascimento, mas já se encontra em outro plano do qual não é mais possível alcançar as fontes do Renascimento histórico. Marx se desvia para sempre do Renascimento como de um mundo burguês, anseia por um reino novo, no qual nem sonhar se pode com superabundância criadora. Nem a obra de Nietzsche nem a de Marx constituíram o triunfo do homem. Desmascararam apenas as ilusões humanistas. Depois dele, não há como podermos ver no humanismo um ideal inebriante e encantador, e a fé ingênua no humano se fez uma impossibilidade. O homem será negado ainda por Max Stirner, que dará no humanismo outro golpe brutal. O reino intermediário do homem, do humano bastando-se a si mesmo, se desagrega, cede. As extremidades, os limites aparecem, as fronteiras do homem são varadas. Não mais podemos manter-nos unicamente sobre o humano. Com tudo isto, é o Renascimento que perece, o Renascimento que foi o livre jogo das potências do reino intermediário do homem, a pretensão de criar uma vida perfeita, feliz e

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bela nesse reino humanista. O reino humanista se viu decomposto pelos tempos modernos. O alargamento e extensão do reino humanista, a sua democratização, foram fatais à sua existência. O humanismo criador não pode subsistir senão numa seleção da sociedade humana. Assim acontecia na época do Renascimento. As “luzes” e a Revolução introduziam o nivelamento no reino humanista e elaboravam a sua desagregação interna. O Renascimento fundava-se sobre uma desigualdade e só era possível em razão desta desigualdade. A sede de igualdade que empolgou o homem contemporâneo marcou o fim do Renascimento. É a entropia na vida social.

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VI

O fim histórico do Renascimento comporta a desagregação de tudo o que era orgânico. O Renascimento havia conservado ainda a estrutura orgânica da vida. A vida, nele, ainda era hierarquizada, como o é toda vida orgânica. Mal começava então esse movimento de secularização que, ao fim do fim, devia acabar na mecanização da vida, na ruptura de toda organização constituída. No começo, em suas primeiras fases, esta secularização era tomada pela liberação das energias criadoras do homem, pela consagração do seu livre jogo. Saindo, porém, do estado orgânico, as energias humanas sujeitam-se inevitavelmente ao estado mecânico. É coisa que a princípio não se vê. Durante algum tempo, o homem vive na ilusão de que está liberto de toda ligação orgânica e não suspeita de que vai entrar como peça num conjunto mecânico. Esse período intermediário durante o qual o novo europeu se sentiu liberto do orgânico, sem supor-se ainda submetido ao mecânico, constitui o tempo do verdadeiro Renascimento, que se encerra pelo décimo sétimo e décimo oitavo séculos. O apogeu da sociedade européia viu desenvolverem-se as energias humanas arrancadas à sua profundidade, mas, repito-o, sem que as sentisse ainda sujeitas à mecânica igualizadora. Ora, no décimo nono século produziu-se na Europa, de repente, uma das mais terríveis revoluções que tenham jamais sacudido a humanidade no correr de sua história. Fez a máquina a

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sua entrada triunfal na vida do homem e pode-se dizer que perturbou todo o seu ritmo orgânico. A máquina destruiu toda a estrutura secular da vida humana, organicamente ligada à vida da natureza. A mecanização da vida sufoca o júbilo do Renascimento e torna impossível a expansão criadora da vida. A máquina mata o Renascimento. Prepara uma nova época, a época da “civilização”. Morre a cultura nutrida da simbólica sagrada. Os povos do Renascimento não sabiam, não compreendiam que preparavam o triunfo da máquina no mundo, e que o afastamento definitivo da Meia Idade devia conduzir ao reino das máquinas e substituir a estrutura orgânica pela mecanização. A estrutura orgânica da vida é hierárquica, isto é, cósmica. No organismo cósmico, as partes são sujeitas ao todo, são ligadas ao centro. Na ordem orgânica, o centro se considera o fim da vida das partes. Todo organismo é uma hierarquia. Quando as partes se destacam do todo e deixam de servir ao centro orgânico, insensivelmente se submetem a uma natureza inferior. A época do Renascimento se glorifica de haver, não apenas descoberto o homem, mas também a natureza. Os homens do Renascimento voltam-se para a natureza cheios de bênçãos, instruem-se na escola da natureza e imitam-lhe as formas exteriores; cessam a luta, que os homens da Idade Média mantinham, contra a pecabilidade da Natureza. E esta relação do Renascimento com a natureza em seu primeiro período é acompanhada do encantamento que dão as formas da natureza e da alegria da vida natural. Apenas alguns místicos e teósofos do Renascimento penetrarão mais profundamente a natureza. O que aparece com o Renascimento não é mais unicamente um descobrimento artístico da natureza, mas também um descobrimento científico. Eis a grande significação dessa época. Foi daí que veio o triunfo histórico da ciência natural, que preparou os formidáveis descobrimentos técnicos do décimo nono século e acabou na dominação

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da máquina sobre a vida humana. Acontece que o fim histórico do Renascimento não corresponde mais aos seus inícios. As primeiras relações com a natureza, que eram relações de alegria, se transformaram na consciência de uma formidável luta com ela por meio da mecanização da vida. Nossa época não mais imita as formas da natureza, não mais procura nelas as fontes da perfeição, como o fazia o Renascimento, declara guerra à natureza, porque ela se lhe tornou inteiramente estranha, nossa época toma-a por um mecanismo morto; entre ela e o homem, ergue-se a máquina. As relações do homem moderno, do homem civilizado, com a natureza indicam bem o fim do Renascimento. A dialética imanente das relações que o Renascimento travou com a natureza conduz à negação dessas mesmas relações. O fim do Renascimento mata a natureza, como mata o homem: é a tragédia da história nova pela qual precisamos passar. A máquina, elaborada pelo Renascimento matou o Renascimento, destruiu a beleza da vida que a superabundância criadora das energias humanas gerava. São inumeráveis as conseqüências da introdução da máquina na vida do homem. Estendem-se sobre a sua vida espiritual e sobre tudo o que ele produz. A ciência e a arte são arrastadas pelo fenômeno da mecanização; imprimiu-se nelas esta fragmentação da unidade orgânica que a máquina produz em todas as esferas da vida. A arte contemporânea, em suas últimas correntes, rompe com o Renascimento porque rompe de uma vez com a antigüidade. Na arte contemporânea, dirigida exclusivamente para o futuro e adorando o futuro, são votados ao dilaceramento o corpo do homem e suas formas eternas. Nela a imagem do homem deve finalmente desaparecer. O futurismo que, em si mesmo, representa um sintoma mais sério do que parece, destrói a imagem da natureza e a imagem do homem; é assim que ele quer eliminar para sempre o caráter próprio da arte do Renascimento, que era o voltar-se inteiramente para as formas eternas da natureza e do homem. O futurismo é muito sintomático do fim do Renascimento.

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Ele abate a obra de Michelangelo e de Leonardo. O futurismo rompeu totalmente com a antigüidade, com o princípio das formas eternas da arte. As formas que o Renascimento procurava provinham de duas fontes: a natureza e a antigüidade. Uma e outra, renega-as o futurismo. Suas formas, ele não as pede nem à natureza, nem ao homem, pede-as à máquina. O futurismo tomba em poder do processo pelo qual se opera o desmembramento mecânico de toda unidade natural e humana. Os futuristas são arrastados num movimento de que não apreendem o sentido, porque têm uma consciência muito imperfeita da significação do seu próprio movimento. O que acontece, seja qual for o valor próprio do futurismo, é que a imagem do homem, a alma do homem e o corpo do homem em tal arte perecem; são dilacerados por inumanos vendavais, deles nada subsiste senão farrapos. O cubismo de um grande pintor como Picasso já havia desmembrado o corpo do homem e subvertido a identidade artística do homem. A pintura futurista, na qual as correntes de amanhã substituíram rapidamente as de hoje, leva ainda mais longe o dilaceramento da identidade humana. Nela são violadas todas as nítidas fronteiras das formas naturais, confundindo-se tudo com tudo e o homem com os objetos inanimados; os anúncios de jornais, pedaços de vidro e solas de sapato fazem irrupção na forma natural para destruí-la. Sendo sempre formas antigas as formas do corpo humano, a sua destruição constitui uma ruptura definitiva com a antigüidade. Da mesma maneira, a poesia futurista decompõe a alma humana, introduz na alma do homem esses mesmos anúncios de jornais, pedaços de vidro, solas de sapato; submete a alma ao ruído dos automóveis e dos aeroplanos, já no impressionismo se procurava esta decomposição da alma humana. A alma do homem nele se decompunha em sensações; tinha-se perdido o centro da alma. Assim, à força de procurar apoio em si mesmo, o homem era levado à ruína da sua própria imagem. Arrancado de suas

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raízes espirituais, de suas raízes eternas, ei-lo sujeito à potência devastadora do tempo. O futurismo é produto da auto-afirmação do homem. Mas o futurismo é o fim do humanismo, a sua auto-negação. No futurismo o homem se perde a si mesmo, deixa de ter consciência de sua própria identidade, desaparece em não se sabe que massas inumanas. No futurismo, coletivos inumanos dominam o homem. E não foi por acaso que o futurismo mostrou que tão bem se adaptava às formas extremistas do coletivismo social. O processo do fim e da desaparição do Renascimento, a laceração e a destruição da imagem divina no homem podem ser observados na poesia de André Biely, um dos mais notáveis artistas do nosso tempo. André Biely tem parentesco com o futurismo, mas ultrapassa sensivelmente os futuristas. Viola sua arte todas as fronteiras naturais, todas as formas estáticas da criação; o homem e o cosmos nela se dissolvem em movimentos desenfreados. Não se poderia encontrar a imagem do homem em tal arte. A imagem do homem nela não se distingue do quebra-luz de uma lâmpada, das avenidas de uma grande cidade, desmorona num infinito cósmico. A arte de André Biely, tão característica de nossa época, é uma violação e uma destruição de todas as formas da antigüidade e do Renascimento; é algo que se separa da natureza, que se separa do homem, que se separa de Deus. Uma indicação do fim do Renascimento e da época humanista. A arte moderna se compromete cada vez mais com este fim do Renascimento, neste crepúsculo das formas do homem e da natureza. Irrupção de formas bárbaras, desprendimento de sons bárbaros, de movimentos bárbaros. O dinamismo desta arte perdeu o ritmo cósmico. O positivismo do décimo nono século era já o prelúdio inegável do fim do Renascimento. O positivismo fôra gerado pelo espírito do Renascimento, mas só manifestava o extenuamento desse espírito. Com o positivismo, não há mais desbordamento criador na ordem do conhecer, vê-se desaparecer o encantamento jubiloso do conhecimento que se lança à descoberta dos mistérios

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da natureza. O positivismo, é já a consciência da limitação das forças humanas, é a fadiga do conhecimento. O positivismo vê fecharem-se em si mesmos os mistérios da natureza. Na época do Renascimento, o conhecimento da natureza era o resultado de uma operação jubilosa. Tipo do Renascimento é Pico della Mirandola, o antípoda exato de todo positivismo. O patético de Leonardo da Vince é, por certo, o contrário do positivismo, e, contudo, contém em si o germe do positivismo. Em todos os domínios, leva o Renascimento a semente de sua própria ruína, de um resultado final regularmente contrário às suas intenções na ordem do conhecimento como nas outras. O positivismo de Augusto Comte provém de dois princípios opostos que, dos dois lados, arruínam o espírito do Renascimento: o racionalismo das “luzes” e a reação espiritual contra a Revolução francesa. Augusto Comte era um católico pervertido, um católico às avessas. E havia nele sem dúvida muitos elementos medievais, produz-se nele um retorno à hierarquia medieval, à organização e à autoridade. Ele quer subordinar novamente o conhecimento e a vida humana a um centro espiritual e pôr fim à anarquia intelectual da história moderna. Não era sem razão que Augusto Comte colocava tão alto Joseph de Maistre; havia recebido muito dele. Mas esses princípios medievais e religiosos do positivismo de Augusto Comte, embora numa forma pervertida, não prevaleceram no desenvolvimento ulterior do positivismo; pode-se mesmo dizer que apavoraram o positivismo. Em todo caso, os elementos mais positivistas do positivismo já manifestam certa reação contra o espírito do Renascimento. O positivismo abortou logo, conduzindo ao esgotamento dos princípios criadores do Renascimento. Não se pode mais hoje falar seriamente do positivismo em filosofia. De há muito, na filosofia européia, não é ele que recua, mas o criticismo kantiano. A filosofia criticista pode ser considerada uma das fases tardias da Reforma. Foi na gnosiologia alemã contemporânea que a Reforma deu

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os seus últimos e mais refinados frutos espirituais. Se, no começo da história moderna, nas fontes da Reforma, encontramos por definir a revolta do homem e a proclamação dos seus direitos, ao fim da história moderna, nas conseqüências intelectuais da Reforma, é o homem quem quer, por assim dizer, desembaraçar-se de si mesmo na maneira de conceber; ultrapassarse, elevar-se acima de qualquer antropologismo. A filosofia germânica contemporânea, na pessoa de Cohen, de Husserl e tantos outros, antes de tudo o que faz é lutar contra o antropologismo. Ela suspeita do homem, considera-o a causa da relatividade e da precariedade do conhecimento. Tende a um ato de conhecimento inumano. Na gnosiologia crítica há qualquer coisa que faz pensar no cubismo. Também ela decompõe o organismo do conhecimento humano em categorias, como Picasso e outros decompunham o corpo humano em cubos. Tal é o processo do esfarelamento analítico e do desmembramento da integridade orgânica. Perece a imagem do homem na gnosiologia crítica. Também ela marca o fim do Renascimento; também nela se extenua e morre o espírito renascentista da superabundância criadora. Assim, no próprio conhecimento, à força de procurar sua auto-definição e sua auto-afirmação, chega o homem à negação e à destruição de si mesmo. Tendo perdido o seu centro espiritual, havendo traído a fonte espiritual do seu ser, ele se perde a si mesmo e à sua imagem eterna. Entregase ao poder de algo de inumano. Como se encontra o homem tão mais prestamente na escolástica medieval do que nesta nova escolástica gnosiológica! A gnosiologia contemporânea é a conseqüência de um tempo de queda espiritual. Por toda parte encontramos o mesmo processo de destruição do homem por si mesmo, devido à confiança do homem em suas próprias forças. Na teosofia, a unidade da imagem do homem se desmembra, se parte, se desagrega, torna-se presa dos turbilhões do astral. A teosofia contemporânea é hostil ao homem e às suas energias criadoras, nada mais há nela de

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renascentista. Também a teosofia destrói o princípio da personalidade, como o faz o positivismo, como o faz o criticismo gnoseológico. A teosofia não crê mais na realidade da personalidade humana do que o mais grosseiro dos naturalismos materialistas. Ela é justamente esse naturalismo materialista destrutor do homem transplantado para os mundos espirituais. Teósofos da época do Renascimento, como Paracelso, punham o homem muito alto e propunham em face dele problemas de criações. Teósofos da nossa época, como Steiner, embora se apelidem antropósofos, escravizam o homem, em definitivo, a uma evolução cósmica cujo sentido é incompreensível, e a via que propõem ao aperfeiçoamento do homem por si mesmo não é uma via criadora. A teosofia nega Deus, a antroposofia nega o homem. O homem não passa de um instante passageiro da evolução cósmica, deve ser ultrapassado. As correntes teosóficas de nosso tempo exprimem o esgotamento e a extinção da superabundância criadora do homem. Com elas desaparece a individualidade do homem, cessa o livre jogo das suas energias. O homem perdeu seu centro espiritual interior, procurao na composição e na decomposição das forças cósmicas. O conhecimento teosófico contempla o cadáver da natureza e o cadáver do homem. Toda a vida intelectual que domina nossa época se mantém sob o signo do fim do Renascimento. Há ruptura com o Renascimento mesmo no domínio das ciências naturais. A estabilidade do caráter renascentista do ponto de vista físico-matemático de um Newton em face do universo foi abalada pela física moderna. O descobrimento da entropia, da radioatividade e da separação dos átomos da maioria, do princípio de relatividade enfim, não se nos apresenta como um apocalipse da física moderna?

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VII

As tendências socialistas caracterizam nossa época. Impregnam, não apenas a vida política e econômica, mas toda a cultura contemporânea, toda a moral contemporânea; representam um certo sentimento da vida. O socialismo não é mais do que outra face do individualismo, o resultado da decomposição, da desagregação individualistas. Nos rumos da atomização da sociedade, ele anda à espreita como uma fatalidade dialética interna: há uma ordem de princípios que só poderiam conduzir ao socialismo. O socialismo e o individualismo são igualmente hostis a uma concepção orgânica do mundo. O socialismo aparece, por esta forma, como evidente sintoma do fim do Renascimento; cessa nele o livre jogo da superabundância das energias criadoras do homem nos tempos modernos. As forças humanas se conjugam e dependem necessariamente de um centro; não sendo mais religioso, torna-se este centro social. O patético da individualidade criadora é substituído pelo patético do trabalho coletivo obrigatório e organizado, subordinada a individualidade do homem às coletividades, às massas. A figura do homem é eclipsada pelo fantasma de um coletivismo sem fisionomia. A superabundância criadora cederá o passo para sempre à regularização. O centro de gravidade da vida se transporta para o domínio econômico; quanto às ciências e às artes, à mais alta cultura criadora, aos valores

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espirituais, são considerados como um “reflexo”. O homem se converteu em categoria econômica. O socialismo tem uma base humanista, uma origem humanista; é gerado pelo humanismo dos tempos modernos, não teria sido possível sem a auto-afirmação do homem e sem a transferência do centro de gravidade da vida para o bem-estar humano. No socialismo, porém, chega o humanismo à sua própria negação. A consciência da classe proletária é já uma consciência que nada tem de humanista, que é anti-humanista. O homem foi, com efeito, substituído pela classe. Nega-se o valor do homem, de sua alma individual e de seu destino individual. O homem se torna um meio para a coletividade social e para o desenvolvimento desta. O humanismo foi o pai da humanidade no sentido de disposição moral. Esta humanidade foi o reino do homem meio-termo. Pois bem, tal virtude se desagrega no socialismo proletário, por ser o socialismo o fim da humanidade, o desmentido às ilusões que esta virtude comportava. O socialismo leva ao pretório as altas manifestações do humanismo: ciências e artes humanistas, moral humanista, toda a cultura humanista. Todo o edifício humanista desaparece e o seu alicerce é posto a descoberto. Verifica-se que este alicerce é constituído pela economia, pelos interesses econômicos das classes. Na verdade, tendo-se o homem arrancado ao centro espiritual e às fontes espirituais da vida, não tem mais sua vida senão bases materiais e as cumiadas desta não passam de mentiras. O homem se decompõe em interesses, a natureza una do homem (o humano) desaparece, desagrega-se em estrutura de classes. Em certo sentido, Marx tinha razão no que diz respeito à sociedade burguesa do décimo nono século. O “humano”, que Herder considerava como o fim da história, estava nela sujeito à decomposição, a base econômica representava papel capital e toda a cultura superior fazia, nela, pensar em “reflexo”. O materialismo econômico nada mais fez do que traduzir o estado da sociedade humana a essa época, o seu rebaixamento espiritual, a

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sua sujeição ao lado material da vida. É a decomposição do humanismo por si mesmo, o fim do Renascimento, a mina desse reino ilusório da humanidade, a demonstração da impossibilidade de ser o homem criador depois de se haver subtraído a Deus, de se haver erguido contra Ele. À vista destas conseqüências na civilização, percebe-se que o Socialismo é o fim indubitável do Renascimento. O espírito do socialismo é a morte do espírito renascentista. Para o socialismo, a vida humana não consiste mais nessa arte criadora do homem, nesse livre jogo da superabundância das suas energias criadoras. O Renascimento era aristocrático. É obra de pessoas que não estavam sujeitas às necessidades da existência. Condenando à morte toda espécie de aristocratismo, para o socialismo a vida do homem é função de uma pesada necessidade e do trabalho coletivo. No sistema socialista, não persiste nenhuma superabundância criadora que não seja regularizada e submetida a um centro material. O Renascimento foi a proclamação dos direitos do homem, da individualidade humana antes de tudo, nas ciências e nas artes e na vida intelectual, e em seguida na vida política. O socialismo opõe aos direitos do homem os direitos da coletividade, que não é a humanidade, pois que nela se desenham traços inumanos. No coletivismo a que chegou o humanismo em sua dialética histórica, vêm-se tombar em ruína todos os direitos do homem e a própria liberdade de pensamento que motivara o Renascimento. Nele, toda forma de pensamento revela uma coação, é submetida a uma centralização social confessional; quer dizer que com o coletivismo se produz um retorno à Idade Média, não sobre base religiosa, mas sobre a base materialista da anti-religião. O fim do Renascimento que atesta o esgotamento e a destruição do princípio da personalidade nas sociedades humanas, do princípio da iniciativa criadora pessoal, da responsabilidade pessoal, é o triunfo do princípio coletivista. Este fim do Renascimento se faz notar não apenas no socialismo, mas ainda no anarquismo, não menos característico de nossa época. A história moderna, concebida pelo Renascimento, se manifestou por um

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rico desenvolvimento do Estado. Nisto se diferençou da Idade Média, que não tinha do Estado senão uma consciência fraca. A Meia-Idade era internacionalista, universalista. Os tempos modernos são os tempos dos Estados nacionais. À base dos novos Estados, há a auto-afirmação do homem, de começo nas monarquias, depois nas democracias. Mas os Estados nacionais humanistas dos tempos modernos traziam em si mesmos os germes de sua própria negação. A democracia humanista abala a base religiosa do Estado e estabelece condições para o seu desmoronamento anárquico. O anarquismo é a destruição do Estado — obra do Renascimento. Produz-se no anarquismo não apenas uma auto-negação do Estado humanista, mas ainda uma auto-negação e destruição do princípio da personalidade; é a quebra definitiva do individualismo no apogeu do seu aparente triunfo. O princípio da personalidade era estreitamente e indissoluvelmente ligado ao princípio do Estado. No anarquismo triunfa toda esta cega força da massa, inimiga da personalidade e do Estado. O espírito anarquista não é um espírito criador, traz em si uma hostilidade odienta e vingativa contra todo desbordamento criador. O anarquismo quereria destruir tudo o que o Renascimento criou. Há nele uma vindicta contra a mentira do humanismo. Quando as sociedades humanas se deixam possuir pela sede da igualdade, é que acaba toda espécie de Renascimento, toda superabundância criadora. O patético da igualdade é um patético de inveja; é a inveja ao ser de outrem e a impossibilidade de afirmar o ser em si. A paixão da igualdade é uma paixão pelo nada. As sociedades modernas se deixaram possuir de uma paixão que consiste em deslocar o centro de gravidade da existência, transferindo-o do que, por afirmação criadora, é o ser de cada um, para uma invejosa negação do ser do outro. Tais são os signos de uma sociedade caduca.

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VIII

O Renascimento começou pela afirmação da individualidade criadora do homem. Terminou pela negação da individualidade criadora do homem. O homem sem Deus deixa de ser homem: tal é o sentido religioso da dialética interna da história moderna, história da grandeza e da decadência das ilusões humanistas. O homem em estado de separação e esvaziado de sua alma torna-se escravo, não das forças superiores, sobre-humanas, mas dos elementos inferiores e inumanos. O espírito humano se entenebrece e espíritos inumanos dele se assenhoreiam. A elaboração da religião humanista, de definitiva divinização do homem e do humano, constitui justamente os pródromos do fim do humanismo, sua auto-negação, o esgotamento de suas forças criadoras. A floração do humano só era possível enquanto o homem tinha sentimento e consciência, no mais fundo de si mesmo, de princípios mais altos do que ele próprio, enquanto ele se não tinha completamente desgarrado das raízes divinas. Durante o Renascimento, o homem possuía ainda este sentimento e esta consciência, não havia, pois, ainda para ele, divórcio absoluto. Ao longo de toda a história moderna, o europeu não rompeu totalmente com suas bases religiosas. Era graças a isto exclusivamente que o humano permanecia possível com o desenvolvimento da individualidade e da atividade criadora do homem. O humanismo de Goethe tinha um fundamento religioso, era ligado à fé em

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Deus. Tendo perdido Deus, o homem se entrega a um elemento sem fisionomia e sem humanidade, torna-se escravo da necessidade inumana. Em nossa época nada mais existe do livre jogo renascentista das energias do homem, ao qual se deve a arte italiana, Shakespeare e Goethe. Em nossa época atuam forças inumanas, espíritos de elementos desencadeados, esmagando o homem, obnubilando-lhe a imagem. Não é mais o homem hoje que é liberto, mas os elementos inumanos que ele desencadeou, e cujas vagas de todos os lados o flagelam. O homem tinha recebido sua forma e sua identidade sob a ação dos princípios e das energias religiosas. O caos em que perecia sua imagem não podia ser superado por forças puramente humanas. Era também função das forças divinas a elaboração de um universo humano. Tendo-se, para o fim, desprendido da potência de Deus e renegado seu apoio, o homem da história moderna tomba outra vez no caos, compromete-se sua imagem e suas formas vacilam. A energia criadora do homem não se concentra mais, pulveriza-se. A constituição de um reservatório de energia criadora supõe a conservação das formas da identidade humana, supõe os limites que distinguem o homem dos estádios informes e, pois, inferiores. Este reservatório se fendeu e a energia criadora dispersou-se. O homem perde suas formas, suas delimitações, não é mais protegido contra o mau infinito do mundo caótico. Se suportamos a ruína do Renascimento nas novas correntes da arte, no futurismo, nas novas correntes filosóficas, na gnosiologia crítica, nos movimentos teosóficos e ocultistas, enfim no socialismo e no anarquismo, que ocupam lugar preponderante na vida social de nossa época, experimentamo-la também em suas correntes religiosas e místicas. Em algumas delas, vê-se o humanismo desagregar-se interiormente, e este processo de desagregação arrasta consigo a imagem humana e as forças humanas. Em outras, o humanismo é superado por princípios superiores, e o homem pede de novo a salvação de sua imagem e de suas formas às fontes divinas da vida. Mas, num e noutro caso, o Renascimento histórico chega ao termo

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e se produz um retorno aos princípios medievais, ora pelas trevas, ora pela luz. Houve no humanismo uma traição à realidade santa, e o homem paga essa traição ao preço da sua história, sofre desilusão sobre desilusão. Começamos, hoje, a assistir à barbarização do mundo europeu. Após a refinada decadência que marcou o apogeu da cultura européia, chega a vez da invasão da barbárie. Pode-se, aqui, dizer que a guerra mundial terá desempenhado um papel fatal nos destinos da Europa. A Europa civilizada, humanista, se despojou e acha-se agora sem defesa, em face da invasão bárbara, tanto por dentro como por fora. Os ruídos surdos da barbárie subterrânea já se faziam ouvir de há muito, mas a deliqüescente sociedade burguesa da Europa nada fez por salvaguardar as antigas e eternas realidades santas da Europa. Vivia descuidadamente, contando com uma prosperidade interminável. Tomba o crepúsculo sobre a Europa. As sociedades européias entram num período de vetustez e caducidade. Um novo caos de povos poderá sobrevir. Seria possível ainda a feudalização da Europa. Na história da humanidade, não existe progresso em ascensão retilínea, esse progresso em que os homens do décimo nono século acreditavam tanto que dele fizeram uma religião. Na história das sociedades e das civilizações, notam-se progressos orgânicos comportando períodos de juventude, de maturidade e de decrepitude, de florescimento e de ruína. Vivemos hoje, não tanto o começo de um mundo novo, quanto o fim de um velho mundo. Nossa época relembra o fim do mundo antigo, a queda do império romano, a consumpção e o esgotamento da cultura greco-romana, fonte eterna de toda cultura humana. As correntes modernas na arte fazem lembrar a perda das formas antigas perfeitas e a barbarização da antigüidade. Os processos sociais e políticos de nosso tempo fazem lembrar os processos que reinavam na época do imperador Diocleciano e que seqüestravam o homem. As pesquisas religiosas, filosóficas, místicas, de nosso tempo relembram o fim da filosofia grega e a investigação dos mistérios — a sede da encarnação, do advento de um Deus-Homem. Espiritualmente, o nosso

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tempo assemelha-se ao universalismo e ao sincretismo da época helenística. Imensa nostalgia invade a melhor parte da humanidade. É o signo do advento de uma nova época religiosa.

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IX

A experiência humanista devia ser consumada. As vias do humanismo estão hoje todas percorridas, trata-se de superá-las. A dialética interna e destrutora que o humanismo encobria forneceu ao homem gigantesca matéria de experiência. Ora, um retorno a esse estado mais simples em que se achava o homem europeu antes da era humanista dos tempos modernos é impossível. Os tempos modernos tudo desdobraram, aguçaram, acusaram no homem. Nisto é que reside a sua principal significação, muito mais do que em conquistas ou realizações positivas. As pesquisas dos tempos modernos nos dão um conhecimento grande. Pelo humanismo algo se entreabriu, um grande problema se apresentou. Hoje o homem dá por acabada uma vida separada do seu centro religioso, e a procura de um novo equilíbrio religioso para sua vida, isto é, um aprofundamento espiritual, está iminente. O homem, em todas as ordens da sua atividade, não pode mais manter-se por muito tempo no exterior, na superfície do ser. Ele tem de empreender um movimento em profundidade ou, então, de aventurar-se definitivamente e esvaziar-se. Depois das grandes provações e estremecimentos de nosso tempo, deve produzir-se um aprofundamento. Cabe ao homem europeu desembaraçar-se de uma vez por todas das ilusões humanistas. Não nos podemos mais manter-nos no reino do meio-termo. Produz-se uma cisão entre as duas partes opostas, o alto e o baixo. A julgar por sintomas numerosos, aproximamo-nos de uma nova época histórica, de

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uma época que se assemelharia à primeira Idade Média, àquela ainda obscura do sétimo, oitavo e nono séculos, que precedeu o Renascimento medieval. E muitos dentre nós devem sentir afinidades com os últimos romanos. É um sentimento nobre. Não despertaria algo de comparável na nova alma cristã de Santo Agostinho, quando ameaçava Roma o perigo do turbilhão do mundo bárbaro? Da mesma forma, presentemente, muitos de nós se podem considerar como os últimos e fiéis representantes da velha cultura cristã da Europa, ameaçada por enormes perigos exteriores e interiores. Através desta época de barbárie nova, embora civilizada, que pressentimos, será urgente conduzir o facho inextinguível como outrora foi conduzido pela Igreja cristã. É só no cristianismo que se revela e conserva a imagem do homem, a face do homem. O cristianismo liberou o homem dos demônios da natureza que o estraçalhavam no universo pagão, quero dizer, da demonolatria. Só a Redenção cristã pôde dar ao homem o poder de levantar-se e, espiritualmente, manter-se em pé; arrancou o homem ao império das forças elementares da natureza nas quais o homem tombara, das quais se tornara escravo. O mundo antigo elaborou a forma do homem. Nele apareceu a energia criadora do homem, mas a personalidade humana ainda se não havia libertado do domínio das forças elementares da natureza, o homem espiritual ainda não havia nascido. O segundo nascimento do homem, que não é mais natural senão espiritual, foi no cristianismo que sucedeu. O próprio humanismo recebe a sua verdadeira humanidade do cristianismo, a antigüidade não bastava para dar-lha. Mas o humanismo, em seu desenvolvimento, separou a humanidade dos seus fundamentos divinos. E eis que, quando, por fim, alcançou o humanismo arrancar o homem à Divindade, se voltou a um só tempo contra o homem e se pôs a destruir-lhe a imagem, porque o homem é a imagem e o símile de Deus. Quando o homem não quis mais ser senão a imagem e o símile da natureza, senão um homem natural, sujeitou-se por isso mesmo às forças

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elementares inferiores e alienou sua imagem. O homem se vê de novo estraçalhado pelos demônios, é impotente para resistir-lhes e defender-se. A reviravolta do humanismo contra o homem constitui a tragédia dos tempos modernos. É a causa da derrota fatal do Renascimento e da sua ruína inevitável. Os homens de nossa época dizem freqüentemente que o cristianismo não se efetivou, não cumpriu suas promessas e concluem pela inverosimilhança, pelo absurdo de um retorno a ele. Mas o fato de não haver a humanidade européia realizado o cristianismo, de o haver desfigurado e traído, não poderá constituir argumento válido contra a sua verdade e a sua autenticidade. Porque o Cristo não prometeu a realização do seu reino aqui em baixo, dizia que o seu reino não era deste mundo, predizia para o fim o triunfo da fé e do amor. A não-verdade da humanidade cristã é uma nãoverdade humana, uma traição e uma queda humana, é uma fraqueza e uma falta humana, e não uma não-verdade divina. Não teria sido injusta toda a indignação que provocou o catolicismo, se fôra dirigida contra a humanidade católica, mas não contra as coisas autenticamente santas da Igreja Católica. Somente o homem, desde o começo, alterava o cristianismo, desfigurava-o pelas suas quedas e, finalmente, se ergue contra ele e o trai, fazendo a verdade cristã responsável pelos seus próprios pecados e por suas próprias quedas. A vida espiritual criadora não é apenas encargo de Deus, mas também do homem. Oferece-se ao homem uma imensa liberdade, que é a imensa provação das forças do seu espírito. O próprio Deus, se se pode dizer, espera do homem a sua ação criadora, a sua contribuição criadora. Mas, ao invés de voltar para Deus a sua imagem criadora e de restituir a Deus a livre superabundância de suas forças, o homem despendeu e destruiu suas forças criadoras na afirmação de si mesmo, gravitando à periferia das coisas. Tudo isto causa grande tristeza. Parece que se desagrega e morre a beleza, que o livre jogo das forças criadoras do homem se tornou doravante

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quase impossível, que a livre individualidade do homem tenha chegado a seu termo. Contudo, haveria pusilanimidade e falta de fé em nos deixarmos levar ao abatimento. As capacidades de regeneração da natureza humana são infinitas. Não se pode, todavia, conceber hoje uma regeneração espiritual do homem e de suas obras senão através de um aprofundamento do cristianismo, através de uma última revelação da imagem de Cristo no homem, pela fidelidade à revelação cristã da personalidade humana. No cristianismo, a antropologia ainda não foi rematada. A revelação, no que concerne ao homem, não desenvolveu ainda todas as suas riquezas. Tal é o sentido do problema antropológico proposto por este humanismo que constituiu os tempos modernos, A Europa contemporânea, porém, foi muito longe na sua traição da revelação cristã da personalidade humana, entregando-a como uma presa aos turbilhões dos instintos elementares que se encarregam de a estraçalhar. Deixou, assim, penetrar no seio de sua civilização um princípio caótico que pode precipitá-la num período de barbárie. Mas nenhum turbilhão, nenhum instinto elementar é capaz de extinguir a luz da revelação cristã de Deus, do homem e do Deus-Homem. As portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eis por que a fonte da luz subsistirá, por mais espessas que sejam as trevas em torno. E nós devemos sentir-nos não apenas os últimos romanos fieis à antiga, eterna verdade e beleza, mas também os sentinelas voltados para o invisível dia criador do futuro, que verá levantar-se o sol do novo Renascimento cristão. Talvez que se manifeste, este Renascimento, nas catacumbas e não se produza senão para alguns. Talvez não se efetive senão com o fim dos tempos. Não podemos sabê-lo. Mas o que sabemos firmemente, em compensação, é que a luz eterna e a beleza eterna não podem ser destruídas por nenhumas trevas e nenhum caos. A vitória da quantidade sobre a qualidade, deste mundo limitado sobre o outro mundo, é ilusória sempre. E eis por que, sem temor e sem desencorajamento, devemos passar do dia da história moderna a essa noite medieval. Que a falsa e mentirosa luz se retire.

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X

Meu tema é europeu e não russo. A Rússia ficou fora do formidável movimento humanista dos tempos modernos, Não houve nela Renascimento, por ser o espírito do Renascimento estranho ao povo russo. A Rússia permaneceu eminentemente o Oriente e em nossos dias ainda permanece o Oriente. Nela jamais o princípio da personalidade completamente se desenvolveu. Ficou-lhe desconhecida uma rica floração da individualidade humana criadora. Mas os russos se apropriaram dos últimos frutos do humanismo europeu à época de sua desagregação, quando ele se destruía a si mesmo e se voltava contra a semelhança divina do homem. E nenhum povo chegou a tais extremos na destruição da imagem do homem, do direito do homem e de sua liberdade. Nenhum povo manifestou hostilidade tão aberta contra o desbordamento criador, ódio tão invejoso contra o florescimento da individualidade humana. Há nisto algo de aterrador para nós outros russos. Experimentamos em sua forma extrema a ruína do Renascimento sem ter vivido o próprio Renascimento, sem possuir nenhuma recordação brilhante de um passado rico em superabundância criadora. Toda a grande literatura russa ficou estranha ao espírito do Renascimento; não é uma superabundância de forças que sentimos nela, mas uma doença da alma, a torturante procura de um meio de fugir à perdição. Só em Pouchkine se pode discernir algo de re-

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nascentista, mas seu espírito não prevaleceu na literatura russa. Presentemente passamos pelo futurismo inimigo do Renascimento, sem ter vivido as fases criadoras do Renascimento; passamos pelo socialismo e a anarquia inimigos do Renascimento, sem ter vivido o livre florescimento de um Estado nacional; passamos pelas correntes filosóficas e teosóficas inimigas do Renascimento, sem ter conhecido a fascinação do conhecimento. Não nos foi dado viver a alegria de uma humanidade livre. Tal é em sua singularidade o amargo destino russo. Vamos, porém, sentir a nostalgia do aprofundamento espiritual. Teremos de investigar os fundamentos divinos do homem e de sua arte. É possível entre nós uma sanção religiosa da arte, das criações humanas? Jamais a forneceu a religiosidade russa. A ela é que se liga a possibilidade de uma regeneração espiritual da Rússia. Quem sabe se não seremos, nós outros russos, capazes de participar senão de um Renascimento cristão? Para isto, no entanto, faz-se-nos necessário passar por uma grande penitência e purificação; devemos consumir pelo fogo as superstições e a idolatria do humanismo mentiroso e destrutor, em nome da idéia cristã do homem.

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APÊNDICE



O ESPÍRITO BURGUÊS

Qual será, afinal, o verdadeiro significado da palavra “burguês”? Até hoje não se sabe ao certo, ainda que deste termo se tenha usado e abusado. Mesmo quando seu emprego é superficial, não deixa ele de possuir um poder mágico que lhe é próprio, e há que sondar-lhe as profundezas. A palavra designa um estado espiritual, uma orientação da alma para uma certa direção, um gênero peculiar de auto-consciência. Não indica uma categoria social ou econômica, mas tampouco se restringe a uma condição psicológica e ética — é algo espiritual, ontológico. Na parte mais recôndita de seu ser, ou não-ser, o burguês se distingue do não-burguês. Distinguese como um homem animado de um determinado espírito, ou marcado por uma determinada ausência de espírito, um desalmamento. O burguês sempre existiu no mundo, e sua imagem imortal está eternizada nos Evangelhos juntamente com sua antítese, igualmente imortal. No século XIX, porém, essa figura atingiu seu ápice e reinou suprema sobre a humanidade. Embora seja conhecida como burguesa no sentido sócio-econômico do termo, a sociedade do século passado é-o num sentido mais profundo, mais espiritual. Em pleno apogeu da civilização humana, esse espírito burguês amadureceu e subjugou a sociedade e a cultura. Sua concupiscência não mais encontra um limite nas crenças sobrenaturais do ser humano, como em épocas passadas; não há mais o simbolismo sagrado de uma cultura

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tradicional mais nobre para mantê-la agrilhoada. O espírito burguês conquistou a emancipação, disseminou-se e teve finalmente a oportunidade de expressar seu próprio modo de vida. Mesmo em meio ao triunfo da mediocridade, porém, alguns poucos pensadores de maior profundidade denunciaram-na com grande obstinação e desprendimento. Carlyle, Nietzsche, Ibsen, Bloy, Dostoiévski, Leontiev — todos estes anteviram a vitória do espírito burguês sobre uma cultura verdadeiramente grandiosa, em cima de cujas ruínas estabeleceria ele seu próprio reino nefando. Com força e ardor proféticos, esses homens expuseram as origens e os alicerces da existência burguesa e, escandalizados com tamanha feiúra, sequiosos de uma cultura mais nobre, de uma vida diferente, voltaram-se para a Grécia Antiga, a Idade Média, a Renascença ou Bizâncio. Leontiev expôs o problema com singular perspicácia: Não vos parece aterrador e humilhante pensar que Moisés subiu o Monte Sinai, que os gregos erigiram seus adoráveis templos, que os romanos moveram suas Guerras Púnicas, que Alexandre, aquele homem belo e genial, travou tantas batalhas envergando seu capacete ornado de plumas, que apóstolos pregaram, mártires sofreram, poetas recitaram versos, artistas pintaram e tantos cavaleiros brilharam em justas — tudo isso apenas para que uns tantos burgueses franceses, alemães ou russos, ostentando trajes absurdamente desagradáveis à vista, desfrutassem da vida “individual” ou “coletivamente” sobre as ruínas de todo esse esplendor extinto?

A história gorou. Não existe o tal progresso histórico. O presente não representa, de modo algum, uma evolução em relação às outras épocas: havia mais beleza no passado. A um período de alto desenvolvimento cultural, segue-se outro em que a cultura se deteriora qualitativamente. A sede de poder, de bem-estar e de riqueza triunfa sobre o anseio de santidade e genialidade. As realizações mais elevadas do espírito pertencem ao passado, a espiritualidade encontra-se em declínio, e uma época de decadência espiritual traz consigo a ascensão da burguesia. O cavaleiro e o monge, o

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filósofo e o poeta foram suplantados por um novo tipo humano: o conquistador burguês ganancioso, organizador e mercador. O centro da vida foi deslocado e transferido para a periferia, e a ordem hierárquica que a estrutura está sendo destruída. Na nova civilização industrial, capitalista e mecânica ora em formação na Europa e na América, a cultura espiritual do antigo Ocidente, fundada na simbologia e na tradição sagradas, encontrase em irrevogável processo de aniquilação. Dentre aqueles homens que se rebelaram contra o espírito burguês, um dos mais duros e intransigentes foi Léon Bloy, o notável e pouco conhecido escritor francês. Cheguei a dedicar-lhe um artigo, intitulado “O cavaleiro da pobreza”, publicado na revista Sophia em junho de 1914. Bloy, que atravessou toda a sua vida na obscuridade e na pobreza, escreveu um livro extraordinário, L’Exégèse des Lieux Communs, que é uma investigação minuciosa dos lugares-comuns da sabedoria burguesa. Sua interpretação metafísica dos provérbios que regem a vida burguesa é de uma espirituosidade espantosa. Ao analisar a frase — Dieu ne demande pas tant (“Deus não nos pede mais do que aquilo que podemos dar”) — Bloy procura penetrar os mais íntimos segredos que movem o coração, a mente e a vontade do burguês, e expor assim a metafísica e a mística que lhe são peculiares. O burguês, mesmo quando é um “bom católico”, acredita somente neste mundo, naquilo que é conveniente e útil. É incapaz, portanto, de viver com base na fé em um outro mundo e se recusa a fundar sua vida no mistério do Gólgota. “A superioridade magnânima do burguês apóiase na incredulidade, mesmo depois de ter ele visto e tocado. Mais ainda! Funda-se na absoluta impossibilidade de ver e tocar, em decorrência da incredulidade.” É um idólatra, o burguês, um escravo do visível. “A idolatria é o preferir o visível ao invisível.” O deus do burguês, seu absoluto, é o “empreendimento”. Foi o burguês quem crucificou o Cristo: no Gólgota, cortou a ligação do mundo com Ele, do “dinheiro” com os pobres. Os pobres e o dinheiro possuem grande valor simbólico para Bloy. Há um

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mistério envolvendo o dinheiro, uma misteriosa separação entre este e o espírito; e o mundo da classe média é regido por esse dinheiro que é privado do espírito. A existência burguesa opõe-se ao absoluto, combate a eternidade. Um burguês pode ser uma pessoa religiosa, mas essa religiosidade burguesa é mais odiosa aos olhos de Bloy que o ateísmo. Quantos desses burgueses idólatras não descobriu ele entre as fileiras dos “bons católicos” — Nosso Senhor Jesus Cristo pode ser um belo adorno na vitrine de uma loja! Bloy estuda o burguês comum. O problema, no entanto, é passível de aprofundamento, pois o burguês pode manifestar-se num plano superior e mais distinto, até mesmo nos mais elevados patamares da vida espiritual, onde paralisa, então, todo movimento espiritual e extingue o fogo que é a essência mesma do espírito. O burguês pode ser devoto. Pode até ser justo. Está dito 17, porém, que “a não ser que a vossa justiça exceda a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos céus”. E a justiça burguesa jamais excede a dos escribas e dos fariseus. O burguês adora dar esmolas “nas sinagogas e nas ruas” para ser “elogiado pelas pessoas”. Encanta-o “orar de pé nas sinagogas e nas esquinas” a fim de ser “visto pelos homens”. Ele ama julgar e é o primeiro a atirar pedras nos pecadores. Quando os discípulos colheram espigas no sábado, foi o burguês quem atormentou Jesus: “Olha! Por que fazem eles ao sábado o que é proibido?” E a resposta que recebeu contraria todo o ideário da classe média: “Digo-vos que está aqui algo de maior do que o templo. Se tivésseis sabido o que é quero misericórdia em vez de sacrifício, não teríeis condenado os inocentes. Pois Senhor até do sábado é o Filho do Homem (...). O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.” Foi ainda o burguês quem disse: “Veio o Filho do Homem Seguem-se citações de várias passagens dos Evangelhos, que Berdiaev cita de memória, provavelmente. Não se os indicou nestas notas porque o autor, embora não os distorça, utiliza-os de modo um tanto livre, conforme lhe convenha para construir seu raciocínio; motivo pelo qual são muitos e diversos os trechos e seria enfadonho indicar todos eles por meio de notas de rodapé. [N. do T.]

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comendo e bebendo (...) eis um comilão e um bêbedo, amigo de cobradores de impostos e de pecadores.” Pois ele não tem amor pelos cobradores de impostos e os pecadores. Sua afeição é pelos fariseus probos. O burguês está convencido de que aquilo que entra pela boca de um homem torna-o impuro, embora lhe tenha sido dito: “O que sai da pessoa, isso é que a torna impura.” Dirigindo-se ainda ao burguês, disse Cristo: “Amém, vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas irão à vossa frente para o reino de Deus (...). Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado.” Porém, “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque trancais o reino dos céus diante das pessoas. Nem entrais vós nem deixais que entrem os que estão para entrar.” E ainda: “Qual é o que vale mais? A oferta ou o altar, que sagra a oferta?” Quando o burguês observou que “Ele come e bebe com os cobradores de impostos e os pecadores”, Jesus respondeu: “Os saudáveis não têm necessidade de um médico, mas sim os doentes. Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores.” Também estas outras palavras de Cristo dirigem-se diretamente ao burguês: “Quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á. Mas quem perder a sua vida por minha causa encontrá-la-á. Pois no que ficará beneficiada uma pessoa se ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua vida?” O burguês está interessado em conquistar o mundo inteiro, e Jesus lhe diz: “Ai de vós (...) porque amais o primeiro assento nas sinagogas e as saudações nas praças públicas.” E seus interesses nas coisas deste mundo, Jesus repudia-os nestas palavras: “Não procureis o que haveis de comer ou beber (...) pois as pessoas do mundo é que andam à procura de todas estas coisas; mas o vosso Pai sabe que tende necessidade delas. Procurai antes o Seu reino e o resto vos será dado por acréscimo.” Um coração burguês é um coração condenado: “(...) vós por fora pareceis justos aos olhos dos outros, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade.” Àqueles que escolheu, Cristo disse: “Se fôsseis do mundo, o mundo vos amaria como coisa sua. Mas porque não sois do mundo, mas eu vos escolhi do mundo, é por isso que o mundo vos odeia.”

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“O mundo” é o espírito burguês. Não é a Criação (o cosmos, que o Filho de Deus não poderia negar), mas a escravização e cumulação da Criação pelas paixões e pela concupiscência. O burguês é alguém que ama “o mundo”. O eterno repúdio ao princípio mesmo que lhe orienta o espírito é o que está expresso nas seguintes palavras: “Não ameis o mundo nem o que há no mundo.” A condição burguesa é uma condição de cativeiro, de estar atado ao “mundo”, escravizado por ele. Envolve a rejeição da liberdade de espírito que advém quando nos libertamos do poder do “mundo”. Não aceita o mistério do Calvário, nega a cruz. A consciência burguesa é o oposto do sentimento trágico da vida: o homem que passa por uma tragédia liberta-se da mácula, e nos momentos verdadeiramente dramáticos da vida, o burguês deixa de ser burguês. Mas onde se encontrarão as raízes dessa doença? Ora, em uma fé excessiva neste mundo visível e na descrença num outro mundo, invisível. Este mundo de coisas materiais impressiona o burguês, instiga-o, tenta-o. O burguês não acredita seriamente na possibilidade de uma outra existência, em um ser espiritual; não sente confiança alguma na fé de seu vizinho. Em vez disso, pensa, invariavelmente: “Eu vos conheço, sois todos exatamente como eu, exceto que não o admitis; fingis e enganai a vós mesmos.” Todos vivem dos bens deste mundo, todos são esmagados pela realidade exterior, e o burguês, por ter consciência desse fato e reconhecê-lo, considera-se superior aos outros. Não é nenhum simbolista, tampouco. A perspectiva segundo a qual a totalidade do mundo visível e transitório não passa de símbolo de uma outra realidade, invisível, é totalmente alheia a ele. O burguês é um realista ingênuo. A única perspectiva que leva a sério é esta espécie infantil de realismo. Quando é um crente, quando pertence a alguma denominação religiosa, também adota esse mesmo realismo simplório. Mesmo quando é um cristão ortodoxo, o burguês não vincula essa sua “fé” à perspectiva que adota diante da vida, marcada pela subserviência

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COLOFÃO Esta obra foi composta em corpo Adobe Garamond Pro 11 e títulos em Minion Pro Cond 24/16 no mês de março de 2017 — centenário das aparições de Nossa Senhora de Fátima e da Revolução russa — para a Arcádia Editora.


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