Tribuna 18 05

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VITÓRIA, ES, SEGUNDA-FEIRA, 19 DE MAIO DE 2014 ATRIBUNA

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Reportagem Especial EXPERIÊNCIA NA PRISÃO

INJUSTIÇA KADIDJA FERNANDES/AT

Mais de 300 ações contra o Estado E m cerca de cinco anos, pelo menos 300 pessoas foram parar em cadeias do Estado e depois essas prisões foram declaradas indevidas pela Justiça. Isso porque, desde janeiro de 2008 até o último dia 15, já existem 304 ações contra o Estado de prisões ilegais, segundo dados da Procuradoria Geral do Estado (PGE). De acordo com o órgão, entre os motivos estão: cumprimento de pena superior, prisão por pagamento de pensão alimentícia que já foi efetuado, acusação de prática errônea, registros cadastrais penais ou civis desatualizados e outros. O presidente da Associação dos Peritos Papiloscópicos do Espírito Santo (APPES), Antônio Tadeu Nicoletti Pereira, citou que um dos tipos de prisão ilegal é aquela em que a pessoa é processada porque algum criminoso apresentou o documento dela ao ser preso. Também há casos em que o bandido diz o nome errado na delegacia, o que pode fazer com que o processo recaia sobre um inocente. “Depois que a pessoa bate no sistema inocente, fica lá e ninguém leva fé. Bandido não diz mais o próprio nome, diz o nome de outro

porque sabe que o sistema é falho”. O presidente da APPES explicou que no Estado não existe um sistema informatizado que possibilite a pesquisa das impressões digitais na hora em que os documentos são apresentados pelos acusados na delegacia. “Uma cópia do documento é enviada para a perícia e ele é escaneado, mas não é comparado, pois a pesquisa é manual e não há peritos suficientes para isso. Só quando o titular do documento é intimado, que a perícia vai analisar. Todo dia faço laudo de falsa identidade usada para cometimento de crime”. FACILIDADE O procurador de Justiça do Ministério Público Estadual (MPES) Sócrates de Souza afirmou que bandidos usam documentos de forma indevida com facilidade porque não há um banco de dados onde a polícia faça a conferência. Souza acredita, ainda, que nem todos absolvidos são de fato inocentes. “A pessoa pode ser absolvida por diversas razões, ora porque não praticou o crime, ora porque as provas não dão a certeza para o juiz que deveria condenar”.

“Nos primeiros três dias, quis me matar” Por causa de uma falha na Justiça, o chaveiro Fábio de Paulo Ribeiro, 33 anos, ficou preso 25 dias sem nunca ter cometido crime algum. Fábio contou que perdeu os documentos em 2003, e logo registrou um boletim de ocorrência.

Só que em 2005, o cunhado dele foi preso e apresentou na delegacia a identidade perdida do Fábio. “Eu não sabia que meu cunhado estava com meus documentos. Ele foi preso por porte ilegal de arma, mas o processo veio para o meu nome”.

Fábio foi preso por meio de um mandado de prisão no dia 5 de setembro de 2011. “Nos primeiros três dias, quis me matar. Muitos acreditaram em mim, mas alguns acharam que eu fosse bandido e perdi clientes. Movi uma ação contra o Estado”.

OUTROS CASOS RODRIGO GAVINI – 23/09/2013

Preso quatro meses Um garçom de 28 anos, de Colatina, ficou preso de novembro do ano passado até março deste ano, porque o irmão dele apresentou a certidão de nascimento do garçom ao ser preso, após cometer um roubo, em 2005. Em março, a Justiça revogou a prisão, pois a coleta das digitais mostrou que o crime foi cometido pelo irmão do garçom. LEONE IGLESIAS – 03/04/2014

Direito à indenização Após ficar dois anos preso por engano, o pintor Ricardo de Souza Monteiro, de 33 anos, conseguiu ganhar uma indenização de R$ 160 mil do Estado. Ele foi preso em março de 2009, no Bairro República, em Vitória, sob acusação de sequestro, furto e diversos outros crimes. WILTON JUNIOR – 10/04/2013

Após perder documentos Um armador civil de 43 anos ficou preso durante um dia no Departamento de Polícia Judiciária (DPJ) de Cariacica, no dia 2 de abril do mês passado. Ele perdeu os documentos depois de esquecê-los em um táxi, em 2002. Só que um criminoso apresentou os documentos perdidos ao ser preso, o que gerou quatro mandados de prisão no nome do armador. Ele só foi liberado após resultado de exame pericial.

No lugar do irmão O agricultor Amilton Rosa de Santa, 29 anos, ficou preso 16 dias por engano em Linhares, por causa do próprio irmão, José Rosa, em abril do ano passado. José foi preso por tráfico e deu o nome de Amilton, que depois foi detido. Ao ser solto, Amilton disse que iria processar o Estado.

Preso ao registrar ocorrência O mecânico Cícero Eduardo de Souza, 34 anos, não imaginou que fosse voltar ao presídio pelo fato de ir até uma delegacia registrar um boletim de ocorrência (BO), após perder os documentos. Ele contou que foi preso em 1998, porque cometeu um roubo, mas que cumpriu toda a sua pena em 2003, quando ganhou a liberdade e recomeçou a sua vida. Só que, no último dia 29, quando foi a uma delegacia registrar uma ocorrência, ele recebeu voz de prisão porque constava no sistema

que ele teria fugido da Penitenciária Agrícola do Estado, em Viana, em 2007. Ele disse que havia um engano, mas foi encaminhado para a unidade, onde ficam os detentos que cumprem regime semiaberto. Cícero ficou preso até a última terça-feira, quando foi desfeito o mal entendido. Para o mecânico, foi um período traumatizante. “Foram os piores dias da minha vida! Eu me senti um animal, um lixo, porque fiquei numa cela isolada. Fiquei até desorientado, pois passou aquele filme todo da minha

Banco de dados é solução O chefe da Polícia Civil no Estado, Joel Lyrio, afirmou que o governo tem uma parceria públicoprivada para a criação de um banco de dados civil, que resolveria os problemas das prisões ilegais por falsa apresentação de identidade. “O governo identificou esse problema e quer resolvê-lo. A questão de se evitar essa falsificação vai ser resolvida com o banco de dados civil informatizado. Talvez ainda este ano haja licitação”, explicou. Quanto ao problema da Polinter registrar que o acusado tem passagem pela polícia, mesmo após ter sido absolvido, Lyrio relatou que isso pode ocorrer porque o banco de dados da Polinter e o da Justiça não são conjugados. “Mas a própria pessoa pode tirar uma cópia da certidão de bons antecedentes e entregar na Polinter que o problema é resolvido”. Já a Secretaria de Estado da Jus-

JULIA TERAYAMA – 20/07/2013

vida novamente. Vou processar o Estado porque esses dias foram muito humilhantes para mim”. SEJUS A Secretaria de Estado da Justiça (Sejus) informou, por meio de nota, que vai investigar se houve falha na inclusão do nome do interno no cadastro de foragidos da unidade. A Sejus afirmou que, durante os dias em que ele passou na unidade, esteve em cela separada dos outros internos e recebeu assistência jurídica, psicossocial e médica.

ANÁLISE Clécio Lemos, Mestre em Direito Penal e professor de Direito Penal e Criminologia

“Injustiças diárias nas delegacias”

JOEL LYRIO: licitação este ano tiça (Sejus) informou, por meio de nota, que todos os internos do Centro de Detenção Provisória de Viana II (CDPV II) recebem tratamento de acordo com a Lei de Execução Penal e participam de atividades de ressocialização.

“Em tempos de grande súplica social por mais e mais prisões, talvez o melhor caminho seja mostrar justamente o risco que todos corremos diante do incremento punitivo. Em verdade, o brasileiro clama por prisão, mas não tem noção da gravidade que é retirar a liberdade de uma pessoa, nem consegue se ver como alvo possível do sistema penal. As injustiças diárias que presenciamos nas delegacias e nos fóruns são provas de que devemos impor severas restrições legais para a decretação de prisão de um ser humano.”


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