Prorrogar ou não as concessões: eis a questão

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ANO 3 | Nº 6 | AGOSTO 2011

ENERGIA | Artigo Prorrogar ou não as concessões: eis a questão Consoante a regra insculpida no Art. 175 da Constituição Federal de 1988, as concessões de serviços públicos devem ser objeto de licitação. O texto constitucional deferiu à lei ordinária a atribuição de dispor sobre o contrato de concessão e as condições de sua prorrogação. No que toca ao setor de energia elétrica, a questão da prorrogação das concessões vem despertando, no momento, grande interesse, pois, em 2015, expirará, simultaneamente, o prazo de uma parcela significativa das concessões de geração, distribuição e transmissão de energia elétrica. Instaurou-se, já há algum tempo, a propósito do assunto, intenso debate, girando as discussões a respeito da conveniência ou não de prorrogação das referidas concessões e da sua possibilidade, à luz da legislação em vigor. A matéria possui múltiplas facetas a serem analisadas e sopesadas, o que explica a dificuldade, no curso dos anos, em se estabelecer uma disciplina legal que lhe dê tratamento satisfatório e estável, observando-se, pelo contrário, um movimento pendular da legislação, mesmo após o advento da Constituição de 1988.

Na vigência do Código de Águas, baixado pelo Decreto nº 24.643, nos idos de 1934, as concessões para “produção, transmissão e distribuição de energia hidroelétrica” eram dadas pelo prazo de 30 anos, podendo, excepcionalmente, chegar a 50 anos para permitir a amortização do capital investido “com o fornecimento de energia por preço razoável”. Em 1995, foi editada a Lei nº 8.987, que, em regulamentação ao supracitado Art.175 da Constituição Federal, dispôs sobre o regime de concessões e permissões. Nos termos dessa lei, conhecida como “Lei Geral de Concessões”, ficou autorizada a prorrogação da concessão, nas condições constantes do respectivo contrato. Ainda no mesmo ano, a Lei nº 9.074 veio complementar a disciplina introduzida pela Lei nº 8.987, trazendo regras específicas para o setor de energia elétrica. Dava-se início à construção do arcabouço legal que permitiria a retomada dos investimentos em área de tamanha importância estratégica. Tal Lei estabeleceu a disciplina das concessões, permissões e autorizações de exploração de serviços e instalações de


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energia elétrica e de suas prorrogações, prevendo prazos para as concessões e a possibilidade de uma prorrogação “no máximo por igual período, a critério do poder concedente, nas condições estabelecidas no contrato de concessão”. O referido diploma fixou também critérios para prorrogação das concessões então em vigor, em geral pelo prazo de até 20 anos, a partir de 1995, razão pela qual haverá, em 2015, o término de um expressivo número de concessões, na maioria dos casos outorgadas a empresas estatais controladas pela Eletrobrás ou por Estados da Federação. Ademais, a Lei em tela, no respectivo Art.27 ainda em vigor, contemplou a possibilidade de prorrogação das concessões para viabilizar a privatização de pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos. Em comentário aos dispositivos dessa Lei, referentes às prorrogações, os doutrinadores levantaram algumas dúvidas, relacionadas, em síntese, (i) ao temor de sua institucionalização, impedindo a substituição dos concessionários, por meio de licitações, (ii) aos seus efeitos econômicos, considerando a possível amortização do investimento no prazo inicial e o não rebate disso nas tarifas ou nos preços no período de extensão do prazo e, sobretudo, (iii) à insegurança dos concessionários, em face da ausência de balizamentos objetivos para a decisão do

poder concedente. A propósito desse último aspecto, assinalou, por exemplo, a atual Ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia Antunes Rocha, que, embora a Lei nº 9.074 tenha vinculado, no Art.19, a decisão de conceder a prorrogação à garantia de qualidade do atendimento dos consumidores a custo adequado, ela “não apresenta critérios objetivos para os casos em que a entidade concedente não defira 1 o pleito”. Na sequência, a Lei nº 9.427/96, que instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, previu, no respectivo Art.27, que “os contratos de concessão de serviço público de energia elétrica e de uso de bem público (...) conterão cláusula de prorrogação da concessão, enquanto os serviços estiverem sendo prestados nas condições estabelecidas no contrato e na legislação do setor, atendam aos interesses dos consumidores e o concessionário o requeira.” Em outras palavras, ficava admitida uma prorrogação quase automática, subsistindo, no entanto, os pontos que ensejavam controvérsias doutrinárias. Mais adiante, a Lei nº 10.848, de 2004, alterou a Lei nº 9.074, no que concerne às prorrogações de concessões de geração de energia elétrica, para autorizar apenas uma prorrogação de até 20 anos para as concessões anteriores a 11 de dezembro de 2003, resultando de tal modificação

1 - “Estudo sobre Concessão e Permissão de Serviço Público no Direito Brasileiro”, pág.62.


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que as concessões de geração posteriores àquela data não podem ser prorrogadas. A par disso, revogou o Art.27 da Lei nº 9.427, é dizer, a prorrogação de concessões quase automática acima mencionada. A verdade é que o setor elétrico brasileiro é complexo e dinâmico e está em construção, não podendo ser comparado com o de outros países, em que tal área já se encontra estruturada. Evidentemente, essa peculiar circunstância repercute na elaboração da legislação e no movimento pendular antes aludido, ainda não tendo sido atingido o ponto ideal de estabilidade regulatória desejável. A esta altura, com a proximidade do vencimento das prorrogações realizadas em 1995, essa legislação constitui o pano de fundo das discussões sobre o assunto. O tema é complexo e comporta uma variedade de questões a serem examinadas, do ponto de vista jurídico, que passam pela necessidade ou não de edição de nova legislação, a constitucionalidade desta última, a lei aplicável a cada contrato de concessão e as particularidades de suas cláusulas. Em uma ótica bastante simplificada, podese dizer que hoje se esboçam duas vertentes básicas de opinião sobre a matéria. Uma corrente defende que, expirado o prazo da prorrogação, deverá ocorrer a reversão dos bens e a realização de licitação para seleção do novo concessio-

nário, partindo do entendimento de que nova prorrogação, ainda que autorizada por lei, representaria a frustração do princípio constitucional da licitação obrigatória. Alinham-se a essa posição os grandes consumidores industriais, que ameaçam discutir no Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade de qualquer medida legislativa no sentido de prorrogar as concessões. Tais agentes acreditam que, por meio da competição licitatória, se dará a queda no preço da energia na ponta consumidora. Em sentido oposto, número mais expressivo de agentes julga mais apropriado que se promovam novas prorrogações, questionando-se se, para tanto, será necessário editar-se lei ordinária, autorizando-as, no pressuposto de que a Lei nº 9.074/95 teria permitido uma única prorrogação. A favor dessa alternativa, que tem por adeptos, dentre outros, os atuais detentores das concessões, vêm sendo apresentados alguns argumentos. Em primeiro lugar, seus defensores partem da premissa de que há situações em que os investimentos feitos pelo concessionário não restarão integralmente amortizados em 2015. Assim sendo, cumpriria efetuar o ressarcimento dos valores não amortizados. Vislumbram, contudo, dificuldades para a aferição do valor das indenizações, considerando, inclusive, que os diversos


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planos econômicos, implantados no País nas últimas décadas, impactaram os custos e regras de apropriação dos investimentos. Demais disso, conjectura-se se a União contaria com recursos suficientes para fazer frente ao pagamento dessa indenização. Conquanto exista, no setor, a Conta Reserva Global de Reversão – RGR, criada precisamente para essa finalidade, alimentada por encargos cobrados dos consumidores nas contas de energia, os recursos nela depositados vêm sendo utilizados para custear programas sociais, como o Luz para Todos, além de projetos voltados para iluminação pública e eficiência energética. Adicionalmente, alega-se que a opção por licitar novas concessões poderia impactar interesses estratégicos do Governo, que busca ampliar o parque gerador do País. Como grande parte das concessões de geração a vencer em 2015 se encontra em mãos de empresas estatais, estas veriam minguar suas receitas, dificultando novos investimentos públicos no setor. Por outro lado, no que se refere às empresas privadas, salienta-se que o ideal é que seus investimentos sejam direcionados para a implantação de novos empreendimentos, em lugar de serem alocados em ativos disponíveis, mediante a participação em licitações para obter a concessão do parque gerador já instalado. Vale assinalar que há quem enxergue na

redação do Art.42 da Lei nº 8.897/95, com a alteração introduzida pela Lei nº 11.445/2007, permitindo que, findo o prazo de uma concessão de serviço público, este possa ser prestado, sem licitação, por órgão ou entidade do poder concedente ou delegado a terceiro, um caminho para a solução do dilema hoje existente. Acontece que esse dispositivo não oferece respaldo seguro para qualquer iniciativa, eis que sua constitucionalidade está sendo discutida no âmbito da ADI 4058, ainda não apreciada pelo Supremo Tribunal Federal. De qualquer modo, dos debates que vêm sendo travados um aspecto parece sobressair: se a escolha for pela realização de nova prorrogação, esta deverá estar condicionada seja à adoção de mecanismos que permitam a captura do benefício da amortização dos investimentos em favor da modicidade tarifária, seja à imposição de contrapartidas, a exemplo de compensações ambientais. Ainda a esse ângulo, dados os significativos interesses envolvidos, já se podem antever amplas discussões de cunho jurídico. O título deste artigo parodia o famoso dilema hamletiano, mas é claro que a solução do tema abordado passa longe das tintas dramáticas da obra de Shakespeare. Hoje existe uma dúvida que decerto está em vias de ser sanada, até porque já se tornou premente, em vista da


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necessidade de planejamento de atividades e investimentos dos atuais concessionários. O certo é que a opção do Governo deverá considerar e conciliar aspectos tão diversos quanto a segurança jurídica que as regras precisam inspirar; o atendimento do interesse público, com a garantia futura de abastecimento e a prática de tarifas adequadas; e a necessidade de atração de investidores, propiciando-lhes oportunidades e, acima de tudo, incutindo-lhes confiança, inclusive, se prevalecer a opção pelas prorrogações, no que tange ao estabelecimento de critérios objetivos em que elas se darão e as respectivas condições. Espera-se que a decisão a ser adotada seja fruto da ponderação desses aspectos, bem como da aplicação e interpretação harmonizada das normas constitucionais e infraconstitucionais incidentes na hipótese, e bem assim da consideração de princípios como o da isonomia, da modicidade tarifária, da eficiência e da continuidade dos serviços públicos. Identifica-se aqui, como em tantas outras hipóteses, o desafio de se manter o delicado equilíbrio entre o objetivo almejado pelo poder concedente, no

âmbito de uma concessão, de obter a prestação adequada de serviços a tarifas módicas e aquele visado pelo concessionário ou o pretendente a concessionário, que é a percepção de lucros.

Autores: Maria Aparecida de A. P. Seabra Fagundes V-Card afagundes@araujopolicastro.com.br Bernardo de Medeiros bmedeiros@araujopolicastro.com.br

V-Card

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