Impresões e expressões - José Geraldo Vieira

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Impressões & Expressões



IMPRESSÕES &

EXPRESSÕES

JOSÉ GERALDO VIEIRA

ARCADIA


Ficha Catalográfica Vieira, José Geraldo, 1897–1977 Impressões & expressões / organização e seleção de Daniel André Pacheco Fernandes, edição de Jefferson Bombachim e Luiz Cezar de Araújo. – Curitiba, PR: Arcádia, 2016. 316 pp. ISBN: 978-85-92855-02-4 1. Literatura brasileira. 2.Ensaios. 3.Crítica literária. 4. Contos. I.Título.

Editor: Jefferson Bombachim Luiz Cezar de Araújo Coordenação editorial; Seleção & Organização: Daniel André Pacheco Fernandes Revisão: Ademir Júnior Sousa Amaral Capa: Matheus Bazzo

Os direitos desta edição pertencem à Editora Arcádia Rua Fioravante dalla Stella, 262 – Cristo Rei, – CEP: 80050-150 Curitiba, PR E-mail: contato@ arcadiaeditora.com.br – Site: www.arcadiaeditora.com.br Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.


AGRADECIMENTOS

A publicação deste livro somente foi possível porque as seguintes pessoas colaboraram com a nossa campanha de financiamento coletivo. A elas, a nossa gratidão: Adriano Rodrigues Albert Günther Alex Quintas Alexandre Ademar Alves Aluísio Alberto Dantas Alysson Souza Moura André Carezia Andre Couto André Victor F. Nascimento Antônio Angueth de Araújo Antonio César Landi Junior Antonio Emicherlles Arli Júnior Arthur D. Friedheim Tenório Augusto Carlos Pola Júnior Bruce Oliveira Carneiro Bruno Castagin Bruno Leal Bruno Mendes Bruno Vallini Carla Farinazzi

Carlos Eduardo A. de Pádua Carmen Juliani Celio Antonio Pereira Junior Célio Oda Moretti Cesar Augusto Cavazzola Junior Cesar Claudio Gordon Cesar Cotillo Cesar Mattar Cesario Mattar Neto Christian Avila Cleber de oliveira tavares neto Clotilde Grosskopf Cristiano Lima Cristiano Nunes Laureano Daniel Batista de Siqueira Daniel Braga Daniel Gurjão Daniel Laier Daniel Rochebois Quintão Daniel Vitor Rizzi Isotton Diego Podolsky Paes


Diogo Fontana Diogo Valduga Ederson Oliveira Edgar Martins Lirio Edgar Wiese Zacchi Edilson José da Rosa e Silva Eduardo Fernandes Elpidio Fonseca Emerson Marinho Ennio Layon Dyego G. Matos Enrique de Moura Villanova Eric Cari Primon Ernane Siqueira Fábio Borges de Moura Fabio Furtado Pereira Fabio Mello Fábio Salgado de Carvalho Felipe Oquendo Felipe Sabino de Araújo Neto Félix Ferrà Fernando César Borges Peixoto Flávio Antônio Catanese Jr Fred Giovani Mezaroba Gabriel Castro Gabriel Melati Germano Augusto Rios Ferreira Gilmar Siqueira Gilsonei Aguiar Junior Giovane Goulart fiorentino Giovani de Jesus da Silva Glauco Rocha Gleydson Avelno

Gracian Li Pereira Guilherme Batista A. Ferreira Guilherme Bessa Guilherme Roque Gyordano W. Bordignon Halana Paula Burali Garcia Helio Angotti Neto Henrique Cal Hugo Prado Amaral Humberto Campolina Ítalo França Ivan Jacopetti do Lago Izabel Christina Ghermacovski Jeanderson de Olveira Jefferson G. de S. Albuquerque Jessé de Almeida Primo João Mario Figueiredo Fradera Johann Alves Jorge Camargo José Armando V. Delarovere Julian Ritzel Farret Krishnamurti Andrade Laerte Lucas Zanetti Leandro Casare Leonardo Ferreira Boaski Leonardo Lindbergh Lincoln Almeida Lucas Lacerda Lucas Mendes Luís Gustavo Rodrigues Antunes Luis Mattos Luiz Carreira


Luiz Felipe Adurens Cordeiro Luiz Felipe Ribeiro Lysandro Sandoval Marcelo Cabral de Lucena Marcelo Pasqualette Márcio Elton Marco Antônio Batista de Lima Marco antonio Gomes da silva Marcos Paulo Ferreira Silva Mariana Belmonte Mateus Matos Diniz Matheus Noronha Sturari Matheus Regis Mauro Ventura Moreno Garcia e Silva Nestor Emilio Luersen Nilson Marques Cabral Ovidio Rovella Paulo Brito Paulo de Tarso Pereira Paulo Rogério de Pinho Filho Philippe Nizer Pietro Aires Rafael Carvalho Rafael Lahm Rafael Rodrigues Raïff Dantas Barreto Raimundo Felipe De Aguiar Renato Guimarães Renato Silva

Ricardo Altava Rinaldo Oliveira Araújo de Faria Roberto Smera Rodney Eloy Rodolfo Correia Rodrigo Benevenuto Cantalejo Rodrigo Dubal Rodrigo Fernandez Peret Diniz Rodrigo Lacroix Rodrigo Moura Elarrat Rodrigo Palmeira Ruy Fabiano Rabello Sandro Ebone Sérgio Del' Arco Filho Sérgio Vidal Araújo Silvia Maria Dario Freitas Silvio Donatangelo Tadeu Guimarães Kangussu Jr. Thiago Baran Thiago Neves Tiago Abi-Ramia Tomoyuki Honda Ulysses Siqueira Vanessa Shiguemoto Vanúsia Silva Araújo Veríssimo Anagnostopoulos Victor Hugo Barboza Vinicius Pedrosa Botelho Willian Vieira Ajala Yuri Prestes Rehme


Apoio institucional:


ÍNDICE Conhecendo José Geraldo Vieira ......................................................... 13

PARTE I Crítica & Literatura A biblioteca imaginária ................................................................ 43 A crítica e seu handicap ................................................................ 52 Combatendo o narcisismo ........................................................... 56 Ensaios & Ensaístas O camarada Whitman — Joaquim Nabuco ................................. 63 Joaquim Nabuco ......................................................................... 67 Ensaios filosóficos ........................................................................ 70 Notas sobre o Aleijadinho ............................................................ 74 Romances & Romancistas O estilo de Rachel de Queiróz ..................................................... 81 Grandes esperanças ...................................................................... 85 Saul Bellow, um romancista diferente .......................................... 89 Somerset Maugham ..................................................................... 92 Stendhal ...................................................................................... 97 Bernanos ................................................................................... 101


O jovem José ............................................................................. 105 José no Egito ............................................................................. 110 Luz de agosto............................................................................. 114 No caminho de Swann .............................................................. 117 Obras de Dostoiévski em português ........................................... 121 A lição de Henry Fielding .......................................................... 125 A comédia humana .................................................................... 128 Orlando..................................................................................... 131 Ainda e sempre o termômetro de gerações ................................. 134 Pavilhão de mulheres ................................................................. 137 Atenção! Dois homens caíram no Sol! ........................................ 141 Poesias & Poetas Rilke, órfico e místico ................................................................ 147 Rilke, objetivo e plástico ............................................................ 152 A poesia de Beatrix Reynal ......................................................... 156 Valéry e a poesia francesa ........................................................... 160 Oscar Venceslas ......................................................................... 166 René Char ................................................................................. 169 Poemas traduzidos ..................................................................... 172 A inserção de Guerra Junqueiro na moderna poesia portuguesa..176 Goethe, símbolo e mito ............................................................. 180 Centenário de Edgar Allan Poe .................................................. 183 Segredos da infância .................................................................. 187 O galo branco ............................................................................ 190 Poesia, superação da vivência ..................................................... 193


O conto & O teatro 7 anos de pastor ......................................................................... 201 Cogumelos ................................................................................ 205 Seis dramas de Ibsen .................................................................. 209 Literatura & Infância Livros para a infância ................................................................. 215 Biblioteca infantil ...................................................................... 219 História do mundo para crianças ............................................... 223

PARTE II Crônicas & Contos Simone Weil.............................................................................. 233 Naufrágio no mar vermelho ....................................................... 239 Uma noite de São João .............................................................. 244 Um pobre diabo ........................................................................ 252 A IX Sinfonia ............................................................................ 256 Recordações & Memórias Aliocha-Michkin-Carlitos .......................................................... 265 Plataforma um, plataforma dois ................................................. 274 Confissões ................................................................................. 279 Demolições................................................................................ 282 Martins Fontes .......................................................................... 291 Mansarda Acesa ............................................................................... 295



CONHECENDO JOSÉ GERALDO VIEIRA Francisco Escorsim ∗

A Primeira Existência de José Geraldo Vieira José Geraldo Vieira nasceu no Rio de Janeiro em 1897, um ano depois de sua família ter vindo dos Açores. Sua infância foi solitária e marcada pela perda, começando pela de seu irmão gêmeo, Manuel Germano, falecido aos 3 meses de idade. Tinha outras duas irmãs mais velhas, Adelaide e Ermelinda, mas ambas foram muito jovens estudar na Suíça, não tendo convivido muito com ele, tanto que em Território Humano, romance autobiográfico retratando sua infância, as irmãs mal aparecem. Como seus pais viajavam muito a trabalho, José Geraldo passava longos períodos na casa de seu tio, Manuel Correia Vieira Jr., um rico industrial de tecidos. Mas também os tios viajavam com freqüência e o menino ficava mais com as empregadas da casa do que com seus parentes.

Francisco Escorsim é colunista do jornal Gazeta do Povo, advogado, professor e estudioso da vida e obra de José Geraldo Vieira.

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Em 1908, quando tinha 11 anos de idade, sofreu a perda maior até então, padecendo da primeira tragédia de sua vida: seus pais morreram em um intervalo de poucos meses um do outro. Passou a morar na casa dos tios em definitivo. Suas lembranças mais felizes da infância foram vividas nessa casa. Costumava se enfiar debaixo dum piano de cauda quando a tia tocava, escutando enquanto folheava um Larousse ilustrado. Eram momentos felizes porque a tia somente tocava piano quando estava de muito bom humor, o que acontecia quando recebia notícias do marido que estava voltando de viagem ou da visita próxima de algum irmão dela. Por outro lado, quando recebia notícias ruins, como a de que o marido iria emendar uma viagem atrás da outra ou que não viria na época agendada, ficava um azedume só, verdadeira megera com as empregadas e fazia José Geraldo, que tinha quarto próprio, dormir na cama dela. Outra recordação feliz é a de ficar no quintal da casa lendo livros. Dois tiveram importância fundamental em sua formação. O primeiro foi Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, que fez parte dos currículos das escolas brasileiras até, pelo menos, a década de 1970, tendo mais de 40 edições. É uma obra reunindo todos os escritores de língua portuguesa existentes até aquele momento, não apenas brasileiros. Para cada autor, depois de uma pequena biografia, segue-se excertos de suas principais obras. Com este livro José Geraldo adquiriu, no mínimo, uma perspectiva histórica e literária da língua portuguesa, mas é possível também ver aqui a fonte do seu “estilo em redoma” que tenta abarcar tudo, conforme suas próprias palavras i. O segundo livro foi ainda mais relevante: O Coração, de Edmundo de Amicis. Publicado na Itália em 1886, traz a narrativa de um menino de cerca de 10 anos, ora em forma de diário escolar, com pequenos contos passados pelo professor na escola e copiados pelos alunos, ora com cartas

Depoimento do autor em “José Geraldo Vieira no Quadragésimo Ano da sua Ficção”, publicado pelo Conselho Estadual de Artes e Ciência Humanas do Estado de São Paulo e pela Imprensa Oficial do mesmo Estado, IMESP. i

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recebidas dos seus pais. O impacto do livro na Itália foi impressionante. Em dois meses já estava na 41ª edição. Dois anos depois, de 1888 para 1889, ia para sua 101ª edição. Em 1920, já tinha alcançado a marca de um milhão de exemplares vendidos, só na Itália. Por lá, aliás, foram feitos vários filmes baseados no livro durante todo o século XX, talvez o mais famoso seja um de 1940, de Vittorio de Sica. Mas não foi apenas na Itália que o livro teve tamanho impacto e influência. É considerado um dos livros mais lidos de todos os tempos, tendo sido traduzido em 25 línguas. Virou desenho animado no Japão. Fez sucesso em Israel nos anos 1950. Inúmeros escritores citam esse livro como um de seus mais queridos, como Gabriel Garcia Márquez. No Brasil, influenciou gerações, pois foi publicado em 1891 e sistematicamente reeditado até 1968, quando foi registrada a sua 53ª terceira edição, tendo sido adotado pelo sistema de ensino durante todo esse período, virando até novela da TV Rio, em 1964. Além de José Geraldo Vieira, vários de nossos escritores foram impactados pela obra, como Marques Rebelo. A razão do sucesso do livro decorria da unificação italiana acontecida em 1860, servindo como manifesto do valor do patriotismo, apelando a um sentimentalismo bastante exagerado. Otto Maria Carpeaux, em sua obra magna História da Literatura Ocidental, dedicou três linhas ao livro, afirmando que esse sentimentalismo sufocava toda a obra. Foi justamente isso, esse sentimentalismo exacerbado, que impactou profundamente José Geraldo Vieira. Em vários de seus livros ele cita O Coração, sempre com carinho, mas a influência maior está no seu estilo. Não é raro a benevolência e o padecimento, temas recorrentes em seus livros, ganharem expressão de arrebatamento sentimental, seja de ternura, seja de dor. Nesse sentido, aliás, em meados da década de 1950, José Geraldo revisou seus livros até então escritos, podando muito dessa pieguice, do que falaremos adiante. Quanto à sua formação escolar, estudou no Colégio Santa Rosa, em Niterói-RJ, dirigido por padres salesianos, formando-se em Ciências e Letras — equivalente ao término do atual ensino médio. Também estudou Humanidades no liceu Condorcet, em Paris, a partir de 1911, onde ficou

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até 1914. Neste ano, retornou ao Brasil, matriculando-se na faculdade de Medicina da Praia de Santa Luzia, no Rio de Janeiro, posteriormente voltando a Paris para se especializar em Radiologia, também estudando na Alemanha. Sua vida de adolescente e jovem foi a de um típico burguês, quando no Rio de Janeiro passava seus dias praticando natação e remo no Boqueirão do Passeio, freqüentando os clubes de rua do Passeio, as confeitarias Alvear e Renascença, os teatros Lírico, Municipal e Trianon, apostando corridas de carro, indo às pistas do Flamengo e Niemeyer, ceiando no Largo do Machado e no Mère Louise, no Leme. Foi nesse contexto que deu início à sua carreira literária. Em 1912, quando tinha apenas 15 anos, fez sua estréia com a publicação de um poema na revista Fom-Fom, famosa na época. Aos 20 anos, em 1917, passou a publicar contos semanais em O Jornal, os quais formam seu livro chamado A Ronda do Deslumbramento, lançado em 1922, seu segundo livro publicado. O primeiro publicado foi O Triste Epigrama, em 1920, escrito numa única noite de 1919, na véspera de uma viagem à Europa, muito influenciado pelo poema A Balada do Cárcere, de Oscar Wilde. Quando do lançamento deste, varou a noite bebendo com amigos em um iate, sofrendo um trote dos colegas que o lançaram ao mar por volta das cinco da manhã, em comemoração. Sobre essas primeiras obras, porém, José Geraldo não considerava mais do que testes, exercícios de virtuosismo, razão pela qual jamais permitiu fossem reeditadas. Em suas palavras:2 “Por isso, nos meus dois primeiros livros, fui sobrepondo contos e escritos em terraços de cafés, à guisa de escadas cromáticas, de modo a gradualmente conseguir virtuosismo. Buscava temas em autores e, principalmente, na vida, e buscava desinserir dos autores à sua contingência humana, observando-os na rotina diária de meros transeuntes, de modo a despi-los da indumentária de mitos e epílogos. Assim foi que na esquina da Avenida Central com Rua do Ouvidor, plantado rente a uma vitrina da Garnier, eu via todas as tardes saltar do automóvel um sujeito hercúleo, de fraque e de chapéu desabado, bigodes lustrosos virados para cima, andar solene e cadenciado, passeando a sua imponência parnasiana, era Alberto Oliveira. Pouco depois saltava dum landau arcaico um indivíduo

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histórico, com cabeça de castanha-de-caju, e que antes de se dirigir a pé ao Cinema Ideal na Rua da Carioca, onde dispunha de poltrona reservada, tinha o hábito de dar um giro anônimo até a Livraria Briguiet. Sempre o observei emocionado como avatar retórico do Padre Vieira, até o dia em que um mendigo o seguiu engrolando humildemente uma esmola. Vi-o e ouvi-o então bradar fanhoso e irritado para o pedinte e talvez para mim também: “Não me amole!” Era Rui Barbosa. Foi assim, com pruridos iconoclásticos de protodadaísta, que consegui dissociar em cada escritor a obra e o homem, que até então eu supunha uma hipóstase anátomo-espiritual. Sim, havia a vida mesmo, mais interessante do que a imaginação.”

A busca pela vida verdadeira. Não seria exagero assim intitular esse período da biografia de José Geraldo Vieira. Não apenas a procurava nos seus próximos, mas muito mais em si, para si. Em entrevista dada em 1956 ii, quando perguntado sobre sua maior emoção na vida, respondeu contando uma experiência vivida nesse período de juventude, em 1919: “Foi nos Açores, quando conheci meu avô, o tipo do patriarca. Saltei em Angra do Heroísmo, em 1919, e, enquanto a lancha me levava de bordo para o porto, descobri na escadaria a figura de meu avô, que eu conhecia de retratos. Senti um arrepio, como se ele me fosse interrogar sobre meus propósitos de vida. A sensação é talvez sutil para eu transmitila em uma entrevista. O fenômeno é interior, íntimo.”

O sentido da vida, enfim. Nessa época, José Geraldo ainda era um homem à procura desse sentido. Seu tio, que muito lhe conhecia e amava, sabedor da incerteza sobre quem o sobrinho queria ser e fazer da vida, embora já escrevesse e a medicina lhe fornecesse o script dos anos futuros, recomendou-lhe que ficasse na Europa com a desculpa de se especializar, mas, quero crer, visando muito mais dar ocasião para o sobrinho se encontrar. Assim, a decisão de estudar radiologia na Europa surgiu por lá mesmo, como José Geraldo nos contou em sua quarta obra, a mais autobiográfica

Vide nota 1. Entrevista publicada no jornal Folha da Manhã, edição de 29 de janeiro de 1956, pg. 59.

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de todas, Território Humano, quando em uma conversa com o tio, este lhe disse: “— Dentro de dias sigo com Elisa para Londres e de lá toco para o Brasil. Matricule-se num curso de especialização, alugue um apartamentozinho. Deixo-lhe boa mesada e uma carta de ordem renovável. Depois da França, a Alemanha, não é? Permaneça na Europa o tempo que for necessário; quatro anos no máximo. Comece desde já a orientarse, e a providenciar. (...) Ah! Uma coisa, ainda. Permanecer em Paris um rapaz da sua idade, exposto a casos frívolos mas que podem gerar complicações, é hipótese que me preocupa um pouco. Aquela história com a Norma, em que pé ficou? Escusado acentuar-lhe que sua tia e eu teríamos muito gosto num compromisso. Decida sozinho, comunique-me o seu ponto de vista depois; tem tempo.”

Norma era, na vida real, Elizabeth Câmara Vieira, uma prima de José Geraldo com quem trocava cartas desde a infância. Entretanto, no mesmo dia desta conversa, tio e sobrinho voltaram a se encontrar no vestíbulo do hotel e se dirigiram ao apartamento da tia para chamá-la. José Geraldo nada tinha decidido sobre a sugestão de se casar com a prima, sequer teve tempo de pensar nisso, mas: “(...) o tio mal entrou no aposento do lado foi dizendo: — Filhota! O José vem pedir-te a Norma em casamento...”

O trecho é revelador de como o sobrinho era tratado pelos tios. Como ele realmente noivou com a prima nessa época, mas continuou tendo seus casos amorosos em Paris, mais do que verossímil concluir que decidiu pelo noivado mais para agradar os tios, ainda que sentisse grande afeto por Elizabeth. Até porque não eram simples casos. Além de ter se relacionado com uma romena ruiva, meio andarilha, José Geraldo teve algo mais sério com uma cocotte francesa, pois a cada vestido encomendado para a noiva, José Geraldo também encomendava outro igual para sua amante. Quando retornou ao Brasil em 1922, aos 25 anos — mesmo ano de lançamento de A Ronda do Deslumbramento —, montou um consultório

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no centro do Rio, passando a trabalhar como radiologista-chefe na Beneficência Portuguesa e na Associação dos Empregados do Comércio, onde ficou até 1941, e casou-se, enfim, com Elizabeth. Em Carta a Minha Filha em Prantos — que é uma carta real escrita para uma de suas filhas, em 1943 — , temos registro de como era sua vida de casado. Moravam na casa exatamente ao lado da dos tios de José Geraldo e assim viviam: “(...) Eu e tua mãe ficávamos relegados para um plano simbólico, na casa ao lado que apenas um gradio separava. É que tio Vieira e tia Zinha, que me haviam herdado de meus pais mortos, vos herdaram de vossos pais vivos. Acabada a fase de amamentação, mesmo antes de sobrevir a dentição, os tios — para todos os efeitos avós — se apoderaram do pátrio poder, pois mal amanhecia e a passarada ao sol vos acordava, já as amas vos levavam para a casa ao lado. Dormíeis no 822, mas vivíeis no 826. Sistema que continuou depois que nasceram a Betina, a Marta e o Pedro Henrique. Ó tempo arcaico do rádio com galena! Mil novecentos e vinte e tanto... Em minha casa — um anexo que nem pavilhão da casa grande, dela separada por número, impostos e gradil, por fora, mas por dentro, linda como uma maquete de embaixada — eu e tua mãe, entre quadros e preciosidades que "sobravam" do 826, a esperarmos por vós. Às vezes vos íamos buscar, fazendo uma visita aos Zéios, provando a sobremesa, conversando... Esses contatos que nem sempre cerram, que às vezes afrouxam a vida que é tão dura, tão errada na mocidade... Às vezes uma solução singela, em mera conversa, uma confissão espontânea salvaria tanta cousa! Mas há o amor próprio, a disciplina, a vaidade, o medo patriarcalmente investido na forma vária de sujeição, mentira e disfarce...”

Como se vê, José Geraldo ainda não era um homem maduro. Vivia mais como sobrinho/filho do que marido e pai. É nesse contexto que, em 1924, aos 27 anos, escreveu seu primeiro romance, A Mulher que Fugiu de Sodoma, em três dias e três noites de carnaval, o que é muito simbólico. Entretanto, não teve coragem de publicá-lo de imediato, só o fazendo em 1931, por receio de que fossem considerá-lo autobiográfico. Embora jurasse não fosse, fica difícil assim não considerar, pois quando escreveu Território Humano, o livro seguinte e confessadamente autobiográfico,

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constata-se que a vida que o personagem levou em Paris, em A Mulher que Fugiu de Sodoma, guarda semelhanças com aquela vivida por José Geraldo quando esteve por lá, noivo de Elizabeth. Este primeiro romance, considerado dessa perspectiva biográfica, significa a continuidade da busca pelo sentido da vida, a vida verdadeira e real, não disfarçada, mas espontânea. Ou seja, a típica vida burguesa vivida até ali, feita de aparências, de prazeres, divertimentos, conforto e segurança, sem maiores responsabilidades, cujo resultado não costuma ser outro senão uma vida refém de vícios, uma vida da qual se enjoa, sobrando tédio e vazio espiritual, esta vida precisava, em alguma medida, morrer ou então ele, dela, fugir. Eis, aliás, um dos temas recorrentes nas obras de José Geraldo: o exílio, não como solução, mas necessidade de fuga. Por isso, o livro não deixa de ser também uma súplica por socorro e salvação de quem não conseguia mudar de vida. Nesse sentido, quando o personagem Teodósio pergunta a um dos protagonistas, Mário, se a causa de sua melancolia e tormento não era pela necessidade dele escrever a alguém que o compreendesse, um alguém ainda inexistente, isso se aplicava a José Geraldo, certamente. Era, no fim das contas, exatamente isso que estava fazendo ao escrever esse livro. Por isso, essa obra em especial tem importância capital em sua vida, pois alguém passou a existir em razão dele. De fato, lendo A Mulher que Fugiu de Sodoma sua “alma gêmea” o descobriu, decifrando seu apelo e entrando em sua vida como amante e personagem arquetípico presente em todos seus futuros romances. É a Adri, de Território Humano, a Jandira, de A Quadragésima Porta, a Renata, de A Ladeira da Memória, e por aí vai. Seu nome real ainda não descobri, tendo apenas uma pista de ser uma possível prima de um ex-presidente da república, o que explicaria a reserva de José Geraldo em relação a isso, até o fim de sua vida. O caso de amor dos dois está contado, e romanceado, especialmente em Território Humano e A Ladeira da Memória. Foi a época mais feliz da vida de José Geraldo Vieira. Nesse ínterim, em 1933, quando contava 36 anos, no ano de nascimento de seu quinto e último filho, o único homem, Pedro Henrique, sua

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tia morreu. Na semana seguinte, a família toda se mudou para a casa ao lado, a do tio. Mais um ano, porém, e foi a vez do tio falecer, encerrando assim a primeira metade da vida de José Geraldo, o fim de um ciclo, como ele mesmo dizia. Decidiu vender tudo, mudando-se para Ipanema com a família, onde começou a escrever seu segundo romance, o já citado autobiográfico Território Humano, que seria publicado pela José Olympio em 1936. O simples fato dele ter demorado a publicar o primeiro por receio de acharem fosse autobiográfico e no seguinte publicar um confessadamente autobiográfico dá bem a medida do processo de maturidade pelo qual passava. O disfarce da vida começava a ser retirado. José Geraldo só começou a escrever seu terceiro romance em 1938, aos 41 anos. Sua relação com “Renata” continuava, assim como seu casamento. A amada muito lhe ajudou na escrita de A Quadragésima Porta, um romance ecumênico, segundo o próprio José Geraldo. É tido por muitos críticos como sendo seu melhor livro. Entretanto, em 1940, antes de finalizar o romance, a segunda maior tragédia de sua vida aconteceu: sua amada morreu de tuberculose. José Geraldo despencou num inferno pessoal de crises de angústia e depressão. Não se separou da esposa, mas não podia mais permanecer vivendo como vivia. Abrindo o mapa do país, descobriu Marília, no interior de São Paulo, decidindo lá viver porque o nome lhe evocava o lirismo do grande poema Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, que o escreveu para sua amada, D. Maria Joaquina Dorotéia de Seixas Beltrão, desde o degredo a que foi condenado por participar da conjuração da Inconfidência. Literatura e vida real, nesse momento, tornaram-se uma coisa só e José Geraldo, tal qual seus protagonistas de A Mulher que Fugiu de Sodoma e Território Humano, partiu para Marília “no afã da fuga e do exílio”. iii

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Trecho da última frase de A Mulher que Fugiu de Sodoma, na versão revista de 1956.

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PARTE I



CRÍTICA & LITERATURA



A BIBLIOTECA IMAGINÁRIA Suplemento Literário, Estado de S. Paulo, 25 de outubro de 1969

Assim como foi possível a Malraux formular o seu Museu Imaginário — constituído de arquétipos gráficos e plásticos da criação artística mundial — que nos seja concedido supor uma biblioteca imaginária, arquivada não no bojo espiralóide de Etemenanki, a Torre de Babel, mas na nossa memória bibliográfica. Para tanto não seremos obrigados a valer-nos das equipes do Boletim da Unesco para as Bibliotecas, pois não se trata dum trabalho estatístico e sim de averiguar no acervo literário aqueles principais epônimos passíveis de temáticas ambivalentes, isto é místicas e profanas, rotineiras e esotéricas, realistas e mágicas, empíricas e cientificistas. Bastaria, pois, que, percorrendo a criação contínua, seguíssemos a força motriz que a partir do nada engendra nova matéria com uma velocidade suficiente para compensar o desaparecimento da anterior; e isso no limite do universo observável. Pois que a literatura também obedece à constante cósmica de Friedmann ou ao

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efeito Doppler, sendo ela, outrossim, um fenômeno de expansão e de contração no contínuo Espaço-Tempo que, aliás, sempre existiu por si só, independente da eventual presença ou ausência da matéria. Assim, sempre houve como algo difuso na poesia, o grande ímã da Revelação, a permanente disponibilidade de Brama, a essência anímica do universo a atuar sobre a hylé, a matéria elementar e disponível, abstrata e concreta. Seria, portanto, um erro, supormos que durante milênios a literatura tenha sido apanas geocêntrica, confinada à Terra, enquanto se pensava que as estrelas formavam parte dum globo a rodar regularmente em redor da Terra constituindo um universo finito. O que ela foi e sempre será é antropocêntrica, mesmo quando referente ao divino, ao demiúrgico e ao goético. Se o Rig-Veda trata de assuntos profanos, contudo uma de suas partes, o Atarva-Veda, está impregnada de magia, ao passo que já nas Upanixadas há conselhos éticos e em Ramáiana, as façanhas do herói Rama concernem à encarnação do deus Vichnu. Ora, isso contrabalança em plano esotérico o tema histórico, embora ainda mítico, do Pantchatantra, série de sagas humanas onde se iriam inspirar séculos depois Boccacio, Shakespeare, Goethe e La Fontaine. A própria história mesmo, em sua fase protéica de lenda, obrigatoriamente foi geocêntrica e antropocêntrica; em seu início se manifesta em forma de epopéia em Gil-gamesh, com a narração absurda do dilúvio; em Enuma-Elish restringe-se a relato quase surrealista das origens do mundo, descambando em Ishtar para o âmago do inferno, donde a rainha foi libertar o seu amado, um pastor morto por um Javali. Se, pois nas literaturas hindu e assírio-babilónica o real se acha afogado no funambulesco, também nesse outro porão da protoliteratura que é o acervo persa, nos doze mil couros de vaca onde eatá escrito o Zen-da-Avesta, Zoroastro tanto é humano quanto divino; e em o Divã, de Hafis, os poemas em gasal de metro invariável têm sentido principalmente esotérico ou sufi. O mesmo se depreende da vasta literatura chinesa, visto que se os Sheng-Shu são documentos políticos e culturais, todavia Tao-te-king é maciçamante místico,

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sobrenatural, explanando a doutrina do Taoísmo. Ela é uma obra que foge à atração geocêntrica e que, mesmo cuidando do homem, visa ao ascetismo, pois Tao é o absoluto, a totalidade dos seres a das coisas. E conquanto os ensinamentos orais de Confúcio sejam éticos mas agnósticos, querem depurar também o homem tornando-o superior, isto é kiun-tseu. Exemplo mais que didático da literatura ambivalente, como história e religião, como epopéia coletiva em o Êxodo, como romance individual no Livro de Jó, como ensinamento político em Ezequiel, como diálogo entre Jeová e Moisés, etc., é a Bíblia. E que são os Evangelhos, aparentemente redação tabelioa da vida de Cristo, senão, com seus apólogos a parábolas, com seus milagres, a derrubada da mitologia? E que é o Apocalipse senão o delírio da implantação aqui na Terra do reino de Deus? Necessário ainda, conquanto supérfluo por tão evidente, aludirmos à condição dual das literaturas mediterrâneas, nórdica e atlântica, características dos módulos duma civilização em marcha, mesmo se os seus paísesrecipientes morreram ou se transfiguraram em mapas reorganizados e mesmo que o mundo se extravasasse para as áreas das Descobertas tornando-as outros recipientes autóctones ou de importação. Na época jônico-dórica, ou heróica, com Homero, Hesíodo, Anacreonte, Píndaro, com a Ilíada, a Odisséia, com os logógrafos, Heródoto, Hecateu, e depois na época ática, com a tragédia, o drama satírico, a comédia, isto é, desde Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes, até Menandro, Xenofonte, Péricles, Alcebíades, Demóstenes, Sócrates, Platão e Aristóteles, e ainda na época helenística, desde o período alexandrino até o período bizantino, a literatura foi repartida entre o geográfico e o cósmico, entre o humano e o mitológico, entre o vidente e o historiador, entre o filósofo e o mágico, entre o lógico e o onírico. O mesmo se poderá afirmar quanto à literatura romana, percorrendose Virgílio, Horácio, Ovídio, Tácito, Plauto, Terêncio, Cícero, Andrônico; desde e fabula palliata e a fabula togata até as fabulae praetextae. Se muito se escreveu sobre a Terra e a Natureza (De Natura Rerum, etc.), sobre o

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homem (De Viribus Illustribus, etc.), sobre política, viagens, guerras, regiões, se tomarmos como exemplos Plínio dum lado, teremos do outro lado Apuleio escrevendo sobre as Metamorfoses ou O Asno. E mesmo nessa literatura romana, a parte já cristã com a Patrística, quer com Tertuliano ou Santo Hilário, quer com Santo Agostinho ou Santo Ambrósio, a redoma abarca em seu bojo a crosta telúrica e o páramos espacial. Suburra 10 e a Cidade de Deus. As literaturas, ou melhor, os idiomas decorrentes do latim, o galego, o português, o catalão, o provençal, o rético, o francês, o sardo, o italiano, o dálmata, o romeno, e mais as outras, o anglo-saxônico, o alto e o baixo alemão, os códigos dos visigodos, a produção picarda, borguinhã, normanda, etc., em suas poesias, a épica, a lírica, a alegórica, a satírica, nas canções de gesta, nos ciclos como o carolíngio e o bretão, nas histórias da Távola Redonda, na Demanda do Graal, nos fabliaux, nos romances da Rosa e da Raposa, no teatro dos mistérios da Natividade e da Ressurreição, nas sotties, nas farsas, o homem é aclamado, vilipendiado, radiografado em seus âmagos viscerais, espirituais, em sua sela túrsica, em seus complexos, em suas transfigurações, em seus ritos, em seus encantamentos. Rabelais seria, bem mais do que Sibilet e Ronsard, o protótipo do homem medieval como criador e como criatura, ao mesmo tempo ele próprio é refletido em Pantagruel, um complexo humano, demiúrgico e goético, frade, médico, personagem, ora endemoniado, ora pachorrento. Idem, quanto ao radar de observações de La Fontaine, Corneille, Racine, Molière, Pascal, Fénélon, Mme. de La Fayette, Montesquieu e Voltaire. Este então, em seus quase heterônimos Zadig e Micrômegas, mais real e analítico (mesmo através de robôs como os acima citados) do que Diderot e Rousseau entregues só à apologia da natureza, precursores do epicurismo da Gide em Les Nourritures Terrestres. Será preciso falar na obra de Cervantes?!

Região da Roma antiga, na dreperessão entre o Quirinal, o Viminal, o Célio e o Ópio. Desde o fim da República foi um quarteirão popular assiduamente freqüentado por pequenos comerciantes e malfeitores. 10

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É que os escritores nunca se satisfizeram com o quintal quase doméstico do dasein, do estar-aqui, da condição-limite, mesmo que a retirassem de fond en comble como os romancistas naturalistas e realistas (Balzac e Stendhal); ou que a perfurassem como Dostoiévski e Kafka; ou que a transformassem em pista para evasões como os românticos ingleses, franceses e subseqüentes; ou que a raspassem com o paroxismo de Joyce e de Lawrence, ou com a pachorra de Proust ou de Machado de Assis. “Partir, partir”, já exclamou Fernando Pessoa. E examinar-se, desagregar-se como Sá Carneiro tornando-se paradoxalmente o "rei de toda esta incongruência". Ou buscar remédios, ajudas, quer na religião obedecendo a liturgias rígidas, quer na magia cumprindo catatônicamente os rituais coercitivos. Ou aguardar a morte, solução nem sempre viável pois no Além teria que ser julgado, remetido para os huis clos respectivos segando seu proceder aqui embaixo. Nesta perspectiva de justiça inexorável, já na Idade Média o irascível Dante idealizara com segundas intenções o Purgatório, o Limbo, o Inferno e o Paraíso. Na verdade páramos híbridos, em parte geocêntricos e em parte espaciais. O Inferno seria um funil ao centro da Terra; o Purgatório seria numa ilha em pleno Oceano. O próprio Paraíso não ultrapassaria mais do que a Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. O próprio Empíreo estaria dentro duma redoma. Como distrair a humanidade fazendo-a esquecer sua contingência precária? Contando-lhe histórias de passatempo, como Boccaccio durante a peste de Florença? Ou irritando-a ainda mais com arremessos de dentes do dragão como os que distribuiu pelo mundo Gérard de Nerval antes de se dependurar numa porta na rua da Lanterna? Ou fazendo pactos com o Demônio, como as personagens de Goethe e de Calderón? *

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O mundo fantástico, na história da cultura literária, tem sua projeção visual na história das artes plásticas. Desde O milagre de São Nicolau e Dafne transformada em loureiro até a Tentação de Santo Antão, obras estas

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mais tarde passando para um plano secundário após os trabalhos de Goya, Wolfgang Paalen, Walter Svanberg, Simon Hantaï, Max Ernst, Chagall, Man Ray, Taro Okamoto e René Magritte, que sem dúvida foram muito além de Giovanni di Paolo, Hieronymus Bosch, Monsu Desiderio, Dürer, Larmessin, Hogarth e Arcimboldo. Verdade é que no século II, um escritor com poderes de objetividade quase pictórica, Luciano de Samos, deu o exemplo inicial da obra de dois gumes, da obra diédrica. Não só dispôs de vagares para visitar e anotar o que viu na Grécia, no Egito, na Itália e na Gália, como teve tempo, nos intervalos de livros como Apologia dos Assalariados e Os Fugitivos, para escrever uma viagem à Lua incluindo-a em suas Histórias Verdadeiras (!). Deve ter sido uma excursão en ralenti insuportável, visto que foi realizada numa barquinha à vela. Séculos depois Kepler, o sábio de Vurtembergue, que quando seminarista conhecera em Tübingen o horror da solidão, tratou de esquecer o cenóbio e também o observatório de seu amigo Tycho Brahe, usando ulteriormente de dois recursos sagazes: primeiro ficando viúvo duma mulher aborrecida e vindo a ter uma récua de filhos com outra; e, segundo, aproveitando-se da generosidade financeira de Rodolfo II, seu soberano, para tornar-se um big em astronomia e dispor de lazeres para escrever Prodomus dissertationum cosmographicarum. Filho duma feiticeira que a custo se salvara de ir para a fogueira, na Baviera, Kepler sabia aliar a imaginação à ciência. Ora, parece-nos que o caso de Kepler inaugura e ilustra as condições capazes de tornarem o empírico disponível em progresso agudo, de transformarem a magia em ciência. Para isso era uma inteligência gratuita, contou com dinheiro, e iniciou sua nova rota após experimentar uma despedida da fantasia rabiscando às pressas Somnium, isto é, a história duma viagem por meios sobrenaturais à romântica Lua. À medida que o empírico difuso se aclarava em pesquisa e em ciência, à medida que o vidente categórico se transformava em cientista experimentador, a Lua foi a meta. Godwin, na Inglaterra, remeteu para lá um homem num veículo muito parecido com a barca de ópera de Lohengrin quando

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este desceu à Terra a fim de salvar Elsa de Brabante: uma barca puxada por cisnes. Vinte e seis anos depois, o francês Cyrano de Bergerac, literato, gendarme e serventuário dum duque, escreveria Autre Monde, relato duma viagem à Lua e ao Sol; mas desta vez a façanha teria como veículo um foguete de propulsão. Pouco a pouco a literatura fantástica se transformava em literatura cientificista até, com o decorrer de séculos, perder seu caráter funambulesco e tornar-se literatura realista, conquanto ainda prospectiva apenas. No século seguinte Voltaire, em 1752, trouxe à Terra emissários de Sírio e Saturno, tendo à frente o expedito Micrômegas. Quando, porém, Júlio Verne enterrou o solidéu na calva, desabotoou os últimos botões do colete e enfiou os pés numas chinelas ao amesendarse no balcão de trabalho para escrever um lote de livros paracientíficos ainda hoje vendidos em crediários, já Atterley lhe preparara as ferramentas e os utensílios estudando e publicando suas pesquisas sobre problemas de gravitação e aceleração da velocidade. Sempre (por enquanto!) a Lua como ponta de trilhos dessas aventuras dentro da biblioteca individual. Até mesmo quando H. G. Wells, mandando para um alfarrabista, como entulho, a coleção de Júlio Verne, escreveu Os Primeiros Homens na Lua, tudo isso não passava de bocejo entediado de escritores canastrões. Por que motivo essa implicância tão restrita com a Lua, se há deveras o Universo? Urgia desde muito uma literatura cosmogônica, bem mais do qua cosmológica. De contato, e não de esquema. O próprio surrealismo, forma bem mais densa do que o onirismo, não passou em literatura e em artes plásticas dum engarrafamento de trânsito, prejudicando o take off. Era preciso sistematizar, criar um organograma, certa programação cientíico-literária, lúdica e não mais carismática. Foi o que sucedeu depois de 1926, data em que Hugo Gernsback fundou a revista Amazing Stories, publicação que marca um fim, um termo, uma aba de cancela fechando com a outra aba, as Astounding Stories de John W. Campbell, os limites latifundiários da magia e estabelecendo do outro lado as pistas da science fiction. Sim, no mesmo plano nivelado, como dois setores tangentes embora nada parecidos porém acessíveis ao escritor e ao cientista, já que, conforme desde

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muito advertiu Orestes, “o sobre-humano principia onde ainda permanece o humano.” Ou, conforme a observação de Bertrand Russell, “há mais verdade na ficção que pretende ser mera imaginação do que há nos trabalhos sérios e fundamentados que pretendem propagar fatos reais.” Literatura e ciência formam uma hipóstase. De fato, pouco antes de Von Braun exclamar em 1957 "não me digam que o homem tem que se confinar aqui na Terra. Pode ir para onde quiser e saberá portar-se e manter-se muito bem quando chegar a qualquer dos distritos do Alhures", já alguns novelistas se especializavam no gênero batizado com tal nome por Hugo Gernsback. E antes de organizações estatais criarem seus slogans de programações, RAND, ESV, MOUSE, etc., meras siglas de tarefas, já a literatura de vanguarda, a literatura não mais geocêntrica mas cósmica, se adiantava a livros hoje clássicos de pura ciência como Rota para o Vôo Espacial, de Hermann Oberth. E os leitores de ficção cientifica não são os leitores de novelas policiais lidas em iates e em mansardas, em ônibus de excursão ou em hotéis de férias. Pouco a pouco ela se vem tornando uma arte de valor específico, já tem seus clássicos e seus gênios, seus especialistas, seus críticos, uma clientela universal. Antes e, em seguida, paralelamente a livros propriamente ditos, houve e há revistas exclusivas, como Galaxy Science Fiction, Original Science Fiction, Fantasy and Science Fiction. E conquanto o acervo, nesta biblioteca imaginária, ainda seja menor do que o acervo sobre a Magia, chegam a parecer-nos pueris as obras de Júlio Verne e H. G. Wells quando as confrontamos com as da geração contemporânea dos grandes empreendimentos iniciados com o Sputnik I e com o Explorer I. Com as mais recentes proesas no gênero, mas por enquanto humanamente comparticipadas apenas na viagem autêntica à Lua, o interesse erudito e popular, assistindo à televisão e adquirindo jornais e revistas, fará aumentar muito as equipes literárias de gabarito que se dedicam ao novo

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gênero da ficção cujos ases são Christopher Anvil, Stephen Baar, Isaac Asimov, Tom Godwin, Robert Heinlein, Ray Russell, Robert Young, Jack Finney, Charles Beaumont, Al Capp, Clifford Simak, Francis Carsac, Roger Sorez, Yves Touraine e Ray Bradbury. Queremos mesmo crer que a disponibilidade marasmada dos hippies, esses filhos pródigos atarantados nas escadarias da Praça de Espanha, na Praça Navona, ao Piccadilly Circus, seja apenas uma vigília para ulterior eficiência dedicada ao gênero que eles pretendem mas ao qual ainda não se abalançaram. Talvez quando regressarem à casa paterna, o velho patriarca, seja em San Francisco, ou Boston, seja em Estocolmo ou Basiléia, ao invés de mandar matar o vitelo mais gordo, forneça ao recém-chegado dólares suficientes para um take off da Terra para longe, já não é mais tempo de temer a bomba atômica nem de desculpar-se com ela para estágios em megalópolis turísticas. Também eles, os provos, os beats e os hippies acabarão trocando as calças Lee por uma indumentária de amianto. Fornecemos-lhes, nós outros, por enquanto, o acesso à essa biblioteca imaginária, onde decerto desdenharão os porões e as criptas e se irão se intalar em seus terraços, a folhear revistas e livros com a energia digital de quem se prepara para manobrar registro de altímetros, manômetros de pressão, alavancas de velocidade, cabos de leme e fios de nylon...

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A CRÍTICA E SEU HANDICAP Jornal de Notícias, 8 de maio de 1949

Houve — se é que chegou a haver — uma crítica de gramática (de sintaxe, de solecismos), onde um técnico enfezado, de solidéu e chinelas, catava no texto remetido os erros do autor e fazia o resumo do livro ao jeito de libreto. Depois se instaurou uma crítica normativa, lúcida, análise e ao mesmo tempo criação, verdadeira pauta de aferição dos valores objetivos e estéticos. Desta crítica normativa se dicotomizou a crítica especializada, desde o ensaio até à perícia científica e metafísica. Livros há que o crítico normal não pode estudar nem pesar, por falta absoluta ou relativa da competência. Via de regra o crítico eventual de rodapés e suplementos estuda a bibliografia remetida e o faz por dois processos: inserindo a obra nas claves da literatura comparada e cronológica; ou então estudando a vocação, a eficiência e as possibilidades do autor. Essa é a função comum da crítica literária. Quanto à crítica mais alta, que depende de cultura, sensibilidade e conhecimento, não está ela à mão de qualquer crítico regular, a não ser por exceção.

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Recebo, por exemplo, um romance, ou um livro de poemas. Decerto modo posso abalançar-me a elogiá-los ou censurá-los, classificá-los por um sistema, etc., mediante a análise solitária do conteúdo ou mediante comparação com tabelas bibliográficas recentes ou não, escolas, influências, etc. Mas recebo, por exemplo, o livro de Oliveira Viana, Instituições Políticas Brasileiras, ou um estudo de sociologia de Roger Bastide, enfim livros sobre assuntos onde sou incompetente para apreender o texto numa só leitura e absolutamente incapaz de criticar no sentido de dizer “como” e “porque” prestam, ou não prestam. Assim, a crítica é uma responsabilidade que não depende de literatura, de boa vontade, de cultura geral, de critério e de capacitação. Exige, para cada setor, uma especialização de verdadeira docência. Leio, digamos, anotando bem, e depois releio essas Instituições Políticas Brasileiras. Vou à estante, tiro alguns volumes de Baldus, Boyd, Ogburn, Nitti, Croce; converso com dadas pessoas universitárias, desdobro em três laudas um estudo nonchalant ou um estudo didático do tema, aventuro-me a umas restrições, finjo que conheço a bibliografia, as doutrinas, os experimentos, enfim que estou ao par do assunto, tomando uns ares híbridos e complacentes de sociólogo e professor marginal, utilizando uma terminologia científica. Estou iludindo a mim mesmo, aos leitores e desonrando a secção onde escrevo. Logo, a função da crítica literária deve ser antes de mais nada uma distribuição de textos a respectivos críticos capacitados e especializados. O crítico normativo poderá no máximo alinhavar uns conceitos protocolares. Esta Mansarda Acesa não é secção de crítica de coisa nenhuma, nem mesmo de literatura singela, romance, poesia, etc., e sim impressão submissa dum leitor eventual. Do contrário teria ou que deixar todas as minhas tarefas civis e literárias, e para cada livro mandado me preparar com um escrúpulo de juiz e então pontificar a respeito. Mais até: teria que me forrar com uma densa bibliografia de cursos de físicos, matemáticos, economistas, psicólogos e estétas, levando para a rua sempre um Alvin Hansen ou um Raphael Demos. Dormir lendo John

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Wild, receber assinaturas de revistas de Harvard, saber sempre o que está em moda em New Haven e em Cambridge; anotar os relatórios de Berkeley, para saber o que anda dizendo Mackay; enfronhar-me no último módulo de Bertrand Russell ou de Marhenke; conhecer de ponta a ponta World-Hypethesis, e o que lhe opõe um Howard Strong. Isso quanto à ciência, sociologia, etc. Quanto à estética em geral tenho que me armar de relações que pelo menos me informem sobre a última palavra do que aceita ou do que desdenha o casal Hungerland. Quanto à poesia tenho que estar à altura das intenções máximas de, pelo menos, uma Josephine Mills, ao passo que em arte preciso saber qual a filosofia da arte hoje em voga, se é que já ficou perempta a de David Prall. Quanto a coisas mais altas, minha sensatez precisará de uma engrenagem de ascensão, e neste caso precisarei estar consultando sempre um Alfred Tarski. E mesmo que eu fique só cá em baixo na crítica estritamente literária, preciso andar apurado, vivaz, atento, captando com minhas antenas o que anda sobrepairando quanto à semântica e glotologia — enfim, linguagem —, isto é, me orientar pelo radicalismo formalístico, ler os autores mandados, mas não os entender pelo idioma e sim pela intenção da metalinguagem, que será sempre o que dá a um livro a prova de sua experiência construtiva. Esta seria a única forma de o autêntico crítico obter e infundir adequação da sua leitura ao texto, com possibilidade de poder determinar qual a manipulação criadora e estética. No estado atual da bibliografia constante e crescente, crítica também quer dizer cultura com discernimento, pois mesmo o crítico vulgar, medianamente capacitado já não pode, nem mesmo querendo, se ater à análise somente de produções oriundas de Naturvölker, pois com certeza, durante o seu tirocínio de crítica, receberá obras emanadas de Kulturvölker. Que pode um mero leitor de Instituições Políticas Brasileiras, discutir, debater, profligar nessa obra se não souber qual a conceitualização vera de “civilização”, de civilitas, de sistema ptoloméico da História, ou de sistema

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copérnico da mesma? Se não souber diferenciar o que a tal respeito pensavam um Spengler e um Weber, quando não um Arnold Toynbee?, como se desvencilhar em meio a concepções antropológicas do tempo de Tylor, senão para se emaranhar de vez nas do tempo atual de Malinowski e se estatelar diante de Boas? Tenho que ler um Oliveira Viana, sem saber se ele está certo, porque não disponho de cultura especializada para distinguir o que estiver errado, visto desconhecer eu, em assuntos de certos capítulos, o que modernamente um Clyde Kluckhohn e um William Kelly me diriam sobre complexos e comportamentos, etnias e raças. Eis o handicap de quem se abalança, fazendo crítica literária, querer, em face dum livro que mesmo lendo lhe fica difuso, fingir conhecimento global, como se um setor de crítica fosse sempre aclarado pelo Pentecostes. Ainda bem que nem crítica meramente literária faço, e sim expendo meras impressões analógicas de leitura. Por exemplo, o livro de Oliveira Viana me obrigou a arranjar Culture and Ethnology, de Lowie; e, que aconteceu? Fiquei boiando de Cilas para Caríbdes. E caí? Pedi socorro, agarrando-me ao que passou primeiro: Ratzel. Este me jogou para as costas de Bastian. Ainda bem que dei com os rodapés de Osmar Pimentel, e respirei, entendi, metodizei. Mas avalio o que esse grande crítico fez por sua vez para atingir essa capacitação, o tempo que levou num artesanato de crítica funcional e orgânica tomando aulas com tratados (Dilthey, Spranger, Frotenius, Benedict, Mead, Horney, Kardiner…), enfim para poder, com escrúpulo e capacidade, tratar do que entende. Que essa lição de competência faça a crítica nacional se dicotomizar em tarefas e em equipes, cada elemento tratando do que entende a sente. Adaequatio rei et intellectus.

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COMBATENDO O NARCISISMO Diário de Notícias, 3 de setembro de 1933

O embevecimento do autor, a mania de deslumbrar-se com os próprios escritos, esse hábito de, ao acabar de compor, encher-se de uma euforia inebriante, cuidando-se, sem par e sem êmulo, esse instintivo ar de felicidade, essa atmosfera em que se mete o literato como debaixo duma redoma, essa tendência a “Rodolfovalentinizar-se”, 11 essa força que o obriga ridiculamente a tirar retratos em poses “fisiológicas”, esse desdobramento de personalidade, a que é admirada e a que admira, tudo isso são aspectos e minúcias de um narcisismo. Quando da sua estréia, o poeta passa a noite em claro e espera, avidamente, a revista onde, num canto singelo, sairá a produção com o nome embaixo. Lê-a inúmeras vezes, observa o tipo de letra, olha o conjunto, declama, relê, só mais tarde vai catalogar “aquilo”. Anos depois, numa

Referência a Rodolfo Valentino (1885 – 1926), ator italiano astro do cinema mudo e conhecido por sua vidade extema. [N. do E.] 11

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noite de monotonia ou desconfiança do próprio valor, resolve abrir o dossier das peças publicadas avulsamente e passa a enamorar-se, tateando toda aquela escória. Não sei o que dirão a esta irrefutável observação os psicanalistas. Complexo de quê será isso? Puro narcisismo, fases de autoadmiração. Quando o escritor se debruça sobre a própria obra está perpetrando um gesto típico de narcisismo. Ao sair o primeiro volume, posta-se, um pouco escondido, nas calçadas, a adorar o volume às vezes horrível, perdido entre os ladrilhos e retângulos outros que enchem o chão e os vidros da mostra. Se o exemplar repousa sobre o balcão, o autor passa mais amiudadas vezes pela livraria, não se importa com a provável ironia dos caixeiros vendedores, chega mesmo a fazer inventários e balanços mentais relativamente à venda. Quando vem a primeira crítica estampada, um simples trecho de “rodapé”, onde o livro está apressadamente analisado entre outros, parece-lhe que aquele trecho cresce, toma tamanho e relevo desmesurado à medida que os trechos restantes diminuem e se apagam. No trato com o seu semelhante, mesmo o que ignora a “estréia”, o autor assume um feitio condescendente, trata com mais vagar pessoas que habitualmente apenas cumprimentava, recebe elogios com a avidez deformadora duma gratidão exaltada, recebe, em casa, amigos e até estranhos, ele que não tem vida social, mete-se, enfim, num círculo, bem ao centro, equidistante de todos os lados, e quando está só, pensa nos varões de Plutarco, nos sujeitos insignes que escreveram coisas na história ou, veridicamente, na Literatura mundial. Quando tal autor vai ter vida literária efêmera, tais atitudes as revestem dum superlativado exagero. Colam retratos nas vitrines, dão entrevistas, aborrecem redatores-chefes de jornais, adotam a austeridade de “críticos” com dedicatórias disfarçadamente hábeis e tendenciosas, reproduzem-nos a pedidos, trechos sintéticos, enchem-se de energia, mesmo que sejam fisicamente débeis e atrevem-se a desancar, à porta de livrarias ou em casas de chá, o pobre crítico que usou, ao tratar deles, adjetivos sisudos; e,

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em casa, antes de sair, pensam como sairia à rua Oscar Wilde, Barbey d’Aurevilly, Baudelaire, acabam achando que Verlaine era elegante, que Balzac não podia ser assim barrigudo, e então, resolvem sair, na cadência da glória, passo estudado, devagar, como se a auréola que os cerca os impedisse na locomoção. Ou param nesse pré-ridículo ou deflagram em séries de “espetáculos”. Se, porém, o autor está predestinado a transitar livremente e a qualquer hora pelas subidas amáveis e dóceis do Parnaso, se obtém, de fato, evidência, se merece definitivo ingresso, se se habitua a devaneios nessas regiões suaves, ou se, galhardamente, rompe multidões e prossegue ainda assim, o orgulho, o “narcisismo” não o deixará. Será em lagos mais recônditos que esse efebo curvará o busto para admirar a própria efígie. Envelheça até. Perca certa exterioridade, certo “estigma da profissão”, ainda assim, no espelho dos seus cômodos subjetivos e íntimos, esse galhardo vieux beau continuamente se há de mirar na superfície que o reproduz. O orgulho do literato o acompanha pertinentemente. É o seu “brio” profissional, o seu “anel de armas”. Cuidar-se-á sempre um ser à parte, mais evoluído que o próximo. Dirá a palavra burguesa e a palavra operário como se estivesse no limiar da obscenidade. Passem os anos, perca ele o romantismo da mocidade, recupere o equilíbrio e a experiência, chegue quase a perder aspectos específicos do seu amadorismo, ainda assim terá um “ar de raça", um certo halo de desdém que o separará, como fumaça de cigarros, do vizinho anônimo. E, consiga publicar muitas obras, ainda assim o criado de quarto ou o inesperado amigo, muitas vezes, o surpreenderão na liturgia solitária do narcisismo, folheando os livros, revendo críticas, adorando a própria escória insigne saída das vias espirituais do seu espírito. Pode, porém, tal homem, fugir, abdicar ao narcisismo, deixar, assim, de ser espécime de catalogação sórdida para os psicanalistas de Viena? Às vezes, esse esforço, essa mudança, essa cura, essa renovação, essa fuga de si mesmo, esse sono, essa interrupção, às vezes, é conseguida.

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Quando um escritor autêntico se debruça realmente sobre os livros alheios e deixa de comparar, e exclui a própria personalidade de padrão ou modelo, está garbosamente se submetendo a processos de cura segundo conselhos freudianos. E a prova real, material, nítida, hipertrófica desse combate ao narcisismo, qual é ela? Traduzir livros alheios. Será que realmente consegui, neste artigo, provar o que me propus ao escrever-lhe o Título? Convém lembrar que tem havido tradutores insignes, tão bons ou melhores do que os autores traduzidos. Baudelaire traduziu Poe, Lecomte de Lisle traduziu trágicos gregos. Pierre Louÿs esteve na barranca, fingindo traduzir gregos. Quase desnarcisou, ou melhor, esteve tão saturado de narcisismo que fingiu esse ato de desrecalcamento. Chego, pois, involuntariamente a dar a estas linhas certo ar de conselho. Abandonemos a superfície lisa onde nos debruçamos para ver a nossa efígie deformada. Convém mais, mesmo como medida salutar, debruçarmo-nos sobre abismos alheios, em cujo fundo há perspectivas desvairadas ou calmas, que só mostram o nosso semblante.

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ENSAIOS & ENSAÍSTAS



O CAMARADA WHITMAN — JOAQUIM NABUCO Jornal de Notícias, 22 de agosto de 1948

Cita-se Gilberto Freyre na época atual, como nos antigos e sucessivos quadros da literatura do nosso idioma foram citados por sua vida, bibliografia, posição, estímulos, influências, tropismos, reações e (principalmente) ação catalítica, figuras como o conde de Barcelos, Fernão Lopes, frei João Alvares, Sá de Miranda, Diogo do Couto, Damião de Góis, D. Francisco Manuel de Melo, Herculano, Rebelo da Silva, o conde de Sabugosa, Oliveira Martins, José Maria Rodrigues, Gandavo, Fernão Cardim, Gabriel Soares de Souza, Severim de Faria, Manoel de Morais, Borges da Fonseca, Pedro Taques de Almeida, Antônio de Morais Silva, João Francisco Lisboa, Varnhagen, Joaquim Caetano, Abreu e Lima, Hipólito José da Costa, Felício dos Santos, Bernardo de Vasconcelos, Tavares Bastos, Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia, Paulo Prado, Calógeras, Eugenio de Castro, João Ribeiro, Oliveira Lima, Higino Duarte Pereira, Alfredo de Carvalho, Manuel Bonfim, Nina Rodrigues, Artur Ramos e, mais que todos, esse Joaquim Nabuco com o qual suas analogias são essenciais.

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Os nomes acima alinhados não estão aí ao acaso, significam, apesar dos estilos, períodos e tendências distintas, um rol humano de valores; Gilberto Freyre tem deles alguma coisa, às vezes muita coisa, quer na maneira, quer na função, quer principalmente nos temas em que aqueles e ele sucessivamente se aprofundaram. Cita-se, como influência máxima nas gerações atuais, o livro do Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, em cuja análise e crítica já se empenhou uma densa bibliografia. Mas a obra ininterrupta desse sociólogo moderno, cuja doutrina e aplicação nem sempre aprovamos, não é, nem no estilo nem nos temas, apenas uma transposição de clave da "humanização da linguagem” e uma variante do primeiro livro, e, sim, quocientes sucessivos de problemas culturais jogados e resolvidos, quando não propostos, sem elêntica de livre docência nem auto-suficiência de borla e capelo, mas sempre, e cada vez mais, com aquele tom que deveras o classifica como o continuador de uma linha-mestra que vem de Damião de Góis, de D. Francisco Manuel de Melo, e culmina em Nabuco, como aspecto proeminente da inteligência múltipla posta em tarefa útil. As relevantes contribuições que o autor de Sobrados e Mucambos vem trazendo para a nossa cultura e para a nossa literatura, arejando-as com um sentido mais experimental do que metafísico, são prova da feição clara, nítida e diferente desse altíssimo espírito renovador, cuja só presença contemporânea significa um comportamento de aliteração cultural, sociológica e interpretativa. Hoje em dia já os seus trabalhos são parte densa e tônica no setor às vezes retórico às vezes didascálico da nossa Brasiliana. Não é um memorialista, um devassador de textos carunchados nem de linhagens tabelioas, e sim um arguto e nobre descendente nem sempre submisso do grupo acima citado, com cujos elementos diferentíssimos apresenta esta, aquela ou aqueloutra afinidade de trabalho, de pesquisa, de maneira, aproximando-se mais, pelo espírito e pela indução de uma ética laica e experimental em lugar de ser mero veículo de rolos de formais de partilha.

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Criou, primeiro, contemporaneamente com um Mário de Andrade e com essa equipe ecológica admirável do Nordeste, um estilo que não é esperanto crivado de guarani, do nagô e do português com variantes prosódicos praieiras e de planaltos, com cromatismo de painel, mas sim a média criteriosa da naturalidade translúcida com efeito oral categórico. Criou, em seguida, com a série de livros tão seus e do Brasil, desde Casa Grande & Senzala, Nordeste, Olinda, O Mundo que o Português Criou, Problemas Brasileiros de Antropologia até Interpretação do Brasil, Modernidade e Modernismo na Arte Política, Joaquim Nabuco e O Camarada Whitman, um gênero notável, específico de ensaios que não resfolegam atrás de citações nem de bibliografias, que são deveras a sua diferenciação entre modernismo e modernidade; cumpre estudar agora seus dois últimos opúsculos amaneirados em conferência, Joaquim Nabuco e o Camarada Whitman. Claro que não se trata de biografias e muito menos de monografias no sentido enxuto de síntese daquelas. São pretextos oportunos e imediatos através de considerações à volta dessas duas grandes figuras da América, para entender, transfigurar e utilizar como efeito e como resíduo espiritual essas duas vivências que não se contentaram em estar-aqui no Novo Mundo e em cantar lastimando, através de metáforas, versos e discursos comparticipantes e injunção orgânica e social da escravatura do homem e da terra. Com aquela sua experiência que paradoxalmente quase diríamos intuitiva, Gilberto Freyre faz uma topografia em planos principais de Joaquim Nabuco, isola-o, defronta-o com outros, enviesa-o pelo Brasil adentro e afora, dá um background do Brasil, do Império e da época, avoca para essa figura fascinante a solução de problemas gerais e essenciais, diz claro de sua opção vocacional, situa-o, isolando-o, mostra os dois termos da equação que alvoroçou a sua tarefa dialética — a escravidão e o monopólio territorial — e sem o endeusar, sem criar uma apoteose, sem desumanizá-lo, tornando-o mito, nos dá a medida cúbica dessa presença que é uma ação tão vincada como um litoral e tão transbordante como o tempo.

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Já no estudo em admirável síntese crítica de O Camarada Whitman, Gilberto Freyre põe de lado figuras enciclopédicas e de “boa vizinhança” simbólica tais como toda a galeria colorida de grandes homens das Américas, e tira de resíduos telúricos com fâneros e barba, esse vate que ao tempo da demagogia verbo-motora dos locutores operando em “onda” de Vitor Hugo e Gôngora já alcançara o mistério cotidiano de comunhão com o homem da hipóstase com a terra e cuja obra, mais que a de um Chénier na França ou modernamente a de um Block e de um Maiakovski, foi comparticipação, compreensão, tarefa testemunho, balança e experiência voluntária. Razão de sobra tem Gilberto Freyre em homologar certas analogias e semelhanças de mensagem, de atitude, de paixão, de interesse arguto, de “manifesto vivo”, e mesmo de utopia útil, existentes entre esse rapsodo empírico e o metafísico Antero. De fato essas duas figuras são pórticos e ao mesmo tempo estradas rolantes de marchas simétricas individuais, arrastando não rebanhos nem discípulos, mas as massas conscientes ou subconscientes. Os livros quase todos de Gilberto Freyre, não obstante sua categoria de obras de espinha dorsal sociológica, nos dão séries intensas clarificadas dos epifenômenos da nossa ecologia específica. Mas estes dois opúsculos, trechos de ensaios em impostação baixa e rítmica de conversa espontânea, são dois aspectos deiscentes de férias do seu espírito. Aquelas férias de quem carrega pedras do caminho não para o desobstruir e sim para sucessivamente o pavimentar atraindo confluências itinerantes.

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JOAQUIM NABUCO Jornal de Notícias, 21 de agosto de 1949

Primeiro centenário de Joaquim Nabuco. As celebrações não lhe tirarão a realidade de vida, de homem, transformando-o em mito? As gerações novas lhe sentirão ainda a proximidade? Perto está, porque é a presença mais inteira e intemporal desse gerúndio: a realidade brasileira. É tão brasileiro em tudo. Sua vida decorre através de características que também e ainda são bem nossas. Um batizado na capela de S. Mateus no engenho de Massangana: não é isto de sempre, de antes e de agora, pelo Brasil adentro? Internato no colégio Pedro II: não é um pouco da nossa primeira juventude? Literatura precoce: não forma isso a primeira visão afunilada do mundo antigo e clássico através das antologias? Curso de Direito em São Paulo e no Recife: não são estes os flancos do bastidor onde a mocidade vai e vem como uma lançadeira? Campanha abolicionista: não é isto ainda a tarefa, o ensejo e o afã da mocidade de agora? Oratória: não é isto polêmica e diálogo, transbordamento e dialética, persuasão e solidariedade?

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Política, jornalismo, parlamento: não é isto desdobramento, valia, existência autêntica, a noção de que só a convivência, acrvir deveras dá ao homem a sua medida e gravitação? A visão que Nabuco desde cedo teve da realidade nacional, sua viagem à Europa, seus ensaios críticos e literários, sua busca ecumênica no clima das grandes capitais, suas visitas a Renan, não são ainda e sempre, hoje, o sonho de itinerário da mocidade querendo se inserir nos halos concêntricos do Ocidente, da latinidade e da cultura? Diplomacia. Que foi a dele? Porventura, desarraigamento, fascinação, fenômeno angustiante e burocrático-social de déracinement e de envoûtement? Perda do equilíbrio individual e imantação cosmopolita? Já como adido de legação, Nabuco não era um bacharel à procura de soluções bironeanas ou goetheanas. Não tarda a regressar à pátria, como Goethe a Weimar, para uma eficiência madura no parlamento. Seu leitmotiv é a causa dos cativos. Fora das Cortes funda sociedades de ação intensa, e acaba expandindo sua vitalidade dionísica por Lisboa, Madri; Londres e Paris, onde a fama de sua campanha abolicionista lhe dá foros de autêntico Garrison. De volta, é derrotado em eleições. Ora, não é isso ainda, dentro do quadro da existência de seres de tal categoria um caso corriqueiro na aparência, mas na verdade alavanca para mudança de velocidades? De fato. Restringe-se a correspondente do Jornal do Comércio em Londres e tem ensejo de viver naquele centro donde sua índole, inteligência e sensibilidade captariam alento e pujança para escrever seu livro O Abolicionismo. De Londres vai até Milão brilhar no Congresso Jurídico Internacional onde apresenta teses de valor intrínseco. Com hausto novo, regressa à pátria, investe em sua campanha, cria o ambiente propício ao gabinete Dantas. Não tarda a voltar ao parlamento — então sofrendo fases de dissolução e convocação. Até que cai o Império. O antigo aristocrata rural, de mentalidade tão adiantada, não aceita a República. De corpo e alma volta ao âmago da nacionalidade, aos conceitos específicos da sua orientação, e se evade para barrancas e eitos, bigornas e

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bancas de artesanato escrevendo Balmaceda, Minha Formação e Um Estadista do Império. Estas são as conjunturas políticas: ostracismo e oposição redundando como válvula (nos grandes espíritos) em criação. Seu destino, porém, marcado por ímpetos excepcionais, o moveria, não obstante tudo o mais, para a sua vocação de estadista. Recebe e aceita, realiza e vence a tarefa de optar validamente no caso dos limites entre o Brasil e a Güiana Inglesa. Depois entra como estrela de primeira grandeza na carreira diplomática, onde seu estofo real, não mais de Dionísio, mas já agora de Hipérion, lhe dá margem a vitórias titânicas do espírito e da lucidez, do critério e da plenitude. Presidindo à Terceira Conferência Pan-Americana em 1906, no Rio de Janeiro, se transforma numa figura emblema mesmo da pátria, da América, do Ocidente, para morrer quatro anos depois em Washington em pleno apogeu. Deixa uma posteridade que o honra. E se deixa a si mesmo em legado a nós, à mocidade. Cem anos. Não. Não será um mito. Continua homem. É aquela criança batizada brasileiramente numa capelinha de engenho, num doce domingo brasileiríssimo. Massangana existe não como tapera soerguida a monumento simples. Está estilhaçada na infância de muitos rapazes de todos os estados do Brasil. A escola de Direito de São Paulo, assim como a de Recife são ambas ninhos e platibandas para outras campanhas e ímpetos nacionais e ecumênicos. Nabuco está vivo nas comemorações. Está vivo em muitos que as assistem e que continuarão seu itinerário já que deixou um grande álico onde operam linhas de força.

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ENSAIOS FILOSÓFICOS Jornal de Notícias - 27 de fevereiro de 1949

É evidente que um eventual crítico normativo não esteja aparelhado para aferir a valia intrínseca duma obra metafísica. Assim tem de se restringir ao formal literário e tratar o conteúdo segundo a capacitação mais da lógica e da sensibilidade do que do sentido temático. Literariamente, o estilo filosófico é o mais claro, mais enxuto e despojado, e neste livro de ensaios de Vicente Ferreira da Silva 12 sobressai logo essa vantagem clara e incisiva. Temas profundos, tratados em poucas páginas conseguem e atingem seu plano de lição ou de interpretação através duma dialética obtida por uma terminologia pura de indispensável autotelia. Isto já é uma qualidade rara, pois (via de regra) tais assuntos porejam através de uma concatenação ambígua, difusa e quase sempre excrescente. Creio que entre nós só um Euryalo Cannabrava e um Vicente Ferreira da

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Ensaios filosóficos, São Paulo, IPE, 1948, 154 pp. [N. do E.]

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Silva sabem utilizar o léxico filosófico com a precisão verbo-motora e semântica duma eficiência exatamente técnica como utensílio. Não se trata de uma aparente tautologia para profanos, isto é, qualquer leitor culto está apto a seguir esse tablado de ligação até as matrizes que depois, por si mesmas, deiscentes e claras, se confessam, como os oráculos que, se usam do símbolo difuso, apenas o fazem como revestimento de poço onde jaz água cristalina. Estes Ensaios Filosóficos podem ser divididos (em teor didático) como assunto exclusivamente metafísico, e como assunto de divulgação o assunto crítico, (se supondo que o leitor esteja já a par duma exegese prévia). Assim, arroubo e repto em Tabor direto para a metafísica (quando se diria metapsíquica): os ensaios O Andróptero, Meditação sobre a morte, Reflexões sobre a ocultação do ser, e Utopia e liberdade. O Andróptero é um surto de poesia vera, uma evasão, um convite à contingência eupátrida, acima desta contingência de “formigas e de rãs em redor de um pântano". Uma superação aqui mesmo, não na torre de marfim, mas ascensão mercê de “impulso aerostático” rumo a um estado dionisíaco de plenitude, não através de um mapa mas sim de um panorama do mundo eidético. Tal ensaio, promanando de origens tão severas mas tão confiantes é, nesta era de desvalimento, um apelo às nossas faculdades de plasmação. E é feito não com a eloqüência de tema vazado em estilo retórico, mas sim com uma poesia que nos acena novas formas e novas possibilidades, valendo tanto como o efeito de estrofes rilkeanas, sem romantismo estético e plástico, tão só e sempre com a validez funcional de poesia que não é mito e sim veículo de persuasão responsável. Meditação sobre a morte, em que pese a inerte evidência desse mistério da euidade truncada de repente no gerúndio “tempo eternidade", habilita decerto, já que não é chantagem querendo prometer programação ulterior, habilita decerto, sim, a que pelo menos preparemos a “nossa própria morte", não como constante aperfeiçoada de suicídio adiado sempre, mas sim como sendo esta vida "o material sensível do nosso Dever" (segundo a cártula Kant-Fichte).

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Mais difícil, com um sabor de monólogo, é o ensaio Reflexões sobre a ocultação do ser, onde o problema ontológico se dicotomiza, a todo passo, da frustação e da meta. Isto é, do estatístico inevitável e da opção deliberada. Mais difícil, para compreensão inefável de poucos, é esse trecho de toga pretexta que é o enredo Utopia e liberdade. De premissa em premissa, os silogismos se alternam aí até a prova concludente de que a utopia é uma ilusão do espírito "propenso a dar valor permanente aos tipos de conduta e aos valores históricos — sempre contingentes e gratuitos". A seguir vêm ensaios de sentido didático ou divulgador, (não em estilo de classificação enciclopédica) como os estudos sobre o filósofo argentino Francisco Romero e o existencialismo de Sartre. Na verdade o ensaio sobre Francisco Romero é mais uma apresentação desse valor humano e uma súmula de sua eficiência contemporânea. O estudo sobre Sartre, conquanto nos diga antes o que seja existencialismo, não tem aquele poder clarificador de definição, pois o autor não desce do clima epistemológico para cair na explicação, digamos, histórica e evoluída, dessa doutrina centenária, mas tão atual como aplicação. Sendo Sartre tão múltiplo, pois além de filósofo é teatrólogo e romancista (dando a isto o sentido de enredo vivencial mesmo em contos), seria ótimo que todos estes aspectos fossem explicados, além do doutrinário, pois parece ao leitor profano que essa trindade em hipóstase se fragmenta e pelo menos se o Espírito plaina em pentecostes sobre um mundo de hoje, o Filho desceu deveras a ser testemunha de coisas que não nos dá em parábolas e sim em realismo encharcado. Sendo tão atacado por um Papini, um Croce, um Tristão de Athayde entre nós, teria sido eficiente como explanação diédrica que Vicente Ferreira da Silva nos desse esse filósofo não só em roupas talares mas também em civil. Magnífico como síntese e como lição de comportamento eqüidistante da temporalidade e do romantismo-narcisismo é o retrato tomográfico que nos dá dessa efígie admirável que foi e é Novalis, autêntica edição individual de sua própria ética.

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O livro de Vicente Ferreira revela ao público o que já era de conhecimento sólido das rodas de cultura de São Paulo e do Brasil. Isto é, que este estudioso não é apenas um acervo coerente, lúcido e crítico da realidade e da transfinitude. É além do mais um escritor de puro sentido criador, com qualidades admiráveis quando se serve dos utensílios para sua ação e para governar todas as suas operações intelectuais. Tem um conhecimento profundo do homem exposto à irracionalidade, à acidentalidade e à facticidade. Literariamente caminha com a opção direta do cooperar para que o mundo moderno não caia na nadificação nem no solipsismo, exerce, com voz veemente (contra as cacofonias e tautologias) uma luta pertinaz contra o cientificismo e o bertrandrusselismo, declarando sem ênfase estentórica mas com eulalia sui generis que a liberdade é a plataforma para as opções do andróptero que foge ao formigueiro e ao pântano, em busca dum nowhere.

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NOTAS SOBRE O ALEIJADINHO Jornal de Notícias, 4 de setembro de 1949

Confessa o autor 13 que não esteve em Ouro Preto, São João del Rei, Sabará ou Congonhas do Campo. Assim este livro tem um caráter, digamos, de tese de remate de curso. Isto é, foi feito baseado em bibliografia e indica uma escolha voluntária. Vejamos de que modo se desincumbiu desse empenho. Fernando Jorge planificou seu estudo em três sentidos. Primeiro estudou a época, inserindo então em Vila Rica a figura do Aleijadinho e o dando naquele ambiente como um revoltado, citando as razões principais desse complexo: a cor, a doença e a situação social. Estende-se em alguns capítulos de teor biográfico e intenta uma comparação entre Francisco Lisboa e Mestre Valentim.

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Fernando Jorge, Notas sobre o Aleijadinho. S. Paulo, 1949.

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Escudando-se em autores como Bretas inicialmente até Rodrigo de Melo Franco no presente, Fernando Jorge se abalança a rever qual a formação do Aleijadinho, concluindo pelas prováveis influências mais lógicas: a de Manuel, seu pai, e de João Gomes Batista, da Casa de Fundição. Realmente, as obras efetuadas em Vila Rica pelo velho Lisboa, carpinteiro-entalhador, e tais como a matriz, o paço da cadeia, os chafarizes, as pontes e os projetos da matriz de Mariana, são de fato copiosa casuística maciça onde o filho se deve ter visto em artesanato viável. Artesanato esse que o Batista e possivelmente o Brito puderam dilatar, dadas as suas funções oficiosas. Não resta dúvida que Vila Rica se prestaria para o estudo técnico e crítico do módulo individual do Aleijadinho na parte propriamente de artesanato e ofício. Discordamos pois desde já de Fernando Jorge e de Mariano Filho (com quem debatemos muitas vezes essa questão no Rio — na Beneficência Portuguesa), relativamente a negar a influência paterna em Francisco Lisboa. Evidentemente, não havendo escolas, estúdios, centros, o filho propenderia segundo uma constante já existente e que ali estava próxima, a oficina do pai, tal como os mesmíssimos motivos explicam a influência pessoal e local do Brito e do Batista. O fato de ter havido ou não possibilidade de trabalho conjunto ou contemporâneo não invalida a influência, pois esta não significa "aula” direta e sim "maneira e estilo”. Os trabalhos de talho, naquela época não derivavam a bem dizer da inspiração livre nem de escolas e sim duma característica padronizada de que principalmente as irmandades eram as orientadoras. A arte pessoal do Aleijadinho, portanto, pode facilmente ser estudada devido à quantidade onde se nota exatamente aquela constante de artesanato e ofício, produzindo peças encomendadas. Os motivos religiosos, hagiológicos; do Velho e do Novo Testamento, não promanaram de desejos livres e espontâneos — foram dirigidos. Não concordamos com a expressão "auto-didata” que Fernando Jorge dá ao Aleijadinho. A vocação artística originada e não evoluída não constitui uma opção pessoal, ao talante de esforços e programações. Vimos

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que o Aleijadinho tinha uma vocação sem igual, direta, indiscutível; e que foi melhorando sensivelmente por ter um ofício e por seguir programação dirigida, (encomendas, etc). Os temas da Paixão, o que dele ficou em Sabará, Congonhas, Mariana, Ouro Preto, etc., não se pode dizer que tenham sido a sua obra voluntária, de criação em tema, sentido e escolha. A realização, sim, o lado a que chamaríamos estético, é que então passa a dar ao Aleijadinho uma categoria. De como realizou, eis o que o diferencia de muito por exemplo de Mestre Valentim. Assuntos a bem dizer idênticos em técnica de escultura e talha, temas a bem dizer análogos como assuntos e motivos, tiveram nas mãos do Aleijadinho, porém, não apenas uma solução religiosa, humana, mítica, simbólica, ornamental, etc.; da maneira e do estilo peculiar, isto é, naquilo que como dom ele possuía, se deve por comparação em obras e artífices da época — locais e coloniais — e mesmo em face da obra mundial, deduzir em que, como e quanto concorreu ele para a escultura brasileira, e se perdurou, se foi básico e fundamental. Então é que o livro de Fernando Jorge atinge sua finalidade crítica de informação e de análise. Na verdade o estudo que o autor faz das peças essenciais deixadas pelo Aleijadinho em diversas cidades onde deveras condições administrativas e econômicas facilitavam possibilidades arquitetônicas e esculturais, representa o lado eficiente do livro, comprovando com sentido de critério os itens em que, como, quanto e até quando vale a obra do Aleijadinho. Merece louvores o autor. Dissemos no começo que o livro foi planejado em três sentidos. Já agora esses três sentidos estão explicitamente reunidos em perspectiva: a vida, a obra e o valor da obra e, por conseguinte, da vida do Aleijadinho. Pena é que Fernando Jorge, que ampliou bem todos os capítulos, tivesse sido tão conciso na nota referente à escultura brasileira antes e depois do Aleijadinho. Mesmo a aliteração de nomes é falha na época anterior, sendo que a dos nomes posteriores é demasiado incompleta em qualidade e até mesmo em quantidade. O livro teria um bom remate se o barroco

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tivesse sido estudado em suas características gerais da época tanto na península ibérica como nas colônias do Novo Mundo, pois assim se poderia colocar a casuística do Aleijadinho em face do existente e concluir quanto à sua valia empírica ou específica. Se nestas linhas orientamos nosso elogio e nosso louvor alteradamente, decorre isso do mérito do livro que deveras suscita problemas e imanta debates. (1. Fernando Jorge — "Notas sobre o Aleijadinho”, S. Paulo. 1949.)

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ROMANCES & ROMANCISTAS



O ESTILO DE RACHEL DE QUEIRÓZ Jornal de Notícias, 15 de agosto de 1948

Não seria verdadeira a afirmação de que cada escritor é conhecido mais pelo seu estilo do que pelo enredo de suas obras. Dentro de períodos e gerações, o eventual leitor com vezo didascálico se fartaria de verificar que isso do estilo não é um módulo pessoal e sim uma espécie de locução padronizada que evolui pelo critério com que, num álbum de retratos de meio século, roupas, modos, sorrisos e atitudes evoluem do tataravô ao tataraneto: há sempre um ar e uma lembrança de família. De um modo geral, até antes de La Grande Guerra, a produção bibliográfica se servia de um verdadeiro guarda-roupa de companhia de óperas: cores e panos do porão do simbolismo; apetrechos das malas do simbolismo, resíduos enferrujados dos inventários antológicos. Um maluco qualquer (Apollinaire, Max Jacob, Salmon, Sá Carneiro) surgindo no proscênio, largou fogo nisso tudo, serviu-se apenas do chão e do espaço, deu às gerações seguintes o estímulo e o encargo de um urgente make up. Primeiro queimar, remover, ridicularizar (dadaísmo): depois, como nas experiências de artes plásticas, inventar, substituir, ligar a temporalidade à

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vivência (modernismo, com todas as suas variantes). Fizeram-se experiências em setores diversos. Joyce, Proust, Virginia Woolf. Mário do Andrade (com Macunaíma). Oswald de Andrade com seus livros Serafim Ponte Grande e João Miramar, etc. Mas tudo isso é uma história antiga, já, tão acabada como o palácio do Trocadero. E o estilo? Houve quem pensasse que o estilo fosse conseqüência formal de pesquisas para a criação de um virtuosismo. O resultado foi uma esterilização voluntária, do tipo da dos últimos livros de Joyce, com a conseqüente acaparação de um fichário de esperanto. Entre nós, no Brasil, cortado que foi o cordão venoso que nos ligava no Eça, se tentou legalizar a fala nacional, adotar sua sintaxe, atrair seu pitoresco, enfim criar (e já era tempo!) qualquer coisa que, não sendo porque-me-ufanismo fosse pau-Brasil, escrava Isaura, cobra-norato, negra-fulô, libertinagem, inflorescência, valia, estado adulto, independência, exportação, ouro ou... indícios de ouro. O grande Mário esbofou seu imenso coração para alcançar essa euritmia. Nem sempre, porém, se livrou do artesanato de mestiçagem bizantina, muito embora num sentido de painel e de sinfonia, respectivamente a Rouault e a Prokofiev. Macunaíma seja imperecível. Mas seu exemplo desabusado fez grande mal a seminários de estilistas operando in vitro nos laboratórios prosódicos, de Norte a Sul. Hoje, levantando uma estatística e um atuário dessa pragmática, se pode dizer que erra um Antonio Cândido ao afirmar nosso conformismo estilístico, pois a verdade é que não se conseguiu apenas certo sabor, mas sim se fez muito mais do que experiência. Em poesia se chegou ao disparate, mas também se atingiu o estado órfico através do formal (diríamos da liturgia verbal). Em prosa se fez, em linhas e em planos, o que em arquitetura veio a ser revolução útil e dialética. A verdade, porém, em tudo isso, é que grandes vocações tiveram a coragem de se sacrificar totalmente para elaborar experimentos, roteiros, conceituações e rapsódias verbo-motoras. Todavia tais anseios, paroxismos, disciplinas, revoluções, exegeses e empreitadas tão necessárias, só vieram provar a asserção do começo deste

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artigo, isto é: que gerações e períodos não se caracterizam só e sempre pelo estilo mais do que por quaisquer outras maneiras específicas. Linguagem é veículo padronizado. O que essa gente necessária e inconformista fez foi modificar carrocerias e fuselagens. Estilo não é isso que eles tentaram. Isso que tentaram foi aula de dicção a gagos. Estilo é aquele dom empírico, nato, saborosamente individual e local, vocação gráfica ou oral, duma espontaneidade enxuta e doméstica, duma naturalidade pagã e nua, coisa tão da pessoa como as sardas e a risadinha ou o muxoxo, e que, sangue e respiração, hausto e hálito, carícia de mãos e de voz, maneira e gesto, tic e constância, se aplica no currículo literário, humanizando, personalizando quaisquer temas. E se Macunaíma é um exemplo laborioso e plástico inverso a isso como teoria temporal de agregações, Casa Grande & Senzala é a prova de que aptidão é uma coisa e disposição é outra. O sabor de Macunaíma é artificial como o das bebidas noturnas; o sabor de Casa Grande & Senzala é o da água quando há sede, durante o trabalho. Estilo, que haverá quem cuide ser possibilidade de demonstrar capacitação de linguagem antológica (muita gente pensa que é ainda imitar o padre Vieira...), não é esse esforço hepático de queimar resíduos e dar xantinas e ptomaínas, e que tem deixado as gerações modernas com faces cadavéricas de vícios secretos. Estilo é essa grande saúde glótica e anímica, essa presença em hálito irisado que nas manhãs frias sai da boca do povo e se estampa nos muros! Não descendem nem pertencem às equipes de cartazes nem às congregações de sacrifícios de depuração, criaturas de notável poder estilístico, tal como Zé Lins e Rachel de Queiróz. Esta então, mais do que ninguém no Brasil prende, atrai e tem direitos de nascença e de eternidade para ser chamada de escritora, principalmente pela característica inefável da sua linguagem. Não é uma coisa que se possa chamar modernidade; muito menos regionalismo; tão pouco módulo sintético. É a correlação química, substancial, da vocação insopitada com a temporalidade da sua vivência.

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A reedição de O Quinze nos torna a evidenciar justamente essa vocação, rimbaudiana, prematura, a serviço do chão, da terra, como programa empírico à Lorca. A reedição do João Miguel e do Cantinho de Pedras mostra sua evolução na experiência, na análise e na intuição da vida circunstante sob um signo de Saturno (isto é, sua presença de oráculo testemunhando a priori vicissitudes). Nesses livros os temas humanos e ecológicos se acentuam como vivência e como temporalidade principalmente porque o estilo aí é vento, calor, seca, aridez, Gulf Stream, voz rouca de velhice e voz untada de saliva de infância, bem como eco de pés em caminhos de pedra. Mas onde qualquer escritor terá seu Livro de Horas para exercício matinal e vesperal, lição em versetos da arte ou melhor do artesanato da sinceridade formal, é neste punhado de crônicas, A Donzela e a Moura Torta. Verdadeira epopéia e retalho da vida presente, abarcando ninharias e latitudes, atingindo abismos e pelegadas, tudo em tom de conversa que nos faz pensar em Daudet na sua Provença, este livro vale linha por linha tanto ou mais do que uma crestomatia da nossa língua, pois é comentário fraterno, oração dilucular e narrativa de portal; transfigura o cotidiano quase de modo maternal, tem qualquer coisa inefável que vem de Bernardim Ribeiro e se desfaz como água de fonte em boca de romeiros, e é uma lição espontânea de como a vocação deve ser sagrada, impoluta, sacramental quase. Em contato com as coisas múltiplas e inconstantes do mundo, diante da rotina e da exceção, estas crônicas são a sensibilidade em função do próximo e do espaço; e são, em sua casuística de fatos e de literatura, a amálgama mais cálida da criatura com a criação; publicando-as, Rachel de Queiróz nos propicia Pão partido em Pequeninos.

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GRANDES ESPERANÇAS Letras e Artes, 11 de janeiro de 1948

Se, já não diremos em ensaio crítico, mas apenas por curiosidade didática quisermos saber que é e quem é que Dickens continua e que é e quem é que dele deriva, tomando como ponto de partida a publicação de The Posthumous Papers of Pickwick Club, sentiremos dificuldade a não ser quanto a uma resposta cronológica, visto essa grande figura do romance vitoriano ter sido literariamente autotética, talvez, no máximo, se tendo embebido em Roderick Random, Tom Jones e The Vicar of Wakefield. Que é, dialeticamente, o romance inglês antes da casuística "Pickwick-Twist-Copperfield"? Bastará para tal resposta nos reportarmos bibliograficamente, primeiro, ao esplendor da era elisabetana, depois ao século XVIII e em seguida ao período do romantismo. No primeiro lance deparamos com o apogeu de Spencer e de Shakespeare ofuscando os romances de Philip Sidney e John Lyli. Sobrevêm, no segundo estágio, como intervalo ao século XVIII, ainda uma "constante" de poesia e de ensaio ofuscando, com Milton, Dryden, Bacon, Hobbes e Locke, qualquer germinação de novelística. Entra então o romance em maturidade excelente,

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depois disso, com Defoe, Richardson, Goldsmith, Swift e Sterne, estes cinco nomes conseguindo equilibrar a qualidade do romance com o inventário anterior de poesia. Mas, posteriormente, com o advento do romantismo, e bem ao contrário do que se deu nos demais países, as figuras fascinantes de Wordsworth, Byron e Keats avultara, e o romance torna a perder volume e perspectiva, não passando de mero artesanato de painel histórico em Walter Scott. Viriam, porém, duas mulheres, Jane Austen e George Eliot obstetricamente salvá-lo. Ora, quando Dickens se aliterou na densidade estatística do romance inglês, não continuou um processo nem um ambiente, mas sim inaugurou algo muito novo e diferente, seu valor e pujança de aferição normativa criando uma outra apresentação temporal e especial no romance. De fato a sua aliteração com os romancistas seus contemporâneos é meramente de concordância léxica e não significa uma comparticipação ou divisão de tarefas, pois Thackeray, morto pouco antes dele, George Eliot lhe sobrevivendo alguns anos, Emily Brontë falecendo quando da maturidade de Dickens, Stevenson, Thomas Hardy, Meredith e Butler prosseguindo em vida e em operosidade, trouxeram cada qual uma dada maneira, uma vocação específica, não significando uma equipe de geração. Os apaixonados pela série de obras de Dickens estão capacitados para responder que em nada se parece ele com essa turma sua contemporânea, não cabendo tão pouco aqui dizer se foi similar, inferior ou superior, como força e como criação a tais nomes, pois evidentemente no critério quantitativo e popular planificou um padrão que ele próprio esgotou sozinho, como programação legítima, duma especialização sua. Não se assemelha, antologicamente comparado, a Thackeray, pois este agrada bem mais, literariamente, pela estruturação, pela análise e pelo estilo. Quanto a George Eliot, cede ante o seu tráfego, desviando-se ela para a novela rural e malbaratando uma espontaneidade ingênita com incrustações à Stuart Mill e Darwin. As Brontë, além do equilíbrio de composição, o superam na introversão, tanto Emily como Carlota, na penetração psicológica ao jeito eslavo com a mesma aura de escrúpulos (se não ortodoxos, pelo menos

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puritanos). Stevenson será um precursor de Conrad e de Kipling. Meredith, intersticialmente demagógico não tem a sua diafaneidade de estilo e se diferencia até no formal que, nele, antes de Joyce já tende para uma revolução léxica. Hardy prenuncia cedo seu abandono do romance pela poesia. E Butler, apesar do The Way of all Flesh, dispersa logo sua vocação em livros de viagens e em ensaios. Dickens, já com sua publicação de Pickwick se torna extravagante, exótico, em tal ambiente ora normativo, ora estético demais. E em toda a sua vida é de todos o que alcança e obtém o favor público, nos três períodos bem distintos da sua carreira. Simultaneamente com seus encargos jornalísticos no The True Sun, no The Mirror of Parliament e no The Morning Chronicle e tarde na fase do Old Monthly Magazine, cria com um senso inefável de caricatura tal galeria de tipos pitorescos que logo Crulkshank e Seymour os aproveitam para seus desenhos, tanto essa gente tem do mundo de Daumier e dos Disparates de Goya. É nesse período médio da sua carreira que suas grandes criações atingem uma casuística inesquecível: Pickwick Papers, Oliver Twist, Nicholas Nickleby, etc. A maturação se, depois, melhorou em verossimilhança e em técnica as suas produções, padece porém, já da falta de vitalidade criadora de antes. Assim, desde a temporada de direção de Household Words e All Year Around, Dickens, como por exemplo Barnaby Ridge e The Old Curiosity Shop, não é o mesmo Dickens saborosamente ácido e adstringente, mas sim um romântico tipo Scott. Mas tal lise, no meado do século, coincidindo com sua viagem à América, foi logo superada, internando-se Dickens de novo no mundo bem inglês e bem vitoriano, no tempo em que entrou para o Daily News. Tal recuperação se dá com o make up máximo, de sua bibliografia, isto é David Copperfield. Daí por diante produz intensamente com a prolixidade dos antigos novelistas espanhóis (como Lope da Vega e Calderón) e com uma galeria humana muito objetiva tratada causticamente como a de Camilo, obtendo uma popularidade crescente com Bleak House, Hard Times, Little

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Dorrit e Great Expectations. Detenhamo-nos neste último, traduzido para a nossa língua com o título de “Grandes Esperanças”. É que uma exegese mesmo superficial prova que foi deveras com este romance que Dickens continuou seus predecessores e se ligou aos seus sucessores. Realmente, até 1861, todos os seus romances e contos tinham, através de sua diversidade opulenta, uma espécie de binômio constante: o realismo e o fantasmagórico. Essas duas maneiras opostas é que formavam a dialética de Dickens na construção dos seus tipos humanos (pequenos burgueses, funcionários, profissionais, gente de lojas, de botequins) apresentados sempre com um realismo existencial vincado, mas com uma indumentária quase de teatro cômico, e com extravagâncias, vícios e virtudes observados esdruxulamente sob um viés de escárnio e vilipêndio ou aclarados com uma luz de simpatia e louvor, conforme se catalogavam no Mal ou no Bem. Era um mundo enxameante, pululando em suas páginas até 1861, numa verdadeira série em aquatinta, em sépia, em xilogravura, com tal exuberância de linhas e de cores, de talhos e de relevos, que formava verdadeiros desenhos léxicos. Em Grandes Esperanças, porém, abandona Dickens esse guignol de bonecos vivos e apopleticamente vivazes, sofreia o vezo reformador e satírico, a tendência direta, e dá um livro enxuto, sem tics, alcançando uma temática legítima e neutra, bem britânica e bem vitoriana ainda, mas de comparticipação universal tanto pelo processo como pela dramaticidade. Assim, tal livro, deixando de ser uma variante de clave da seqüência bem característica de seus ambientes e personagens, obtém o cunho de variante da literatura inglesa posta na clave de Dickens. Se antes toda a sua obra era uma casuística literária e humana intercalada na novela inglesa, Grandes Esperanças foi o teste de que tal autor diferente promanava ainda sim da densidade específica da novelística inglesa, sua obra total, portanto, desaguando em delta no mar da novelística universal.

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SAUL BELLOW, UM ROMANCISTA DIFERENTE Letras e Artes, 11 de maio de 1954

Quando li, mais na qualidade de tradutor do que de leitor disponível, A Vítima e As Aventuras de Augie March, de Saul Bellow, tive a impressão de que ele, junto com William Goyen e Truman Capote, estava orientando a novelística da América do Norte para um rumo bem diverso do que John Steinbeck, dos Passos, Faulkner e McCullers. Agora, que leio uma tradução de Michel Déon de l´Homme de Buridan, folgo em averiguar meu pressentimento, muito embora não o veja com a força individual daqueles livros, e sim influenciado pelo triângulo Kafka-Sartre-Camus. Saul Bellow, nascido em Quebec, se serve do gênero diário para confeccionar este seu romance. Natural que já essa maneira francesa se preste melhor à introspecção, visto como se trata de romance de indivíduo, do solilóquio, da auto-análise, do distanciamento do ser para longe do meio, dos semelhantes, da época, da rotina e da condição estilística. Eis o romance do homem que se afasta do convívio não para ser superior, narcisista, erudito de experiências, diferenciado por exceções de

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discernimento e de sensibilidade. Pelo contrário, como célula morta, esfoliada de um organismo, qual fânero que urge cortar como o cabelo ou a unha, o personagem Joseph, de trinta anos de idade, se sente em lenta desagregação, vomitado, expelido, solto no marasmo da unidade não delimitada, não mais elemento de colméia e sim resquício posto no lixo da disponibilidade inerte. Os críticos e mesmo os leitores mais versados em literatura comparada verão que tal tema já foi tratado por Sartre em La Nausée, e por Camus em L’Étranger, sentirá que há influxos de Kafka na primeira parte de O Processo. Ora, sem dúvida, Saul Bellow inaugura uma rota diferente no romance da América do Norte (Estados Unidos e Canadá de língua inglesa) não pelo fato de levar tendências de Kafka, Sartre e Camus para aquelas bandas do Novo Continente. Mas pelo fato de desdenhar a fascinação do homem americano pelo meio, sua fusão ao ambiente, sua captação no século, à máquina, à velocidade, à consciência behaviorista. Por certo o fato de Saul Bellow se ter diplomado em antropologia lhe dá o direito e a experiência de tratar do homem. Professor em Minnesota e em Princeton, terá vivido sempre em bibliotecas e laboratórios. Sei agora que este livro não é o último e sim o primeiro. Portanto, minha primeira impressão de leitor estava certa e minha segunda restrição estava errada. Ele melhorou, portanto. No primeiro livro é que houve influência de Kafka, de Sartre e de Camus. Nos demais, que li primeiro, portanto, em ordem inversa, já eu notara uma força de construção e estrutura que o deviam por, junto com Truman Capote e William Goyen, na vanguarda de um moviemnto da moderna novelística do Novo Continente de língua inglesa. Não faz o romance das massas, a saga do país, a estruturação steinckecquiana da marcha para o Oeste. Não faz o romance de certos transversos de John dos Passos em Manhattan, nem expõe os problemas do Sul como Faulkner tratando de raças. Longe de ser analista ou movimentador de multidões, criador de bastidores com arranha-céus, aferidor de civilização mecanicista, densímetro

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de populações aglutinadas em Chicago ou Los Angeles, Saul Bellow trata do indivíduo. Menos do que isso: do ex-indivíduo. Do sujeito reduzido a complemento. No fundo, seus personagens são vítimas, como já no título do segundo livro. Ou aventureiros do nada, dos dédalos ontológicos, como em As Aventuras de Augie March. Não é apenas pelo processo introspectivo que ele se diferencia das equipes do romance contemporâneo norte-americano, pois historiograficamente a novelística ianque já tem dado diversos escritores introspectivos. É, também, pelo estilo, principalmente. O seu instrumento verbal ou gráfico não segue o realismo à outrance de Sartre. Não falemos do de Camus, pois é coisa que não existe. Camus é escritor vigoroso, sem estilo. Vigoroso porque tem alguma coisa a apresentar, e o faz por contraste e não por sedimentação. O estilo culto, erudito, sutil, de Saul Bellow o põe dentro da experiência do romance intelectual. O fato de não possuir estilo não invalida um escritor, se a matéria tiver força e não precisar ser veiculada. É o exemplo, entre os novos, de John Horn Buras. Já um Norman Mailer faz estilo, até atrapalhando a força motora dos fatos, como as sustendo com uma “caixa de mudanças”. O estilo de Bellow é europeu. Isso não é de estranhar, dada a sua origem canadense que, positivamente, é mais próxima da Europa, sobretudo da França. Processo sagaz, amaneirado em monólogo consciente, douto, de força gradual a serviço de temas, de maneira que o estilo age mais do que os fatos. Ora, tais características são Virtudes, mormente num país onde a literatura, força intuitiva, mecanicizada pela obrigação de acompanhar a vida, deixa o estilo atrás, como mero posto de abastecimento.

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SOMERSET MAUGHAM Letras e Artes, 31 de Agosto de 1947

Quando da estréia de W. Somerset Maugham, hão de nossos pais ter cuidado, com o livro Servidão Humana, e com a peça de teatro Lady Frederick que a pauta Trollope-Meredith-Thackeray ia ser transposta para uma outra clave, alterando de todo a constante dos personagens burgueses e funcionários vitorianos até então em voga na novela inglesa, uma vez não sendo possível continuar a especialidade de Dickens. De fato, Servidão Humana entrava num recesso psicológico e abandonava o veso de galeria de tipos, deixava a extrospecção colorida dos personagens descritos como drawings a nanquim, tal vereda helicoidal e introspectiva só tendo similaridade na obra de Hardy que ainda não tinha optado pela poesia. Qualidades primordiais para a novela e para o teatro emanavam da própria maneira e do próprio "meio” de vida social desse inglês que desde nascença não era insular, visto ter nascido com o carimbo dos visa de passaportes, numa legação inglesa do continente europeu. Aí a razão, talvez, da fuga de Maugham ao standard inglês.

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Havia, no início, de optar por dois caminhos aliás tão paralelos como as pistas duplas das futuras redes rodoviárias. Esses dois caminhos eram a meta frívola super literária de Barbey d’Aurevilly e o cosmopolitismo manqué do autor de O Discípulo. Virtuose e não artesão, Maugham instalou para seu serviço e renda, ligações modernas (naquele tempo), com o Continente e com a Commonwealth, dessas duas glebas imersas tirando a safra múltipla e simultânea da sua obra. Se o fenômeno literário inglês fosse ímpar e não de densidade demográfica, Maugham estava assim aparelhado para um Fregolismo que lhe daria ares de vários desdobramentos de personalidade, suas muitas maneiras e experiências tipicamente literárias podendo preencher diversas lacunas e apresentar vários anglos. Mas acontece que uma geração pulsátil e vibrante, diferente do padrão vitoriano, saía de Oxford e de Cambridge e se aparelhava para continuar o renome dessa literatura que tanto na poesia como no romance punha a francesa comprimida pelo fenômeno literário insular inglês e oriental russo. Assim se viu Maugham em face de contatos, analogias e características que logo provaram que se Servidão Humana era um livro certo, sincero, vazado em substância tipicamente padronizada já, e que se o teatro estava sofrendo alterações formais quase que diariamente substituídas e superadas, ou ele prosseguia nesse talweg ou transbordava, emitia afluentes, se esvaziava em deltas literários, para pessoalmente defrontar a concorrência (não digo comercial nem estética) dos que colaboravam na banca do romance e do teatro dando a um e a outro, com uma bibliografia crescente, uma alteração constante de (digamos) chassis e carroceria. De fato, as gerações suas contemporâneas, tanto as um pouco anteriores, como as coevas e as mais novas, mas afinal presentes no horário da coisa literária, não só prolongavam e reforçavam o prestígio da literatura tipicamente insular, como se inseriam nas experiências francesas, alemãs e russas, locomovendo essa coisa literária para um setor e uma área que já distava bem do background de Dickens, de Trollope, de Meredith e de

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Thackeray, com sintomas prévios dos futuros fenômenos Lawrence e Joyce. Literato puro e essencial, visceralmente literato, viciado em desbaratar a herança do humanismo universitário, servido por uma facilidade úmida e absorvente de captação, Maugham em lugar de artesanato e programa, enveredou então para o virtuosismo e a gratuicidade, vindo a ser um disponível (não na acepção gideana) com fones auriculares para registrar em proveito próprio a maneira e a presença alheia. Sua capacidade de infiltração, quase antológica, o capacitou para se renovar a si mesmo, à linha de bitola particular de Servidão Humana e passar a ser uma espécie de controlleur de Sud Express, Mitteleuropa, peninsular, etc., até se meter na rota mesmo dum Kipling e dum Conrad. Ora, é evidente que, até ele, os escritores ingleses timbravam em trabalhar numa dada área desde as Cornualhas até a Escócia, repisando e revirando um chão bem carbonífero tendo por cima taludes e relvas à Byron e Dodsworth. Espécie de sistema ainda de diligência e de estalagem, do bom romance insular. Veio depois o sortilégio do mar (já existente antes como fuga e variante) e dos navios, como do Extremo Oriente e da Índia, a medusa literária encharcado num pool de trutas se tornando escafandro e lenho de naufrágio, para arribar no Índico e nos mares do Sul, como molusco ou como crustáceo. A tentação do sortilégio dos deracinés e dos evoutés, o imenso golfo malaio, a jungle da Índia compacta, aqueles recessos que já portugueses, Azurara, Fernão Mendes Pinto e João de Barro tinham trazido para a literatura ecumênica, foi a viagem que os antigos insulares empreenderam, até dois deles poderem acrescentar verdadeiras penínsulas e arquipélagos à coreografia do romance inglês que até então, mesmo em Stevenson ainda era elisabetano e vitoriano. De fato as anexações de Kipling e de Conrad à ilha do romance inglês, longe, bem longe da visão de tombadilho dum Loti e dum Farrère, marcam uma transfusão léxica, semântica e oral ao romance do mundo, o que, junto com a caudal rumo ao Báltico e ao mar Negro do

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romance russo veio rodear a literatura ocidental de duas grandes enxurradas de terra e de sortilégio. Maugham viu cedo a vantagem de negócio com tal denrée, e abriu sua feitoria literária em Marselha, em Cardiff e em Vanu-Vana, metendose como introdutor de Gauguin no sortilégio malaio e canaca e trouxe não o que um Kipling e um Conrad traziam, isto é, aquele, um mundo milenar de rios, selvas, tribos e bichos, e este o drama das equipagens e do comportamento do branco em face de raças exóticas, mas sim trouxe uma subliteratura por sua característica de superfície, tinha e tem dons literários de agrado sensacional, porque se muniu para isso do dom e da experiência dum versatilíssimo de Kodak e de binóculo, transferindo a meta frívola e o cosmopolitismo da sua maneira de virtuoso inefável para o gênero sintético, tão ao molde de revistas inglesas, tão apaixonantes pela estruturação novela, dum sistema seu, típico. Só os nomes dos seus livros Casamento em Florença, Um Gosto e Seis Vinténs, O Agente Britânico, Férias de Natal, A Carla, Um Drama na Malásia, Historias dos Mares do Sul, etc., são verdadeiro manifesto de bordo. Assim, esse autor se põe em dia, contemporaneamente com a bibliografia em voga e com o gosto ávido dos leitores, provando um dom não de Leviatã, mas proteiforme. Mas, passada a mocidade e a idade madura, deparou ele com novas gerações inglesas que não continuaram com transposições, fugas e variantes a casuística de romance e de teatro da reserva bibliográfica inglesa, vendose Maugham em fazer de outra estruturação, de outra mensagem, de outro jornal e de outro conteúdo, pois simultaneamente com a sua obra versátil e cromática, surgia um novo pendor com as características sólidas de Lawrence, voltando a uma verdade quase visceral; de Morgan e de Baring introduzindo almas e estados, consciências e compromissos; de Virgínia Wolf clarificando Joyce. Se já largara de vez o padrão Servidão Humana, para se enfileirar na geração que deixava a ilha e se metia na Commonwealth, fácil lhe foi também abandonar essa viagem de convés e de jangada e passar a se servir ora

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de escafandro ora de asas, vindo então com romances que nada tem das suas duas maneiras anteriores, e inaugurando uma tendência quase metapsíquica como em O Fio da Navalha que se liga a certo ascetismo de Hazley e um pouco à Fonte, de Morgan, como em A Outra Comédia onde parece que quis voltar a si mesmo, recuperar-se, abstrair-se dessa dispersão feliz, desses juros alheios, para, extraindo da sua capacitação inegável, uma especificidade algo fibrosa, dar uma nova fase, essa então bem sua, mas ainda um pouco Morgan e Baring. Assim, se a personagem de A Outra Comédia nem sempre sabe e nem deixa que se saiba se é criatura sincera e verídica em carne e espirito duma unidade humana, ou mero e múltiplo personagem de teatro, transfigurada assim em seu avatar de profissão, também o próprio Maugham, com todos os seus livros felizes, de alta tiragem, com suas qualidades proteiformes, nos deixa na dúvida de ser um escritor inglês ou de ser a própria literatura inglesa, tantos e tais vêm sendo as faces da sua máscara e tantos os pesos da sua balança.

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A COMÉDIA HUMANA Jornal de Notícias, 14 de novembro de 1948

O empreendimento de publicação de Balzac inteiro, em nosso idioma, com a aliteração de notas, estudos, síntese, críticas e elucidações didascálicas, constitui deveras uma tarefa a ser considerada sob diversos ângulos. A obra de Balzac forma hoje a base clássica do romance, pois engloba todo um sistema de vivência, abrangendo a bem dizer as duas vertentes da vida, a do desvalimento e a da superação. Quase todo romance normativo trata de várias vidas em função do tempo e do conhecimento recíproco, sendo uma espécie de estudo de atração ou de repulsa, enfim uma reação de catálise, um fenômeno de tropismo. Mas o caso de Balzac significa abundância, quantidade, formas cíclicas, concêntricas, secantes e tangentes, enfim toda uma estruturação de diagramas geométricos do destino. A bem dizer tratou de todas as modalidades e de todos os aspectos do homem, vícios, virtudes, instintos, injunções. Não é bem a vida como comédia no sentido de dar a um público um espetáculo da sua direção (dele, Balzac). A bem dizer, é a comédia da

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existência em seus atos, cenas, embustes, opções, surpresas e desvalimentos, superações e anelos. Isto, dum modo sintético, existe em qualquer romance, já que o romance, como obra de arte, é um corte transverso da sociedade ou do indivíduo, uma hora do mundo, uma intimidade, uma intimidade surpreendida em dada esfera temporal. Obras há, um livro único, onde o leitor tem em desfile diante de sua sensibilidade, a história múltipla do seu semelhante, de um certo modo analógico à sua própria história. Já que o romance parece certo, natural, efetivo, quando nos oferece uma transfiguração de nós mesmos, uma opção, uma fuga, um sortilégio. Na verdade a aferição da realidade e da eficiência de um romance está e reside na capacitação que temos de compará-lo à nossa vida real e à vida de devaneio, de programação teórica em que desdobramos a vida real junto com a analógica. Balzac, porém, quis e programou seu artesanato fecundo e quantitativo de modo a metodizar e dicotomizar pormenores do Homem e da Vida, dissociando aquele e esta como o cosmógrafo dissocia de um globo as latitudes e longitudes para estudar planos em sentido de lateralidade Oriente-Ocidente e sua longitudinalidade em sentido Norte-Sul. Há quem trabalhe o romance em sentido ecológico, local, como simples ponto ou mancha surpreendida no mundo, mancha essa que pode ter o tamanho de uma ilha ou mesmo atingir as proporções de um continente. Mas Balzac programou e teve tempo de dar ao romance não uma opção de escolha e de separação útil para aproveitamento literário, e sim para tomar conta de toda uma superfície cuja medida lata era o equador e cuja rotação era através mesmo do eixo existencial. Sua capacidade para isso logo lhe deu azo e vezo para, saindo de um empirismo de vocação e de revelação, adotar um artesanato, um horário, uma tabela, e cumprir assim itinerário de estudo organizado. Vale a obra de Balzac por diversos aspectos, inclusive pela sua têmpera literária que não se empanou ainda hoje, apesar das modificações transfiguradas do corpo e do espírito do romance. Vale como obra de arte

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escrupulosa, como densidade de trabalho, como substância e como essência de índole gráfica. Mas, e principalmente, além de valer por qualidades específicas, vale e tem significação objetiva e ontológica porque tem uma quantidade, é uma potência enésima, tem, como um cubo, altura, largura e profundidade, e, como um cubo maciço, subdivisões, escaninhos, cunhas, cortes, superfície, âmago, cerne, fogo interno, vida gradual. Este terceiro volume recentemente publicado pela Editora Globo em cumprimento a tarefa tão meritória, traz entre outros romances e novelas a tão conhecida, estudada e célebre A Mulher de Trinta Anos. Pondo de lado os demais romances contidos nesse volume e bem traduzidos por uma equipe de responsabilidade, peças essas que se articulam como cenas mistas da comédia humana, abrangendo distintas injunções do tempo, do mundo, do destino e do "romance", detenhamo-nos um pouco em A Mulher de Trinta Anos. Depois de O Lírio no Vale e O Pai Goriot, será este o romance mais típico de Balzac, aquele onde seu módulo específico está mais válido até hoje, não tendo sido ultrapassado ainda. Não é o enredo que conta aí, é o estudo, a realidade psicológica, o sentido vivencial do desvalimento ante a circunstância do tempo, da experiência humana, da saturação, disso advindo vantagens e restrições, lição e dádiva excelente. Nesta vida rápida de hoje a leitura de Balzac inteira significaria alguns meses totais de abstração a tudo o mais. A leitura gradual, no acaso do aparecimento dos diversos volumes, a possibilidade de lentamente, mercê das notas bio-bibliográficas, se obter uma informação paralela e aderida ao assunto, à época e à história real de que tais personagens são títeres ou símbolos, proporcionam, mesmo agora, após um Joyce, um Pirandello, um Proust, um Kafka, uma lição, um curso mais que didático da arte literária de narrar, e evidenciam de forma soberba até que ponto chegou a genialidade de Balzac. Genialidade que não fugiu à vida nem ao tempo, antes se abeberou neles, como o Minotauro que se nutre hibridamente do concreto e do subjetivo.

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POESIAS & POETAS



RILKE, ÓRFICO E MÍSTICO Letras e Artes, 12 de outubro de 1947

A poesia está distribuída pelo mundo em doze tribos. Fácil saber quais as que descendem de Lia e quais as que descendem de Raquel. E seus nomes são, contemporaneamente: Novalis, Hölderlin, Baudelaire, Rimbaud, Gérard de Nerval, Antero, Claudel, Jacobsen, Stefan Georg, Eliot, Fernando Pessoa, Rilke. Rumo a montanhas e litorais, com prole e tudo, com arca, com altar, com rebanhos, com tendas, com vitórias e cativeiros vivem de signos temporais, mas interpretam o mistério dos itinerários. Ritmo, rima, imagem, retórica, linha, cor ou: movimento, música, símbolo, liturgia, amplidão, volume, formam o idioma gráfico ou oral com o qual se dão simultaneamente a palavra de passe para o dédalo dos sortilégios. Mercadeiam tecidos à beira de entrepostos, fazem peregrinações em massa ao flanco abismal da eternidade e do passado, recolhem-se aos oasis, distribuem-se à beira de poços, enterram debaixo da areia ou no desvão de grutas os restos dos banquetes, somem quando chega a Hora, transmitem aos filhos varões as sandálias e os segredos do Tesouro.

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Está-se a ver, pois, que na vida moderna, cosmopolita, são uns loucos, pois nos bairros de cidades como Paris, Berlim, Viena, Roma, Londres, Madri, sua aparição funambulesca pelos cafés com as metáforas corporais de Verlaine, de Nietzsche, de Carducci, de Heidegger, Kierkegaard, de Gabriel Marcel, de Aragon, Supervielle, Éluard, só podem despertar o interesse dos anômalos da intuição. Talvez por isso, pela inadaptação perpétua ao tempo, tendam a se exilar ou a virar andarilhos, meras exceções chocantes na realidade rotineira. Rilke, vindo do regaço do oriental de uma cidade escura e de uma lamentação periódica, primeiro se batizou nos gelos turvos da Rússia, ortodoxamente, vindo então a se tornar leigo e eugênico no convívio grotescamente rabelaiseano de Rodin, já que urgia se lavar da contaminação de Tolstói. Mas com aquela bigodeira em cortina sobre a boca, um bigode de bárbaro que nem o bigode de Nietzsche e o de Camilo, transferiu a sociabilidade para o protocolo epistolar e criou o paradoxo de ser cosmopolita e quase internacional mercê das transferências periódicas de um exílio voluntário para outro inesperadamente mais voluntário. Teve razão Gauguin, como energúmeno plácido, e teve razão Van Gogh, como louco esdrúxulo, de fugirem do mundo real e objetivo ocidental, e sobrecarregado na advertência inconsciente de não possuírem passaporte para estar, nem visto ecumênico para permanecer, tendo optado pela fuga, pelo trânsito, como se evadidos do passado e brandamente ressuscitados a milhares de anos longe de suas realidades existenciais, andassem fugindo da atualidade como egressos do Limbo, surpreendidos na inacomodação do agora. Teve razão Nietzsche em só achar bem-aventurança quando estava perdido. Teve razão Sá Carneiro em imitar Antero e fazer justiça à sua alma fazendo com que ela voltasse ao talweg donde emergira para sobrenadar nisto. Em vão Bremond esquece as vidas dos poetas e só se interessa por suas poesias, a medir se são músicas e oração ou se são laboratório e síntese.

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Acha-os meros instrumentos de um estado de Graça. Esquece-lhes a Tragédia da deformação ante e perante o mundo. Desdenha suas vocações visceralmente ligadas a eles, como se fossem a luz da estrada de Damasco ou o reverbero da divindade incidindo num viés eventual sobre um homem. Todavia a poesia está no poeta não como voz de Deus nem de Satã, não como ave no ombro nem como coroa na testa, e muito menos como espinho e como verônica lhes mascarando a efígie da fronte ao manto, mas sim como estrutura, como órgão, como função. Dela viveu e morreu Nietzsche, assim como desesperadamente Poe, Baudelaire e Hölderlin. Dela fugiu como de um câncer Gérard de Nerval e Rimbaud. Enganaram-na, mistificando suas personalidades como heterônimos Fernando Pessoa e Lorca. Embriagava-se com ela pelos cafés e boulevards Verlaine. Como bicho da seda, parece que o poeta se envergonha da origem visceral da sua poesia e então acodem uns especialistas de exegese-transfiguração e dizem professoralmente, tecnicamente que eles são médiuns onde reboa a voz de Horeb e Tabor. Mas como o corcunda, o manco, o gago, o epilético, o avarento e o dissipador o poeta sabe que tem um alforje de pele, uma roda no pé, um turbilhão na alma, uma fortuna nas mãos e um cassino na alma, para distribuir; para andar rente às sarjetas e às galáxias; para rodopiar nas feiras do espírito; para contar moedas na mansarda escura; e para mistificar na porta dos templos e Bolsas. Mas em que consiste este alforje de corcunda? Que pé a mais ou a menos é esse que o põe paralelo ao antuiquíssimo e ao moderno? Que turbilhão é esse que o iguala ao ofegar do busto do Minotauro? Que dinheiro é esse que ele conta entre os dedos como fios de barba dos Profetas? Que dissipar é esse que o torna inesgotável? A herança, o inventário do temporal e do eterno. Da Vida e da Morte. Do Tempo e do Aevum. Do corporal e do espiritual. Do paganismo mais denso ao monoteísmo mais categórico. As doze tribos da poesia, formalmente descentes de Lia e de Raquel e já entressonhadas pelo avoengo no sonho da escada, são os filhos últimos,

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as margens extremas do patriarcado disseminado, as últimas raízes do deserto, as derradeiras raízes, conchas do mar, o resto de luz de estrelas já mortas, operando agora ainda num mundo onde caíram, que não é deles, pois são sementes milenares guardadas durante séculos numa tulha e jorradas pela mão do acaso nos regos da atualidade, e que se ligam ao começo do mundo e ao dia da Ira, já que cataclismas inverteram tudo. Há, pois, nos poetas como diferença tônica e superdominante dos demais homens esse ar característico de “sobreviventes” ironicamente postos num mundo, como se o melhor do passado da Grécia dos arquipélagos viesse a ressuscitar no centro atual de continentes que os ignoram e que os tomam como rolhas de champagne saltadas de um festim antigo e só agora caindo sobre quem passa milênios depois. Essa providência do passado mais extremo e essa entrada já próxima no futuro tão perto do depois, rente já à eternidade, é que faz com que nos poetas máximos, o plano existencial não se refira ao “standard” cronológico nem à estatística coeva, trazendo eles em trânsito extemporâneo duas marcas que evidenciam os extremos, isto é donde vem e para onde vão. Rilke, por exemplo, como Novalis, como Hölderlin, como Jacobsen não fala uma linguagem de agora, e a dificuldade de cognição da sua poesia está justamente na mescla órfica e mística do seu verbo, isto é no que o léxico tem de passado quase arcaico e de futuro quase celestial, ou de postmortem. O poeta órfico é a apologia clangorosa de Apolo, de Dionísio, da máscara da dança, da música, do festim, do bailado, do jogo olímpico, do banquete, da multiplicação festiva, do amor, da compreensão, dos sentidos, do riso, da presença com os mistérios da interpenetração com o rito laico e profano. O poeta místico é o outro extremo, é o que já além de tudo, das soluções, dos enigmas, do temporal, das formas, dos testemunhos, do que é perempto, atinge, vê, pasma e comparticipa da eternidade, fora já disto, rente já da face do trono, da escadaria, do imanente. Eis explicado porque Rilke foi o contínuo egresso de tudo. Passando “trazia” o passado grego-romano, medieval, oriental antes do sofrimento

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posterior, alegre, puro, enxuto num cântico de epifania; e indo o fim para o além, se “comunicava” já com as madres, as fontes, as origens, dava-nos o místico, isto é o extra-temporal, o que, sem a liturgia dos sacerdócios e sem o sortilégio dos adivinhos, era bem e já a visão do que perdura. Assim, esse binômio ófico-místico, corpo e alma, tempo e eternidade, mundo e infinito, nos poetas e mais que em todos eles em Novalis e em Rilke, os eleva à condição de homens tendo muito de arcanjos, isto é tendo forma e inteligência humana e o privilégio da circunvizinhança da Divindade. Rilke, poeta órfico e místico abarcou tudo, como o filho adulto que abraçando o pai e o filho contém nesse abraço e em si, portanto, trindade que é, o avô, o pai e o neto, isto é, a imagem cúbica da Perduração. Por isso o seu léxico é intrincado de vocativos e os seus verbos estão sempre no gerúndio!

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RILKE, OBJETIVO E PLÁSTICO Letras e Artes, 14 de setembro de 1947

É mais que notório que Rainer Maria Rilke, depois de Mallarmé e Jacobsen, e simultaneamente com Stefan Georg e Paul Valéry, é poeta que não somente na essência mas também no formal apresenta grande dificuldade à compreensão. Na essência se deve isso aos temas, aos intuitos, às fontes de sua inspiração, ao sentido específico da sua poesia (tanto na primeira fase, da Rússia até Paris, Rodin, como na segunda, na Itália, na Espanha e na Suíça, como artesanato místico-órfico das “Elegias” e dos “Sonetos a Orfeu”). O seu temperamento eslavo, a sua sensibilidade checa (sinônimo quase de tristeza e de lamentação), a sua ética de vida, os problemas que encarou quis solucionar no plano existencial, as fronteiras filosóficas e estéticas que ultrapassou na sua “peregrinação”, a sua capacidade de vocativos e de símbolos, imagens o surtos, que o arredava da retórica, da eloquência e da metáfora-antítese, aproximando-o cada vez mais duma concepção verbo-motora quase abstrata, o seu mundo de cogitações,

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mundo esse que promana de Empédocles e de Platão, as equações fundamentais que armou para a sistemática da sua vida e da sua arte (e cujos termos foram a vida e a morte somadas numa só realidade ávida e crescente de cognição), a sua solidão sempre rumo ao último deserto e à última gruta (e de que a sua correspondência não significa hiatos e sim reafirmações de afastamentos mais categóricos), a sua formação dupla, de Leste de Ocidente, os precursores que nutriram a sua caudal, Heckehart, Plotino, Herder, Novalis, Kleist, Hölderlin, as suas fontes vetustas e contemporâneas, Santo Agostinho, São Francisco, São João da Cruz, Jacob Böehme, Silesias, Fichte, Schelling, seus exemplos mais afeiçoados, Tolstoi, Dostoiévski, Maeterlinck, e Obstfelder, a herança que centuplicou (“Eu sou herdeiro de muitos antepassados...”) a ânsia de ser íntegro, tudo isso formou imperativos existenciais, estéticos e formais, como se a transubstanciação do seu sangue e da sua carne tivesse que apresentar, num milagre ortodoxo, não os aspectos objetivos da máscara ou das verônicas, e sim os aspectos repentinos duma ressurreição não assistida senão por três mulheres, o Amor, a Solidão e a Eternidade. Esse é o Rilke quase mito que conhecemos, e cuja compreensão lógica e humana de comportamento, seus biógrafos nos conseguem dar não através do cotidiano das suas fases na Rússia, em Paris, na Itália, na Espanha, na Baviera, na Suíça, e sim através da sua correspondência que é uma vulgata ascética de solidão postada diante das escadarias do “Reino”. O que emerge da sua vida não é o episódio, não é o diálogo, não é o narcisismo, não é a alegria pagã nem a autossuficiência do convertido, e sim a exemplaridade de uma exceção que por mais exceção sempre se liga à realidade que está incluída no périplo Antiquíssimo-Moderno. Abrangeu, de fato, esse homem, como um Egresso do averno, a experiência total do “ser”, e a sua poesia foi a Manifestação disso. Exilado itinerante, (“Ich habe kein at Verhaus!”), como os apóstolos migrou sempre, e a sua passagem ética e lírica, o seu irracionalismo individual e aparte, foi uma colheita e não uma devastação. Compreendeu as ruas, as praças, as fontes, os mendigos, os degradados, as crianças, as árvores, os enfermos, os mortos

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prematuros, mas os deixou longe e para trás, sempre, pois ia em demanda do último vale da soledade. Vida assim quase intangível, só mesmo o traumatismo duma rosa o poderia ferir!... Para nós, Rilke, hoje, apesar de contemporâneo, é tanto como homem como poeta, um mito poético, de que já andávamos precisando, depois do desaparecimento de Gérard de Nerval e de Rimbaud. Não ficou pela vibração viril e genial dum Nietzsche, nem pela pesada inércia dum Poe. Ficou porque se diluiu em música, em lamentação, sua poesia da última fase tendo algo já de testamento de pobreza e de transfiguração, não como uma voz contemporânea, mas sim como um reboar de catacumba. Em lugar dos complexos da vida, esse “ungido” laico persistia na interpretação da morte, para isso ficando em sua poesia, e bem mais do que Novalis, equidistante da condição humana e angélica, recolhendo-se, e voluntariamente, num Limbo que lhe serviu de encruzilhada onde as duas, e, onde o temporal e o finito cruzavam com o imanente e o Empíreo. Como alcançá-lo, se, em função mesmo dos problemas e soluções, dos mistérios e da liturgia em que transformou seu lirismo, nós leitores ficamos no máximo na nave, sempre separados dele, que está na abside, e se apenas o langor chega até nós, como o ressoar daqueles múltiplos martelos de que ele fala? A captação e a exegese da sua poesia ortodoxa a poucos alcança, pois é coisa que requer não apenas a faculdade lógica e intuitiva, mas principalmente, um simulacro de semelhança senão estética pelo menos espiritual, como se deu com ele relativamente a Maeterlink e Jacobson. Mesmo quando nos “Sonetos a Orfeu” tende a “dividir em pequeninos” esse pão ázimo das “Elegias”, mesmo quando nos “Cadernos” tende a explicar tanta coisa, só ficamos como quem, vendo as pilastras e as gárgulas de uma catedral coberta por nevoeiros, consegue fazer uma idéia da grandeza encoberta, e isso através tão só da amostra que está rente à terra. Todavia esse mesmo Rilke cujos cânticos e lamentações, se não têm a convulsão estentórica da voz de Patmos, nos enchem de arrepio como a voz dos órgãos aos mendigos nas escadarias das Epifanias, como o segredo das chuvas que se acumulam para o outono no intuito talvez de Dies Irae

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das safras, voz de arúspice e de arcanjo, teve nos intervalos do seu Tabor, uma humanização tranqüila e cotidiana, acessível, fraternal, não paramentado como com cogulas de sortilégio, mas com o avental de couro do artesanato, e “cometeu” poesia objetiva, plástica, geométrica, cúbica, a ponto que seus poemas chamados Ding-gedichte, se não fosse certo laivo impressionista, teriam classificação cabível numa espécie de neo-parnasianismo. Diríamos um sacerdote surpreendido em ritmo de ginástica! Como se para escalar o flanco da Divindade arremetendo quase em abscissa no carro de Elias, tivesse que virar contorcionista e saltimbanco. Como se para se para coaptar ao vão triangular da pirâmide e ao vazio de redoma do deserto, tivesse que tomar notas num canhenho das coisas terrestres, ribeirinhas e de nível 0². O mágico irracionalista da fusão místico-órfica, também pode ser surpreendido como um transeunte qualquer diante de uma fonte em Roma, diante de um “Carroussell” num subúrbio, diante de uma pantera, de um antílope, de um flamingo, de um unicórnio, no jardim de plantas e de bichos de Paris, tirando linha e cromatismo, êxtase e dinâmica, realidade e exatidão, face e aresta, superfície e brilho, numa vontade disciplinada de ver o já visto, de interpretar apenas o objetivo e o plástico, deixando só, como pegada não do anjo que passeou com Tobias, a marca do pé na areia do caminho. Mas marca e pegada não de arcanjo, mas de peregrino. Essa sua face objetiva no rés do chão, “trabalhando como trabalha a natureza e como trabalham os homens”, num solfejo rude quase à Rodin, não será a documentação pormenorizada e em ralenti de que o poeta mesmo quando elege um mundo seu, mesmo quando ascende a uma região que confina com as Fronteiras, querendo cantar não o inumano mas o Todo, precisa, como o bufarinheiro que demanda cordilheiras áridas, não se despojar do que usou cá embaixo, mas pelo contrário, cá de baixo levar as sandálias, a mochila, o bordão, a balança, a terra das ruas e as conchas do mar, bem como as sementes duras das alamedas a cuja sombra se deitou muita vez como mendigo?

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Este livro foi composto em Adobe Garamond Pro e Gotham Book, impresso em papel Chambril Avena 80g em fevereiro de 2017 para a Editora Arcรกdia.


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