António de Sousa Franco e a Liberdade de Educação

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Iniciativa Associação Portuguesa de Escolas Católicas (APEC) Edição Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã (SNEC) Coordenação Jorge Cotovio (APEC) Design Otília Pedro Impressão Gráfica Almondina Tiragem 700 Fátima,exemplaresagostode 2022 Depósito legal: 503 768/22 ISBN 978-989-8822-53-6 FICHA TÉCNICA

ÍNDICEPREFÁCIO António Guterres \ 11 \ 17EM MODO DE INTRODUÇÃO Fernando Magalhães \ 23A LIBERDADE DE EDUCAÇÃO E O DIREITO A ESCOLHER A ESCOLA António Manuel Moiteiro Ramos \ 37PRECISAMOS DE LUTADORES ASSIM! Francisco Mota \ 41O ENSINO LIVRE NO PROJETO DE REFORMA DO SISTEMA ESCOLAR António Luciano de Sousa Franco \ 67O RECONHECIMENTO OFICIAL DA UNIVERSIDADE CATÓLICA António Luciano de Sousa Franco \ 121ENSINO LIVRE AMEAÇADO? António Luciano de Sousa Franco \ 127O ENSINO LIVRE NO NOSSO SISTEMA DE ENSINO – PISTAS DE REFLEXÃO António Luciano de Sousa Franco \ 139RETIFICAÇÃO AO N.º 24, DE 19 DE JANEIRO DE 1979 António Luciano de Sousa Franco \ 149A LIBERDADE DE APRENDER E DE ENSINAR NO ÂMBITO DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS. FUNDAMENTAÇÃO DA LIBERDADE DE ENSINO António Luciano de Sousa Franco \ 19725 ANOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA António Luciano de Sousa Franco

\ 313TESTEMUNHO Guilherme d’Oliveira Martins \ 321TESTEMUNHO Pedro Barbas Homem \ 253PREFÁCIO DA OBRA “LIBERDADE DE APRENDER E A LIBERDADE DAS ESCOLAS PARTICULARES” António Luciano de Sousa Franco \ 269CURRICULUM VITAE António Luciano de Sousa Franco \ 275TESTEMUNHO Mário Pinto \ 289TESTEMUNHO Jorge Miranda \ 303TESTEMUNHO Eduardo Marçal Grilo

AntónioPREFÁCIOGuterres

O seu espírito de missão e um imperativo de promoção do bem comum, a que não era alheia a fé católica esclarecida e aprofundada que professava, impeliam-no ao serviço à comunidade, à ação com impacto na realidade com que se deparava e procurava transformar para melhor.

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Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU)

O Professor António Luciano de Sousa Franco deixou um legado duradouro e uma marca estrutural e indelével na sociedade portuguesa (que, em boa verdade, não tem sido devidamente reconhecida). Íntegro, alicerçado em convicções profundas, dotado de uma superior inteligência e de um saber enciclopédico distinguiu-se, não só pelo seu profundo conhecimento académico, mas também pelo serviço concreto ao País e pela obra tangível que construiu.

A educação e o ensino foram uma constante na sua vida e o domínio a que verdadeiramente se entregou e dedicou. Foi autor de um acervo monumental de livros, manuais e publicações de natureza diversa. Guiou-se, sem tergiversar, por critérios sólidos de qualidade, liberdade e universalidade: não contemporizava em matéria de rigor académico, pugnou por um ensino livre e plural e procurou alargar o acesso à educação como um bem essencial à disposição de todos.

\ 12Conheci e relacionei-me com António de Sousa Franco em inúmeras ocasiões e ao longo de várias décadas, desde o alvor do regime democrático em Portugal. O que de início mais me impressionou nele foi a sua visão de futuro. Não era só a capacidade para antever desenvolvimentos, que efetivamente possuía. Era mais do que isso, era o modo como, em diversas áreas, imaginava um futuro melhor e inovador para Portugal e para os portugueses e se empenhava em trilhar um caminho reformador. Foi, naturalmente, no âmbito do XIII Governo Constitucional que nos relacionámos e colaborámos de forma mais próxima. Testemunhei, em primeiro lugar, o modo como pôs ao serviço da governação todo o seu saber em matéria de finanças públicas, num período de grande desafio para o nosso País no quadro da fundação e adesão à moeda única, o Euro. Mas mesmo em assuntos alheios à sua formação académica, a sua perspicácia e capacidade de apreensão do essencial eram notáveis. As suas intervenções enriqueciam, sem exceção, as discussões em Conselho de Ministros sobre os mais diversos temas. Vi como mobilizava equipas, como se rodeava de colaboradores mais jovens e talentosos a quem, a par de uma rigorosa exigência, não se cansava de estimular num diálogo permanente e mutuamente desafiante.

Mas o legado de António de Sousa Franco em matéria de educação não se resume ao ensino superior. Destaco, também, o empenho que pôs, como Ministro das Finanças, na criação da rede de ensino pré-escolar, um enorme progresso em Portugal. Esta rede passou a oferecer a sucessivas gerações de crianças (e famílias), sobretudo as menos privilegiadas, um apoio que em muito melhorou as suas vidas e um enriquecimento formativo, desde a mais tenra idade, que as acompanhará para sempre.

Não posso terminar sem uma referência pessoal. Faço-o com emoção pois a morte prematura de António de Sousa Franco foi, para mim, sobretudo a partida de um amigo querido, com quem tive o enorme privilégio de me cruzar, conviver e trabalhar. Recordo com saudade, mas também com gratidão, os projetos que desenvolvemos em conjunto, as reflexões que partilhámos como amigos com tantas preocupações em comum e, ainda, as oportunidades de convívio descontraído que tivemos.

Universidade Católica Portuguesa – não só no plano conceptual e doutrinário, mas, também na execução do projeto fundador e no crescimento e afirmação de uma Universidade que viria a assumir-se como uma referência de excelência no panorama do ensino superior em Portugal.

Filho notável da Faculdade de Direito de Lisboa, sua “alma mater” e onde se formou e fez um percurso distinto vindo a ocupar os mais relevantes cargos e graus académicos, foi também um dos pais da

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Muito devem a António de Sousa Franco os milhares de estudantes, e também docentes e funcionários, que nas últimas décadas passaram ou integraram os quadros da Universidade Católica Portuguesa.

O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), acolhendo o sentimento da quase totalidade das Nações, procura, empenhadamente, evitar o conflito. No dia seguinte, lançará um fortíssimo apelo a Vladimir Putin para parar a guerra: «President Putin, stop your troops from attacking Ukraine. Give peace a change. Too many people have already died. Thank you, Mr. President».

Terá sido, para ele, o pior dia da sua vida como Secretário Geral da ONU – como confessou. É neste quadro que as palavras de António Guterres assumem um significado ainda mais especial – como especial terá sido a sua relação com António Luciano de Sousa Franco.

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Considero, pois, da mais elementar justiça invocar, lembrar e difundir o que foi a obra de António de Sousa Franco, nomeadamente em prol do ensino e da liberdade de educação, prestando-lhe uma homenagem que sendo merecidíssima ficará sempre aquém da gratidão que, como portugueses, lhe devemos. Nova Iorque, 23 de fevereiro de 2022

Nota do editor Quando António Manuel de Oliveira Guterres escreve estas linhas, as tropas russas ultimavam os preparativos para invadir a Ucrânia – algo que, infelizmente, se concretizou passadas umas horas.

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\ 17 EM MODO DE INTRODUÇÃO Fernando Magalhães Presidente da Direção da Associação Portuguesa de Escolas Católicas (APEC)

A transversalidade de vida deste homem e dos quadrantes dos que sobre ele escrevem, incluindo os respetivos referentes políticos e partidários, demonstram bem que a liberdade efetiva de escolha em educação ultrapassa fronteiras de filiação e que pode muito bem morar nas esferas onde alguns, que algumas delas habitam, pretensamente apontam como causa a que o seu espetro se opõe, designadamente nas responsabilidades que dela decorrem para o Estado. António Luciano de Sousa Franco, até pelas pessoais opções em matéria de referência política e partidária, demonstra bem quanto alguns desses campos podem ser também espaços de intrépida defesa das liberdades de

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Em circunstância alguma há 35 anos me imaginaria a escrever um texto, como este, em relação a um Homem que via passar e que admirávamos com simultâneo sentido de respeito, veneração e orgulho de comum pertença. Ainda que em áreas do saber e em escolas distintas, eu estudante e ele professor na mesma universidade, o cruzamento não era pouco frequente e a sua passagem atraía o nosso, o meu olhar. Há pessoas que aprendemos a respeitar apenas com o olhar! É da memória de um desses maiores, o Professor Sousa Franco, que nestas linhas falo ao introduzir este livro. Da memória dele, da que hoje queremos respeitar para lá do próprio olhar. Esta publicação converte, por isso, admiração e respeito em tributo e em legado a uma causa maior que serviu, entre outras grandes, a da liberdade de educação, do “ensino livre”, como à época era comum dizer-se. Fê-lo – como dizem os seus mais estreitos – do mesmo modo como se entregava às causas, com destemor, paixão, inteligência, argúcia e verdade. São disso testemunhas as suas próprias palavras sobre o livre direito de escolha em educação que, sem pretensão de exaustão, compilámos neste livro e as palavras daqueles que tão entusiasticamente aceitaram o convite de o testemunharem.

\ 19 ensinar e de aprender, na livre escolha da cidadania e na responsável obrigação, coerente e consequente, daí decorrente para um Estado que é de todos e que a todos deve garantir o livre acesso e a livre possibilidade de escolha.

2. Poder-se-ia considerar a despropósito, mas o misto relevo do contexto, do ato e do seu simbolismo fazem-me não hesitar. Refiro-me à especial circunstância em que as palavras do prefácio deste livro foram escritas por António Guterres. Junto a elas, fica uma nota de edição para memória futura: o texto que serve de prefácio à obra chegou-nos e foi escrito, pelo amigo profundo de Sousa Franco, Secretário Geral das Nações Unidas, no eclodir da invasão da Ucrânia pela Rússia.

A par da grandeza de espírito, da generosidade humana e do tributo de amizade maior que tal ato revela, não podemos deixar de registar esta outra simbólica, qual sinal dos tempos, em que ameaçada a liberdade – a dos povos, a da autodeterminação, a de todos os direitos – é sempre a vida que está em jogo. Afinal, é de liberdade que aqui falamos! Da liberdade de educação.

3. Por fim, não são de circunstância as referências de agradecimento que se seguem. Traduzem genuíno o sentimento: à Conferência Episcopal Portuguesa que, através da Fundação SNEC (Secretariado Nacional da Educação Cristã), viabiliza esta edição; à Revista Brotéria, que tantas vezes fez eco destes gritos de liberdade; à Doutora Matilde de Sousa Franco, viúva do nosso evocado, que foi preciosa companhia na abertura de fontes, de caminhos e de portas; à Reitora da Universidade Católica Portuguesa, Professora Doutora Isabel Capeloa Gil, entusiasta conselheira de primeira hora pela causa e pela Casa; ao Professor Doutor Mário Pinto e ao Doutor Jorge Cotovio a quem, sem prejuízo de outras responsabilidades e trabalhos, se devem o entusiasmo, madurez e tenaz persistência no desenho e elaboração da

\ 20obra, à imagem do que em constância permanente fazem do desenho da causa a ela subjacente. À Igreja, mãe e mestra, que nos leva e nos ensina os caminhos da liberdade, em nome da qual nós – entidades titulares, direções, assistentes espirituais, educadores docentes e não docentes das escolas católicas – tudo fazemos por aqueles de quem cuidamos, as nossas crianças, adolescentes e jovens, as suas famílias, com quem cooperamos na sua missão primeira educativa e por quem não descansamos até uma efetiva implantação da liberdade de ensino. Porque, como nos diz António Luciano de Sousa Franco, “o ensino livre é uma instituição de ensino que não existe verdadeiramente entre nós: trata-se do direito fundamental (e da estrutura de ensino dele resultante) nos termos do qual os pais podem escolher o ensino que desejem para os seus filhos.” E isto só se concretizará quando, como também o próprio diz, o Estado “assegurar a satisfação, em condições de igualdade de acesso, das necessidades de educação dos seus cidadãos”. É o que falta cumprir!

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\ 23 A LIBERDADE DE EDUCAÇÃO E O DIREITO A ESCOLHER A ESCOLA António Manuel Moiteiro Ramos Bispo de Aveiro e presidente da Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé (CEECDF)

A conceção dos direitos da pessoa afirma que a liberdade inerente ao sujeito humano é chamada a viver na responsabilidade pelo bem de todos. Falar na liberdade de ensino, implica falar na liberdade de escolha. Tal liberdade, indispensável ao progresso humano, científico e tecnológico, não pode ser limitada, condicionada ou abolida por atos de ministros do Estado e de outros agentes públicos.

A primeira responsabilidade educativa dos pais é irrenunciável e inalienável. A escola existe para os alunos e estes pertencem a famílias com direitos consagrados pela consciência humana coletiva e pela Constituição da República. No campo educativo, por exigência do bem comum, é tarefa do Estado criar condições para que a família seja, quanto possível, a comunidade educativa primária e a estrutura básica do bem social. “Ao Estado cabe a obrigação de cooperar com os pais na educação dos filhos¹”. “Segundo o princípio de subsidiariedade, deve suprir as falhas dos pais, sem, todavia, contrariar os seus legítimos e justificados desejos, assim como criar as estruturas indispensáveis, escolas ou outras instituições, na medida em que o bem comum o exigir²”. Acresce referir que a liberdade religiosa implica um direito à educação religiosa, que os pais têm o direito à escolha da educação religiosa dos seus filhos e o direito à escolha da escola onde essa educação seja Haveráministrada.uma efetiva liberdade de ensinar e de aprender quando existem constrangimentos à liberdade de escolha? Sem liberdade ¹ Constituição da República Portuguesa, art.º 67.º, c. ² Conferência Episcopal Portuguesa, Carta Pastoral Educação: Direito e dever – missão nobre ao serviço de todos, n.º 21.

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liberdade de educação é um direito fundamental da pessoa humana mas, ao contrário do que muitos pensam, não é um dado adquirido.

\ 25 de escolha, o mundo transforma-se numa ditadura de vontades na qual não podem existir pessoas felizes. Da liberdade dependem os modelos de financiamento, o reforço da autonomia das escolas, as políticas de colocação de professores e mesmo o direito de escolha por parte de alunos e famílias. Não haverá democracia pluralista sem que o sistema de ensino respeite a autonomia das pessoas e famílias no que respeita às suas preferências e convicções. Sem liberdade de ensinar e de aprender, a educação está condenada ao fracasso. A liberdade de escolha no ensino só será possível com uma nova visão para a política educativa do nosso país. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.º 26.º), bem como a Lei de Bases do Sistema Educativo (art.º 61.º), reconhecem a importância da educação e enunciam princípios onde é possível enquadrar a sua inserção nos sistemas educativos, nomeadamente a liberdade de os pais escolherem o género de educação a dar aos filhos. Também a Lei da Liberdade Religiosa (art.º 11.º) confere aos pais o direito à educação dos filhos em coerência com as próprias convicções religiosas. Todavia, têm vindo a acontecer vicissitudes e afrontas à liberdade de ensino. Partindo do postulado de que o sistema escolar português tem de respeitar e cumprir as bases constitucionais e as leis da República, em matéria de direitos fundamentais de educação e ensino escolar, pertence a todos nós exigir ao Estado, que a todos representa, permitir o exercício desse mesmo direito: poder ser livre de escolher a escola para os educandos. «É garantida a liberdade de aprender e ensinar. É garantido o direito de criação de escolas particulares e cooperativas», pode ler-se na Constituição da República Portuguesa (art.º 43.º). Contudo, a realidade é outra. Porque o Estado não cumpre o dever institucional de tutelar todo o ensino, muitas escolas privadas, católicas e outras, tiveram de fechar

\ 26por falta de apoios. Isto sob pena de incoerência e discriminação, porque os cidadãos pagam impostos para custear funções do Estado e uma dessas funções, acolhida na Constituição, é garantir ensino e alargar a todos a possibilidade de escolher. Num tempo marcado por transformações profundas, e em que a educação integral e de qualidade e os níveis de educação continuam a ser um desafio tanto para a escola como para a família, surgem problemas advindos da liberdade de ensino, da dinâmica relacional entre escola pública/estatal e escola particular, questionando-se acerca da existência de um enquadramento adequado e dos respetivos limites. E como sempre acontece nas mudanças, são as pessoas as mais afetadas no seu mundo de relações, valores e Nãoprojetos.sepretende que o direito à escolha da escola seja um privilégio dos ricos, mas sim expressão de liberdade de iniciativa cultural ou de concretização de projetos educativos. Quando o ensino particular não é ensino livre, desfavorecido pelo setor público, para poder subsistir tem de contar com as receitas do seu esforço, com as propinas pagas pela família, e ainda com a caridade – o que traz para o campo da educação uma série de questionamentos e desafios. Neste sentido, “todos os parceiros e agentes educativos devem identificar e concertar as suas responsabilidades, elevar e explicitar as suas propostas educativas. A sociedade civil é o espaço natural para aí surgirem iniciativas que enfrentem a tarefa educativa com esperança e entusiasmo. Cabe ao Estado dar suporte a essa pluralidade através de propostas subsidiárias e complementares³” É, pois, necessário reencontrar caminhos para que a educação sirva os interesses pessoais e sociais, salvaguardar a liberdade das ³ Ibidem, n.º 7.

\ 27 famílias para escolherem o tipo de escola que reflita os seus valores e conceções ético-educativas. Fruto da descentralização e do acréscimo de autonomia pedagógica e curricular, as escolas estão a gerar opções e soluções educativas à medida do seu contexto. Num mundo multicultural, multiétnico e multirreligioso cada vez mais presente e variado entre nós, e em que a educação tem de ser inclusiva no meio da diversidade, há opções e estratégias que se adequam melhor a uns alunos do que a outros – razão pela qual permitir a escolha dos pais não pode continuar a ser visto como um privilégio, mas sim como uma necessidade. Os pais têm o direito de ser respeitados, independentemente da sua condição social, no acesso a uma escola gratuita e de qualidade para os seus Conscientefilhos.de que na Educação reside a garantia de um futuro melhor para o País, a crise financeira não pode ser pretexto para lançar a Educação na instabilidade e incerteza. A Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo⁴ refere que «o Estado apoia e coordena o ensino nas escolas particulares e cooperativas [... e] são designadamente atribuições do Estado [...] conceder subsídios e celebrar contratos para o funcionamento das escolas particulares e cooperativas, de forma a garantir progressivamente a igualdade de condições de frequência com o ensino público nos níveis gratuitos e a atenuar as desigualdades existentes nos níveis não gratuitos». Por sua vez, a Lei da Liberdade do Ensino alude ao «livre acesso aos estabelecimentos públicos, privados e cooperativos, na medida em que contribuam para o progresso do sistema nacional de educação, sem discriminações de natureza económica, social ou regional⁵». Todavia, assistimos a uma ⁴ Lei nº 9/79, art.º 6º. ⁵ Lei n.º 65/79, art.º 2.º

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do ensino privado, cujas escolas constituem em si exercício de direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. A situação complica-se quando se emitem disposições legais que quebram a continuidade com as anteriores.

28discriminação

No contexto de profundas mudanças que afetam o mundo educativo e escolar, a história de Portugal mostra que a Igreja Católica sempre deu uma atenção especial à ação educativa e continua a ocupar um lugar importante na oferta escolar e na escolarização dos portugueses, em correspondência com o seu entendimento, como instituição fundamental para a socialização em valores tidos como essenciais para a preservação da harmonia social, sempre na salvaguarda pela liberdade de ensino. A Declaração Conciliar sobre a Educação Cristã (Gravissimum educationis) veio reafirmar estes direitos. O ensino livre representa o reconhecimento de um direito fundamental da família, a quem primariamente compete o poder de educar. É necessário que os pais tenham absoluta liberdade na escolha das escolas. Ao Estado compete distribuir os nossos impostos de forma que os pais possam escolher com liberdade absoluta, segundo a sua própria consciência, as escolas para os filhos. Entre estas estão, naturalmente, as instituições educativas católicas. Não podemos deixar de salientar a relevância das instituições educativas católicas no contexto da educação em Portugal. Têm um papel relevante, que não é só histórico. Estão fundadas numa base que influencia a construção da pessoa e, por sua vez, a construção da sociedade, à luz da mensagem do Evangelho. Quando as pessoas procuram uma escola católica sabem qual é a sua matriz e a ninguém se fecha e a ninguém se impõe, mas apresenta-se como uma proposta. O direito de escolha pelos pais só pode ser exercido se não houver discriminação contra qualquer forma de escola. A

⁶DimensãoReligiosadaEducaçãonaEscolaCatólica–Orientaçõesparaareflexãoearevisão,n.º45.

\ 29 declaração Gravissimum educationis, em sintonia com a Gaudium et Spes, assinala uma viragem decisiva na história da escola católica: a passagem da escola-instituição à escola-comunidade. Baseia-se num projeto educativo em que harmonicamente se fundem a fé, a cultura e a vida. Uma educação neutra nunca existiu e não existirá no futuro. O contributo da educação cristã é um ótimo incentivo a todos os esforços de acolhimento, de integração e de interação da diversidade de culturas. “Exige respeito em relação ao Estado e aos seus representantes, observância das leis justas, procura do bem comum. Portanto, todas as causas nobres: liberdade, justiça, trabalho, progresso... estão presentes no projeto educativo e são assumidas no ambiente da escola. Acontecimentos e celebrações nacionais dos respetivos países devem ter a devida ressonância. Ao mesmo tempo, estão presentes e são sentidos os problemas da sociedade internacional⁶”. Os alunos são ajudados a descobrir que no centro das ciências da educação está sempre a pessoa com as suas energias físicas e espirituais; com as suas capacidades operativas e criativas; com a sua missão na sociedade; com a sua abertura religiosa – uma nova educação que promova a transcendência da pessoa humana, o desenvolvimento humano integral e sustentável, o diálogo intercultural e religioso. Em 2013, numa conferência para alunos de uma escola de jesuítas, o Papa Francisco afirmava: «A escola pode e deve ser catalisadora, ser lugar de encontro e de convergência de toda a comunidade educadora, com a única finalidade de formar, ajudar a crescer como pessoas maduras, simples, competentes e honestas, que saibam amar com fidelidade, que saibam levar a vida como uma resposta à vocação de Deus, e a profissão futura como um serviço à sociedade».

A função da escola não se esgota na transmissão do saber, mas realiza-se no desenvolvimento integral do ser humano, de acordo com os princípios da liberdade e da responsabilidade. A harmonia social é o suporte de uma sociedade democrática. Um dos níveis de

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A presença da Igreja na escola corresponde à presença da escola na Igreja. É a conclusão lógica dum empenhamento de reciprocidade. A Igreja tem o dever de oferecer propostas de valores evangélicos a todos os que estão em processo educativo. Fá-lo, desde o pré-escolar ao ensino universitário, de modo institucionalizado, pela escola católica e através da lecionação da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC), de oferta obrigatória e matrícula facultativa. Também a catequese nas paróquias tem esta dimensão integradora. São diversas as instituições educativas da Igreja, com relevância para o trabalho formativo, às vezes as únicas instâncias educativas existentes. Numa sociedade livre e democrática, as famílias têm o direito de educar os seus filhos em função daquilo que consideram adequado em termos dos valores: ético-religiosos, filosóficos e de estilo de vida.

O ensino na escola católica é uma expressão concreta da liberdade de aprender e ensinar e do direito da família a orientar a educação dos filhos. Estas escolas consideram que este é um direito que assiste não só aos estabelecimentos que promovem a educação desta forma, mas acima de tudo, assiste às famílias enquanto sua liberdade de escolha. Para isso, o sistema de ensino tem de organizar-se por forma a contribuir para a realização do aluno, através do pleno desenvolvimento da personalidade, da formação do carácter e da cidadania, preparando-o para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos e assegurando a sua formação integral.

A meu ver, não existe nenhuma razão para apostar apenas em escolas públicas estatais, e aos cidadãos e às famílias deve ser concedida ⁷ Carta pastoral Educação: Direito e dever... n.º 5.

\ 31 construção dessa harmonia é a educação para a cidadania, mas a educação não se esgota na cidadania: o seu objetivo último é formar pessoas. A educação moral, ao proporcionar a apropriação dos valores e o aperfeiçoamento da espiritualidade, é a melhor forma de servir a libertação da pessoa, permitindo-lhe que esta se construa na relação com os outros e motivando-a para o compromisso moral, expresso em gratuitidade e amor. Cumpre reconhecer que “a educação moral e religiosa, longe de prejudicar a liberdade pessoal e a inserção social, propõe aos educandos uma interpretação integral da existência pessoal e do compromisso social e orienta-os na definição de um projeto de vida enriquecido pelos valores humanizantes do Evangelho, que dão conteúdo à liberdade e fundamento à dignidade e à responsabilidade pessoais⁷”.

Embora o ensino religioso na escola católica assuma uma função diversa daquela que tem nas outras escolas, enquanto disciplina, caso de Educação Moral e Religiosa Católica, é parte integrante da formação básica do cidadão, não fere a liberdade da pessoa. O seu objetivo não é uma formação religiosa específica, mas a apresentação da diversidade do espírito religioso, a formação de personalidades ricas de interioridade, dotadas de força moral e abertas aos valores da justiça, da solidariedade e da paz, capazes de usar bem a própria liberdade, valores estes que são vividos à luz do Evangelho. A Escola, ao trazer para os seus espaços as diversas manifestações das religiões, ensina estes princípios e exercita-os na rotina escolar e na sala de aula.

\ 32liberdade de escolha, salvaguardando-se a qualidade do ensino e a rentabilização dos recursos públicos. Mais do que uma disputa entre público e privado, deve pensar-se na necessidade de preservar um ideal centrado no bem comum, baseado na universalidade do acesso, na igualdade de oportunidades, na partilha de uma cultura comum e na continuidade dos percursos escolares. É necessário responder aos anseios das famílias, refletir sobre o modo como é, ou não, garantida a liberdade de escolha dos estabelecimentos de ensino que desejam, a igualdade de oportunidades e o sucesso educativo. O serviço público de educação só tem a ganhar em qualidade se tiver em conta esta premissa. Justifica-se que os pais avaliem e selecionem a oferta educativa que melhor responde às necessidades dos filhos. Sendo a liberdade de escolha da escola um direito dos pais, quando o Estado se demite a apoiar condignamente as famílias que fazem a sua opção por um projeto educativo concreto, nega aos que têm menos recursos o acesso à liberdade de escolher a escola para os seus filhos. São várias as atuais dificuldades que a escola católica enfrenta: a incerteza do financiamento das escolas com contrato de associação; o reconhecimento do direito dos pais e encarregados de educação de escolherem livremente a escola para os seus filhos e a afirmação clara de um projeto educativo específico baseado na conceção cristã da realidade, são aspetos que merecem ponderação de todos. Proclama-se a liberdade de educação, mas asfixia-se o ensino privado, mesmo quando este oferece garantias de qualidade. Encontrar respostas adequadas seria importante para a história da educação nacional e para a compreensão do papel da Igreja e das escolas de matriz cristã no quadro da oferta educativa do país. Como no passado, também hoje queremos, com a sabedoria e a humanidade das nossas tradições religiosas, ser estímulo para

\ 33 uma renovada ação educativa que possa fazer crescer no mundo a fraternidade universal. Não há educação sem escola, mas o foco devem ser os alunos. Diz-nos o Papa Francisco, no Pacto Educativo Global, lançado a 5 de outubro de 2020, «para reavivar o compromisso em prol e com as novas gerações, renovando a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo construtivo e mútua compreensão», convidando todos a «unir esforços numa ampla aliança educativa para formar pessoas maduras, capazes de superar fragmentações e contrastes e reconstruir o tecido das relações em ordem a uma humanidade mais fraterna», que um primeiro compromisso é “colocar a pessoa no centro de cada processo educativo”. Tudo passa por saber se se verifica igualdade de oportunidades e se se garante a liberdade; se a todos está assegurado o acesso à escola e o estudo de qualidade; e se a educação ministrada se conforma com os princípios de um regime que chegue a todos. O funcionamento do sistema de ensino e a sua autonomia nas escolas tem de ter em conta quer os contextos socioeconómicos e culturais em que as escolas, sejam quais forem, se inserem e a sua real capacidade de intervenção e de ação. É necessário implementar medidas e métodos de financiamento que permitam às famílias escolher a escola para os seus educandos, concretizando a gratuitidade do sistema escolar obrigatório. Enquanto a diversidade e a diferença forem consideradas hostis à unidade, o conflito será sempre iminente, pronto para se manifestar em toda a sua carga destrutiva. Não pode haver verdadeira liberdade sem responsabilidade. Está em causa apenas e só servir, mais e melhor, assente no paradigma da liberdade de ensinar e da liberdade de escolha. A possibilidade de as famílias e os alunos

em idade adulta escolherem a escola imporá uma mudança na “instituição escola”, na Educação. A liberdade deve ser tornada realmente possível e deve ser salvaguardada através de prestações e garantias sociais estatais. “Poderíamos afirmar que a educação pode ser reinterpretada como um caminho de formação das gerações mais jovens e, ao mesmo tempo, como a possibilidade de revisão e renovação de uma sociedade que, num esforço de transmitir o melhor de si aos mais jovens, discerne os seus comportamentos e, eventualmente, os melhora⁸”. Precisamos de um pacto, de colocar as próprias forças ao serviço do mesmo projeto, reconhecer no outro, não uma ameaça contra a nossa identidade, mas um companheiro de viagem. O pensamento de Sousa Franco sobre a educação move-se neste contexto de defesa das liberdades fundamentais de aprender e ensinar enquanto nucleares da dignidade humana, como os seus vários textos escritos evidenciam. “Não há sociedade humanista sem que o sistema de ensino respeite a autonomia pessoal num dos domínios que mais marcam a liberdade e a identidade de cada pessoa⁹”. É igualmente relevante o seu reconhecimento da mundividência cristã, como âmbito privilegiado para a realização das liberdades de aprender e ensinar e do seu contributo para a eminente dignidade da pessoa humana. Assim, no atual contexto, não podia ser mais oportuna esta obra dedicada ao pensamento de António Luciano de Sousa Franco e às reflexões por ele suscitadas.

O futuro das pessoas e o rumo das sociedades decidem-se nas opções que se fazem. É indispensável educar humanamente, mas ⁸ Instrumentum Laboris. Pacto Educativo Global. A Missão. 1. Educação e sociedade. ⁹ FRANCO, António Luciano de Sousa (1994), “A liberdade de aprender e de ensinar no âmbito das liberdades fundamentais - Fundamentação da liberdade de ensino”.

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\ 35 com horizontes abertos. A educação é “semente da esperança” para a construção duma civilização da harmonia, da unidade. São, pois, necessárias trajetórias educativas, no hoje e para o futuro: educação para um novo pensamento, capaz de unir diversidade e unidade. A Igreja está disponível para entrar num diálogo concreto e construtivo com todos aqueles que trabalham pela justiça e pela fraternidade

\ 37 PRECISAMOS DE LUTADORES ASSIM! Francisco Mota sj Revista Brotéria

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A maior parte dos textos de António de Sousa Franco contida neste volume poderia ter sido escrita nos nossos dias. Com efeito, se o leitor se abstrair das circunstâncias históricas que os rodeiam (e.g.: a fundação da Universidade Católica Portuguesa, a legislação sobre a educação do governo de Vasco Gonçalves, ou a celebração do 25.º aniversário da mesma universidade) e se concentrar no seu conteúdo, ficará surpreendido com a atualidade e pertinência destes escritos.

provenientes

O argumento de Sousa Franco em defesa daquilo a que chamava “ensino livre” varia pouco ao longo dos textos aqui presentes. Em mais do que uma ocasião, refere a importância de as famílias poderem decidir qual o projeto pedagógico mais condizente com a educação – moral, intelectual, religiosa – que querem dar aos seus filhos; e refere também o papel fundamental que a escola livre tem na oferta de um ensino inovador e despertador de talento, pouco preso ao que se presumem ser os espartilhos institucionais de uma máquina como a do Ministério da Educação (do seu tempo e, dir-se-á, também do nosso). A somar a estes dois pontos por diversas vezes repetidos, Sousa Franco elogia ainda o ensino livre por ser mais económico do que o oferecido pelo Estado, por permitir levar educação de qualidade a zonas do país nas quais o Estado não tem oferta e por a sua existência ser prova de vitalidade democrática dos países nos quais o ensino livre existe. Paralelamente, para contrabalançar, não se esquece de sinalizar a necessidade de este ensino ser certificado pelo Estado por forma a garantir a qualidade das matérias ensinadas. O argumento varia pouco, mas não é por falta de imaginação: é por Sousa Franco ter percebido bem aquilo que está no centro do debate. E, por ter percebido bem, repete o seu argumento ao longo das páginas aqui coligidas.

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Encontramo-nos num momento da vida do nosso país em que estes textos parecem ver a sua pertinência renovada. O ensino livre não tem tido propriamente fortes aliados nos últimos governos da República. Pelo contrário, a doutrina dominante entre os principais partidos de governo dos últimos anos afirma – implícita ou mesmo explicitamente – que a escola pública é a única verdadeiramente democrática, supostamente por ser a única que garante total igualdade entre quem a frequenta. Infelizmente, esta é uma visão tacanha e que evoca as piores experiências pombalinas no que diz respeito à obsessão com o controlo da educação por parte do Estado. Vale a pena ler com detalhe a forma como Sousa Franco rebate esta doutrina e vê-lo defender as razões pelas quais o ensino livre é tão importante para a vida do nosso país, na iminência de celebrar os cinquenta anos da revolução democrática. Para a Brotéria, é motivo de satisfação associar-se a este projeto. A memória dos grandes defensores da liberdade tem que ser honrada e este volume consegue fazê-lo em relação a António de Sousa Franco. Ao mesmo tempo, espera-se que a publicação desta pequena compilação ajude a criar consciência de que precisamos de novos defensores da liberdade nos tempos que vivemos. Não haverá escola livre, nem sociedade livre, nem país livre, sem grandes defensores da liberdade. Se estas páginas forem capazes de inspirar novos lutadores pela liberdade, começando pela liberdade do ensino, o país ficará melhor.

\ 40

\ 41 O ENSINO LIVRE NO PROJETO DE REFORMA DO SISTEMA ESCOLAR António Luciano de Sousa Franco In Brotéria, vol. 92, n.º 3, pp. 375-393 (1971).

E um será este: em que medida o novo figurino do sistema educativo português contempla a situação do ensino livre? E, se contemplo, de que forma o faz? Na verdade, um dos vícios tradicionais da nossa história escolar consiste na sistemática omissão ou desfavor em que o ensino particular é conservado; poderemos dizer mesmo: na ignorância secular de um verdadeiro sistema de ensino livre. Embora visemos centrar a nossa análise no ensino superior livre, importa porém tentar interpretar o que no projeto se contém a respeito do ensino livre em geral e da sua situação¹.

\ 42 I. A SITUAÇÃO PORTUGUESA

¹Aexpressão“ensinolivre”–nascida,ela,sebemquenãooconceito,daRevoluçãoFrancesa–temumacuriosahistória.Odecretode29defrimáriodoanoII,tirandoconsequênciasdaideiadeque“oensinoénecessárioatodos”,estabeleciaqueoensinodeveser“livre”e“público”.

1. O Projeto do Sistema Escolar Português, apresentado ao país pelo Ministro Veiga Simão, sintetiza, de forma invulgarmente ousada, um desígnio global e verdadeiramente prospectivo sobre as grandes linhas do sistema escolar nacional. Neste sentido, e sem que haja um corte absoluto com o passado – o qual nem a mais radical das revoluções nunca consegue fazer –, poderá dizer-se que uma das suas qualidades marcantes é contar com a realidade de uma sociedade portuguesa plenamente desenvolvida e integrada no sistema sócio-económico prevalente na Europa e na América. Ele faz ainda depender desse desígnio, em período bastante longo, as condições essenciais para a plena realização duma reforma que, por etapas, irá ordenando os meios aptos à estruturação dum sistema escolar que só se acomodaria com uma sociedade desenvolvida, como se deseja e se espera Portugal venha a ser. Esta mesma atitude, porém, permite suscitar problemas de fundo relativos aos resíduos inaceitáveis da nossa tradição escolar que sobreviveram.

\ 43

2. A tradição portuguesa é quase uniformemente favorável ao monopólio escolar: no absolutismo do Antigo Regime, esse monopólio era atribuído ao Estado, que em geral delegava na Igreja ou em ordens religiosas o seu exercício, ao menos no ensino superior; nos graus inferiores, a liberdade da Igreja seria muito maior, podendo dizer-se que aí exercia de pleno um seu direito próprio de ensinar.

Claro que na Idade Média a situação era bem diferente: o ius ubique docendi dependia exclusivamente de concessão pontifícia, apenas podendo os príncipes fundar universidades que titulassem o ensino nas zonas abrangidas pelo seu poder próprio. De qualquer das formas, se bem que o pluralismo em séculos anteriores ao absolutismo monárquico fosse efetivamente maior (e disso é bom

oAparentecontradição,destinadaaabolirocontroledaIgrejaedasordensreligiosassobreasescolas;mascomrespeitopelaliberdade,dadoque“todoohomemtemodireitodeensinaroquesabe,eatéquenãosabe”(cfr.assignificativascitaçõesdeBuisson,Nouveaudictionnairedepêdagogie,Paris,1911).Naturalmente,omonopólionapoleónicoveioreporasituaçãonopontoparaqueasreformasdaConvençãotendiam,fazendovenceromaispertinazdestestraçoscomplementareseatécertopontocontraditórios:oestadualismovenceualiberdadedeensino.Assim,ensinolivrevemaassumirumsignificadosobretudoreportadoaoseuconteúdo:compreendealiberdadedeestudar(Lernfreiheit-Schelsky)–detalformaqueosestudantespossamescolherocurso,adisciplinaeoprofessorquedesejem,chegandomesmoàliberdadenafrequênciadoscursos(“cursoslivres”–cursossemfaltas,depoiscursosdeiniciativaestudantil).Depois,abrangealiberdadedeensinar(Lehrfreiheit–desdeHumboldt)entendidasobformasdelivreacessoàcátedra,medianteconcurso,edeliberdadedecátedra,sendocadaprofessor(ouPrivatdozent)livredeensinarconformeosseusinteressesintelectuais,consciênciaeformação.Masrarocompreende,nospaísesdesistemadeensinodetipofrancês,aliberdadedecriaçãodeinstituiçõesdeensino(sentidoemqueaquiotomamos,equeécorrentenospaísesdetradiçãolatinaenosPaísesBaixos,porexemplo).Oensinolivreparececonsistirsobremaneiranalivreconstituiçãoeorientaçãodeinstituiçõesdeensino,porpartedeassociaçõesdepessoasoudoscorposintermédios,emborasobafiscalizaçãodoEstadoecomobrigaçõesdecorrentesdasuaintegraçãoglobalnosistemadeensino.Oensinoparticular,muitasvezesapenas“tolerado”,nãoénecessariamenteensinolivre:paraquesejaimpõe--sequeacriaçãodeestabelecimentossejalivre,queosseusdiplomassejamreconhecidos,mediantecertascondições,equehajaumacertaliberdadedefixaçãodoconteúdodoensino.Conceitoaindadiversoéodeensinoconfessional–aqueleque,promovidoouinspiradoporinstituiçãointegradanumaconfissãoreligiosa,vêoseuespíritoimbuídododainstituiçãofundadoraemboradesdeoliberalismooensinooficialtendaaserlaico,relegandooensinoconfessionalparaumasimplesmodalidadedeensinoparticular,livreounão,tambémelesesituanumadiferentezonadesignificação.Claroque,naspolémicasoitocentistasacercadoensinolivre,amesclaentreestestrêsconceitoséfrequente.

\ 44 exemplo o carácter plural do ensino nos países sem “Revolução Francesa” nem ensino de tradição estadual protestante – Inglaterra, Estados Unidos) – tal situação não pode tão-pouco configurar-se em rigor como de ensino livre. Sob o liberalismo, quer a abortada reforma de Rodrigo da Fonseca, quer a Reforma de Passos Manuel – em parte herdeira, quanto ao ensino superior, da tradição, da tradição pombalina, em parte inspirada nas orientações napoleónicas –, quer ainda as ulteriores remodelações ou iniciativas parcelares de Costa Cabral e do Rei D. Pedro V, se inserem num quadro estrito de estatismo escolar. Ou reforçam o monopólio de Coimbra – bastião do estatismo e, crescentemente do laicismo a este ligado – ou criam instituições autónomas, destinadas a completá-lo ou informá-lo; mas todas elas públicas, todas elas estreitamente dependentes do Estado (Escolas de Medicina de Lisboa e Porto, Escola Politécnica de Lisboa e Academia Politécnica do Porto, Curso Superior de Letras...). Emídio Navarro e João Franco apelaram para as associações comerciais de Lisboa e Porto, a fim de que apoiassem o nascente e crescente ensino técnico, industrial e comercial; mas isto mais não representa do que uma tímida ajuda a iniciativa meritória, que nasceu e cresceu estadual. Ora, as dificuldades financeiras de todo o século XIX – resultantes, umas vezes do empenho em política de fomento puramente material, outras de crises económicas profundas aliadas à ideia de que seriam suficientes certas modificações de pormenor no ensino superior, tornavam difícil uma ação do Estado, única susceptível de justificar (no simples plano prático, que não no ético) o seu monopólio do ensino. Designadamente no domínio do primeiro grau escolar, não é novidade que a ação pública foi notavelmente

A situação pouco mudou, ao menos no domínio do ensino superior, durante a Segunda República. O artigo 1.º do Estatuto da Instrução

Universitária (aprovado pelo Decreto n.º 18717, de 27 de Julho de ² D. António da Costa, Auroras da instrucção, 2.ª ed., Coimbra, 1885: História da instrução popular em Portugal, 2.ª ed., Porto, 1900.

³ Veja-se Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, 2.ª ed., em publicação.

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inferior ao mínimo que se poderia esperar, e mesmo à empreendida no secundário e no superior. A iniciativa privada não era, porém, estimulada a preencher estas enormes lacunas: D. António da Costa, incansável defensor do papel educacional da iniciativa particular, contava apenas no continente e ilhas 120 estabelecimentos de asilos e escolas sustentados pela iniciativa de indivíduos ou instituições². Gestos espetaculares, como o do Conde de Ferreira que legou dinheiro destinado à instalação de 120 edifícios para escolas primárias, ficavam isolados no contexto geral do sistema escolar. E a Igreja, muito enfraquecida pela cíclica perseguição às congregações religiosas, base da sua ação no plano do ensino, e pela descristianização do século, pôde realizar uma obra pertinaz, mas de fraca intensidade sujeita às flutuações do poder³.

As reformas da República foram extensas e profundas, designadamente nos domínios do ensino infantil, primário e normal: a descentralização, atribuindo relevante papel aos municípios (papel que se foi reduzindo, mas que ainda hoje conservam residualmente), não quebrou, porém, o espírito de monopólio do ensino público. Nem o podia: pois o ambiente era de renovada perseguição às congregações e de laicismo militante. Também a profunda reforma do ensino superior e do médio superior, empreendida logo em 1911, sofreu do mesmo vício de base, decerto por se identificar (ou confundir) ensino confessional e ensino livre.

3. Um motivo de esperança poderia surgir para o ensino livre: residiria ele no artigo 44.º da Constituição Política de 1933, o qual dispõe que “é livre o estabelecimento de escolas particulares paralelas às do Estado, ficando sujeitas à fiscalização deste e podendo ser por ele subsidiadas, ou oficializadas para o efeito de concederem diplomas, quando os seus programas e categoria do respectivo pessoal docente não forem inferiores aos dos estabelecimentos oficiais similares”. O princípio geral aqui consagrado é própria e verdadeiramente de ensino livre: liberdade de estabelecimento de escolas, oficialização para efeitos de atribuição de diplomas equivalentes aos do Estado, concessão de subsídios, desde que se verifiquem certas condições (o preceito não esclarece bem se necessárias ao funcionamento de todos os benefícios, ou apenas do último que se enuncia), equivalência ou superioridade do nível dos seus programas e pessoal docente aos dos estabelecimentos oficiais similares (cfr. o art.º 14.º n.º 4). Mais: o artigo 8.º, no seu número 5.º, reputa ser uma liberdade fundamental dos cidadãos portugueses “a liberdade de ensino”. É certo que a expressão é equívoca, e que em qualquer dos três sentidos que se lhe pode atribuir⁴, teria algum cabimento no preceito constitucional (porventura mesmo, cumulativamente, em vários ou até em todos eles). No sentido de livre criação as instituições escolares, o preceito constitucional dificilmente ⁴ Cfr. supra, nota I, Cfr. Jesus López Medel, El derecho al estudio, Madrid, 1970.

\ 46 1930) enumera as Universidades a que este se aplica – e são apenas as públicas –; o seu artigo 2.º declara-as “organismos autónomos dependentes do Ministério da Instrução Pública”; e assim por diante. Nem as notáveis reformas do Ministro Cordeiro Ramos puderam modificar a situação fosse no que fosse.

\ 47 caberia numa enumeração de direitos individuais, pois ela é sobretudo direito de diversas comunidades e corpos intermédios; mas seria estranho que apenas se inserisse no texto constitucional a liberdade de aprender, parecendo decerto alheio ao seu contexto e tradição a referência à “liberdade de ensinar”, tal qual a concebe o direito germânico. A dificuldade na correta inserção deste direito – verdadeiro direito fundamental social – foi bem sentida pelos preceitos que (a par da inspiração do ensino social da Igreja) estarão na origem desta nossa disposição constitucional (certo como é que, como sua fonte, a principiologia fascista é totalmente de excluir): os artigos 142 e seguintes da Constituição alemã de Weimar (11 de Agosto de 1919). Inclinar-nos-íamos no ensino da influência da Constituição de Weimar e do ensino da Igreja como determinantes do acolhimento do ensino livre (nos precisos termos do artigo 44.º); na acepção correta de liberdade de aprender e escolher a escola, atribuída aos próprios ou aos pais, sobretudo por influência do ensino da Igreja. Assim se perderia o conteúdo, tão germânico, da liberdade da cátedra (que pesa na disposição de Weimar: “a arte, a ciência e o ensino são livres...”)⁵. O problema é, não obstante, delicado – e, que saibamos, tem gozado de omissão por parte dos nossos constitucionalistas⁶. Cumpre reconhecer que a situação criada à sombra da Constituição de 1933 foi melhor que as anteriores. Subordinando-se aos demais princípios constitucionais (arts. 14, n.º 4.º 42, 43), o ensino particular foi disciplinado pela Lei n.º 2033, de 27 de Junho de 1949 e pelo Estatuto do Ensino Particular (aprovado pelo ⁵ A esta se refere, designando-a de “liberdade científica”, o artigo 40º do Decreto-Lei n.º 132/70, de 30 de Março, sobre a carreira docente universitária.

⁶ Caracteriza precisamente a liberdade do ensino, neste sentido, o Sr. Padre António Leite; “Liberdade para os pais de escolherem, dentro do razoável, as escolas para os seus filhos, e a liberdade das pessoas moral e intelectualmente idóneas ou associações, para abrirem escolas e ensinarem” (“Enciclopédia Verbo”, vol VII, col. 586).

\ 48 Decreto-Lei n.º 37 544, de 8 de Setembro de 1949). Também a Concordata estabelece em certos casos um regime especial, mais próximo da ideia de ensino livre: o art. XX reconhece à Igreja o direito de fundar seminários ou estabelecimentos de alta cultura eclesiástica, cuja disciplina interna, verificadas certas condições mínimas, está isenta de fiscalização do Estado; este regime aplica-se, porém, apenas ao ensino estritamente eclesiástico, concebido como uma extensão da liberdade de prática religiosa. Contudo, o Estatuto do Ensino Particular, sobre ser fortemente restritivo, apenas contempla na sua letra escolas secundárias, as quais não têm visto melhorar grandemente os gravames que sobre elas impendem: regime mais gravoso de prestação de provas (pois os diplomas são públicos), inexistência de um regime de subsídios, exigências (remuneração de professores, etc.) mais gravosas que as de similares estabelecimentos do Estado, e até (após o Código da Contribuição Industrial de 1963) sujeição a impostos, como qualquer empresa comercial. No domínio do ensino superior universitário, a situação seria sem dúvida mais simples à face do sistema legal. Pois se existe o regime do artigo 44.º, integrante de um direito fundamental, ele aplica-se, na falta de disposição em contrário, a tudo o que não seja expressamente regulamentado (não condicionado, muito menos suspenso ou suprimido) por lei ordinária. Ora, parece não haver dúvidas de que a legislação ordinária que citámos se estende apenas ao ensino secundário: pelo âmbito expresso das disposições legais, como pela razão de ser do seu dispositivo. A Administração tem tendido a aplicá-la ao ensino superior: mas, se a analogia é lícita em aspectos meramente processuais (como os que visem garantir a melhor forma de realizar a oficialização referida na Lei fundamental, por exemplo), não pode sê-lo nunca

II. O ENSINO LIVRE: PRÓ E CONTRA

4. Ainda antes de interpretar os recentes projetos de reforma do sistema de ensino português, cabe fazer uma breve análise das principais razões que podem invocar-se para um debate acerca do ensino livre. A primeira razão – e a principal para a doutrina da Igreja – é que o ensino livre representa o reconhecimento de um direito fundamental de educar – da família, a quem primariamente compete o poder de educar; da sociedade civil, que deve auxiliar esta, dada a cada vez maior complexidade da instrução nos tempos atuais; e das outras sociedades, em que cabe lugar eminente à Igreja. Inumeráveis documentos pontifícios o teorizaram; mais longamente o fez a Divini Illius Magistri, debruçando-se sobre

\ 49 quando restrinja direitos que são reconhecidos pela própria Constituição. E o direito que rege o ensino universitário pressupõe exclusivamente o carácter público desse ensino: diz o artigo 2.º do Estatuto da Instrução Universitária (aprovado pelo Decreto n.º 18 717, de 27 de Julho de 1930) que “as Universidades são organismos dependentes do Ministério da Educação Nacional”, sendo inegável que elas têm carácter de pessoas colectivas de direito público: e o recente decreto-lei sobre a carreira docente universitária apenas prevê a situação dos docentes das Universidades existentes, que são agentes públicos. Mesmo assim, porém, o princípio do ensino privado subsiste, ao menos no limbo das intenções do legislador constitucional. Não será tempo de começar a executá-lo? Convém previamente traçar algumas pistas para a apreciação da questão em sede geral.

\ 50 os dois títulos por que à Igreja cabia este direito (pela missão de magistério e pela maternidade sobrenatural – títulos superiores a quaisquer outros de ordem puramente natural)⁷.

Também documentos de alcance mundial relativos aos direitos do homem proclamam o direito ao ensino livre, como forma de garantir a livre escolha pelos pais do tipo de ensino que desejem para os seus filhos. Assim, o “Protocolo adicional de Paris à Convenção Europeia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais”, dispõe, no seu artigo 2.º: “A ninguém pode ser recusado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que assume no domínio da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais de assegurar essa educação e esse ensino de acordo ⁷ Veja-se, por todos, O problema da educação, IV Semanas Sociais Portuguesas, Lisboa, 1952, em especial o estudo do Prof. Braga da Cruz, aí inserto, Direitos e deveres do Estado na educação.

A Declaração Conciliar sobre a Educação Cristã (Gravissimum educationis) veio reafirmar estes direitos, a par do direito ao acesso aos bens da cultura (teorizado pela Pacem in Terris). Depois de formular expressamente a necessidade de uma educação cristã para os cristãos, declara (§ 6) que “é necessário que os pais, cujos primeiros e inalienáveis obrigações e direitos são os de educar os filhos, tenham absoluta liberdade na escolha das escolas. O poder público, a quem pertence proteger e defender as liberdades dos cidadãos, tendo em atenção a justiça distributiva, deve procurar distribuir os subsídios públicos de forma que os pais possam escolher com liberdade absoluta, segundo a sua própria consciência, as escolas para os filhos”. Entre estas está, naturalmente, a escola católica, cuja essência, dentro de uma sociedade pluralista, o Concílio define (§ 8), recomendando insistentemente a instituição de Faculdades e Universidades Católicas (§ 10).

\ 51 com as suas convicções religiosas e filosóficas”. E a Declaração Universal dos Direitos do Homem (de 10 de Dezembro de 1948) reconhece, no artigo 26.º, o “direito à educação”, afirmando que “os pais têm prioridade no direito de escolher o género de educação a dar aos seus filhos”; assim como a liberdade de prática religiosa também deve manifestar-se, nos termos do artigo 18.º da mesma Convenção, “pelo ensino”. Não se possa dizer que deste último texto resulte clara e imediatamente o reconhecimento do ensino livre, até porque as fórmulas usadas são suficientemente vagas para contemporizarem com a tradição estatista de alguns dos Estados que subscreveram estes documentos. Mas o direito de escolha pelos pais do tipo ensino adequado só pode ser exercido se não houver discriminação contra qualquer forma de escola; e “assegurar o ensino de acordo com as convicções religiosas e filosóficas dos pais” só pode realizar-se, quando essas convicções exijam o ensino livre ou o ensino confessional, por meio destes, que de instrumento passarão a ser conteúdo do “direito à forma de ensino”. É claro que a discriminação de tipos de ensino poderia ser feita se o Estado arcasse com as respectivas consequências financeiras, no domínio do ensino oficial: mas, ou seria fatalmente incompleto o exercício do direito, ou sairia praticamente ineficaz e custoso... De tal modo que, mais que não seja num plano de consistência e efetividade prática, estes direitos fundamentais apenas se acham assegurados quando se reconheça o ensino livre, representando tais documentos internacionais uma inequívoca rejeição da escola única, hoje quase só aceite em países de índole ou tendência totalitária.

A esta justificação doutrinária, até de algum modo ética, acresce a importância do ensino livre na autonomia, diversidade e flexibilidade do sistema educativo. Numa sociedade essencialmente virada para o futuro, em que sobretudo interessa preparar para a

⁸Comoqualquer ensinoemregimede monopólio(“escolaúnica”,nesta acepção –quenãoéaúnica – da expressão).

Enfim, num país pobre – carecido de recursos e afligido pelos desafios formulados para a aplicação múltipla desses recursos escassos –outro forte argumento pode erguer-se em favor do ensino livre: é que ele contribui para colmatar as lacunas – carências financeiras, de pessoal, de saber qualificado, de cobertura de novos ramos da ciência – que afligem o ensino oficial. Vemos bem, no nosso ensino secundário, qual a importância do sector particular: de 275 concelhos do continente, a carta escolar de 1969 indicava a existência de liceus em 42, de escolas de ensino técnico em 86, de escolas do CPES em 116 e de estabelecimentos de ensino particular em 220.

\ 52mudança e não para assimilar um sistema estático de proposições ou “saberes”, a capacidade de adaptação das unidades do sistema de ensino e dos seus sujeitos desempenha relevantíssimo papel na correspondência daquele às exigências da estrutura social sobre a habilitação escolar dos seus membros. Ora, um ensino estadual⁸ tende a ser uniformizado, a mudar menos ou a resistir à transformação, dada a forçosa burocracia de que depende e a falta de concorrência a que está sujeito; tende em suma, a ser menos permeável à mudança, ou ao menos a corresponder-lhe com algum atraso. Assim, o ensino livre é decerto fator poderoso de diversificação e maleabilidade do sistema educativo: não é por acaso que os sistemas universitários que mais estimularam a criação e busca de novas formas sociais, bem como a investigação, são os anglo-saxónicos, fortemente baseados numa estrutura de ensino não estadual; nem é tão-pouco casual que, em outros países onde coexistem estruturas universitárias privadas com outras públicas ou oficiais, as primeiras se revelaram muito mais imunes à contestação do que as últimas, e muito mais “criadoras de cultura”.

\ 53

Se atentarmos em que os estabelecimentos oficiais se concentram quase sempre nos mesmos concelhos, temos comprovada ainda com atualidade – e a fortiori no passado – o importantíssimo papel que na difusão regional do ensino (sua democratização regional, se se quiser) desempenham os estabelecimentos de ensino particular secundário. Também a nível superior – se admitirmos a necessidade de criação de duas novas Universidades nesta década –, é duvidoso que o Estado possa arcar com o milhão de contos indispensável à sua instalação. Não seria tal desiderato, em parte, coberto com mais eficácia pelos recursos privados? Em suma, se se quiser criar novas Universidades, tal como se se desejar que todas as Universidades sejam novas no espírito (ou seja – parece imprescindível recorrer ao ensino livre. Uma última reflexão apresentamos pela qual o ensino livre se pode revelar como expressão de uma síntese cultural mais perfeita e, também, como elemento imprescindível de uma verdadeira sociedade pluralista. Na verdade, o ensino tem de assumir uma tonalidade formativa global: ora, só é possível assegurá-la, sem totalitarismos ou imposição de uma formação única (seja ela qual for), se se tolerar o aparecimento, a partir de cada instituição ou estrutura social, das estruturas educativas de transmissão e elaboração pesquisante de que careça. A escola, instituição social e “socializadora” há-de ser imagem da sociedade em que vive: ou é pluralista e livre, ou fechada e não-livre⁹. ⁹ Numa óptica cristã, o pluralismo cultural foi focado de forma inovadora e elevada na Gaudium et Spes.

invocadoras)

\ 54 5. Certo, porém, que outros argumentos se opõem contra o ensino livre. O primeiro é naturalmente que o pluralismo de formações, que consente, incita e é da sua essência, o torna inapto a uma tarefa profunda de remodelação da sociedade. Napoleão bem o encarou, ao integrar todo o ensino numa “Universidade Imperial”, corpo “encarregado exclusivamente do ensino e da educação públicos em todo o Império”. A escola única era para ele “essencialmente um meio de dirigir as opiniões políticas e morais”¹⁰. E bem o veem todos os revolucionários – para quem mudar o conteúdo e a forma do ensino é uma das primeiras preocupações: pois toda a revolução quer formar um homem novo, amoldado aos seus fins próprios e ao seu modelo de sociedade. Esta observação é parcialmente exata: o pluralismo pode ser também conservador – não decerto imobilista, mas potencial travão de impulsos sociais de transformação, dada a diversidade de formações que proporciona e o equilíbrio que delas resultará. Se essa diversidade é inconveniente, estar-se-á a cair numa sociedade fragmentada, incomunicável entre os seus diversos estratos (e reconheçamos que o ensino confessional assim atuou por vezes): ¹⁰ Cfr. G. Pariset, Histoire de la France contemporaine depuis le Révolution jusqu’à la paix de 1919 (dirigidaporE.Lavisse),volIII,Paris,s.d.,p.319e334esegs.Significativaasuafrase:“NãohaveráEstadopolíticofixo(estável),senãohouverumcorpodocentecomprincípiosfixos.Enquantosenãoaprenderdesdeainfânciaseháqueserrepublicanooumonárquico,católicoouirreligioso,etc.,oEstadonãoformaráumanação:repousarásobrebasesincertasouvagas,eestaráconstantementesujeitoàsdesordenseàsmudanças”.Bemoperceberamosrevolucionários,em1789comoem1917,comoem1949,preocupadoscomareformaradicaldosistemadeensino;bemohaviamjápercebidoosEstadosalemãesprotestantes,paraosquaisaúnicamaneiradeconsolidarareformaseriaestadualizaroensino,oque,comEstadosconfessionais,seriaamelhorformadeeliminaràlalongueainfluênciaeducativadaIgreja.Seatransmissãotradicionaldeumaformacivilizacionalcarecedaescola,ainstauraçãodeumanovaordemrevolucionária,essa,nãopodeabsolutamentepassarsemodomíniodosistemaescolar.Mesmoasrevoluçõesliberaisapenasnumdomíniocontrariaramosseusprincípios:nadefesadaescolaúnica,queFerryviriasóna3.ªRepúblicaatransformaremescolalaica.AIIRepúblicafezvotaraLeiFalloux(leiorgânicade18deMarçode1950);emobediênciaaosmais“purosprincípiosdoliberalismoreconhecia-seaescolalivre.Maséaventurosopensaroqueaconteceriaseacândida(einteressanteaváriostítulos)experiênciade1848tivessetidomaislongodestino.

possibilidade,

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mas aceitar tal risco é o preço do pluralismo sendo o risco oposto do estatismo puro. Outra dificuldade pode derivar da diversidade de currículos, processos e objetivos de formação: numa era em que o ensino tem de ser integrado num plano global, a escola livre poderia ser uma causa de irracionalidade e tendências centrífugas das instituições nela integradas. É evidente, contudo, que a ação coordenadora do Estado poderá e deverá obviar a tal inconveniente: o problema é, afinal, o da possibilidade de prosseguir um projeto global numa sociedade, em qualquer domínio, com respeito pela autonomia das instituições e dos diversos focos de decisão e opinião: se houver essa então será viável o pluralismo; se se concluir pela sua cair-se-á então num estatismo total. A opção global em termos técnicos, de pura eficiência, como em termos doutrinários, tendo em conta os valores que cada sistema –o descentralizado ou o centralizado – procura preservar. Para além de críticas sem interesse (como a da falta de nível de certas formas de ensino livre, e outras observações irrelevantes e empíricas) duas outras aporias podem suscitar-se ainda, dotadas de maior peso e merecedoras de mais ponderação. Uma é esta: não será o ensino livre um privilégio dos ricos? Não representará ele uma distorção ao ideal ocidental da igualdade de oportunidades que, como antiga aspiração de justiça e civilização, está na base da ideia ambígua de democratização do ensino? Na realidade, o ensino livre, porque em regra pratica propinas mais elevadas, abre o seu acesso prioritariamente aos ricos – e isto porque pode dispor de meios financeiros mais reduzidos que o oficial; e, na medida em que atue como instituição de recuperação para “os rejeitados” pelo sistema escolar de ensino, qualquer que seja a razão dessa

formular-se-á

inviabilidade,

\ 56 rejeição, coloca em desigualdade fundamental os rejeitados pobres – desprovidos de mais essa instância de recursos – e os rejeitados ricos. Conhecidos aspectos do nossos sistema de ensino particular têm fundamentado na prática estas asserções, levando mesmo a questionar se não deveria considerar-se ultrapassada, neste ponto, a doutrina da Igreja, formulada em termos puramente defensivos, numa era em que o laicismo estadual era agressivo e na qual ela própria não aceitava o pluralismo e se fechava para os valores fundamentais da liberdade cultural (reconhecidos pela Gaudium et Spes) e da liberdade religiosa. Reconheçamos que esta crítica não é desprovida de peso, nem deixa de obrigar a pôr em novos termos a questão do ensino livre, tão mal estruturado e praticado em certos países, tanta vez ainda baseado na ideia de ensino como privilégio em vez de direito, de ensino como mercadoria e não como serviço. Reconheçamos que a democratização do ensino pode ser gravemente lesada por sistemas de ensino particular que pratiquem condições financeiras incomportáveis, forneçam um “ensino de qualidade” aos mais ricos ou funcionem como “escape” para os mais ineptos, rejeitados pelo sistema oficial ou receosos dele. Mas a verdade é que estas dificuldades existem, sobretudo quando o ensino particular não é ensino livre: quando, desfavorecido pelo sector público, o qual se reserva o domínio das estruturas de ensino, ele tem de contar para poder subsistir, com as meras receitas do seu labor e com uma complacência ou condescendência que, sobretudo em meios urbanos, lhe é imposta pelo facto de ter de acolher todo aquele que possa proporcionar-lhe a subsistência material.¹¹ ¹¹ Dewey, em Democracia e educação, congrega algumas das concepções correntes de democratização do ensino, a partir das ideias de “ensino para a democracia” e de ensino imbuído de ideais democráticos”. A democracia chegará a atingir a educação quando esta for livre (nos métodos para despertar as qualidades do educando), acessível a todos por igual e imbuída de

\ 57 espírito fraternal; assim haveria nela liberdade, igualdade e fraternidade... Apesar do que possa haver de superficial, de amplo e equívoco nesta construção, ela mostra bem como a ideia de democracia escolar implica a existência de ensino livre a menos que dela queiramos dissociar, questãonumavisãototalitária,aschamadasliberdadesoudireitosformais),nãosendoporelecontrariada.¹²UmexemploéodaLeiDebré(1959),surgidaempaís–aFrança–noqual–diversamentedoquesucedeunocontinenteeuropeu,designadamentecomaBélgicaeosPaísesBaixos–nãosepodedizerexistisseumaverdadeiratradiçãodeensinolivre(cfr.Reguzzoni,Laréformedel´enseignementedanslaCommunautéÉconomiqueEuropéenne,Paris,1966,passsim):baseando--senumaideiadecooperaçãoentreoEstadoeasinstituiçõesprivadas,quedevezenterrouavelhaconfessional(àqualoespíritodonossotemponãopareceserjásensível),elaprevêparaosestabelecimentosdoensinoprivadotrêsopçõesfundamentais:aintegraçãopuraesimplesdoensinopúblico:ocontratodeassociação,destinadosobretudoaoensinosecundário,queasseguraequiparaçãodecondiçõesdetrabalhoentreosprofessoresdoensinoprivadoeosdoensinopúblicoeelevadomontantedesubsídiosporanoeporaluno:eocontratosimples,maismaleávelmasfinanceiramentemenosseguroparaaescola,própriodoensinoprimário.Noensinosuperiortudoé,porém,maisdifícil:aLeideOrientaçãodoEnsinoSuperiordeEdgarFaure(lei68/978de12deNovembro),definelogoasUniversidadescomo“institutospúblicosdecaráctercientíficoecultural”,oquepareceimplicarqueasUniversidadesCatólicasdevamcontinuaradesignar-sedeInstitutos;écertoqueadivisão2.ªdomesmoartigo3.ºprevêaexistênciadeunidadesdeensinoeinvestigaçãoquenãosejaminstitutospúblicos;masoseuestatutopermaneceindefinido(cfr.art.os4.ºesegs.).NaprópriaEspanha,aintegraçãodoensinolivrenaestruturadoensinosuperiordependededecretoaprovadoemConselhodeMinistros(hájáporéminstituiçõesnesteregime).Parecemserestesosúltimosestertoresdoestatismonospaísesondeasuatradiçãoémaisviva:eletendeadesaparecernosecundário,masresisteaindanoensinosuperior...Aconcessãodesubsídiospelosectorpúblico(aindaassim,inferioresaocustodiretodeumequivalenteensinopúblico)podeserumaformadeobviaraosmalesapontados.Enãosedigaqueentãotodososcidadãosestãoacontribuirparaoensino“privilegiado”dealguns:poisosofismapodeformular-seàsavessas,dizendoquetambémosqueprefeririamoensinolivreestãoafinanciarumensinoestadual(comquenãoconcordameaquenãodesejamrecorrer)etêmdesuportarocustodedoisescalõesparalelosdeensino:opúblicoeoprivado.Essaconcessãopodenaturalmenteesbateradistinçãoentresistemasdeensinolivreeestadualquediversospaíses–designadamenteaHolandaeaBélgica,empartetambémaItália–herdaramdoséculoXIX;mastalcisão,criandoumazonadeensinomisto,progressivamenteligadoporcontratosaoEstado¹²,maispoderácontribuirparaumpluralismointegrado

6. O primeiro passo importante para reconhecer o ensino livre encontra-se entre nós no Projeto do Estatuto da Educação Nacional, elaborado sob a orientação do Ministro Galvão Telles. Nele se adota uma posição pluralista quanto à titularidade dos poderes e deveres educacionais (de “educação nacional”, dentro da tradição educativa que, desde Garrett, floresceu nos pensadores da nossa

Outra crítica relevante se fará também, esta reportada sobretudo ao ensino confessional: não representará ele uma quebra da neutralidade, com tudo o que esta representa de garantia dos valores da objectividade, sem os quais uma verdadeira preparação cultural – designadamente, científica – ao nível universitário se não concebe. Em parte, também esta crítica chama a atenção para uma das dificuldades fundamentais do ensino livre confessional: rejeitando um neutralismo deformante – sem o qual a formação proporcionada será incoerente e incompleta – ele não há-de cair na apologética, cumprindo-lhe respeitar portanto os valores de neutralidade, da liberdade e disciplina intelectual serena, do mais estrito rigor científico. Um ensino aberto a valores globais e integrados, não deve perturbar a verdadeira formação científica antes será o único capaz de lhe assegurar dimensão formativa.

\ 58 que não quebre a unidade do sistema nem asfixie as legítimas diferenças de aspirações no seio dele, do que para a absorção do ensino livre na máquina escolar oficial. Talvez seja mesmo essa a forma própria do ensino livre em nossos dias, não segregado nem isolado, mas integrado de pleno numa sociedade “socializada”, como a nossa tende a ser.

III. OS PROJETOS RECENTES

Osuperior.ensino particular seria, na verdade, “livre” em sentido próprio, pois era reconhecida para efeitos de exame a frequência nos respectivos estabelecimentos (art.º 46.º); e era reconhecida liberdade na de planos de estudos também aos estabelecimentos ¹³ A tradição é decerto garrettiana, mas floresceu em diversos pensadores: apontem-se António Sérgio (vários passos fundamentais dos Ensaios e O Ensino como Factor de Ressurgimento Nacional, Porto. 1918) e João de Barros (A Nacionalização do ensino, Lisboa, 1911; A República e a escola, s.d.; Educação Republicana, Lisboa, 1916).

I República¹³: os pais (art.º 4.º), a Igreja, nos termos da Concordata de 7 de Maio de 1940 (art.º 5.º); e o Estado (art.º 11.º)¹⁴.

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Como consequência lógica desta posição – é o direito dos pais e do das comunidades não estaduais, maxime a Igreja, que decorre o ensino livre (apesar de a formulação da sua posição, mais em termos de dever ou poder funcional do que de dever, nos parecer pelo menos uma visão parcelar) – formula-se o princípio do reconhecimento da liberdade de ensino. Nestes termos: “1. É reconhecida a liberdade de ensino de qualquer grau ou ramo, em desenvolvimento dos princípios consignados na Lei n.º 2 033, de 27 de Junho de 1949, e na Concordata com a Santa Sé. 2. O ensino particular desempenha, no seu conjunto, uma função de interesse público”. No n.º 3 do mesmo preceito era definido precisamente o conteúdo do poder de fiscalização do Estado (do qual apenas estavam excluídas as instituições de formação eclesiástica e o ensino doméstico). Apesar da referência à Lei n.º 2 033 – cujo alcance é inequivocamente extensivo apenas ao ensino secundário – o preceito abrange a liberdade de ensino em qualquer grau ou ramo – logo, também no

¹⁴ Prof. Galvão Telles, Projecto do Estatuto da Educação Nacional, Lisboa, 1969; vejam-se os elementos contidos nos respectivos trabalhos preparatórios maxime no vol. II, sobre o ensino particular.

¹⁵ Naturalmente, certas restrições subsistiam: por exemplo, a reserva da designação “liceu” a estabelecimentos públicos, devendo os secundários denominar-se colégios (art. 81.º, n.º 3); a possibilidade de encerramento por decisão ministerial passível de recurso (art. 87.º, n.º 3), a necessidade de aprovação prévia de projetos de edifícios (art. 88.º), etc. Também neste domínio liberdade não é sinónimo de irrestrição: estes limites são meramente condicionantes, e não supressivos.

\ 60 de ensino particular (arts. 69.º e 70.º). Os estabelecimentos particulares podem gozar dos direitos de livre organização, livre escolha de docentes e alunos, assistência pública, e outros estabelecidos em lei ou contrato (art.º 90.º), embora estejam naturalmente sujeitos à orientação e fiscalização do Estado (arts. 10.º n.º 3 e 91.º); e prevê-se que sejam, em certos casos, oficializados (art.º 95), declarados de utilidade pública (art.º 96.º) ou integrados no ensino público (art.º 97.º), podendo ainda uma entidade privada ser concessionária da gestão de um estabelecimento público (art.º 98.º), entre outras modalidades de colaboração estabelecidas (art.º 99.º). Pode ainda ser-lhes atribuído um conjunto de benefícios, dos quais cumpre destacar isenção de impostos, concessão de créditos a longo prazo, sem juro ou com juro módico, e concessão de subsídios pelo Ministério da Educação Nacional (art.º 100.º)... Também as disposições gerais sobre o pessoal docente se aplicariam por igual aos professores do ensino público e do ensino privado (art.º 189.º, n.º 3; cfr. arts. 210 a 215)¹⁵. São lícitas dúvidas, contudo, a respeito do exato âmbito dos princípios relativos ao ensino universitário, quer porque a sua letra (arts. 153.º a 178.º) parece sugerir que se referem apenas às Universidades públicas, quer porque se atribui a todas as Universidades, sem distinção, a faculdade de conceder graus universitários (art.º 175.º), o que, para as escolas do ensino superior livre, pressuporia racionalmente uma regulamentação especial a que se não alude.

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Não obstante, impõe-se reconhecer que estas disposições representariam um avanço relativamente ao estado anterior do sistema educativo: e, mesmo que não abrangessem de si o ensino superior, viriam a inspirar decerto um regime mais aberto à oficialização de escolas superiores privadas, que o nosso Legislador parece continuar a ignorar, e que a Administração, em relação ao ensino médio superior, tem subordinado, com duvidosa legitimidade, às disposições bastante restritivas do Estatuto do Ensino Particular.

7. O Projeto do Sistema Escolar Português, ora em pública apreciação, nada dispõe relativamente ao ensino livre, em geral, ou quanto ao ensino politécnico e universitário: nem na lista das inovações relativas ao sistema (n.º 2) se contém qualquer referência ao regime das instituições escolares privadas. É claro que alguns dos seus princípios – como a diversificação do sistema escolar, a permeabilidade e a inter-relação entre as diversas linhas e graus de ensino e a preocupação de esquematizar um sistema integrado – levariam, ao que parece, a respeitar uma legítima autonomia das instituições privadas existentes, integrando-as no sistema, por aplicação imediata do que se dispõe para as escolas públicas análogas; e a própria designação “ensino liceal” teria de ser também extensiva ao ensino particular, sob pena de até desrespeitar as situações criadas. No entanto – e sem que por isso se possa raciocinar a contrario sensu, indeferindo que as restantes disposições se referem apenas ao ensino público – as únicas referências ao ensino privado são algo preocupantes e suscitam dúvidas sobre se orientação tão ampla haveria de facto sido adotada. A primeira – decorrente do objectivo de expansão do sistema – reporta-se à criação da educação pré-

\ 62-escolar oficial (n.º 2): esta decorre da generalização do sistema, e julga-se (n.º 4) “desejável que, para tanto, contribuam o Estado e o sector privado, reconhecida como é a direta incidência dos ambientes sócio-cultural e económico da família na formação da criança”. Esta justificação parece ser específica da educação pré-escolar, e conforta-se com dificuldades de ordem financeira: parece, porém, que nenhuma das razões apontadas tem alcance para além do grau ou nível de educação a que se reporta. Uma outra referência, ainda mais individualizada e específica, é feita a propósito da formação profissional, matéria em que o Ministério oferece a colaboração conveniente a todas as iniciativas que visem a instrução dos Portugueses, “tanto no âmbito do sector público como no do privado”. Também aqui o reconhecimento de uma situação preexistente e as carências financeiras do Estado tornam inaplicável por analogia o que se dispõe. Não se desconhece que muitas e valiosas contribuições para a melhoria dos sistemas educativos tiveram inspiração e origem estatista ou socialista, do Rahmenplan ao plano Langevin-Wallon; mas é evidente que muito do que neles se contém se torna aplicável em qualquer sistema integrado, que a diversidade do ensino decerto apenas enriquece. Por isso, seria conveniente que se desse um passo em frente no atual projeto, seguro como é que a matéria, pela sua importância se não compadece com omissões e influencia toda a estrutura do sistema educativo. As disposições programadas no Projeto poderiam ser aplicadas, com paridade de razões, ao ensino privado – estabelecendo-se nesse caso um verdadeiro sistema de ensino livre: mas era então necessário que se fizesse uma referência expressa às condições dessa aplicação, contidas na Constituição, em vez de deixar pairar as dúvidas que legitimamente podem resultar do texto atual. Que ele represente,

¹⁶AposiçãodoensinoprópriodaIgrejapode,infelizmente,fornecermaisumargumentonosentidodequenãohásimplesomissão,tendoosistemasidopensadocomoaplicável“semexclusivo”aoaparelhoestadualdeensino.Admite-se,eparecedesejável,quesetendaaequipararossemináriosmenoresaosliceusclássicos;masocursodesemináriomaior?Pareceseroúnicopós-secundárionãoprevisto,reduzindoassimocarácterglobal,integradoepolivalentedosistema.Nograusuperior,tambémoensinodaTeologia,atualmentejáministrado,adentrodaUniversidadeCatólica,numaFaculdadesitaemLisboa,éoúnicoquenãoaparecemencionadoentreoscursosuniversitáriosmencionadosnoorganograma.tambémnestedomínio,umprimeiromomentodefuturoenãomaisumresíduodopassado¹⁶.8.Quantoaoensinosuperioroupós-secundário–universitárioepolitécnico–amesmaambiguidadesemantém,nãosedesfazendoasdúvidasquepodememergir,querdaatuallegislaçãouniversitária,querdoprojetodepropostadeleisobreoensinopolitécnico.Pior:asBasesGeraisdaReformadoEnsinoSuperior,aomenosnasualetra,nãopermitemsequeralimentardúvidas(aocontráriodoquesucediacomoprojetoGalvãoTelles,tambémnestedomíniomaissensívelaopapelqueoensinoprivado,porimposiçãoconstitucionaledadaanecessidadedumsãopluralismo,podedesempenhar).Dispõe-se,comefeito,nopontoD.1:“asUniversidadestêmpersonalidadejurídicadedireitopúblico”;etambémosseusprojetosdeorçamentoestãosujeitosàsnormasdaContabilidadePública,carecendoglobalmentedeaprovaçãodoMinistrodasFinanças(pontoD.4),oqueésemdúvidacorreto,masrevelaqueestamosperanteinstituiçõesdedireitopúblicoque,comoéderegra,apenasoEstadopoderácriar.Enenhumaoutradisposiçãoencontrámosquepermitaacharumasaídaparaestadificuldade:resultantedafaltadeaberturaaoensinosuperiorlivre nas novas Bases Gerais.

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9. Parece, pois, que a disposição constitucional que prevê a instituição entre nós de um verdadeiro regime de ensino livre continua por executar. Com efeito, verificadas certas garantias de nível do ensino ministrado, o ensino livre pressupõe:

a) A liberdade de criar escolas e de ministrar ensino, atribuída a instituições privadas responsáveis; b) Liberdade na estruturação e funcionamento destas escolas, com respeito pela lei do país e sujeição às necessidades de um sistema escolar coerente, em que devem integrar-se; c) A possibilidade de atribuição de subsídios, isenções¹⁷ ou outros benefícios financeiros, que evitem a dependência do ensino livre quer de benfeitores influentes, quer de qualquer procura expressa no mercado; d) A equiparação entre docentes dos dois sectores do ensino, ao menos quanto a um mínimo de garantias próprias da função; e) A atribuição de diplomas equiparáveis aos do ensino público e a possibilidade de oficialização. Estamos muito longe deste ideal quanto ao ensino secundário: no domínio do superior, se a falta de regulamentação tornaria aplicável diretamente o preceito constitucional, este carece de especificações que apenas o legislador ou o administrador podem fazer (quantas vezes decerto sem a mesma abertura e amplitude que a própria Constituição lhes imporia). ¹⁷ Designadamente, a previsão de isenções fiscais e a redução da taxa de contribuição industrial pareceriam ser imperativo gritante de justiça neste domínio.

Ora, no que se refere aos documentos que contêm as bases gerais da reforma educacional, este é um dos pontos que mais perplexidades pode suscitar. Acresce que a admissão do ensino livre estaria conforme aos próprios princípios fundamentais do Projeto, e enriqueceria a sua execução, reabilitando a atuação de instituições pioneiras em domínios que só agora o Estado intenta ocupar e respeitando o direito a uma pluralidade de opções, que o sistema escolar pretende declaradamente garantir: parece legítimo esperar que a omissão não seja significativa, ou que, se o fosse, desse lugar a fácil e necessária correção, que decerto apenas enriqueceria o Projeto.

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\ 67 O RECONHECIMENTO OFICIAL DA UNIVERSIDADE CATÓLICA António Luciano de Sousa Franco In Brotéria, novembro, pp. 435-478 (1971).

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1. A atividade legislativa sofre hoje de forte inflação, provocada aqui pelo desejo de substituir diplomas existentes por outros iguais com autor diferente, suscitada além pela confusão entre o plano do legislador e o da execução concreta. Uma obra legislativa não deve, pois, medir-se pela quantidade, mas pela importância dos seus produtos; e quase pode julgar-se de regra que, quanto mais se legisla, menos (ou pior) se governa.

Assim, quantas vezes as páginas do Diário do Governo não estão cheias de disposições mortas, que nada valem como demonstração de um intuito político ou forma de justamente ordenar a vida social! Quase são excepcionais os diplomas inovadores, capazes de abrirem novos rumos e de executarem um desígnio de progresso, como é próprio da função do legislador. A esses raros pertence sem dúvida o Decreto-Lei n.º 307/71, de 15 de Julho passado, que aprova o estatuto legal da Universidade Católica Portuguesa (U.C.P.). Relevante, sem dúvida, o significado imediato da aprovação deste diploma neste momento: ele representa o reconhecimento pelo Estado português de uma realidade já existente – a Universidade Católica –, consagrando com elegância e oportunidade uma obra sonhada e erguida sobretudo pelo Senhor Cardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira¹, inspirada pela sua formação universitária quanto pela cura do Pastor: não foi decerto por acaso – e declarações e notícias oficiosas bem o confirmam – que este diploma legal em pouco sucedeu à data da transmissão de poderes do Patriarca de ¹ Nas obras do Cardeal Cerejeira encontramos uma abundante justificação e doutrinação sobre a Universidade Católica. Destacamos: a conferência de 1946, em Obras pastorais, III, Lisboa 1947, pp. 113-127; duas importantes entrevistas, aos órgãos da LUCF e da JUC, «Perspectivas» e «Encontro», nas Obras pastorais, vol. VI, Lisboa 1964, pp. 305-308 e pp. 309-323; e numerosos documentos, marcando já a vida real da Universidade Católica, insertos no vol. VII do op. cit., Lisboa, 1970, pp. 229-235, 241-251 e 295-296.

\ 69 Lisboa para o seu sucessor. Homenagem e realização dum desejo, que só honram quem as fez.

O diploma, profundamente inovador e imbuído de doutrina feliz, é outrossim expressão de uma obra de política educacional que, com aspectos discutíveis como todas, se caracteriza pela preocupação de planear rasgadamente para um futuro amplo, pela honestidade e abertura das concepções como pela capacidade realizadora. Não pode entender-se que este diploma seja, no desígnio do Ministro Veiga Simão, outra coisa senão a expressão de uma filosofia acerca do ensino particular que, conforme aos princípios de uma sociedade pluralista e à doutrina da Igreja Católica², estava omissa do Projeto de Reforma do Ensino – mas por ele não era rejeitada, antes esperava novas oportunidades de se ver confirmar e efetivar. Por isso, o Decreto-Lei n.º 307/71 marca uma data na história do nosso ensino; outras se lhe seguirão sem dúvida, para salvar, enquanto é tempo, o ensino não estadual da situação em que se encontra. Mais, porém, do que detecção de realidades ou movimentos, importantes mas circunstanciais, o teor deste diploma exige uma análise que o tome de cima, que nele possa discernir o impacte exercido sobre o sistema educativo português e o exato alcance das concisas disposições que o constituem. É o que tentaremos, antes de mais visando indagar do preciso significado jurídico das suas disposições.

² Acentuou recentemente, a propósito do Projeto de Reforma do Sistema Escolar, a Comissão Episcopal da Educação Cristã, em nome de todo o Episcopado da Metrópole (Nota de Abril de 1971): «importa não esquecer o papel que, num sistema escolar equitativo e dinâmico, por força há-de caber ao ensino livre, tanto da Igreja como das demais entidades promotoras do ensino não estatal(…).Porisso,édeverdoEstado,reconhecidoaliásnanossaConstituiçãoPolítica,assegurarodireitodospaisaescolherem,complenaliberdadeeapenassegundoasuaconsciência,asescolasparaosseusfilhos».Cf.oqueescrevemosnoartigo«OensinolivronoProjetodeReformadoSistemaEscolar»,inBrotéria,Marçode1971,pp.375-393.Podever-seumaboasíntesedaevoluçãodadoutrinadaIgrejaacercadamatériaemJoséLuísGutiérrez-García,ConceptosfundamentalesenladoctrinasocialdelaIglesia,Madrid1971,vol.II,pp.23-38e39-49.

2. 1 – É antigo o sonho da Universidade Católica Portuguesa. Já em 1926, o Concílio Plenário Português, reunido em Lisboa, deliberara: «O Concílio, secundando gostosamente o desejo da Igreja (cân. 1379 § 2.º), decreta que se funde, quanto antes, uma escola superior católica ou instituto católico» (art. 138.º). Em Carta Pastoral Colectiva de 1930, o Episcopado português explicava que este instituto católico (designação de inspiração francesa, nascida neste país devido às limitações impostas pela lei Falloux) seria «um estabelecimento de alta cultura intelectual, que sirva para educar e formar um escol de mentalidade católica», e não «simplesmente uma faculdade teológica».

A pastoral colectiva do nosso Episcopado de 16 de Janeiro de 1965 anunciava ao País a intenção de criar efetivamente uma ³ Cfr. O pensamento católico e a Universidade, vol. I, Lisboa, 1953; e vários artigos do jornal Encontro, onde repetidas vezes se abordou o tema.

\ 70 2. A UNIVERSIDADE CATÓLICA: ORIGEM E SIGNIFICADO

Entretanto, o Patriarcado de Lisboa instituía o Instituto Católico Português – mas, apesar de dotado de personalidade jurídica e apto a ser beneficiário de algumas liberdades, não lhe coube qualquer papel ativo na realização da ideia, que por longos anos pareceu em letargia. Várias vezes a opinião católica reclamou o cumprimento daquele voto do Concílio, que o tempo fora convertendo em meramente platónico. Assim, no I Congresso da JUC/JUCF, que constituiu um dos mais sérios esforços de reflexão sobre os problemas universitários³; e não se pode negar que a repetida insistência destes organismos universitários da Ação Católica teve papel decisivo na instituição efetiva da Universidade Católica, que dispunha, como esplêndida base de partida, do que viria a ser, após 1967, a prestigiosa Faculdade de Filosofia de Braga.

\ 71 Universidade Católica. E em 29 de Junho de 1967 foi solenemente benzida e colocada a primeira pedra dos edifícios destinados à sede central da Universidade Católica Portuguesa, por Sua Eminência o Cardeal Cerejeira. A 13 de Outubro do mesmo ano, a Santa Sé, pelo Decreto Lusitanorum nobilissima gens, da Sagrada Congregação dos Seminários e Universidades – hoje Congregação da Educação Católica –, «deu início à ereção das instituições académicas da Universidade Católica Portuguesa, estabelecendo como primeira Faculdade da mesma, a Faculdade de Filosofia de Braga. No mesmo decreto e documentos anexos se previa e dispunha, para executar-se logo que possível, a instalação em Lisboa da «sede central da Universidade Católica, onde mestres e alunos iniciarão quanto antes estudos superiores». (Declaração da Comissão Episcopal da Universidade Católica, 7 de Outubro de 1968)⁴. Erecta canonicamente, em 1967, a Faculdade de Filosofia de Braga; inaugurada a sede central da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, abertos os primeiros estudos da Faculdade de Teologia de Lisboa e provido o seu primeiro vice-reitor, em exercício de funções ao nível de reitor, no ano de 1968; terminado o primeiro ciclo de estudos da Faculdade de Teologia e anunciada a criação da Faculdade de Ciências Humanas (a instalar em edifício custeado pela Fundação Gulbenkian) em 1971 – a Universidade Católica, se bem que não preencha ainda os exigentíssimos requisitos necessários para que seja erecta pela Santa Sé em verdadeira Universidade⁵, é já uma realidade irrecusável. Porque nos não interessa agora fazer a sua história, nada mais adiantaremos sobre ela. ⁴ Além de publicado na Brotéria, há edição do seu texto empreendida pela Universidade Católica. Abundante bibliografia sobre a matéria pode achar-se na Brotéria. ⁵ Cfr. Constituição Deus scientiarum Dominus, de 24-V-1931; e determinações da Sagrada Congregação dos Seminários, de 12-VI-1931; e Normae quaedam, da Sagrada Congregação da Educação Cristã (1968). Cfr. ainda Isidro Martin, Universidades da Igreja, trad., Lisboa, 1963.

Mas terá atualidade e sentido a ideia? Numa hora de revisão de tantos processos, ideias e instituições tradicionais, a pergunta não carece de pertinência e tem sido, clara ou ocultamente, formulada por Podealguns.duvidar-se, efetivamente, da necessidade e conveniência para a Igreja de instituir uma Universidade católica. Defender-se-á com vigor que não é hoje próprio da missão da Igreja fundar

Universidades: pretendendo libertar o Corpo Místico do peso da Igreja institucional, para que plenamente se manifeste uma Igreja carismática, entender-se-á que a criação de Universidades é própria de entidades soberanas e alheia à missão salvífica que, no despojamento em que atua a Graça, a Igreja assume⁶. O lugar dos católicos, como professores, investigadores e alunos, seria nas Universidades civis, penetrando-as, em vez de se acantonarem no «ghetto» de uma Universidade confessional. Duvidarão alguns, por seu turno, de que seja conciliável a objectividade científica, que tanto garante a neutralidade real das Universidades civis, com o carácter confessional duma Universidade. Enfim, é lícito defender que, se a Igreja hoje renuncia a privilégios, conforme proclamou enfaticamente o Concílio do Vaticano II, não teria sentido a existência dum regime especial – de origem legal ou não – para os estudos na Universidade católica, afinal privilegiada, isolada e acantonada perante o sistema universitário civil.

Nos argumentos antes expostos contém-se algo de muito válido, que deve ser objecto de atenta meditação; cremos, porém, que a sua forma, ou é excessiva, ou carece mesmo de base, indo muito além da verdade de que partem. Vamos por partes. ⁶ Cfr. por todos, a boa síntese de J. L. Aranguren, A crise do catolicismo, trad., Coimbra 1971, pp. 101 ss. e 119 ss.

\ 722.2

Parece evidente que a interiorização da Igreja se afigura uma necessidade permanente do reforço da ação da Graça: mas isso não impede que – sociedade que é, como qualquer agrupamento de homens, e sociedade providencialmente implantada na História entre povos de tradição fortemente gregária e organizativa – ela tenha de ter, por sua natureza, instituições, normas e autoridades. Singular fenómeno seria o do desaparecimento de qualquer forma de organização da Igreja, numa altura da História em que a organização se refina e torna essencial em todas as comunidades de homens! Na mesma ordem de ideias, é claro que o lugar dos católicos como cidadãos é na sociedade temporal em que se inserem, em virtude duma crescente secularização; mas isso não impede que ensinem também – cumulativa ou exclusivamente –em instituições especificamente de Igreja. Secularização não é secularismo, dissolvendo a Igreja no Mundo, ou confundindo-a com ele. Que assim é, demonstra-o o constante ensino dos Papas: desde a carta magna da educação cristã que é a Divini Illius Magistri de Pio XI até à Declaração Conciliar Gravissimum Educationis Momentum, que, no seu n.º 10, claramente reafirma a atualidade e necessidade das Universidades Católicas. Também, no seu ensino posterior, Paulo VI não tem deixado de reafirmar essa ideia⁷. Está suficientemente respondido – a querela vem, afinal, do século XIX – que a neutralidade religiosa não é postulada pelo espírito científico. Desde que exista respeito pela liberdade do investigador, pela objectividade da investigação e pela honestidade do ensino – o ⁷ Vejam-se, de entre os mais recentes: a breve alocução de 28/3/1971, Osservatore Romano (ed. portuguesa), n.º 14, p. 8; mensagem ao Reitor da Universidade Católica de Milão, ibidem, n.º 15, p. 9; discurso sobre a missão indispensável da escola católica (15/5/71), ibidem, n.º 26, p. 8; e, embora marginalmente, a alocução à FUCI, de 28/6/71, ibidem, n.º 29, p. 9.

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simultaneamente

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carácter confessional da Universidade em nada viola a liberdade de quem quer, professor, investigador ou aluno. A disciplina científica não é incompatível com a referência objectiva a valores religiosos, com a preocupação formativa e com o cultivo das ciências sagradas – elementos estes que, inexistentes nas Universidades laicas, muitas vezes amputam, quer o seu significado cultural, quer a sua ação formativa e a riqueza da pesquisa em campos essenciais da cultura, como é, designadamente, a Teologia. Aponte-se, por outro lado, que a Gaudium et Spes claramente ensina que o cristianismo é compatível com os mais diversos tipos de cultura e formas de civilização: qualquer tendência a confundir níveis culturais e estruturas de civilização com as verdades da fé seria contrária, quer à essência do ensino universitário, quer à doutrina da Igreja acerca das relações entre a cultura e a revelação, que não cabe aqui obviamente abordar. Por fim, o consabido argumento dos privilégios. Parece existir – a propósito deste como de muitos outros problemas – uma enorme confusão acerca do conceito de privilégio. E vá de dizer que qualquer lei em que se discipline especialmente a situação da Igreja, ou de uma das suas instituições, constitui privilégio – logo é incompatível com o espírito conciliar. A afirmação denota uma notável ignorância do que seja o privilégio, instituto contrário à igualdade perante a lei e gerador de um injusto conúbio entre a Igreja e o Estado concedente: daí, que a Igreja a eles haja renunciado em solene declaração conciliar (Gaudium et Spes, n.º 76). Só existe privilégio quando certa pessoa ou situação é objecto de regulamentação legal em regra favorável) que seja: a) – própria e exclusiva dela (sua «lei privada»); b) – excepcional face à lei geral, isto é, contrária ao que nesta se dispõe.

As questões mais relevantes suscitadas pelo Decreto-Lei n.º 307/71, que são afinal as mais importantes na definição do estatuto jurídico da Universidade Católica, parece-nos serem as seguintes:

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e) Benefícios, património e representação da UCP (art.os 8.º a 11.º).

b) Direito aplicável à Universidade Católica (art. 12.º).

3. PRINCIPAIS PROBLEMAS A ABORDAR

Sempre que uma disposição legal aplique a certa pessoa regimes semelhantes aos que para outras são definidos – ou regimes que, ainda que individuais, não careçam de compatibilidade com os princípios gerais (não sendo em relação a estes, excepções, afastamentos claros, mas só meras adaptações) – os quais os juristas designam de «leis especiais» – não existe qualquer privilégio. Ora, a regulamentação deste decreto não foi solicitada em espírito de privilégio: o que a Igreja pede para si – embora haja de ter em conta o carácter especial, peculiar, da sua situação – entende que seja expressão de uma doutrina geral sobre o ensino particular (que desejaria fosse ensino livre hoc sensu). E tão-pouco o é objetivamente: pois apela em geral para o regime próprio do ensino particular; e, naquilo em que o exceda, é de esperar abra caminho a um regime mais inovador e progressivo, afinal conforme a Constituição, também aqui cerceada pelas leis ordinárias que a executam.

a) Definição dos fins e estrutura da UCP (art.os 1.º e 2.º).

c) Organização e funcionamento didáticos (art.os 3.º, 4.º, 5.º e 6.º).

d) Reconhecimento dos diplomas (art. 7.º).

4. FUNÇÕES, ESTRUTURA E REGIME GERAL DA UNIVERSIDADE CATÓLICA A definição das funções da Universidade Católica e a declaração da sua utilidade pública consta do artigo 1.º do Decreto-Lei: Artigo 1.º A Universidade Católica Portuguesa é uma pessoa colectiva de utilidade pública e tem por fins, além de promover e difundir a cultura no domínio das ciências sagradas e profanas, ministrar o ensino de nível superior em paralelo com as restantes

4. 1 – A Universidade Católica pode ser instituída pela Santa Sé, nos termos do Direito interno da Igreja, ao abrigo dos artigos III, IV e XX da Concordata de 7 de Maio de 1940, tal como antes o foi no Patriarcado o Instituto Católico Português. Não é, pois, a atribuição de personalidade jurídica que se visa com este Decreto-Lei – ele seria para isso rigorosamente inútil; é a simples declaração de utilidade pública da instituição, com alguns benefícios a que corresponderão os encargos por ela assumidos.

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É por esta ordem que os trataremos, certo de que mais interessa tentar apreender o sentido correto e preciso da regulamentação legal do que determo-nos sobre a síntese interpretativa, que só brevemente havemos de tentar a final, depois de dominadas as suas bases.

Universidades portuguesas e cultivar a investigação e o progresso das ciências nela professadas.

A declaração de utilidade pública constitui um meio eficaz para realizar, em nível universitário, a efetivação dos princípios constitucionais relativos ao espírito que deve animar o ensino e a educação não estaduais, e será uma prova de livre cooperação do Estado e da Igreja, uma vez que não é indiferente para a prossecução

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Universidade Católica, confirma, tanto a previsível brevidade do termo do processo, como a legitimidade da fórmula usada no art. 1.º, tendente a identificar o Instituto criado pelo Episcopado com a

Universidade, designação que só a Santa Sé é competente para atribuir (cânone 1376 do Codex Iuris Canonici). Nada impede, porém, que o Estado a utilize para uma Universidade Católica em

Mas se nenhumas palavras melhor do que estas se aplicariam ao caso português, demonstrando a atualidade e urgência desta iniciativa, a próxima instituição canónica da Universidade Católica impõe que o benefício se estenda, desde já, à Universidade a constituir, e não apenas ao Instituto Católico Português que nela se integrará, dado o processo sucessivo da sua formação. O documento pontifício Lusitanorum nobilissima gens, ao integrar a Faculdade Pontifícia de Filosofia de Braga, como primum et eventum da Constituição da

das finalidades da Igreja a instituição de tais Universidades, como reconheceu o Concílio do Vaticano II, desde que elas funcionem dentro dos cânones autênticos do espírito universitário: “A Igreja… procura organicamente que cada disciplina seja cultivada segundo os seus próprios princípios e métodos e com toda a liberdade de investigação científica, de modo que cada vez se alcance uma compreensão mais profunda das ciências, e, considerando atentamente os novos problemas e descobertas dos nossos dias, se manifeste mais profundamente como a fé e a razão convergem para uma única verdade… O Sagrado Concílio recomenda insistentemente que se promovam Universidades e Faculdades Católicas convenientemente distribuídas pelos diversos lugares da terra, de modo que brilhem não pelo número, mas pelo prestígio do ensino; e que o acesso a elas esteja amplamente aberto aos alunos que ofereçam maiores esperanças, ainda que disponham de menores recursos económicos, sobretudo os que chegam de nações jovens” (Declaração sobre a Educação Cristã, n.º 10).

Por tudo isto, importaria conceder-lhe determinadas facilidades que – sem prejuízo das tarefas e encargos do ensino público, que ao Estado cumpre promover e suportar – diversifiquem e enriqueçam a sua atuação pelo concurso das escolas da Igreja. Nesses termos se procuraria, criando um regime especial conforme à natureza canónica da Universidade Católica, facilitar-lhe o mais possível a integração na família universitária portuguesa e o respeito das prescrições internas do nosso Direito que sejam aplicáveis a escolas com semelhante dignidade. É de crer, aliás, que a orientação geral da projetada Reforma do Sistema Escolar não irá fora destas diretrizes; e já no Estatuto da Educação Nacional se afirmava “a possibilidade de serem declarados de utilidade pública os estabelecimentos de ensino que reúnam determinadas condições, enumerando-se os benefícios que essa declaração envolve, ou seja, nomeadamente, isenções fiscais, concessão de créditos a longo prazo, concessão de subsídios de instalação ou funcionamento e outros”. Não é, decerto, demasiado que, por ato individual, se dê tal categoria à Universidade da Igreja – na esteira de atos individuais de declaração de utilidade pública como os que, por exemplo, se reportaram à Cruz Vermelha Portuguesa, à Fundação Calouste Gulbenkian, e a várias instituições de ensino e cultura (como o Instituto Sidónio Pais, o Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral, etc.).

\ 78 formação – o que torna o regime legal mais claro, sem deixar de ser preciso e rigoroso. Acresce ainda que a Universidade Católica se não destina a concorrer com as Universidades do Estado ou a duplicá-las, antes se propõe completar-lhes a ação, tanto no ensino de base universitário, como no plano da educação permanente e da investigação; pode pois constituir um elemento valioso de um planeamento nacional da educação, de democratização do ensino e expansão do sistema escolar, além de incorporar escolas da Igreja já com relevantes serviços prestados à causa da educação.

O que se contém nesta declaração geral mais não é do que a aplicação do espírito da Concordata (que não parece ter previsto todos os casos de docência pela Igreja no artigo XX), como da sua letra (art. III). Ademais, o dispositivo é suficientemente justificado pela posição sociológica da Igreja Católica em Portugal; e acresce que o reconhecimento do direito natural de ensinar parece vir a fazer-se mais extensamente do que na legislação vigente⁸.

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Assim sendo, afigura-se-nos que a simples recepção no Direito Português duma entidade criada pelo Direito da Igreja basta para assegurar o respeito pelas suas finalidades. Para quê um Decreto-Lei de “reconhecimento da personalidade jurídica”? Em puro rigor jurídico, ele seria efetivamente supérfluo: o reconhecimento, por parte do Estado, de tal entidade, resulta dos factos que façam funcionar a estatuição do n.º 2.º do art. III da Concordata. Também a sua personalidade e capacidade é regulada pelo art.º IV: e o Instituto Católico Português, que deu origem à Universidade Católica, já as tem definidas, por equiparação às das outras pessoas morais perpétuas (isto é, a partir de 1 de Julho de 1967, pelos artigos 157.º e seguintes do novo Código Civil, que o inclui entre as “associações que não tenham por fim o lucro económico dos associados”). Tendo sido canónica a instituição desta pessoa colectiva, também se lhe não aplicará a apertada tutela e fiscalização policial que é característica do novo Código Civil: pois a Concordata estatui que estas pessoas (art. IV) “administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica” (cfr. 2.º período). Vê-lo-emos em breve melhor⁹. ⁸ Cfr. infra, n.º 5.1. ⁹ Cfr. infra, n.º 4.3.

\ 80 Há, no entanto, vantagens para a UCP, em obter uma declaração de utilidade pública geral, pelo menos, para três efeitos: – isenção de impostos; – concessão de equiparação de diplomas, mediante condições de ordem pedagógica e administrativa aceites, de comum acordo, pela Igreja e pelo Estado; – definição mais correta da sua disciplina jurídica, enquanto instituição que exerce uma atividade pedagógica em território 4.português.2–Além

da declaração de utilidade pública – cujos efeitos se sumariaram – consta do mesmo preceito a definição dos fins da Universidade Católica. A enunciação dos seus fins refere: – a promoção e difusão da cultura, tanto no que se refere às ciências sagradas como às profanas; – ministrar o ensino de nível superior, em paralelo com as restantes Universidades portuguesas; – cultivar a investigação e o progresso das ciências nela Nãoprofessadas.nosdeteremos agora num aprofundamento destes fins – que serão afinal os de qualquer Universidade, com sistematização que varia de autor para autor, consoante o critério seguido.

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Universidade: isto, se entendermos a cultura em sentido subjectivo – como formação pessoal e profissional, acrescida de informação geral e especializada –, tanto como em sentido objectivo – conjunto dos valores que, objetivamente, definem a visão (cognitiva e judicativa) que do mundo possui certa comunidade humana.

O que é importante é que, de acordo aliás com o que desde o início se pretendia, a Universidade, no seu objecto, visa cultivar tanto ciências sagradas como profanas: uma Universidade Católica deve decerto cultivar os estudos eclesiásticos superiores, no duplo sentido da expressão (Declaração Conciliar Gravissimum Educationis, n.º 11); mas há-de, num espírito de cooperação com as outras escolas “exigido pelo bem comum de toda a humanidade” (ibidem, n.º 11), dedicar-se também às ciências profanas, quer para formar completamente os seus alunos (ibidem, n.º 10), quer para “promover o conhecimento dos povos e das religiões” (Decreto Ad Gentes, n.os 39 e 41), quer para fazer progredir a ciência e a sociedade (G.E., n.º 10).

As formas de promoção e difusão da cultura é que serão – numa maneira objectivista de encarar a atuação da Universidade –principalmente duas: ministrar o ensino e cultivar a investigação (além de outras que visem promover e difundir a cultura e, pela sua vocação geral, lhe não estarão vedadas)¹⁰,¹¹. ¹⁰ Seria útil, para evitar dificuldades práticas que já têm surgido, precisar que se trata de uma pessoa colectiva de utilidade pública geral. Como bem sabem os administrativistas, não existe um regime legal destas pessoas colectivas – das quais no texto apontamos alguns exemplos –,

Apenas diremos que nos parece que o primeiro dos “fins” apontados, apesar da redação utilizada, se situa antes e acima dos outros dois: promover e difundir a cultura é algo que se faz, entre outras formas, pela realização das duas funções a seguir explicitadas. A promoção e difusão da cultura é pois o mais amplo dos fins de qualquer

\ 82O ensino de nível superior deve decerto definir-se, de maneira meramente formal, como o ensino pós-secundário; é o que resulta da noção adotada nas Linhas Gerais da Reforma do Ensino Superior (II-1, pág. 9), distinguindo-se o universitário das outras modalidades pelas duas finalidades antes apontadas. Não será esta a altura propícia para criticar a noção, dado que se configura de modo demasiado formal: ela é útil para a atuação de organizações internacionais, onde o método comparativo, como se sabe, obriga a reduzir tudo ao menor denominador comum; mas pode ser demasiado ampla, e daí nociva, para uma política educacional em países dotados de larga tradição universitária. E a melhor fora de progredir é quase sempre por adição, raro por subtração. Neste aspecto, é particularmente rico para uma caracterização das funções das universidades católicas o n.º 10 da Declaração Gravissimum Educationis, para o qual devemos limitar-nos a fazer breve remissão¹². Elas devem sempre, em muitos aspectos, suprir ou completar as Universidades estaduais (cfr. cân. 1579 § 2 do Codex Iuris Canocini de 1917). mas tão-só um regime das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa local, o qual consta do Código Administrativo. Daí que – designadamente em relação à Fundação Gulbenkian –tenham surgido dúvidas quanto ao seu regime fiscal, por imprecisão do diploma que a declarou de utilidade pública. Uma vez que o legislador preferiu seguir uma redação mais imprecisa, omitindo a referência à utilidade pública geral, parece contudo evidente que tal omissão só pode resultar de, com ou sem razão, ele ter entendido que a especificação seria redundante: a U.C.P. é um exemplo nítido de pessoa colectiva de utilidade pública geral, embora a lei o não diga expressamente.

¹¹Aequiparaçãoàspessoascolectivasdeutilidadepúblicaadministrativapodesuscitarmaisdúvidas:porofimdaUniversidadeCatólicasereducativo,semdúvidaprossegueelafinsconcorrentescomosdaadministração;porserreligioso,emcertosentido,nãosepodedizerqueaconcorrênciasejaplena,nãosejustificando,portanto,qualquertutelaadministrativa,ouumregimesemelhante,queviesseasercriadoparataispessoascolectivas.Afórmulausada,entendidanocontextodosart.10.ºe11.º,nãodeixaporémmargemamuitasdúvidas.SobreosfinsdaUniversidade,cfr.Newman,TheideaofaUniversity;Jaspers,DieIdeederUniversität;OpensamentocatólicoeaUniversidade,vol.I;Missiondel’Université,ed.PaxRomana;OrtegayGasset,MisióndelaUniversidad;DarcyRibeiro,AUniversidadeNecessária.¹²Cfr.acoincidênciasubstancialdestaposição–quenospareceaceitável,comressalvadoseucarácteralgumtantoformal–comadasLinhasGeraisdaReformadoEnsinoSuperior,Janeirode1971,A.1.,p.13.

2. As escolas e estabelecimentos a que este artigo se refere poderão ter as denominações que se harmonizarem com a natureza das disciplinas neles cultivadas, devendo a respectiva designação ser aprovada pelo Ministro da Educação Nacional, ouvida a Junta Nacional de Educação, sob proposta fundamentada do reitor.

Destacando o carácter federativo da Universidade, usa este artigo uma fórmula feliz: com efeito, a sua própria evolução progressiva, a localização em diversas cidades dos “estabelecimentos de ensino” (para usar o velho galicismo) que a compõem, a progressiva verificação de requisitos de constituição até à ereção canónica como verdadeira Universidade Católica, que se há de seguir quando se completar a apreciação pela Santa Sé – tudo isto torna feliz, destacando a relativa autonomia interna das escolas e instituições

\ 83 4. 3 – Quanto à estrutura escolar da UCP, dispõe o artigo 2.º: Art. 2.º – 1. A Universidade Católica Portuguesa é uma instituição de carácter federativo, com sede em Lisboa, que tem como elementos integrantes: a) A Faculdade de Teologia, com sede em Lisboa, a Faculdade de Filosofia de Braga e a escola de Direito Canónico que porventura nela venha a ser criada; b) Os estabelecimentos de ensino superior análogos aos das restantes Universidades portuguesas cuja criação, dentro dela, venha a ser autorizada; c) Os centros de investigação e institutos culturais anexos a qualquer dos estabelecimentos de ensino mencionados nas alíneas anteriores.

Universidade Pontífica ou eclesiástica, sobretudo para formação do clero¹⁵ – e os de ciências profanas. Quanto aos primeiros, desde já ¹³ No primeiro dos sentidos referidos este n.º 4. 3, infra. ¹⁴ Cfr. Isidro Martin, Universidades da Igreja, 15 ss. ¹⁵ Cfr. Isidro Martin, op. cit., 26. Cfr. cânone 1375 do Codex Iuris Canonici.

\ 84 integrantes, a designação usada. Claro que tal expressão em nada obsta à íntima cooperação entre escolas recomendada pela Declaração Conciliar (Gravissimum Educationis, n.º 12).

Separaram-se assim, desde logo, os estudos de ciências eclesiásticas ou sagradas, que têm por objecto a revelação, inerentes ou intimamente ligados à vida interna da Igreja – os quais comporão uma

É importante notar que o sentido restrito de “Universidade Católica” é o de Universidade fundada diretamente pela Santa Sé, nos termos do cânone 1376 do Código de Direito Canónico (“É reservada à Sé Apostólica a constituição canónica das Universidades ou Faculdades católicas de estudos”); à Santa Sé pertencerá sempre aprovar os estatutos de todas as Universidades Católicas¹³. Neste sentido, a Universidade Católica portuguesa existe apenas em processo de constituição: não é perfeita Universidade Católica, com direito a tal nome, enquanto se não verificarem todos os requisitos necessários à plenitude do título; mas todo o processo decorre com regularidade formal, nos termos definidos pela Santa Sé. Em sentido amplo, poderia ser também católica uma Universidade do Estado (exemplo nítido de Espanha, paralelo aos das Universidades confessionais de tantos Estados muçulmanos). Parece-nos, pelo menos duvidoso que o Concílio haja contemplado este segundo tipo de Universidades¹⁴. Refere a alínea a) do n.º 1 deste artigo 2.º três unidades escolares afins, a Faculdade de Filosofia, a Faculdade de Teologia e uma escola de Direito Canónico, que eventualmente venha a ser criada.

É evidente que nesta designação haverão de incluir-se todos os outros estabelecimentos de ensino superior, mesmo que não sejam análogos aos existentes em nenhuma Universidade portuguesa (por exemplo, uma escola de jornalismo); e os não referidos na alínea a), onde se inclui uma escola – a Faculdade de Filosofia – que é sem dúvida análoga às Faculdades de Letras, ao menos em algumas das suas Parece,secções¹⁶.pois,que esta analogia, mais que à existência dos cursos (poderia falar-se então em cursos idênticos), deverá reportar-se ao teor e conteúdo dos cursos e ao seu nível superior e universitário.

Quanto aos “estabelecimentos de ensino superior análogos aos das restantes Universidades portuguesas” – expressão necessariamente imprecisa – prevê-se diversamente que a sua criação deva ser autorizada (nos termos do artigo 8.º, e com o condicionamento relativo à sua designação, que vem previsto no n.º 2 deste artigo 2.º).

Isto levanta um problema: poderão incluir-se na Universidade Católica escolas destinadas a ministrar cursos que tenham carácter politécnico ou tecnológico¹⁷, com carácter superior, mas não ¹⁶ Importa, no entanto, referir desde já o interesse específico da instituição no cultivo das ciências humanas (várias vezes objecto de declarações do Episcopado), colaborando com as Universidades do Estado por via de uma certa integração doutrinária e cultural. Para isso, tanto o ensino de base como a investigação de cúpula estarão incluídos na sua esfera de interesse, embora dentro de um espírito que evite duplicações de esforços. Nesta óptica, poderia referir-se mesmo mais do que as simples ciências humanas: porque não as ciências físicas e naturais, tão relevantes para uma qualquer visão do mundo, maxime a cristã? ¹⁷ Reportamo-nos sobretudo à forma constante do parecer da Câmara Corporativa sobre a matéria (Parecer n.º 28/X, inserto nas Actas da Câmara Corporativa de 15 de Julho de 1971, pp. 897 e segs.). Nele se prevê (base III, n.º 1), continuando a velha pecha estatísta do nosso sistema de ensino, que “o Governo instituirá os cursos desta natureza que sejam adequados para formação

\ 85 se prevê a existência das unidades de ensino correspondentes, sem necessidade de qualquer autorização estadual – designadamente, quanto aos planos de estudos e equiparação de graus e diplomas.

análogo ao das restantes Universidades, porque expressamente excluídos do seu âmbito? Parece-nos que, se cursos que a lei prevê sejam em princípio politécnicos se integrarem em escolas verdadeiramente universitárias, ainda que não existentes em outras Universidades portuguesas, o respectivo nível e o espírito substancialmente universitários permitirão a sua integração na Universidade Católica. Problema mais delicado é o de uma federação com a Universidade de estabelecimentos, ou cursos, verdadeiramente politécnicos. Em princípio, porque o ensino politécnico (ou tecnológico, na designação proposta pela Câmara Corporativa) é também ensino superior, a ligação (sem confusão) ao universitário não parece repugnar ao seu espírito, podendo até a espaços revelar-se do pessoal qualificado necessário em qualquer domínio da economia nacional ou do exercício das artes”. Não se contesta o poder de direção do Estado (embora ele seja duvidoso, ao menos no exercício das artes…) sobre a economia nacional; mas porquê atribuir-lhe o domínio de um ensino profissional, cujas saídas não comanda em exclusivo, nem talvez de forma dominante? Nem se esquece que a lei pode exercer efeito injuntivo em relação ao Estado: mas não poderá pensar-se que esta fórmula legislativa esqueceria o princípio da subsidariedade e poderia ter também alcance estritamente permissivo e condicionante? Diversas outras disposições, que julgamos inaceitáveis (veja-se a base VI), podem até confirmar esta ideia. E a base IV refere-se apenas aos estabelecimentos públicos e particulares que, à data desta lei, ministrem ensinos pós-secundários. Como a base VIII, n.º 1, ao prever a colaboração dos órgãos da administração pública, organismos corporativos e empresas (porquê só destas entidades, e não de outras muito mais qualificadas?) na “instalação, manutenção e gestão dos estabelecimentos”, apesar de afirmar um bom princípio de gestão, só confirma o princípio. Sem prejuízo do respeito pelo parecer emitido, aliás sem favor (oucomentandobrilhante,esemduvidarmosdanecessidadeeurgênciadesteramodeensino,temosdemanifestaramaiordiscordânciarelativamenteàfilosofiaimplícitaqueneleparececonter-sesobreolugardoensinonãoestadualnonossosistemadeensino.Ora,sediplomascomoodecreto-leiquevimosoferecemmotivoparasatisfação,outrossurgemcomopostoespírito:nomínimo,haveráincoerênciadesistema;nomáximo,umaindiferença,quenãoseriadepresumirnemdejustificar,relativamenteàgravíssimasituaçãodoensinoparticularemPortugalNamedidaemqueopresentedecreto-lei307/71consagraumregimequepareceserdeoficializaçãopróximodela);enamedidaemqueseaceiteainterpretaçãopropostanotexto,quenospareceseramaisrazoáveleconformeaosobjetivosdodiplomaemanálise–será,contudo,possívelfederarnaUniversidadeCatólica(emborasemconfusãoentreensinouniversitárioeensinoprofissional)instituiçõesdeensinotecnológico..

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universitário;

pode haver vantagem em ministrar, em determinadas circunstâncias, ensino tecnológico num estabelecimento que seja e pode ser também útil que uma escola tecnológica ou politécnica veja assegurado o seu nível superior mediante a íntima cooperação e apoio de um estabelecimento universitário. Acresce que a possibilidade de ingresso de diplomados do ensino tecnológico em certas escolas superiores universitárias justificaria de sobejo tal coordenação – de mais a mais necessária para descongestionar os cursos universitários de vocações profissionais não universitárias, sem reduzir a função social supervisora e inspiradora do ensino superior que há-de caber à Universidade. A ligação íntima entre escolas politécnicas e escolas superiores –quer com uma especialmente, quer com o conjunto constitutivo de uma universidade – parece pois, não só possível, como desejável em certos casos. É mais delicado definir se, em tal caso, o presente decreto-lei seria ou não aplicável a tal escola. Parece-nos fora de dúvida que lhe seria aplicável a legislação reguladora do ensino politécnico. Mas exclusivamente? Ou, pelo contrário, em matérias aqui reguladas – concessão de diplomas, organização de cursos – poderia estar também sujeita ao presente diploma? As duas posições são defensáveis. Por nós, inclinamo-nos para a segunda – tanto mais que este diploma, subsidiário da legislação comum sobre o “chamado ensino particular”, parece vir inspirado mais pela natureza da instituição do que pelos cursos nela ministrados, e apenas regula aspectos esparsos, remetendo no demais para o Direito Canónico e para o Direito Nacional. Prevê-se ainda (alínea c) do n.º 1 do art.º 2.º) – para fins de investigação ou educação permanente, por exemplo – a criação de centros de investigação científica e institutos culturais, anexos

\ 87 aconselhável:

\ 88 aos estabelecimentos de ensino existentes. Neste caso, é claro que a competência para a criação cabe primariamente às autoridades universitárias ou – por motivos que adiante melhor explicaremos – às autoridades eclesiásticas competentes; embora (art. 6.º) esteja condicionada por autorização ministerial, talvez nem sempre rigorosamente necessária.

5. DO DIREITO APLICÁVEL À UNIVERSIDADE CATÓLICA

2. O Ministro da Educação Nacional resolverá, ouvida a Junta Nacional da Educação, as dúvidas suscitadas na execução deste Taldiploma.preceito suscita diversos problemas, alguns deles graves, que bem importa dilucidar desde já. Prevê-se neste preceito que, salvo quanto ao que se contém no Decreto-Lei n.º 307/71, a Universidade se regerá pela legislação do ensino particular; ao Ministro da Educação Nacional compete,

5. 1 – Da natureza da Universidade Católica decorre um outro problema importante, resolvido pelo Decreto-Lei 307/71: é o do direito subsidiário – ou seja, na óptica restrita em que devemos colocar-nos, o de saber quais as fontes de Direito que regerão o funcionamento da Universidade Católica e qual a sua hierarquização ou ordem de precedências. Resolve-o o artigo 12.º: Art. 12.º – 1. No que não estiver previsto pelo presente diploma a Universidade Católica reger-se-á, de harmonia com o disposto no artigo XX da Concordata de 7 de Maio de 1940, pela legislação sobre o ensino particular.

É certo que este mesmo decreto-lei não é um modelo de uniformidade e coerência de critério: nele aparece Ministro e reitor, Faculdades e institutos superiores… Cremos que o facto se deve a uma interpretação, pelo menos discutível, do n.º 7 da instrução n.º 36 do Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de 2 de Outubro de 1945. Aí se diz: “Emprega-se letra maiúscula inicial (…) 7.º.

contida neste diploma, não se suscitam tão-pouco dúvidas de maior. Sabe-se que a Igreja católica pretendeu que semelhante texto fosse legislado pelo poder civil (a isso alude o relatório do decreto-lei: “A Igreja católica pretende, nestes termos, ver definido o estatuto da Universidade cujas primeiras escolas por ela foram já fundadas no nosso país”)¹⁸. E é de presumir algum ¹⁸ É um mero pormenor (ou talvez não): mas, seja ou não seja, não queremos deixar de o relevar. Começou ultimamente a ser muito frequente nos diplomas oficiais e em fontes oficiosas escrever-se “igreja católica” (com minúsculas): é o que sucede neste decreto-lei, onde aparecem ao mesmo tempo Constituição Política, Estado, Universidade, Concordata, Constituição, Governo, entre outras. O mesmo aconteceu, entre outros, em todo o decurso do processo legislativo que preparou a lei sobre a liberdade religiosa, e até na Constituição (aí sob a forma, um tanto gongórica em português escorreito, “igreja católica, apostólica, romana”, com vírgulas e tudo, no artigo 45.º).

Nos nomes que designam altos conceitos religiosos, quando se empregam individualizadamente, com dispensa de quaisquer qualificativos: a Igreja (isto é, a comunhão dos fiéis, a comunidade dos cristãos, fundada por Jesus Cristo), …”. Dir-se-á então que Igreja deve ir grafado com maiúscula e igreja católica, por se encontrar seguido de uma qualificação específica, com minúscula inicial: e a caso,provadequeesteraciocíniofoiseguidoéquenorelatóriododecreto-leivemos“aIgreja”.Emtodooeindependentementedeoutrasregrasquepoderiaminvocar-senestahipótese(v.g.,on.º10.ºdestaregra36.ª),parece-nosqueraciocinaracontrariosensuconduz,comotantavezsucedecomtalformadeinterpretaçãodepreceitoslegais,aconclusãoerrada:ebemoprovaofactodeamesmaregraseaplicaràpalavraEstado,comosevênosseusexemplos.Gostaríamosdeaveraplicadaao“EstadoPortuguês”dequefalaaConstituição(veja-seanovaediçãooficial),designando-ode“estadoportuguês”…Afinal,éclaroque,aofalardeIgrejaCatólica,empregamosumalocuçãoqueconstituiumaunidadesignificativa.

ouvida a Junta Nacional da Educação, resolver as dúvidas suscitadas pela execução do diploma. Esta última intervenção apenas tem, pois, sentido para interpretar ou integrar o presente diploma, para tomar posição quanto aos seus critérios de execução ao aplicação. É ponto que nos cumpre abandonar agora, pois não levanta grandes dificuldades interpretativas (trata-se de uma interpretação administrativa, vinculante na esfera respectiva, mas não Quantoautêntica).àregulamentação

\ 89

Universidade Católica. Parece-nos um tanto exagerada a referência exclusiva, que nele se faz, ao art.º XX da Concordata, para definir ou inspirar todo o regime da Universidade Católica. Ela pretenderá dizer o seguinte: a) É livre a fundação de quaisquer estabelecimentos de formação ou alta cultura eclesiástica; o seu regime interno não está sujeito à fiscalização do Estado, devendo apenas ser a este comunicados os livros adotados de disciplinas não filosóficas ou teológicas e devendo as autoridades eclesiásticas cuidar que no ensino das “disciplinas especiais” se tenha em conta o legítimo sentimento patriótico português. Tudo isto consta do 3.º trecho do artigo XX da Concordata. Mas, porque se trata do regime especial, parece ser também aplicável o regime regra do 1.º trecho do artigo XX: embora dispensadas de fiscalização, podem ser oficializadas e subsidiadas. Este regime foi claramente pensado para estabelecimentos primários e secundários; não obstante, com diversas adaptações, foi tido em conta em diversos outros pontos do articulado do decreto-lei (cfr. art.os 7.º, 3.º, etc.) b) Nas outras escolas, a criação é livre (1.º trecho do artigo XX da Concordata); ficarão, porém, sujeitas, nos termos do direito comum, à fiscalização do Estado e podem, nos mesmos termos, ser subsidiadas e oficializadas.

\ 90 acordo haja estado na base da publicação das principais disposições do presente diploma. Ele é, pois – e no plano civil – a primeira chave de leitura do regime jurídico a que se encontra sujeita a

c) Mesmo nestas, porém, o ensino religioso não depende de autorização do Estado e pode ser livremente ministrado pela

5. 2 – Estas três conclusões que podemos extrair do art. 12.º, em conjunto com o art. XX da Concordata, não esgotam, porém, toda a problemática por ele suscitada. Designadamente, pode levantar-se o problema de saber se a Universidade Católica se encontra também sujeita ao artigo III da Concordata. E cremos que sim, por diversas razões. Antes de as expormos, cabe porém afirmar que não pretendemos com isto afirmar o Direito da Igreja a um estatuto especial privilegiado.

É doutrina da Igreja – esta particularmente precisada pelo Concílio, por especialmente adequada às sociedades pluralistas e aconfessionais do nosso tempo (não haverá ainda aqui excesso de europeísmo, apesar de tudo?) – que na medida do possível se submetam as suas instituições do Direito Comum, sem procurar para si privilégios. Em contrapartida, pede-se aos poderes civis que prescindam de poderes exorbitantes sobre aquilo que é essencial e próprio da vida eclesial – como a designação dos bispos, etc. Apenas visamos interpretar o que é, de momento, o regime da Igreja em Portugal (aliás, respeitado, como era imposição constitucional, pela base XVIII da Lei da liberdade religiosa).

\ 91

Acresce – e este parece-nos ser o maior erro de óptica que se contém na invocação (sobretudo exclusiva) do artigo XX da Concordata para inspirar este regime – que ele conduz a conclusões que podem chocar com o próprio espírito da Concordata, se não mesmo com a sua letra. Se a Universidade Católica é considerada uma “escola

autoridade eclesiástica ou pelos seus encarregados (devendo entender-se, pois, que está isento de fiscalização estadual). É matéria omissa mas – porque consta da Concordata, e ela tem de prevalecer – parece dever aplicar-se (aliás, por paridade de razão com o artigo 3.º, n.º 1 deste Decreto-Lei).

paralela às do Estado” – as quais podem ser livremente instituídas pelas “associações e organizações da Igreja” – fica sujeita integralmente à fiscalização estadual, exercida mesmo antes da fundação da escola (art. 7.º e segs. do Decreto n.º 37545, de 8/11/1949): esta tem de ser autorizada (embora a Concordata diga que podem ser livremente criadas e mantidas); e podem mesmo ser encerrados pelo Governo alguns dos seus estabelecimentos de ensino (o que contraria a natureza da Universidade Católica). Se fosse considerada “estabelecimento de formação ou alta cultura eclesiástica”, não poderia ser subsidiada nem oficializada (o que a Igreja não pretenderia); e perderia a faculdade de se dedicar a estudos de ciências humanas e morais, sem dúvida essenciais à sua finalidade específica. Deste dilema não se sai, se se pretender que só o artigo XX – invocado isoladamente, e com manifesta infelicidade – rege a Universidade Católica. Felizmente, porém, a adequação ao sistema concordatário, afirmada no relatório do decreto-lei, tem de ser entendida como um todo inspirador do diploma – o que implica a aplicação (e, em nossa opinião¹⁹, com manifesta e necessária prioridade) de outros preceitos, designadamente os artigos III e IV da Concordata. Vejamos melhor porquê. Foi o primeiro caminho acima referido que se seguiu. Ora ele (o da aplicação do primeiro trecho do art. XX) não parece poder ser seguido – pois respeita à fundação de escolas, não pela Igreja como tal, mas por associações e organizações religiosas. Há o que se poderia chamar fundação eclesiástica indireta. Ora, o cânone 1376 do Codex Iuris Canonici expressamente dispõe que só a Santa Sé tem o direito de instituir Universidades Católicas. O seu regime cabe ¹⁹ A argumentação expendida – por cuja forma nos responsabilizamos – está neste ponto longe de ser original: baseia-se num parecer inédito do Sr. Prof. Gomes da Silva, cujas razões não vimos até hoje rebatidas, e a quem prestamos viva homenagem.

\ 92particular

\ 93 primariamente, pois, no das “associações e organizações da Igreja”, contempladas no artigo III da Concordata, que este decreto-lei não teria o poder de afastar. Foi isso mesmo, aliás, o que sucedeu com o Instituto Católico Português – erecto canonicamente e objecto de simples comunicação do Patriarcado ao Governo Civil de Lisboa: a fortiori terá de suceder o mesmo com a Universidade Católica, muito mais intimamente aderente ao que é a essência da Igreja institucional.

Por outro lado, as escolas de fundação eclesiástica integram-se, como seu elemento fundamental, na organização da Igreja – expressão que são do poder eclesial de ensinar: muito particularmente o são as Universidades Católicas. O livro III do Código de Direito Canónico, após regular os sacramentos, o culto, os lugares e templos sagrados, ocupa-se na parte IV do magistério da Igreja (disciplinando sucessivamente a pregação, os seminários, as escolas canonicamente erectas (entre as quais se situa a Universidade Católica), etc.)²⁰. Basta este argumento sistemático para mostrar como a Universidade Católica não é um qualquer colégio de ensino médio: ela faz parte das organizações estruturais da Igreja, que visam realizar as suas finalidades primordiais (embora por formas variáveis consoante as épocas históricas)²¹. Em conclusão: nada pode opor-se a que se considere a Universidade Católica como uma das associações ou organizações em que a Igreja “pode organizar-se livremente”, tanto mais que a própria ²⁰ Também este argumento sistemático foi inspirado pelo referido parecer inédito, onde se demonstra claramente que o art.º III não se refere apenas aos órgãos centrais da Igreja (por exemplo, tem de abranger os seminários, como o pressupõem os art.os VIII e XX). Cfr., adiante, a nota 35. ²¹ Isto basta também para demonstrar como é inaplicável a uma Universidade Católica o regime do ensino particular, e se impõe enorme poder de adaptação ao aplicar o art. 12.º: por exemplo, como adotar os planos e programas do ensino oficial? (art. 12.º n.º 1 do Estatuto do Ensino Particular).

\ 94

Igreja prevê como tal a sua ereção (CIC can. 1376 e segs.); e pode entender-se que ela integra o exercício da sua função docente, que lhe é conatural enquanto a Igreja, tanto como a função sacramental e a função pastoral. O regime em causa abrange tanto associações como fundações (organizações): é ponto pacífico. Assim sendo, à Universidade Católica tem de se aplicar de pleno o que dispõe o artigo IV da Concordata: “As associações ou organizações a que se refere o artigo anterior, podem adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos por que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica”. Este o princípio geral, inderrogável pela lei ordinária (cfr. artigo 4.º da Constituição): a ele está, pois, sujeita a Universidade Católica. É óbvio, porém, que o reconhecimento oficial implica um certo número de contrapartidas. Essas foram estabelecidas no Decreto-Lei, em termos que reproduzem substancialmente o art. XX da Concordata: é uma forma de aplicação (ou integração – não interessa agora esmiuçar) legítima. Mas, quanto aos órgãos de execução, não pode fazer-se, sem mais, a analogia com o que se contém na legislação relativa ao ensino particular. Parece-nos que a melhor solução, dentro do espírito do nosso sistema jurídico, consistirá na aplicação, por interpretação extensiva ou integração analógica, do trecho do art. IV da Concordata que, reportando-se às atividades de assistência ou beneficiência exercidas pelas pessoas colectivas eclesiásticas referidas no art. III, determina: “ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo Direito Português estas associações ou corporações, que se tornará efetiva através do Ordinário competente e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza”. O princípio traduz

5.3 – De quanto foi exposto, cremos poder tirar as seguintes a)conclusões:Sópormanifesto erro se pode considerar a Universidade Católica basicamente sujeita ao art. XX da Concordata; a sede fundamental do seu regime concordatário reside nos art.os III e IV.

d) Só nestes termos deverá ser interpretado – e integrado – o art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 307/71

c) Os órgãos de aplicação do Direito respectivo devem também ser de duas origens – os de natureza estadual e os canónicos, consoante resulta do art.º IV da Concordata. Quanto aos afastamentos do regime concordatário pelo Direito Comum, podem ser desejáveis, e serão legítimos, se consentidos.

b) Assim sendo, a sua disciplina jurídica básica é de natureza jurídico-canónica – sem embargo do respeito, que o próprio Direito Canónico impõe, do que for aplicável das disposições civis.

\ 95 uma regra de equidade, não privilegiando as organizações da Igreja; mas, reconhecendo-a como poder, torna os seus órgãos executores indiretos do respeito pelo Direito do Estado²².

Acrescentaríamos ainda, como corolário, que o próprio espírito da reforma universitária em curso impõe que se aceitem como fonte jurídica de definição do regime da Universidade Católica os seus estatutos, indubitavelmente canónicos, e desprovidos de qualquer ²² A conjugação com o art.º XX da Concordata não deixará, porém, de causar dúvidas – a resolver em sede de adaptação...

\ 96 sanção ou homologação estadual. Por tudo isso, melhor fora que a redação do preceito em causa tivesse em conta estes elementos inderrogáveis do sistema jurídico, em vez de os omitir, sem se perceber bem por que motivos. De quando precede, decorre ainda que nos parece perfeitamente lícito que sejam criados cursos ou centros de investigação sem autorização²³ do Ministro da Educação (embora, decerto, a hipótese seja meramente académica): isso o impõem, quer o art.º III, quer o próprio art. XX da Concordata. Em tal caso, a sanção será, naturalmente, que a esse curso deixará de se aplicar todo o regime favorável de reconhecimento e outros benefícios estatuídos no presente diploma. Por seu turno, parece-nos que para o encerramento de escolas e execução de outras disposições que devam ser observadas do Direito português, este deverá tornar-se efetivo através da autoridade eclesiástica competente (art. IV da Concordata; para tanto serve também o n.º 2 do art.º 3.º, embora tal não seja claramente a sua intenção).

6. ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DIDÁTICOS

6. 1 – A este respeito, o regime estabelecido é simples – e decorre do espírito concordatário, por duas vias: uma, que se preferiu seguir, ²³ Não será, porém, a forma de Acordo entre o Estado e a Igreja a mais desejável para o assunto de tanta importância? Posta a questão em abstrato, era lícito responder que sim. Por várias razões: em primeiro lugar, a importância da matéria bem o justifica; em segundo lugar, obter -se-ia assim maior estabilidade para todas as garantias que não constem expressamente da Concordata, pois qualquer das partes não poderia modificá-las unilateralmente (ou alterar a sua interpretação do texto concordatário, por força prevalente) – ao menos sem enfrentar consequências muito mais sérias. Mas, de qualquer maneira, é um acordo substancial que estará na base do regime que se alcance,atravésdosprocessosestabelecidospara“autorização”e“regulamentação”deatividades.

2. O reitor da Universidade manterá o Governo informado sobre qual a autoridade eclesiástica competente para os efeitos deste artigo. Quanto as outras Faculdades e institutos superiores (os referidos na alínea b) n.º 1 do art. 2.º), a sua criação depende de autorização do Ministro da Educação, ouvida a Junta Nacional da Educação, sob proposta da Universidade²⁴. O diploma de autorização – que ²⁴ Cfr., supra, n.º 5. 3.

A autonomia das escolas (e do ensino) de disciplinas teológicas, filosóficas e jurídico-canónicas é completa – apenas devendo ser comunicadas as disciplinas (e respectivos programas) que não tenham esse carácter. Assim o dispõe o art. 3.º, com claro respeito pela autonomia de organização da escola não estatal e pelo poder tutelar do magistério da Igreja nas esferas que lhe são próprias:

conduziriam, no essencial, a regimes paralelos, se não idênticos, o que só comprova a justeza e coerência da regulamentação.

\ 97 a da aplicação direta do art. XX; outra – que nos parecia melhor, mas afinal conduz ao mesmo resultado – a da execução do art. III, com aplicação analógica do regime do art. IV. Afinal, uma e outra

Art. 3.º – 1. A organização e funcionamento das Faculdades e institutos superiores referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º são livremente fixados pela autoridade eclesiástica, devendo o reitor da Universidade Católica comunicar ao Ministro da Educação Nacional, até 30 de Novembro de cada ano, o elenco das disciplinas aí professadas e os programas das cadeiras e cursos que não sejam de carácter restritamente teológico filosófico ou jurídico-canónico.

2. Estas Faculdades e institutos superiores observarão as normas jurídicas por que se regem as restantes Universidades portuguesas quanto a recrutamento do pessoal docente, nível do ensino ministrado, habilitações de ingresso, atividades circum-escolares, serviços médico-sociais universitários e, de um modo geral, quanto a todos os aspectos pedagógicos.

\ 98

O espírito destas disposições – também ele inspirado pela ideia feliz de “respeito pelos princípios fundamentais do sistema educativo português”, a que se alude no relatório preambular – visa decerto ²⁵ A razoabilidade desta regulamentação pressupõe, claro, mais amplos poderes concedidos ao asEstado,osquaissepreveem,paraquealeiqueatribuiumbenefícioimponhacorrespondentementenecessáriasobrigações.Oregimeaproxima-sealiás,emboapartedoquesedispunhanoProjetodeEstatutodaEducaçãoNacional,doProf.GalvãoTelles,sobreavalidaçãodosexamesediplomasdosestabelecimentosparticularesdeensino.

pressupõe decerto um acordo de base entre as duas partes quanto ao essencial – definirá o programa do curso respectivo, o regime de apreciação do mérito escolar e a forma de atribuição de títulos e diplomas. Estas escolas superiores devem ainda observar as normas jurídicas por que se regem as outras Universidades portuguesas, quanto às matérias referidas no n.º 2 do art.º 4.º (definidas de forma algo vaga e, porventura, demasiado ampla)²⁵: Art.º 4.º – 1. A instituição e reforma das Faculdades e institutos superiores mencionados na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º dependem de autorização do Ministro da Educação Nacional, ouvida a Junta Nacional da Educação, sob proposta da Universidade em que se definam os programas dos cursos e os regimes a observar quanto à apreciação do mérito escolar e à atribuição de títulos e diplomas, aspectos que serão regulamentados pelos diplomas de autorização.

Estranhar-se-á que esta autorização de carácter regulamentar se estenda mesmo aos centros ou institutos que funcionem junto das

Universidade

assegurar a finalidade perfeitamente necessária de garantir que, pela qualidade do ensino, a UCP não se afaste da regra geral da portuguesa nem desça abaixo do seu nível normal ou ofereça menores garantias aos seus alunos. O princípio é certo e indubitável. A forma, porém depende afinal do que acima se disse acerca do Direito aplicável à Universidade Católica: se por “observar as normas jurídicas” se entender assegurar os princípios essenciais (sem prejuízo de o Direito canónico poder conter disciplina diversa, que não ponha em causa os preceitos fundamentais do Direito local), então o regime parece-nos aceitável; se se pretendesse que se traduziria no respeito individual e analítico por cada preceito, sem lugar para regimes especiais – isso não só seria inconveniente, dotando-nos de mais uma universidade de espartilho único e privando-nos das vantagens da diversificação, da autonomia do ensino particular livre, como contrariaria o Direito Canónico e o regime concordatário. Nada na letra do Decreto-Lei nos diz que o espírito seja diverso do que defendemos; antes a referência expressa ao regime concordatário e as tendências diversificadoras da projetada reforma do sistema escolar apontam nessa direção.

6.2 – Quanto aos centros de investigação e institutos culturais, dispõe o art.º 5.º: Art.º 5.º A criação e funcionamento dos centros de investigação ou institutos culturais dependerá da aprovação dos respectivos regulamentos pelo Ministro da Educação Nacional, ouvida a Junta Nacional da Educação.

\ 99

Art.ºpermanente:6.ºA

Universidade Católica poderá realizar cursos, conferências e outras atividades de educação permanente, designadamente de extensão universitária, que terão como finalidade principal a divulgação do pensamento cristão dentro das disciplinas nela professadas. Parece-nos de louvar a liberdade atribuída à educação permanente, bem como a ênfase em que ela é colocada, como expressão das necessidades da civilização atual e da responsabilidade social da Universidade. Afigura-se-nos mesmo feliz a referência incidental ao “pensamento cristão” – pondo de lado uma ideia de cultura católica que hoje, face à nova formulação das relações entre Cristianismo e cultura definida pela Gaudium et Spes, seria equívoca quando não perigosa. Só não concordamos com “a finalidade principal” de divulgação do pensamento cristão: a finalidade principal destas atividades tem de ser a de qualquer modalidade de educação permanente; e seria triste que a função de elaboração e comunicação cultural se visse colocada afinal ao nível da mera “divulgação” de

escolas de Teologia, Filosofia ou Direito Canónico – restringindo assim a sua maior autonomia de funcionamento. É, porém, de notar que estes diplomas serão meramente regulamentares, em nada vinculando o espírito ou a liberdade da investigação. Apenas se pode duvidar da conveniência de submeter a um longo processo burocrático de regulamentação a criação dos centros de investgação – o que, num país onde a criatividade científica não abunda, pode restringir em vez de fomentar a pesquisa.

\ 100

Ao invés – e dentro do mesmo espírito de privilegiar o ensino face à investigação – é muito livre o exercício de atividades de educação

Art.º 7.º – 1. As Faculdades e institutos superiores que integram a Universidade Católica poderão atribuir, nas condições constantes dos respectivos diplomas constitutivos, os graus de bacharel, licenciado e doutor, gozando os correspondentes títulos e diplomas do mesmo valor que os das restantes Universidades portuguesas.

\ 101 qualquer corrente de pensamento, concepção da vida ou escola cultural – por mais digna que seja. 7. EQUIPARAÇÃO DE DIPLOMAS

2. A concessão de graus académicos por parte das faculdades e institutos superiores referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º dependerá, porém, da participação nos respectivos júris de exames, dentro das condições que vierem a ser fixadas, de elementos do corpo docente das Universidades oficiais. É este, sem dúvida, um dos dispositivos mais felizes de todo o Decreto-Lei, pois adota uma posição aberta e (é de esperar)

Temos ainda a aludir a esta matéria. Infelizmente sobrevalorizada em relação a outros aspectos fundamentais da atividade universitária, a concessão do diploma é apenas a atestação de uma frequência universitária, a qual devia valer mais pelos frutos e efeitos que como prova documental. Sabemos, porém, como uma particular deformação prática tornou o diploma em fim principal da frequência universitária; o que, reforçado pelo carácter profissional ou quase profissional de certos diplomas universitários, tornou esta matéria – bem como as conexas questões de reconhecimento de estudos e validade dos graus académicos – pedra de toque da medida em que o ordenamento estadual acolhe ou protege certa instituição de ensino particular. Regula-a o art.º 7.º:

relativamente a outras situações de ensino não estadual. Esta disposição – aliás dentro do espírito do art.º 34.º da nossa Constituição – corresponde afinal à oficialização de cursos ministrados na UCP. Em relação a todas as escolas (Faculdades ou Institutos superiores) se prevê a possibilidade de atribuição de graus de bacharel, licenciado e doutor, nas condições constantes dos respectivos diplomas (legais ou canónicos) constitutivos. Para as escolas estritamente eclesiásticas, o diploma constitutivo será canónico; para as restantes²⁶, terá carácter civil, embora naturalmente deva respeitar as condições essenciais da estrutura jurídico-canónica da escola, que foi reconhecida tal como é. Finda assim a capitis deminutio de que certos diplomados, com formação inegavelmente “superior” (caso dos diplomados em Teologia), sofriam face ao ordenamento civil; deixa de se manifestar uma desconfiança crónica em tudo o que não seja formação ministrada pelo Estado, a qual não é uma das menores causas da subalternidade do ensino particular entre nós, pelo nível como pelas condições de exercício a que se viu Atrever-nos-íamosreduzido.a

\ 102precursora

reputar excessiva a condição do n.º 2.º: a necessidade de participação de elementos do corpo docente das Universidades oficiais (não, claro, dos que exerçam docência cumulativamente nas duas escolas – ao menos a esse título) condiciona a equiparação de graus e diplomas, quanto às escolas ²⁶ A aceitar-se a interpretação que propusemos relativamente à federação (não integração) de escolas politécnicas, seria ainda assim duvidoso que se lhes aplicasse automaticamente este preceito: se bem que ele fale de institutos superiores (designação equívoca, mas talvez susceptível deextensão),apenasparececontemplarasescolasintegradasenãoasfiliadasoufederadas(numaterminologiaque,naturalmente,estamostentandocriaremportuguês).

A observação refere-se ao despacho ministerial sobre as condições de equiparação da licenciatura em Filosofia por Braga, há pouco proferido²⁷: parece evidente que ele apenas dispõe (e em termos ²⁷ Transcrevemo-lo no final (apêndice II).

\ 103 não eclesiásticas. Se nos lembrarmos, porém, de que em países como a França – onde foi igualmente vivaz o preconceito estatista – o regime é, ainda hoje, muito menos aberto, poderemos esperar que, quando a Universidade se encontrar plenamente consolidada e dispuser de um corpo docente prestigiado e dotado das mesmas qualificações académicas que o das escolas estaduais, venha a merecer plenamente a confiança nos seus graus, tanto por parte do Estado como pela sociedade; e veja converter-se esta semi-oficialização numa oficialização plena. Cabe-nos apenas fazer dois votos e uma observação. É muito de desejar que este espírito de equiparação de graus, impedido tanta vez por mesquinharias burocráticas, venha a ser alargado a outras situações e hipóteses, possibilitando também por essa via o aproveitamento de valores de que o país dispõe: pensamos, designadamente, na equiparação, em condições a definir, das habilitações de vária qualidade conferidas por seminários. O segundo voto é que, naturalmente, o mesmo são espírito venha a prevalecer quanto a equiparações para efeitos profissionais (decididas pelo Conselho de Ministros) e quanto a equiparações da frequência de cadeiras em cursos diferentes (já que entre Faculdades diferentes, relativamente ao mesmo curso, nem parece possível pensar que haja um segundo de hesitação quanto à possibilidade de transferência); uma e outra consequência resultam decerto necessariamente deste art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 307/71.

consequência

\ 104 muito restritivos, permita-se-nos o desabafo) relativamente aos cursos concluídos anteriormente à entrada em vigor deste diploma. Para os restante, é indubitável que apenas se aplica o n.º 1 do art.º 7, que não pode ser condicionado ou regulamentado por qualquer preceito que não o “diploma constitutivo” (ou suas alterações). Ora, neste caso, o diploma constitutivo é exclusivamente canónico.

8. 1 – O mais importante dessa regulamentação reporta-se aos benefícios de vária natureza que podem ser-lhe concedidos, como da declaração de utilidade pública (art.º 1). Dessa matéria se ocupam os art.os 10.º e 11.º: Art.º 10.º Relativamente à aquisição e fruição dos seus bens e às atividades que exerça para a realização dos seus fins, a Universidade Católica goza de isenção de: a) Impostos, contribuições ou taxas do Estado e das autarquias locais, incluindo o imposto do selo; b) Preparos, custas e impostos de justiça, em processos que corram em quaisquer tribunais em que seja parte principal, assistente ou interveniente. Art.º 11.º O Ministro da Educação Nacional poderá atribuir subsídios à Universidade Católica, devendo o diploma de concessão indicar os fins a que os mesmos se destinam.

8. REGULAMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA A regulamentação administrativa da UCP contida no Decreto-Lei apenas abrange, como é de razão, a matéria relativa às relações com as autoridades estaduais competentes.

Regulamentando uma condição de sobrevivência do ensino particular – que lhe é devida, aliás, pelas suas funções de interesse nacional – o art.º 11.º dentro de regime equilibrado, prevê a concessão de subsídios à Universidade Católica. Não distingue subsídios de ²⁸ Algumas observações de mera técnica fiscal. A referência às contribuições parece inútil em Direito português: as diversas “contribuições” são verdadeiros impostos; e as contribuições especiais (designadas no Brasil de contribuições, pura e simplesmente) carecem de regime legal diferente do dos impostos. Todos os nossos “tributos” ficam cobertos, na atual técnica legislativa, pelaexpressãoimpostosetaxas,sendotudoomaisredundanteedesnecessário(salvoainclusãodoimpostodeselo,quedesvanecefrequentesdúvidaspráticasrelativasasituaçõesmuitofrequentes).Aalíneab)doart.º10.º(exceptoquantoaospreparos)apenascobretaxasjudiciais,asquaisjáestãoabrangidasnaalíneaa),quenenhumelementolevariaarestringiràstaxasadministrativas.Enfim,osimpostosdevidosainstitutospúblicosdaadministraçãocentralcostumamentender-seintegradosnaexpressão“impostosdoEstado”.

O primeiro benefício consiste na concessão, em termos muito amplos, de diversas isenções fiscais²⁸: trata-se de disposição corrente em relação às mais diversas instituições declaradas de utilidade pública, e particularmente justificada pela finalidade educativa e cultural da UCP. A alínea a) do art.º 10.º pretende visivelmente abranger todos os impostos diretos e indiretos (destacando, dentre estes, o imposto de selo por serem frequentes as dúvidas a seu respeito). É duvidoso que a fórmula abranja o imposto complementar, secção B (mas, dado que este visou substituir o antigo imposto sucessório de desamortização, previsto no art.º 35.º do Código Civil de 1867, pode questionar-se devesse abrangê-lo). Tanto se refere a aquisição de terrenos e prédios urbanos, como de valores mobiliários, e respectiva fruição; mas não se mencionam (ao invés do art.º 11.º do Acordo Missionário) expressamente os impostos devidos por atos de alienação (motivo por que a isenção não indica o imposto de mais-valia). De qualquer modo, a previsão legal aproxima-se do que sucede para outras pessoas colectivas declaradas de utilidade pública, ou de utilidade pública administrativa geral; e vai mais além, por isso mesmo, do que o art.º VIII da Concordata.

\ 105

\ 106 instalação, de funcionamento ou quaisquer outros, por – com razão –isso ser desnecessário. Nem alude à concessão de créditos sobretudo por, ao que se crê, eles não existirem no Direito vigente²⁹

8. 2 – Por outro lado, definem-se os bens constitutivos do património da Universidade Católica, o que é, não apenas útil para definir a sua capacidade patrimonial, como necessário para delimitar o âmbito de várias isenções fiscais concedidas. Ao mesmo tempo, clarifica-se o regime legal, quer das transmissões de bens do Instituto Católico Português para a Universidade Católica, quer das atribuições patrimoniais (doações ou deixas testamentárias) em benefício da Universidade instituenda³⁰,³¹. É o que visa o art.º 9.º:. Art.º 9.º O ²⁹ Outros benefícios, previstos em leis análogas, não se acham aqui inscritos, decerto porque se entendeu serem inadequados ou supérfluos. Com, certeza pareceu desnecessário, dada a natureza eclesiásticos,quedaUniversidadeCatólica,umadisposiçãoexcepcionalemmatériadedespejo,comoé,porexemplo,aqueoart.º7.ºdoDecreto-Lein.º40690de18deJulhode1956,estabeleceparaaFundaçãoGulbenkian:“SãoconsideradasdeutilidadepúblicaasexpropriaçõesdeimóveisqueforemindispensáveisàrealizaçãodosfinsdaFundação,sendoaplicávelaodespejodeinquilinosdosprédiosquelhepertencerem,quandoasinstalaçõesporelesocupadassetornemindispensáveisàconsecuçãodosreferidosfins,oregimedoDecreto-Lein.º23465de18deJaneirode1934,salvoquantoaoprazo,queserádeseismeses,equantoàindemnizaçãodevidaaoarrendatáriodespejado,serádeterminadadeharmoniacomodispostonoart.º69,alíneac)n.º3daLein.º2030de22deJunhode1948”.NemseprevêobenefícioprojetadoparaoEstatutodaEducaçãoNacional,dapossibilidadedecolocaçãodeprofessoresdoensinopúbliconadocênciadaUniversidadeCatólica,emregimedecomissãodeserviço,emboratalfacilidadepudesserevelar-seproveitosa.Dequalquermodo,parecequeoregimedefuturosestabelecimentosdeensinoparticulareventualmentedeclaradosdeutilidadepúblicaviráaaplicar-seàUniversidadeCatólica.Tão-poucoseprevêaisençãodeimpostoprofissionaldosrendimentosdosprofessores–emborapudessedefender--sequeeladeveriaincluir-senoregimegeraldoensinoparticulareque,quantoaosprofessoreselessãoprópriosdoseu“múnusespiritual”(art.ºVIIIdaConcordata).Nadasedispõe,tão-pouco,sobreadeclaraçãodeutilidadepública,emordemàexpropriaçãolitigiosadealgunsterrenos;emborasejulguequeaeducaçãobemjustificariaumregimedeexpropriaçãourgente,talcomocertasempresasdeinteressecolectivoeentidadepúblicas.³⁰AreferênciaaosbensedireitosdoInstitutoCatólicoPortuguêsvisaidentificarumapessoacolectivacanónicajáexistente,emtermoscomunicadosaoGovernoCivildeLisboa,comaUniversidadeCatólica.Aquestãotemmuitaimportância.InteressaparaocasodeoInstitutotersidobeneficiadocomherançasoulegadosquefossemdiretaouindiretamentedestinadosàUniversidadeCatólica,osquaissetransmitemparaelaipsojuro.Einteressa,também,paraseprocederàtransferênciadosterrenosadquiridosnostermosdoDecreto-Lein.º45382,de23/XI/1963,que,declarandoessesterrenosdestinadosàUniversidadeCatólica,oscedeupropriamenteaoPatriarcadodeLisboaenãofezqualquerreferênciaaoInstitutoCatólicoPortuguês,nemportantooidentificacomaUniversidadeCatólica.

³¹ Importaria ainda contemplar a hipótese da criação de uma pessoa colectiva de tipo fundacional, autónoma e personificada, destinada a colher fundos para a criação da Universidade Católica e a, perdurando no tempo, garantir o seu sustento e tomar a cura da sua administração financeira.

(eventualmentePareceriaporventuramaiseficienteemelhoracolhidapeloespíritopúblicoumafórmuladestetipoextensivaaoutrasatividadesculturaisdaIgreja)doqueaqueobrigasseaprópriaUniversidade,compreocupaçõesdiversasemaisaltas,aterdecuidarconstantementedasuamanutençãofinanceira.Eafigurar-se-iaademaisregradeboaadministraçãoadenãoconfiarasuamanutençãoapenasàorgânicageraldaIgreja,masaumainstituiçãoespecializada,deDireitoCivilefinsdeutilidadepública.Apesarde,aoptar-seporestaformadegestão,asrazõesparaaintegralaplicaçãodosbenefíciosconcedidosàUniversidadeCatólicaprocederemtambémparaaFundação,nadasedispôsaesserespeito.Talinstituiçãocareceria,pois,deregulamentaçãoautónoma–semespecialidadesdemaiorrelativamenteàsjáhojefrequentesfundaçõescomfinalidadesculturais.

\ 107

2. Todos os assuntos respeitantes à Universidade Católica que sejam submetidos ao Ministério da Educação Nacional correrão pela Direção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes.

património da Universidade Católica é constituído pelos bens que diretamente lhe pertencem, por todos os bens e direitos do Instituto Católico Português, que para ela se transmitem, e ainda por todos os bens que hajam sido doados ou deixados à Igreja, ou a qualquer das suas organizações ou autoridades com expressa menção de deverem ser aplicados aos fins da Universidade Católica.

8. 3 – Enfim, dispõe-se que a representação da Universidade junto das autoridades públicas cabe ao reitor (ou, como é evidente, a quem suas vezes faça), ao qual especialmente compete velar pela execução deste diploma (como, naturalmente, pelo respeito das normas legais e canónicas que a Universidade Católica deve acatar); e define-se, acertadamente, a competência da Direção-Geral do Ensino Superior para encaminhar e instruir os processos e assuntos respeitantes à U.C.P.

Art.º 8.º – 1. A representação da Universidade Católica junto das autoridades públicas ficará a cargo do respectivo reitor, a quem especialmente compete velar pelo cumprimento do presente diploma.

Nestas simples disposições contém-se – e concretizada, transcendendo o mero verbalismo com que, latinos e mediterrânicos, nos embriagamos facilmente – toda uma série de desígnios novos acerca da educação em Portugal. Define-se o estatuto civil de uma Universidade nova, que vai nascendo sob o seio da Igreja e se abre a novos estudos mediante a ³² Como afirma o relatório do Decreto-Lei: “De acordo com artigo 44.º da Constituição Política, cumpre ao Estado conceder apoio ao ensino não oficial, “quando os seus programas e categorias do respectivo pessoal docente não forem inferiores aos dos estabelecimentos oficiais similares” (...). Procura-se que as medidas constantes do presente diploma respeitem os princípios constitucionais e se mostrem adequadas ao sistema concordatário. Distinguem-se para esse efeito os estabelecimentos destinados ao ensino eclesiástico dos que têm por fim o ensino de nível superior paralelo ao do Estado. Em relação aos primeiros, limita-se este decreto-lei às referências indispensáveis, deixando à Igreja autonomia, tanto no que toca à sua organização, como ao ensino neles ministrado, de harmonia com as disposições do n.º 3 do artigo XX da Concordata. Quanto aos segundos, atende-se ao preceito do n.º 1 do mesmo artigo e adotam-se as providências consideradas necessárias para a garantia dos princípios fundamentais do sistema educativo português, prevendo-se que venham a ser objecto de regulamentação nos respectivos diplomas constitutivos os aspectos pedagógicos e administrativos específicos de cada estabelecimento da Universidade”.

Apesar das críticas que fomos fazendo pelo caminho, ao concluir teremos de acentuar gostosamente o saldo muito positivo deste diploma legal. O espírito do Decreto-Lei n.º 307/71 é, afinal, de essência bem simples; ao abrigo do que dispõe o art.º 44.º da Constituição, estabelece-se um regime conforme aos princípios: reconhecimento do ensino, sem fiscalização, tutela ou outra forma de interferência estadual, para as escolas cuja atividade é inerente à própria vida da Igreja; reconhecimento mediante autorização, regulamentação do Estado e sujeição aos princípios fundamentais do sistema educativo português, para as demais³².

\ 108 9. CONCLUSÃO

³³ No Vol. II dos Trabalhos preparatórios do Estatuto da Educação Nacional (Lisboa, 1969), o relator, Dr. António Ávila, propõe uma distinção entre duas categorias de ensino particular (p.201):oensinooficializado(subsidiadooureconhecido),“aquelequeéorganizadoporparticularesoupelaIgrejaefunciona,noqueserefereaprogramas,meiosdeensinoehabilitaçõesdopessoaldocente,emcondiçõesanálogasàsdoEnsinoOficialoureconhecidaspeloEstado,podendoconferiraosseusalunosdiplomascomvaloroficialerecebersubsídiosinscritosnoorçamentodoEstado”;eoensinolivre,“oqueéorganizadoeorientadoporparticularesoupelaIgreja,commaiorliberdadedeação,massemodireitoasubsídiosregulareseàconcessãodediplomascomvalidadeoficial”.

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contribuição de uma experiência de educação que – na Igreja e em suas congregações – é multissecular e universal: feliz combinação de tradição e progresso, única forma de realizar uma verdadeira

Do mesmo passo, fazendo tábua rasa do preconceito anticlerical e estatista que marcou o nosso ensino – e a nossa cultura – desde o século XVIII, ultrapassa-se a inútil e nociva querela das escolas, que só tem impedido este País de ganhar algumas batalhas na inclemente guerra da educação. Todas as conquistas, porém, fazem contrair novas responsabilidades: da Universidade e da Igreja, na realização dum desígnio nacional com que comprometeram; do Estado, na promoção crescente, depois deste primeiro passo, do ensino particular, convertendo-o em verdadeiro ensino livre³³.

Ao reparar erros do liberalismo e da I República (que ensombraram uma obra educativa de grande visão mas, pelas condições gerais do ambiente, pouco eficaz), criam-se condições para reintegrar a cultura portuguesa, num domínio cuja importância cultural os países civilizados reconhecem, e possibilita-se-lhe a recuperação de um atraso que a diminui em confronto com as estrangeiras e que afeta, aliás, numerosas outras zonas culturais.

Volta também o Estado a reconhecer – e agora, colocando-a sob a responsabilidade da Igreja – a dignidade universitária da Teologia.

universitária, que quase se confunde com a da cultura ocidental.

Universidade que o seja nova, mas sem deixar perder a essência

Parece-nosqueambososestatutosseintegramnumconceitodeliberdadedeensinoque,emparte, lhes é comum: pois as instituições e os pais devem escolher entre organizar e utilizar escolas não reconhecidas nem subsidiadas, ou escolas reconhecidas e subsidiadas. Sempre que a oficialização ou semi-oficialização seja possível, como regra, encontramo-nos ainda perante um sistema de ensino livre: as vinculações resultantes dos benefícios oficiais, que em regra existirão, bem podem respeitar ampla margem de manobra das instituições, que continuarão a ser livres. Pode até dizer-se que a oficialização facultativa, sem condições além das fundamentais, constitui a expressão mais acabada da liberdade do ensino (como se vê, no mesmo estudo, no regime escolar de diversos países europeus).

³⁴ A solução adotada no art.º 8. n.º 2 (atrás, n.º 8.3) corresponde, de algum modo, à que a nova Lei Orgânica do Ministério da Educação Nacional (Decreto-Lei n.º 408/71, de 27 de Setembro) consagrou para o ensino particular em geral. Com efeito, a orientação pedagógica da educação pré-escolar, do ensino básico e do ensino secundário particulares cabem, respectivamente, à Direção-Geral do Ensino Básico para os dois primeiros (art.º 14, n.º 1, al. c) e à Direção-Geral do Ensino Secundário (art.º 13.º, n.º 1, al. c), ambas em colaboração com a Inspeção-Geral do Ensino Particular. Esta orientação, conforme à ideia de criar um verdadeiro sistema nacional de ensino (como lhe temos chamado) – apto a integrar ensino oficial e ensino particular – atribui contudo à Inspeção-Geral do Ensino Particular competência para coordenar, auxiliar e fiscalizar apenas o ensino não superior, fora dos “estabelecimentos públicos”, com excepção dos sujeitos a regime concordatário e dos estabelecimentos do ensino superior (art. 15.º, n.º 1), cabendo-lhe ademais a orientação pedagógica do ensino particular com planos de estudos próprios, cada vez mais pujante e variado, e “colaborar na orientação pedagógica” dos estabelecimentos com planos de estudos oficiais, exercida pelas Direções-Gerais anteriores (art.º 15.º n.º 2). A Direção-Geral do Ensino Superior, essa, tem competência exclusiva, pedagógica e didática, relativamente a todo o ensino superior, seja público, seja particular (art.º 12.º n.º 3), sem intervenção da IGEP. É esta a boa doutrina: quer pela diversidade dos problemas suscitados pelos ensinos superiores não públicos, quer pela sua diferenciação relativamente aos que são próprios da IGEP, quer devido à desejável existência de autonomia em todos os estabelecimentos de ensino superior, à necessidade delhesassegurarmaiornívelemaisgarantiaseàdispensabilidadedafiscalização,tantasvezesdepormenor,aexercerpelaICEP.Assim,oensinosuperiornãopúblico,porquesemi-oficializadoouoficializado,estarámaisdiretamenteintegradonosistemanacionaldeensino,compreendendo-seentãoquesejamenoslivre.

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Acresce que a UCP colabora na realização de um importante desígnio educacional, sendo a primeira das nossas instituições de ensino superior que tem fundado escolas fora das cidades universitárias da Metrópole. Assim contribui para a disseminação geral da cultura, facultando o acesso ao saber a pessoas oriundas de regiões tradicionalmente desfavorecidas e realizando uma democratização regional da cultura que bem necessária é, nesta época em que se agravam as desigualdades entre regiões e progressivamente se desertifica o interior. É esta a forma ideal³⁴ de inserção da escola particular no sistema nacional de ensino.

\ 111

O reconhecimento duma específica instituição da Igreja³⁵ dando-lhe estatuto civil adequado pode e deve anunciar o início duma nova linha de ação educativa. Pois só quando o ensino particular for plenamente integrado num sistema nacional de ensino, diversificado e coerente, teremos mobilizado todos os recursos disponíveis, teremos empenhado todas as nossas instituições e todos os portugueses para responder ao mais urgente desafio nacional – que é também, porventura, aquele em que um passado remoto, com erros seculares acumulados de uma parte e de outra, mais carece de uma aragem forte e nova. Que terá de soprar. ³⁵ Voltamos a colocar o problema de saber se uma pessoa colectiva, associativa ou fundacional, poderá ser instituída à sombra do art.º III da Concordata. Apesar deste texto expresso, tem sido diverso o ensino do Sr. Prof. Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, 8.ª, ed., com a colaboração do Prof. Freitas do Amaral, Lisboa, 1968, p. 375; cfr. 9.ª ed.): “(...) a Igreja não pode erigir em pessoas morais ou associações os institutos culturais, educativos ou com outros fins (o próprio Código de Direito Canónico só prevê os fins religiosos ou caritativos”. Ora, salvo o devido respeito, isto não é exato: pois se é certo que a Igreja não pode erigir canonicamente, por alheios aosseusfinseatividades,partidospolíticosousociedadescomerciais,podefazê-lorelativamentea (cân.diversasassociaçõesouinstitutoseducativos,entreosquaisseincluemasUniversidadesCatólicas1375C.I.C.).Emespecialarespeitodasfunçõesbeneficentesouassistenciaisaparecemaisamplamentefundamentadaamesmaopinião(Prof.MarcelloCaetano,Dasfundações,Lisboa1962,p.65esegs).Asuaideiabásicaéqueoart.ºIIIdaConcordata,aofalarde“Institutosreligiosos”,senãorefereaqualquerinstituto(fundação),masapenasàsentidadesreferidasnocânone99doCodexIurisCanonicide1917(comexclusão,portanto,docân.1489C.I.C.,entreoutras).AintençãodosnegociadoresdaConcordata,noentenderdesteilustreautor,nãoconsistiriaemfurtaràfiscalizaçãoeaopoderdedecisãodasautoridadesestaduaistodaapessoacolectivaqueseconstituísseaoabrigodoDireitoCanónico,masapenasquandofosse“especificamentereligiosa”(“igrejas,benefícios,seminárioseoutrosquetenhamporobjectofinsmarcadamenteprópriosdaIgreja,paraformaçãodoclero,sustentaçãodocultoousufrágiodasalmasdosfiéis”,op.cit.,p.68).Istoresultariaaindadedoistextos,cujostermosforamfrutodeentendimentoentreasautoridadeseclesiásticaseascivis.OCódigoAdministrativorestringeoconceitode“associaçõesreligiosas”àspessoasmoraiscolegiais(art.º449.osa453.º),tratandoàparte(art.º454.º)dosinstitutosdeassistênciaoubeneficênciafundados“porassociaçõesreligiosas”,sujeitando-osaoregimelegaldosinstitutosdeutilidadelocaldefinsanálogos”.EoDec.-Lein.º39449de24/11/1953,queestabeleceoregimedatomadadecontaspelocumprimentodos“legadospios”,defereexcepcionalmente,noseuart.º3.º,competênciaàsautoridadeseclesiásticaspara“tomarcontadocumprimentodoslegadospiosdestinadosafinsdareligiãocatólica”.Estepreceitoseria,aliás,diretamenterelevanteparaonossocampo,porcompreender(art.º4.ºdoDec.-Leicit.)deixasdestinadasà“criaçãodeobrasdeassistência,previdênciaeeducaçãoouafinsanálogos...”.Ora,entendeoProf.MarcelloCaetano,talregimeapenasabrangeriaasinstituiçõesdefimespecificamentereligioso,destinadas

112àlivreorganizaçãointernadaIgreja,enãoàsqueseintrometamemfinsprosseguidospeloEstado,“comoseriamosdeculturaemgeral,deassistênciaoubeneficênciapública”.Invoca,porfim,oart.ºIVdaConcordataque,aotratardasassociaçõesouorganizaçõesqueseproponhamtambémfinsdeassistênciaebeneficiência,dizqueficarão,naparterespectiva,sujeitasaoDireitoportuguês.OSr.Dr.RibeiroTeixeirarestringeaindamaisofimreligiosoa“fimculturaldaIgrejaCatólica”(LegadosPios,Lisboa1959,p.39-41),comoquedemodoalgumpodemosconcordar.AscontasrespeitantesaesteslegadosseriamfiscalizadaspelaautoridadecivilenãopeloOrdinário;e,deigualmodo,oreconhecimentodepersonalidadeaumafundaçãodesteteor,quandofossecasodisso.Quepensar?Salvoomuitoedevidorespeito,quer-nosparecerqueoilustreMestreapenasempartetemrazão,poisvêsomenteumdosladosdoproblema.EtalvezestavisãounilateralresultedumaconcepçãodaIgrejacomorealidadeexclusivamentecultural(contraaDeclaraçãoConciliarDignitatisHumanae,n.º4):ademais“clerical”(cfr.LumenGentium,n.º30-31;Apostolicamactuosita,n.º29,eAdgentes,passim),sematentarnapossibilidadedeelaterodeverealiberdadedeprosseguirmuitocomplexosfinspróprios,mesmoadentrodumregimedeseparação(comoonosso,apesardeemvastosaspectosaseparaçãoterdadolugaramuitoíntimacoordenação).Écertoque,quandodeterminadaentidadedestetipoexerçaatividadesqueseconfundamcomasprópriasdaautoridadecivil,aestaserãodadasgarantiasdequearespectivalegislaçãoserácumprida.Porexemplo,umorfanatoé,paraaIgreja,obradecaridade,eparaoEstado,instituiçãodebeneficência:porissoseexplicaoart.ºIVdaConcordata,queéumalimitaçãodoart.ºIII,demodoalgumumpreceitoquesesitueemcampoparaleloaeste.Eleparece-nosquesupõeapreexistência,comreconhecimentoresultantedasimplesparticipação,detaisatividades,apenasimpondoàsautoridadeseclesiásticasquefaçamrespeitaroordenamentocivil.Mas,note-sesãoestasqueoexecutaminternamente;seéassimparaaadministração,quantomaisparacriaçãoouinstituição.Compreende-se,repetimos,estadisposição:talcomo–salvomuitasedelicadasexcepçõesdeordempúblicounilateral–oEstadosepreocupacomrespeitarassituaçõesconstituídasàsombradodireitodaIgreja,assimesta,porosseussúbditosebeneficiáriosseremosdomesmoEstado,deveráacataralegislaçãoestadualnaquiloemquesejajustaeditadapelobemcomumtemporal.Suponha-sequeumhospitaléadministradodemodopoucorendável,outemmáscondiçõessanitárias;queumorfanatotinhaaulasnoturnas,proibidaspelalegislaçãocivil(porhipótese).Demotupróprio,oumedianterepresentaçõesdaautoridadecivilinteressada,éaautoridadeeclesiásticacompetentequeficainstituídanaobrigaçãodefazercumpriressasnormas,porforçadoart.ºIV(queserefereapenas,note-se,àsatividadesdeassistênciaebeneficência–nãosendodeexcluiraanalogiaquantoaoutras).DentrodestainterpretaçãodospreceitosdaConcordata,cremosqueétambémrelativamentefácilentenderasrestantesdisposiçõesdonossodireitointerno.Oart.º454.ºdoCódigoAdministrativo,cujaintençãonosparecesermaisbeneficiadoradoquelimitativa,nãorepresentamaisdoqueumaafloraçãodoprincípiodoart.ºIVdaConcordata:eledefineumregimelegal,masnãoindicaaautoridadeencarregadadeoaplicar(aliásrefere--seexpressamenteaorequerimentodepersonalidadejuridicaaoOrdinário).Extrai-sesempredaleiumconceitodemasiadorestritode“associaçãoreligiosa”–cujadesignação,afinal,maisnãoserádoqueumresíduodovelholaicismooitocentista(quetambémaflora,aliás,naobracit.doDr.RibeiroTeixeira).EquantoaoDec.-Lein.39449?Pois,apesardenaletrasereferirapenasaoslegadospios,éelequemaisnitidamenteaindanosvaidarrazão.Opróprioprof.MarcelloCaetanoreconhecequeestediploma“seaplicaatodososatosdeinstituição,emvidaoupormorte,deobrasdeutilidadepública”(op.cit.,69).Pois,ditoisto,estáditotudo.Aexpressãodoart.3.º,semdúvida,“vagaeimprecisa”(comolhechamouoprof.AntunesVarela)nãopodesenãodesignaroslegadospios,emsentidopróprio,quesedestinemafinsespecificamentereligiosos.ComoaIgreja,enquantotal,sópodeprosseguirfinsreligiosos,nelecabemtodososcasosdoart.IVdaConcordata–deque(emparte,poisvaimaisalém)éigualmentemeradisposiçãoexecutiva.Vimos,pois,aconcluirpelapossibilidadedeereçãocanónicadepessoasmoraisnãocolegiaisquesejaminstitutoseclesiásticos

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dedebeneficiênciamediantesimplesparticipaçãoàautoridadepúblicacivil,comopareceserdoutrinaoficial,fundamentadanoParecern.º85/60daProcuradoriaGeraldaRepública,de27deOutubro1960(BoletimdoMinistériodaJustiça,n.º103,p.459esegs.);omesmosucederá,afortiori,parainstituiçõesculturaise/oueducativas.NinguémnegaráqueainstituiçãodumaUniversidadeCatólicafazparteintegrantedoexercíciodafunçãodocentedaIgreja–comojáfoidemonstradonotexto.Tão-poucoalguémnegaráque,namedidaemqueconfiradiplomasquepretendemserválidosparaalémdaesferacanónica,aspirandoaoreconhecimentopeloEstado(v.g.CiênciasSociais),hajauminteresselegítimodoEstadoemquesejamrespeitadososprincípiosfundamentaisdasuaordemjurídica.Porisso,aaplicaçãoanalógicadoart.IV,quedefendemos,representa,nosistemaconcordatário,nãotantoumaconcessãodoEstadocomodaIgreja,dirigidatantoaobteroreconhecimentodosseusdiplomascomoarespeitaraideiafundamentaldumregimedecoexistência:adoigualvalordasduasordensjurídicas,comoummáximodeharmoniaecoordenaçãoeadentrodumpluralismoinstitucional.Podeobservar-seaindaqueomesmoconceitorestritode“associação”ou“institutoreligioso”parececonstardarecenteleidaliberdadereligiosa:“sãoconsideradasreligiosasasassociaçõesouinstitutosconstituídosoufundadoscomofimprincipaldasustentaçãodocultodeumaconfissãoreligiosajáreconhecidaouqualqueroutraatividadeespecificamentereligiosa,desdequeseconstituamdeharmoniacomasnormasedisciplinadarespectivaconfissão”(baseXII,n.º1;cfr.on.º2dabaseXI,quepermiteàsconfissõesreligiosas“formar(…)associaçõesouinstitutosdestinadosaasseguraroexercíciodocultoouaprossecuçãodeoutrosfinsespecíficosdavidareligiosa”).AlémdenãoservinculadaainterpretaçãodadaporleiinternaàConcordata,cremosqueoconceitoaquidefinidopoderásermaisamplodoquepareceàprimeiravista:parece,comefeito,quetambémdeveconsiderar-seespecificamentereligiosaefinalidadeeducativa(se,comoécurial,entendemosespecíficocomopróprio,enãocomopróprioemexclusivo).Noentanto,on.º1debaseXIVfaladeassociaçõesedeinstitutosdeassistênciaebeneficiênciaquesejamtambémreligiososexcluindo-osdoqualificativodeassociaçõeseinstitutosreligiosos;issoresulta,contudo,desepretenderressalvaroregimelegalvigente.Etrata-senitidamentedeumaexcepção,quenadaconsentiriafosseestendidaaassociaçõesouinstitutos(ououtros,nãoalheiosàvocaçãodasconfissõesreligiosas).Note-se,enfim,queoregimeconcordatáriopoderiaserdiferentedeste:nãojulgamos,contudo,queosejaouquedevessesê-lo.

\ 113

1942 – O curso de Instituto de Filosofia Beato Miguel de Carvalho é reconhecido pelo Ministério da Educação como curso superior de ciências filosóficas. 1944 (29 de Maio) – É registado junto do Governo Civil de Lisboa, como pessoa colectiva eclesiástica, nos termos do artigo III da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, o Instituto Católico Português, beneficiário e gestor de deixas e doações destinadas à futura Universidade Católica.

1926 (24 de Novembro a 3 de Dezembro) – O Concílio Plenário Português aprova o decreto n.º 138, no seguimento de velhas aspirações da nossa Igreja Católica: “O Concílio, secundando gostosamente o desejo da Igreja (cân. 1379, § 2), decreta que se funde, quanto antes, uma escola superior católica ou Instituto católico”. A deliberação, aprovada por Pio XI (25/3/1929), foi anunciada ao País pela “Pastoral colectiva para a publicação oficial do Concílio” (13/7/1930)¹.

1945 – Inicia-se a publicação da Revista Portuguesa de Filosofia, órgão da escola superior de Filosofia criada em Braga pela Companhia de Jesus. ¹ Vejam-se as precisões contidas na valiosa nota do Rev. Dr. A. Montes Moreira, “A criação da Universidade Católica Portuguesa e da Faculdade de Teologia de Lisboa” in Didaskalia, Vol.I, fasc. 1, 1971, pp. 183-185.

1934 – É fundado em Braga, para exercício e formação académica de professores e alunos da Companhia de Jesus, o Instituto de Filosofia Beato Miguel de Carvalho.

\ 114 APÊNDICE I Breve Cronologia da Universidade Católica Portuguesa (Subsídios)

1946 – O cardeal Cerejeira pronuncia no Brasil uma importante conferência sobre a Universidade Católica.

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1955 – A Faculdade Pontifícia de Filosofia de Braga organiza o I Congresso Nacional de Filosofia.

1960 – Sob o impulso do Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira iniciou-se estudos de planificação dos sectores de Teologia, Filosofia e Ciências Humanas, bem como o anteprojeto dos edifícios para as instituições sitas em Lisboa². 1963 – O Decreto-Lei n.º 45 328, de 23 de Novembro de 1963, cede ao Patriarcado de Lisboa determinados terrenos, destinados à Universidade Católica. ² Cfr. Dr. Montes Moreira, op. cit., p. 183: daí a designação ocasional de “Universidade Católica de Lisboa”.

1953 – O I Congresso Nacional da Juventude Universitária Católica vota a seguinte conclusão (32.ª): “É indispensável criar em Portugal uma Universidade Católica, com as Faculdades e Institutos que a Hierarquia houver por bem considerar necessários à defesa e ao desenvolvimento da cultura superior católica, que entre nós está longe de atingir a altura requerida pelas tradições cristãs do nosso País e pelas graves exigências da sociedade contemporânea.” Posteriormente, semelhantes votos viriam a ser formulados por universitários católicos e por vários organismos da Ação Católica Portuguesa.

1947 – O Instituto de Filosofia Beato Miguel de Carvalho é elevado a Faculdade Pontifícia pela Congregação dos Seminários e Universidades.

– Também em Janeiro é criada uma Comissão Instaladora da Universidade Católica, presidida sucessivamente por dois bispos auxiliares do Patriarcado: primeiro, D. José Pedro da Silva, então Bispo de Tiava: depois, D. Manuel Franco Falcão, Bispo de Telepte. A esta comissão coube orientar o estudo dos problemas jurídicos relacionados com a instituição da Universidade, resolver os seus principais problemas financeiros e encetar e acompanhar a construção do edifício central duma Universidade federal – além de auxiliar a Hierarquia no esclarecimento dos problemas de fundo relativos à nova instituição da 1966Igreja.– Em Janeiro de 1966, o Rev.º Cónego José Falcão é encarregado de organizar a Biblioteca da Universidade Católica Portuguesa (U.C.P.) – Também em 1966, a Faculdade de Filosofia de Braga, veio a ser aprovada pelo Ministério da Educação Nacional, ouvida a Junta Nacional de Educação, como Instituto Superior de Filosofia. 1967 – A 29 de Junho é lançada pelo Cardeal Cerejeira a primeira pedra do edifício central da Universidade Católica Portuguesa, sito em Lisboa. – A 13 de Outubro, pelo decreto Lusitanorum nobilissima gens, a Sagrada Congregação dos Seminários e Universidades institui, como primeira Faculdade da U.C.P., a Faculdade de Filosofia de Braga. A ³ Veja-se o seu texto, em anexo ao artigo já referido, in Didaskalia, pp. 185-190.

\ 116

1965 – Em 16 de Janeiro de 1965, depois de adquiridos os terrenos destinados ao edifício central da Universidade, o Episcopado anuncia ao País, em Carta Pastoral, a intenção de executar o desígnio de instituir uma Universidade Católica³.

– O Decreto-Lei n.º 307/71, de 15 de Julho de 1971, reconhece oficialmente a Universidade Católica Portuguesa, define o seu regime legal, regula a validade dos seus diplomas e graus e prevê a concessão de certos benefícios. ⁴ Vejam-se os textos no loc. cit., pp. 190-197.

– A 4 de Novembro deste ano abriam os cursos da Faculdade de Teologia, inaugurando-se a sede da U.C.P. a 29 de Novembro.

\ 117 partir de então, existe uma verdadeira “Universidade Católica em 1968formação”.–Por comunicado de 7 de Outubro, a Comissão Episcopal da U.C.P. anunciou o estabelecimento em Lisboa da sede e da Reitoria da Universidade e anunciou o início dos cursos da Faculdade de Teologia. Ao mesmo tempo, proviam-se os titulares dos principais cargos académicos (diretivos, administrativos e docentes), designando ViceReitor, com exercício de funções de Reitor, o Prof. Doutor Pe. José do Patrocínio Bacelar e Oliveira (nomeação ratificada pela Sagrada Congregação da Educação Católica em 14/4/1969).

– É anunciada publicamente a intenção de em breve fazer começar a funcionar, no âmbito desta Faculdade, um curso de ciências sócio-empresariais ou de gestão de empresas.

1971 – É anunciada, em audiência ao Ministro da Educação Nacional Prof. Doutor Veiga Simão (11 de Maio), a intenção de instituir proximamente a Faculdade de Ciências Humanas, cujo edifício já se encontra integrado na sede central, graças a subsídios da Fundação Calouste Gulbenkian (Maio de 1971).

Nos termos do artigo do Decreto n.º 29 992, de 21 de Outubro de 1939 (redação do Decreto n.º 48 220, de 24 de Janeiro de 1986), se publica o seguinte: Por despacho ministerial de 15 de Julho de 1970, que homologou parecer da Junta Nacional de Educação de 13 do mesmo mês e se encontra esclarecido por despachos ministeriais de 17 de Novembro de 1970 e de 5 de Agosto de 1971, foi a aprovação no curso completo de estudos filosóficos da Faculdade Pontifícia de Braga, do Instituto de Filosofia do Beato Miguel de Carvalho, segundo os programas e planos de estudo em vigor a partir do ano escolar de 1959, considerada equivalente, para todos os efeitos legais, ao bacharelato em Filosofia pelas Faculdades de Letras, mediante a aprovação em exames ad hoc a realizar nestas Faculdades sobre as matérias das disciplinas seguintes: ⁵ Julgamos que um despacho deste tipo é perfeitamente legítimo, mesmo depois do Dec.-Lei 307/71,poisosefeitoseosentidodeumdiplomaougraupodemserdiversos:umalicenciaturaem Engenharia é diversa, no conteúdo e na eficácia, de uma licenciatura em Direito. Contudo, parece-nos, por um lado, que este despacho – anterior ao Dec.-Lei 307/71 – não o teve naturalmente em conta, definindo um regime válido para o passado (desconhecemos, contudo, o teor do despacho, a que se alude, de 5 de Agosto de 1971). Por outro lado, dentro do mesmo sistema universitário, um preceito legal que reconhece graus e diplomas tem de atribuir a estes a mesma natureza que idênticos títulos ou certificados na ordem jurídica em que produzem efeitos: uma licenciatura não podeserbacharelato,comoestenãopodeserdoutoramento;edevenotar-sequeoreconhecimento previsto no n.º 2 do art.º 7.º deste Decreto-Lei só está condicionado à participação nos júris de professores das universidades estaduais. Enfim, quer a duração, quer o conteúdo e o nível dos cursos, há muito permitem defender que esta licenciatura em Filosofia não é universitariamente inferior às estaduais. Por tudo isto, e apesar de termos por claro que a aplicação deste despacho ao futuro não resulta da sua letra e seria ilegal, não podemos deixar de considerar pouco feliz a sua publicação e a doutrina que contém.

\ 118 APÊNDICE II (Diário do Governo, II série, 14 de Agosto de 1971, n.º 191, p. 4805)⁵ EQUIPARAÇÃO DE HABILITAÇÕES

\ 119 Teoria do Conhecimento; Psicologia Experimental; História de Portugal; História da Cultura Portuguesa.

Deste modo se retifica a declaração publicada pela Direção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes no Diário do Governo, 2.ª série, n.º 187, de 13 de Agosto de 1970. Junta Nacional da Educação, 10 de Agosto de 1971. – O Presidente, João Alexandre Ferreira de Almeida.

\ 120

\ 121 ENSINO LIVRE AMEAÇADO? António Luciano de Sousa Franco in Cadernos Nova Terra – O Direito de Educar, vol. I, pp. 5-7 (1975).

\ 122No «Diário do Governo» de 20 de Setembro último, lemos isto: DESPACHO MINISTERIAL

Em reunião do Conselho de Ministros de 1 de Setembro de 1975 ficou acordado que se procederia ao adequado estudo no sentido do aproveitamento das instalações afetas a estabelecimentos de ensino particular para a rede escolar oficial no próximo ano lectivo. Assim, determina-se que as Direções-Gerais da Administração Escolar e da Fazenda Pública devem contactar os proprietários das referidas instalações que ao programa da rede escolar interessam, a fim de se fixar a natureza e modalidade das relações contratuais na aquisição futura ou arrendamento das mesmas pelo Estado, de acordo com os estudos técnico-financeiros a efetuar pela Direção-Geral da Fazenda Pública. Conforme a orientação acima preconizada, garantem-se desde já às entidades proprietárias as compensações que venham a reconhecer-se como legítimas, importando do mesmo modo assegurar que o Ministério da Educação e Investigação Científica utilize, a partir de 1 de Outubro as instalações em causa. Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios das Finanças e da Educação e Investigação Científica, a 1 de Setembro de 1975. – O Primeiro-Ministro, Vasco dos Santos Gonçalves. – O Ministro das Finanças, José Joaquim Fragoso. – O Ministro da Educação e Investigação Científica, José Emílio da Silva. Quem lê habitualmente o «Diário do Governo», sobretudo nos últimos tempos, já com pouco se surpreenderá. Mesmo assim,

Claro que se trata de uma deliberação ilegal: embora se refiram meros «contactos» com os proprietários, é evidente que os termos em que ela está redigida apontam claramente para a irreversibilidade da nacionalização, eventualmente coberta por lei nos casos em que os proprietários ousem recusar negociar. Mas que importância tem isso quando se não cumprem as leis nem se respeita o Direito? Claro está que uma ação neste domínio é perfeitamente ilegítima: pois fere o tão espezinhado direito de propriedade (que até quanto à casa própria é ameaçado ou violado), avança, para daqui a dez dias, uma decisão de fundo, proibida pelo mil vezes desrespeitado Programa do Movimento das Forças Armadas e antecipa-se a matérias fundamentais que a Assembleia Constituinte, única representante legítima de todo o Povo Português, competirá

\ 123 este espantoso despacho não pode passar sem uma reflexão, serena mas firme. Não se prevê com efeito, a expropriação ou arrendamento – já a partir de 1 de Outubro próximo – das instalações afetas a estabelecimentos de ensino particular. Aos proprietários apenas resta negociar (ou aceitar?) as condições em que o Estado os desapropriará, e a magra garantia de que receberão as compensações «que venham a reconhecer-se como legítimas». Parece estar na intenção dos signatários desta espantosa decisão, afinal, fazer esta coisa singela: nacionalizar o ensino particular. Como quem não quer a coisa, através de um breve texto anódino e mal redigido, pretende-se chegar já em 1 de Outubro a um resultado final, que tantos totalitarismos do nosso tempo apenas lograram após uma luta frontal e declarada – acabar com a liberdade de ensino, por via de uma arbitrária e ilimitada expropriação das instalações dos estabelecimentos do ensino particular. Depois virá necessariamente a proibição do exercício desta atividade em quaisquer condições.

Os últimos Governos, no âmbito de uma crescente partidarização do Ministério da Educação, agravada de Governo para Governo, avançavam muito nesta senda, auxiliados por violações impuras e irresponsáveis (como o caso «exemplar» de Proença-a-Nova) e pelo abandono dos apoios financeiros instituídos por Veiga Simão (enquanto se gastavam rios de dinheiro em experiências falhadas, como certas formas encobertas de politização, partidária, que as populações rapidamente desmascararam e rejeitaram, e o erro inconsequente do serviço cívico estudantil). Mas ninguém foi tão longe no ataque ao ensino livre como este V Governo Provisório.

\ 124regular constitucionalmente; mas quem se preocupa hoje com essas velharias da legitimidade e da ética? É também, claro que se abre o caminho para uma gravíssima violação da liberdade religiosa e da liberdade de opção das famílias numa óptica totalitária que veio a dominar a legislação dos últimos meses até à Plataforma do VI Governo Provisório: mas perante o que se viu no domínio de outros direitos fundamentais – até já destes – quem ficará espantado? E claro está, ainda, que a mais elementar ética e senso político imporiam que se não usasse esta via traiçoeira e sinuosa para abordar problema tão grave, e que o V Governo Provisório não decidisse em matéria tão delicada já depois de extinto: mas como diz o povo, há gente ruim que mesmo depois de morta dá pontapés na cova… Não pode desde já, deixar-se passar em claro tal medida. Salazar nunca reconheceu eficácia aos cursos do ensino livre, não lhe deu qualquer apoio financeiro e opôs obstáculos administrativos à sua expansão – mas nunca tentou matá-lo. Marcelo Caetano tentou diversas formas de estrangulamento indireto do ensino da Igreja, mas só conseguiu dificultar-lhe as condições materiais de existência.

\ 125

Cremos que importa dizer que a Igreja Católica e o Povo Português não podem aceitar esta medida totalitária. Dela se poderá fazer uma única coisa: revogá-la imediatamente, apresentando desculpas ao Povo Português pelas quotidianas provocações a que vem estando sujeito. E importa também que o Povo esteja civicamente vigilante – todo o Povo, e não certas minorias barulhentas e arruaceiras –ao que se passa no Ministério da Educação, onde, sobretudo nos últimos meses, se tem procurado, em regra por esta forma oculta e pouco límpida, criar um sistema educativo que não serve aos portugueses. Vigilância e crítica estas que o VI Governo, se se fizer intérprete da maioria do Povo, que pela primeira vez nele pode julgar-se representado, só ajudarão a necessária e urgente correção destes desvios. Esta contará, por certo, com o apoio ativo de todos os portugueses empenhados na construção de uma sociedade justa e livre.

\ 126

\ 127 O ENSINO LIVRE NO NOSSO SISTEMA DE ENSINO – PISTAS DE REFLEXÃO António Luciano de Sousa Franco in Cadernos Nova Terra – O Direito de Educar, vol. 1, pp. 21-26 (1976).

se existe ensino livre e qual o seu papel em Portugal pode ser uma questão sem sentido.

Na verdade, o ensino livre é uma instituição de ensino que não existe verdadeiramente entre nós: trata-se do direito fundamental (e da estrutura de ensino dele resultante) nos termos do qual os pais podem escolher o ensino que desejem para os seus filhos. Isto implica, como direitos acessórios, a livre fundação de escolas, as quais não serão desfavorecidas em confronto com as estaduais; e justifica suficientemente a liberdade de aprender dos alunos e a liberdade de ensinar dos professores.

O conceito de ensino particular (melhor: o ensino não estadual, pois particular é, por exemplo, o ensino de uma autarquia local) cobre o que é promovido por entidades diversas do Estado. Não se trata, pois, necessariamente de um ensino com fim lucrativo: pode ser instituído por fundações, associações religiosas, cooperativas, etc.; e poderá ainda ser prosseguido por entidades com fim lucrativo (nuns casos, como legítimo exercício de uma atividade profissional de professores; em outros, obtendo lucros que, todos sabem, não ultrapassam a zona típica das pequenas empresas de serviços). A questão de «ensino lucrativo» – sendo sempre certo que no plano ético deve assegurar-se a finalidade formativa essencial do ensino –é mais um argumento falacioso agitado pelos defensores do ensino Tão-poucooficial. o ensino confessional (católico ou não; eclesiástico – com fins de formação para cargos ou responsabilidades específicas da Igreja – ou não) se confunde com eles: ele é – e deve ser – livre; será normalmente não estadual ou particular; mas também pode ser oficial. E, se a Igreja no passado defendeu sobretudo a «escola católica», isso deve-se ao facto de, nos séculos XVIII e XIX, ela se ter

\ 128Perguntar

LIBERDADE DE ENSINO NA SOCIEDADE PORTUGUESA

\ 129 abstido de ensinar sobre a estrutura da sociedade, limitando-se a reivindicar os seus direitos; ao começar depois uma era de intensa doutrinação sobre a sociedade – após a Rerum Novarum – forçoso seria que a liberdade de ensino avultasse como direito fundamental. Falemos, contudo, do ensino particular, pois, se ele pode ser mais ou menos livre, é certo que sem o reconhecer e proteger não há liberdade de ensino.

A seca linguagem dos números, quanto a um ano lectivo em que ele não havia ainda atingido a crise em que hoje se debate, revela-nos que sim, em que medidas e em que domínios. Havia 1304 estabelecimentos particulares de ensino secundário (incluindo preparatório), com 2156 professores e 35037 alunos (e 11180 conclusões de ano ou ciclo), enquanto o ensino correspondente tinha 646 escolas, 28228 professores, 988559 alunos (e 170869 conclusões) no oficial. No ensino superior – entendido como o que se frequenta após prévia conclusão do secundário – havia 32 escolas oficiais, para 30 particulares; mas as particulares tinham 406 professores, 2939 alunos inscritos (e 305 conclusões), enquanto os valores correspondentes no oficial eram de 2705 professores, 48571 alunos (e 2777 conclusões). No ensino normal, apenas 10 escolas particulares (cinco do magistério primário e cinco do infantil) existiam, para um número de 151 oficiais; e no primário 743 escolas particulares completavam a ação de 15843 oficiais, sendo a participação dos seus 2156 professores e 53037 alunos. Enfim, no ensino pré-primário, a cobertura particular era de 110%: 346 estabelecimentos, 759 professores e 18687 alunos.

insignificante

O ensino particular representa ainda alguma coisa em Portugal?

b) Como o tem demonstrado tanto a história como a recente experiência pedagógica, a capacidade de inovação é função do grau de autonomia que, no campo do ensino, se atribui a todos, e especialmente aos professores e aos pedagogos – em suma, aos promotores de todas as iniciativas válidas. Se a história da

Podemos assim documentar a extrema irregularidade da posição do ensino não estadual no nosso sistema de ensino: ele vai do lugar de exclusivo no pré-primário, a uma posição significativa no secundário (liceal e não técnico), embora relativa e absolutamente decrescente, se tomarmos séries anuais; assume posição de relevo em zonas específicas do ensino superior (Serviço Social, profissões e cursos práticos, etc.), mas escasso peso tem no conjunto; enfim, é residual ou complementar no primário. Em todos se nota uma menor dimensão por escola e melhor relação professor-aluno e melhor taxa de conclusões; o que permite pensar que, mesmo quando haja menores qualificações, elas são supridas por vantagens concretas.

\ 130

Dividiremos a resposta em duas partes: no sistema de ensino; e no sistema social. E tentaremos sintetizar, a partir do estado atual –tanto ideológico como factual. É evidente que o ensino privado tem relevância eminente se entendermos que ele constitui um direito fundamental da pessoa humana. Pelas seguintes razões principais:

E que funções pode o ensino privado desempenhar entre nós?

JUSTIFICAÇÃO

DO ENSINO PARTICULAR

a) Só ele assegura a liberdade de escolha do tipo de ensino desejado pelo aluno adulto e pelos pais; ele exprime também um direto das tendências, ideológicas, religiosas, etc.

\ 131

c) Está demonstrado que o ensino privado é socialmente mais económico do que o correspondente ensino oficial: todos os cálculos demonstram que a dimensão que ele atinge e o grau de iniciativa que liberta proporcionam uma leccionação com maior economicidade que a oficial(?). d) A cobertura regional – e, em muitos casos, social – do país entre nós (num país centralizado e excessivamente desequilibrado em benefício de Lisboa e dos grandes centros) só tem sido satisfatoriamente assegurado pelo ensino privado. Tema fecundo para reflexão isenta de partidarismos é o seguinte: será mais económico e mais adequado às necessidades regionais e locais aproveitar e fazer evoluir o que existe – ou deitar tudo abaixo, na perspectiva de uma utopia futura?

pedagogia não contivesse inúmeros exemplos – tanto no que se refere aos métodos, como no domínio da diferenciação ideológica, facilitada pelo ensino privado – as experiências recentes no campo do ensino como nos demais mostram que a diversidade e flexibilidade resultam claramente da automomia (vejam-se os trabalhos do grupo da O.C.D.E. sobre inovação no ensino superior).

É certo que podemos pensar num modelo puramente teórico de ensino público, aberto à inovação, diversificação e assegurando a pluralidade de opções e a liberdade interna dos docentes, discentes, ou mesmo a de criação de escolas, em função das grandes correntes e necessidades formativas do povo. Importa, porém, reter que tal sistema nunca existiu: o monolitismo e a burocracia dominam em regra os ensinos oficiais de todo o Mundo. E, ainda que no futuro venha a evoluir-se no sentido de um ensino oficial que não seja essencialmente monolítico e rigidamente conservador, porque reprodutor centralmente conduzido das opções do sistema

ENSINO PRIVADO E MODELO DE SOCIEDADE

O ensino privado é ainda acusado de explorar comercialmente uma função pública. E é claro que a função ensino numa sociedade moderna é uma função pública. Mas importa ver se isso não é razão para integrar o ensino privado no sistema nacional de ensino e para o condicionar, fiscalizar e apoiar – em vez de o monopolizar; e se não cumpre distinguir função pública e serviço público. Pois, se o Estado deve assegurar o ensino a todos não o há-de fazer sempre necessariamente através da propriedade pública dos bens de ensino: cumpre-lhe, isso sim, assegurar a autonomia das iniciativas válidas, colocando meios ao serviço delas e fazendo-se executor do contrato social que sobre eles se exerça. Ou será que a propriedade de bens de produção afetos ao serviço de ensino é forma de apropriação monopolista de mais-valias (na tese marxista), não justificando a sobrevivência que se pretende assegurar às pequenas e médias empresas (mesmo para quem não entenda, como nós, que qualquer sociedade livre há-de preservar, e não só temporariamente ou por motivos tácticos)? No que toca à discussão presente do ensino livre, cumpre reconhecer que, em Portugal, o pobre ensino privado está preso por ter cão, e preso por o não ter… Pois se lhe recusam apoios financeiros ou outros, porque ele é ensino discriminatório de classe e para ricos –que esperar senão que, perante o aumento de encargos, ele se torne efetivamente discriminatório, de classe e para ricos? Veda-se-lhe

\ 132veiculados pelos órgãos do poder – tal experiência não teria, hoje ou amanhã, um mínimo de condições em Portugal, acrescentando ao caos atual os riscos do dirigismo pedagógico e cultural. Será isso – ou antes a descentralização e a autonomia – que querem os portugueses?

Vamos então já para o ensino oficial privilegiado, quiçá exclusivo. Se não, tentemos antes melhorar o ensino oficial – que já isso é função bastante para a administração da educação nacional; e apoiemos, ou ao menos deixemos livre, a escola privada.

qualquer saída evolutiva que lhe reduza o carácter deformado que nesta sociedade – e em qualquer sociedade futura, de uma ou outra forma, se não acreditarmos em utopias terrenas – sempre há-de ter; e depois condena-se o ensino privado por isso mesmo… Caso é de perguntar: e o ensino oficial, não é também de classe, e em termos mais rígidos? Quer-se, afinal, libertar todos – ou oprimir todos? Não; por mais voltas que se lhe dê, toda a limitação, não imposta por considerações práticas, mas resultante de uma filosofia de base, em relação ao ensino livre, tem inspiração totalitária e monolítica. Nesse sentido, exprime uma concepção da sociedade – como recentemente acentuou a Nota Pastoral do Episcopado –antidemocrática e antipluralista¹. A estruturação do sistema de ensino «produz» e «reproduz» sempre uma sociedade; e mais – cria ele próprio toda uma série de sociedades menores. Queremos que todas as nossas escolas sejam células dependentes, estatizadas e burocráticas?

\ 133

Salvo se pretender arvorar-se em mentora da formação de todos os portugueses – pelos métodos ou pela ideologia veiculada, ainda que implicitamente, através dos programas e textos aconselhados. ¹ Incorrendo em confusão, o artigo de J. Sousa Monteiro, em A Luta de 3-11-1975, considera antidemocrático criticar a opinião da maioria parlamentar. Só assim seria se aceitássemos o totalitarismo democrático, expresso pelo mito da vontade geral de Rousseau: é sempre lícito, se se está na minoria ou se entende que os representantes da maioria interpretaram mal o seu mandato (e as duas posições podem encontrar-se entre os críticos da posição tomada pela Assembleia Constituinte) criticar a maioria; a que não será lícito – salvo nos casos de desobediência legítima –, é desobedecer aos mandados das autoridades democráticas. Onde estaria então a alternância democrática, permitindo à minoria aspirar a ser maioria? Onde estaria então a liberdade de opinião? Outro problema é o de saber, com referência ao artigo aí citado, se a Igreja hierárquica se pode pronunciar sobre estas matérias. Tem-no feito milhares de vezes, sob todos os Governos, em toda a parte do Mundo; e, por nós, entendemos que bem.

Vamos então tendendo para a mente única do cidadão do modelo único… E isso, sim, é um claro modelo de sociedade!

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A tarefa fundamental de um sistema de ensino democratizado é ser livre, pelo conteúdo, e garantir a igualdade de oportunidades, no que toca aos acessos e à circulação no seu interior. É certo que o ensino privado não subvencionado reduz as condições de igualdade em função da classe – embora as tenha aumentado em função do espaço (como estaria o ensino nas Beiras ou em Trás-os-Montes, se não houvesse o ensino privado?). Importa então reduzir as causas de distorção, criadas por longa passividade do Estado, e não agravá-las, como se fez no passado. Também neste domínio mudámos o sinal para ficar tudo na mesma (quando não algo pior…).

É certo que pode chocar ver o ensino – ou a saúde – exercidos como funções privadas. Mas a verdade é que se o Estado fiscalizar os desvios no sentido do puro comercialismo e os punir implacavelmente, nem aquele será, se for honesto, tão lucrativo que o lucro seja o seu móbil fundamental, nem uma legítima recompensa de iniciativas socialmente meritórias deixa de se justificar. Não são palavras ou esquemas formais – lucro, exploração… – mas a análise concreta das situações que permitirão definir o papel do ensino não estadual no nosso sistema. Parvoíce ou ignorância é, pois, dizer que o ensino numa sociedade que se pretende socialista terá de ser sempre público. Identificando o socialismo com um certo modelo burocrático – pois com certeza… Mas é isso que o povo quer? Ou as opções são várias para uns efeitos, e únicas para outros? Unicidade escolar, unicidade partidária, unicidade sindical, unicidade dos meios de comunicação social – tudo faz parte de um mesmo modelo: quem o aceita, que o diga; quem o rejeita, que o prove. A posição acerca do ensino livre – sem o qual não há sistema escolar pluralista – implica afinal a escolha de um modelo de sociedade; e a escolha

PISTAS PARA ATUAR O ensino não estadual tem em nosso entender um lugar bem definido no nosso sistema de ensino. Como dar-lho? Eis algumas veredas concretas.

c) Em princípio, a liberdade de formação de escolas pelas diversas tendências – sujeitas a um controlo pedagógico de qualidade e ao princípio de paridade de condições de frequência e da indiferença da escolha, no que toca aos graus, títulos, diplomas e o acesso a níveis superiores – deve reconhecer-se a todas as pessoas ou tendências, desde que reúnam certos requisitos genéricos previstos na lei e se sujeitem à fiscalização que desta constar.

b) Esta responsabilidade poderá ser satisfeita através de estabelecimentos oficiais ou de estabelecimentos com bolsas de estudo, contrato e/ou diplomas reconhecidos e com igualdade de condições de frequência.

a) Ao Estado caberá assegurar a satisfação, em condições de igualdade de acesso, das necessidades de educação dos seus cidadãos.

\ 135 no que é mais radicalmente livre e «formador» (ou «deformante») no homem, no que firma o pluralismo na raiz da sociedade, projetando-a para o futuro. Não se pretende, por certo, o ensino comercial e elitismo do capitalismo anglo-saxónico, nem o laicismo dirigista do capitalismo «à francesa»; mas tão-pouco se pretende o ensino da máquina orwelliana, sem escolhas nem alternativas (tão parecido com o modelo concreto de certos Estados burocráticos do nosso século).

e) A autonomia de opção e comportamento de professores, alunos e pais deve sujeitar-se ao sistema nacional de ensino em que todos se integram, sendo, no restante, quanto possível livre e descentralizado.

d) A igualdade de condições económicas – que também terá em conta a maior economicidade do ensino privado – deverá, no limite das possibilidades orçamentais, da qualidade do ensino e da oferta localmente disponível, ser garantida pelo Estado a todas as pessoas.

f) Importa favorecer a experimentação pedagógica, a inovação e a criação de novos cursos, não apenas confessionais mas especializados de diverso tipo e por diversos motivos, mediante o acesso ao ensino livre. Para isto, haverá que apurar um Estatuto do Ensino Particular que substitua o caduco diploma legal ainda em vigor. Haverá que ultrapassar em muito a magra letra da Constituição – neste como em tantos pontos má partida para o novo país. Disso fia a democracia pluralista (haverá outra afinal?), no que dela existe de mais profundo e na sua implantação a longo prazo: será assim tão pouca coisa?

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\ 139 RETIFICAÇÃO AO N.º 24, DE 19 DE JANEIRO DE 1979 António Luciano de Sousa Franco Intervenção na Assembleia da República, como deputado do PSD.

Para esse efeito, portanto, agora se publica o texto da declaração de voto, que é o seguinte: 1. Votei favoravelmente o texto final, e não o fiz apenas por disciplina parlamentar. Creio que – como consta da declaração de voto do PSD – ela não é, nem na formulação técnica, nem na precisão e rigor das soluções, nem no coerente enquadramento num projeto didático-pedagógico, nem sequer no grau de urgência com que foi produzido, um diploma ótimo. Mas a democracia é compromisso, e o progresso constrói-se apenas com soluções que em cada momento sejam as melhores de entre as possíveis. O acordo com soluções limitadas, e mesmo assim longe de alcançar o nível dos 100%, é um exercício de realismo e humildade democrática que de tão-pouco praticado em Portugal, por isso mesmo demonstra como chegámos ao grau de deterioração a que chegámos: pois é praticando a convergência e o compromisso, à luz do interesse nacional, que se rejeita a política, procurada por quem só vê os interesses vez em Portugal, nos últimos cinquenta anos, se define um quadro legal progressista para o ensino privado e cooperativo, sem o qual não existe liberdade de ensino (embora esta alcance mais ampla dimensão e deva existir também no ensino público, como sempre se afirmou). Bastaria isso para justificar o voto favorável de quem, como o signatário, há longos anos vem

Pelapartidários.primeira

confrontação

Não tendo sido incluída, por lapso, no original do n.º 24 a declaração de voto individual do Deputado Sousa Franco (PSD), ao abrigo do n.º 3 do artigo 100.º do Regimento, sobre a votação final global do projeto de lei n.º 108/I – Bases gerais dos ensinos particular e cooperativo, deve a mesma ser considerada como fazendo parte integrante daquele original, a seguir à última página.

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lutando pela liberdade de ensino – e, portanto, pela liberdade do ensino não estadual, forma eminente de respeitar os direitos das pessoas e das famílias.

A justificação deste voto far-se-á em dois planos: o da filosofia das iniciativas promovidas, no quadro do grupo parlamentar social-democrata, pelo signatário e por outros parlamentares, dado que muito delas aqui se encontra afinal, e é de duvidar, se não fora o projeto do PSD e a exigência traduzida na marcação de uma «ordem do dia», alguma vez fosse acolhida por algum governo ou outro grupo parlamentar; e um juízo de especialidade sobre o texto ora votado, sem prejuízo da concordância com a declaração de voto do meu camarada.

2. Seguiu-se a orientação de abordar num diploma as bases gerais do ensino privado e cooperativo e em outro – ainda por discutir – os princípios e garantias da liberdade de ensino em geral. Não creio que as duas realidades sejam dissociáveis, e por isso mesmo a orientação adotada no projeto do PSD (primeira e segunda versões) se me afigura mais correta.

É por de mais evidente que não se pretende que a simples existência de regimes de apoio ao ensino particular – privado ou cooperativo –seja a única forma de assegurar a liberdade; pretende-se, isso sim, que ela é imprescindível à existência da liberdade de ensino. Tão-pouco se pretendem criar espaços privilegiados em que aos mais ricos se garanta a liberdade de ensino – e o ensino de qualidade – que aos mais pobres é recusado. O que se pretende é que, pela aplicação desse regime, o ensino particular e cooperativo passe a ser um ensino para todos, e não só para os mais ricos. Nem se diga que vai tirar-se ao Estado o dinheiro de que ele precisaria para

\ 142pôr cobro ao caos em que está o ensino público: pois é certo que a produtividade dos dinheiros públicos aplicados no ensino privado é bem superior, ou seja, fica por cabeça mais económico financiar um aluno na escola privada do que o mesmo aluno na escola pública.

Desdepositivos.logo, a fundamentação da liberdade de ensino constante do artigo 1.º é correta, baseando-a no direito ao desenvolvimento da personalidade, com reconhecimento da prioridade da decisão familiar sobre a escolha do ensino para os filhos e definição correta do papel do Estado e seus objetivos. Por outro lado, a consideração como de interesse público das atividades particulares integradas no sistema nacional de ensino (artigos 2.º e 3.º) corresponde também, corretamente, ao abandono do ensino particular como mero ensino tolerado que, num gueto de indiferença, pode existir, mas nada tem que ver com o ensino público. Depois do privilégio do ensino religioso, típico do antigo regime, e da luta pelo laicismo, típica da monarquia liberal – com violentos ataques anticlericais na República, entre 1910-1917 sobretudo –, entrou-se numa fase de tolerância condicionada, que

Nem assim é, todavia, como está sobejamente demonstrado.

Claro que mais importante do que tudo isto é a faculdade de livre opção, concedida aos estudantes e suas famílias, pelo tipo de ensino que preferem. Fosse insuportável o seu custo, e poderia responder-se que os direitos não têm preço.

3. Alguns princípios gerais atinentes à liberdade de ensino – sem prejuízo de outros, que virão a constar, espera-se, de outro diploma – são todavia consagrados neste articulado e eles são em geral

\ 143

b) A aplicação a todos os campos de ensino e a qualquer nível educativo, mesmo em termos especiais, ao ensino superior (artigo 4.º);

foi a do Estado Novo, com ameaças de nacionalização (1975) e liberdade-tolerância depois da Revolução. É tempo de adotar um conceito de liberdade-função para a escola privada, em que se reconhece a sua função de interesse público, e os apoios dados são contrapartida dos deveres livremente assumidos.

a) A equiparação de escolas privadas e cooperativas, quando dentro do sistema nacional de ensino, entre pessoas colectivas de utilidade pública (artigo 3.º, n.º 2), ficando isentas de imposto profissional as remunerações dos respectivos professores;

4. Considero ainda que diversas disposições representam significativa maioria em relação ao regime de «tolerância autoritária», que herdámos do Estado, condimentando-o com a ameaça gonçalvista da nacionalização. Até agora, algo de positivo fora decidido (pelo VI Governo Provisório como pelos Governos Constitucionais), mas sem a filosofia de conjunto que o projeto de lei n.º 25/1, que elaborei, visava introduzir. Entre elas menciono:

c) A definição, em termos substancialmente corretos, das atribuições do Estado, pondo cobro à velha tutela, ao «negócio dos abonos» e ao «apoio por esmola ou cunha», até agora corrente (artigo 6.º, n.º 2), e bem assim das respectivas finalidades (artigo 6.º, n.º 1);

d) A aceitação, em termos vagos, de um regime regular de subsídios e de contratos de apoio [artigo 6.º, n.º 2, alínea d)]; os critérios para a sua atribuição e celebração representam um avanço menor do que propunha o PSD (artigo 8.º);

\ 144

i) Uma definição correta – em cujo sentido de há muito venho – da posição do professor do ensino particular, apontando para o estabelecimento de uma carreira docente e para a redução ou cessação das discriminações relativamente aos docentes do ensino público (artigos 12.º a 14.º, executando este princípio no domínio das garantias e direitos laborais, da sem perda de direitos, do acesso a formas diversas de formação profissional, da relevância autónoma da experiência na leccionação para efeitos de profissionalização...);

k) A equiparação dos alunos para efeitos de ação social escolar (artigo 16.º). 5. Tudo isto é positivo, por certo, sem prejuízo das restrições já feitas. Tão positivo que bem posso dizer: este não é já o projeto do PS. E ainda bem! É claro que continua a depender de autorização

transferência

h) Um regime correto da direção pedagógica (artigo 10.º);

j) A abolição da suspeição didático-pedagógica, introduzindo com carácter permanente o instituto do paralelismo pedagógico (artigo 15.º);

propugnando

e) A definição precisa dos requisitos para a fundação de escolas (artigo 7.º); f) O respeito pelos estabelecimentos de ensino eclesiástico e pelas «escolas de partido» (artigo 5.º), parecendo certo que muitas dúvidas vão resultar de a delimitação do seu âmbito não ser feita como na proposta do PSD; g) A regulamentação da publicidade (artigo 9.º);

Há que esperar pois pelo longo período (cento e oitenta dias) que o Governo tem para elaborar o estatuto (artigo 17.º) e pelas restantes leis de execução. Para quem tanto esperou, parecerá pouco; para quem tanto tem. Obrigação de se ter preparado, é de mais. No próximo ano letivo e no próximo orçamento veremos... 6. Julgo, no entanto, que esta lei é passo sério para introduzir estruturas e instituições democráticas na nossa sociedade, para respeitar um importantíssimo direito do homem – o direito ao pluralismo educativo. Não há sociedade pluralista sem que o sistema educativo seja pluralista: para isso se abre uma porta. Mesmo que ela seja estreita, revelaria fraco senso não a aproveitar. Pode ser este o começo do fim da estatização escolar em Portugal. Veremos se a porta abre para um caminho a percorrer gradualmente e com passos decididos – ou se para um quintal onde o centralismo jacobino da nossa Administração Pública há de querer entre quatro

a constituição de escolas – e não se estabelece um regime rápido e expedito para suprir a sua falta. É claro que a porta aberta para o ensino superior fica meio fechada por um decreto-lei a publicar.

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É certo que se não fixam critérios rigorosos e objetivos para a concessão de subsídios e a celebração de contratos, nem se define minimamente o seu conteúdo. É incompreensível que se não hajam introduzido no diploma outros benefícios fiscais – embora possam ajudar alguma coisa os termos algo confusos em que se admite que certos (não todos...) estabelecimentos possam ser equiparados a instituições de utilidade pública. E outras coisas faltam para que se possa dizer, com segurança, que esta «lei-quadro» dá garantias suficientes, e não poderia ser frustrada ou iludida na sua execução.

\ 146 muros o desejo de liberdade que esta lei acolhe. Melhor seria que ela tivesse em si mais garantias, para que a sabotagem pela inércia, a que por certo serão propensos tantos maus demónios da nossa Administração, da nossa sociedade, da nossa cultura, não fosse punível. Esta, sim, é uma forma válida de abrir caminho à iniciativa privada e à criatividade pessoal, tão necessárias em Portugal, hoje como sempre. Esperemos que aqueles a quem compete abrir o caminho – e aqueles a quem caberá depois trilhá-lo e fazê-lo avançar – cumpram os seus papéis, colocando enfim o ensino privado livre, criativo, qualitativamente bom ao serviço dos fins necessários do sistema educativo português, a liberdade consciente dos Portugueses, a igualdade de acesso e de condições, a preparação dos alunos para a nossa sociedade de amanhã, que construirão e viverão o culto crescente da justiça social ... Se for assim, terá valido a pena dar este primeiro e tímido passo –e, por tê-lo dado, ficar com o direito de exigir que todos os demais sejam trilhados sem demora, pelos respectivos responsáveis. Uma lei progressista mata-se pela inação. Esta, há que fazê-la viver. Palácio de S. Bento 18 de Janeiro de 1979. – O Deputado do PSD, António Sousa Franco.

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\ 149 A LIBERDADE DE APRENDER E DE ENSINAR NO ÂMBITO DAS LIBERDADES AntónioDEFUNDAMENTAÇÃOFUNDAMENTAIS.DALIBERDADEENSINOLucianodeSousaFranco in Roberto Carneiro, org. e coord. (1994), Ensino Livre. Uma Fronteira da Hegemonia Estatal. Porto: ASA, pp. 17-42.

Se assim é, a liberdade de ensino (incluindo a liberdade no – dentro do – sistema de ensino) será uma modalidade de liberdade de educação; e o ensino livre será uma forma ou meio de educação livre (no tocante à pessoa e unidades sociais que lhe são próximas) ou de formação livre (no tocante à função “formação” da sociedade). Afinal, educação pessoal e formação social acabam por encontrar-se na formação da pessoa, que pode ser livre ou dirigida (maxime, compulsiva, nos sistemas autoritários ou totalitários).

1.1. Por um lado, eles arrancam da noção de liberdade: num sentido amplo e formal, tratar-se-á do poder efetivo de cada um fazer o que quiser (e onticamente puder); num sentido restrito e substancial, pode ser a liberdade de fazer escolhas orientadas pela razão e por uma vontade fundamental; ainda se designa por vezes como liberdade o poder de participar nas decisões que a cada um dizem respeito, embora não tomadas apenas por ele. Qualquer destes conceitos formaliza as medidas de liberdade que resultem de uma tomada de posição minimamente livre-arbitrista nas alternativas filosóficas liberdade-necessidade, livre-arbítrio/determinismo.

Apenas para entender a sua fundamentação, importa definir preliminarmente os conteúdos da liberdade de ensino.

\ 150 1. CONCEITOS DE BASE

1.2. De outra banda, o ensino é a forma estruturada (socialmente organizada) da educação (a qual pode ser atividade individual ou familiar: auto-educação, educação familiar; ou social: ensino); constitui então uma função social especializada de formação e ministração de conhecimentos e aptidões às pessoas, que é parte de uma função geral de formação (se esta se exercer também difusamente, sem a especialização material e temporal do ensino).

1) Deve haver liberdade individual de escolha do tipo de ensino desejado (o que condena os sistemas de ensino monolítico, sujeitos a uma orientação única e disforme, ou a imposição do tipo de ensino ou instituição escolar, cuja escolha deve caber às pessoas, famílias e instituições espontâneas, e não ao Estado ou outras forças socialmente dominantes).

A escolha do tipo de ensino querido pelas pessoas, famílias ou instituições, para ser livre, há de ultrapassar uma atitude passiva perante o sistema, assumindo a possibilidade de ativamente o modificar e enriquecer mediante a iniciativa própria (individual ou associativa). Por outro lado, essa faculdade de enriquecimento do sistema implica que a sua estrutura, conteúdo e funcionamento deem também lugar à liberdade dos elementos que nele atuam; e bem assim (o que é uma diretriz do sistema educativo, mas não constitui um próprio direito à liberdade de ensino) que o ensino deve ser um ensino em liberdade e um ensino para a liberdade.

\ 151 1.3.

2) Deve haver liberdade de atuação relativamente ao sistema escolar, gerando inovações, criando novas instituições, tipos e formas de ensino, integrados nas linhas orientadoras de cada

Fundamentalmente, a liberdade de ensino arranca da ideia de que a livre opção, pelas famílias, pelas pessoas ou pelas instituições das sociedades, do tipo de ensino que desejam – para si ou para os membros de cada instituição – não pode limitar-se à escolha da duração, do local de ensino e das formas pedagógicas ou didáticas, de entre as que lhes são impostas por um sistema único (designadamente estadual, como é regra nas estruturas modernas).

As relações do ensino com a liberdade configuram-se, assim, em três planos distintos:

\ 152sistema nacional de ensino, de forma que os diversos agentes e responsáveis atuem nos quadros resultantes de uma sã disciplina, mas sempre tendo como último juiz, no que toca aos conteúdos de ensino, a sua própria consciência.

1.4. Daqui decorrem quatro tipos de direitos individuais de liberdade de ensino, além de múltiplas outras implicações normativas sobre a organização e o exercício do ensino:

• A liberdade de ensino dos docentes (“Lernfreiheit”), que devem ter a consciência por critério julgador da liberdade científica e da validade pedagógica, sem prejuízo de haverem de subordinar-se aos princípios pedagógicos e didáticos do sistema e deverem respeitar a liberdade e a autenticidade da escolha dos educandos e suas famílias, cujo direito prevalece sobre o dos professores.

•preferida.Aliberdade de exercer o ensino, desde que se preencham requisitos mínimos de ordem pedagógica e científica e não haja

• A liberdade de aprender, ou de escolha do tipo de aprendizagem (“Lernfreiheit”) por parte dos discentes, quando amadurecidos (adultos), ou das famílias, incluindo a determinação da espécie e tipo de ensino (escolha dos cursos e das escolas, com as limitações resultantes dos mecanismos legítimos de adaptação e orientação do sistema – “numerus clausus”, orientação pedagógica, por exemplo) e a escolha da orientação doutrinária, filosófica e pedagógica

3) O próprio sistema de ensino e suas instituições, componentes e agentes, devem atuar na liberdade e para a liberdade efetiva, à imagem da sociedade maior, que tem o ensino como parte e por ele realiza uma sua função própria (que não exclusiva).

sobretudo à liberdade de escolha e exercício de formas diversificadas de ensino, sem esquecer todavia a liberdade académica e a livre escolha das matérias e métodos de ensinar.

Referir-nos-emos

atuação à margem das regras do sistema nacional de ensino, bem como a de fundar e orientar instituições escolares, por parte das pessoas, instituições ou correntes doutrinárias.

• A liberdade de plena determinação dos conteúdos do ensino (liberdade pedagógica), embora com as limitações genéricas que, com a necessária e possível neutralidade, a legislação e a estrutura do sistema do ensino impuser.

1.5. Neste sentido, o ensino livre – aquele que incorpora os direitos mínimos acima definidos – transcende a questão da existência da escola confessional, nomeadamente católica, embora para que esta exista num Estado laico deva haver liberdade de ensino. E diferencia-se também de um sistema escolar com liberdade de ensino (ou o simples exercício do ensino em liberdade) e da simples existência do ensino particular (ou privado) e cooperativo. Este último é uma forma eminente de exercer a liberdade de escolha e fundação de escolas; pode dizer-se até que, ao menos nos sistemas sociais que conhecemos, sem ensino particular não existe liberdade de ensino; mas outras formas se podem, ao menos em teoria, conceber ao lado das privadas. Não deve hoje postergar-se, por certo, a questão da propriedade privada dos meios de ensino e do regime privado do seu exercício; mas também não pode identificar-se ou confundir-se o princípio da liberdade de ensino com a questão instrumental da propriedade, sob pena de a minimizar ou instrumentalizar a querelas ideológicas ou sociais que com ela nada têm a ver.

\ 153

A liberdade de ensino começa por ser liberdade de educação, familiar e pessoal, evoluindo, com a criação de um sistema nacional de instituições de ensino, para liberdade escolar; e nasce como uma situação de facto, para se transformar num princípio ou valor de organização social defendido, praticado, limitado ou rejeitado. Nas fases mais arcaicas das diversas civilizações é a sociedade como um todo (ou as suas estruturas comuns – a começar pela família) que assegura uma indiferenciada função de educação. Só uma maior complexidade das organizações sociais faz aparecer estruturas políticas ou religiosas, portadoras de valores, que se reclamam – em exclusivo, com privilégios ou em concorrência – da função escolar. É frequente, na Antiguidade, que não exista liberdade de ensino organizado para satisfazer necessidades próprias da religião ou do Estado (ensino religioso no mundo indiano da época védica, no Egito, entre os hebreus; ensino militar, v.g., no mundo dórico –Esparta, Creta); por vezes é corporativamente organizado algum ensino muito especializado (corporações profissionais na Índia; “as clepíades” de médicos pitagóricos…). Apesar de algumas dúvidas sobre a intervenção do poder, o ensino elementar grego e romano está a cargo das famílias e de servos especializados (pedagogos); quando mais evoluído, desenvolve-se livremente na praça pública ou junto de bibliotecas (ginásios e, porventura, palestra; professores elementares; sofistas, ensino socrático, academia, liceu; pedagogos em Roma). O ensino greco-latino é laico, ao invés do oriental. Com o helenismo e, em Roma, com o Império, assume uma componente pública. Na Idade Média, sem prejuízo da função elementar da educação familiar, ao ensino dos mosteiros e catedrais (sinagogas) sucede o das universidades, com reconhecimento eclesiástico ou civil (real,

\ 154 2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

\ 155 imperial, senhorial).

Na China medieval, embora com alguma iniciativa privada, o sistema de exames supõe pelo menos forte e crescente controlo imperial e de certas instituições de sábios (analogamente no Japão e Coreia). Na Idade Média hindu, o ensino elementar e superior, limitado pela casta, era ministrado por religiosos e eruditos institucionalmente agrupados (cf. as universidades budistas), em regra sob a proteção dos reis ou mosteiros: o sistema bramânico integra maior autonomia face ao poder. Nos impérios bizantino e persa, a autoridade imperial afirma-se tutelando ou suprimindo escolas (Edessa; Academia de Atenas – 529). O ensino muçulmano vive igualmente sob tutela dos senhores e junto das mesquitas, com relevante papel das academias e das bibliotecas (cuja autonomia só por vezes é tolerada: Al-Azhar, no Cairo, e Córdova, que ministram um ensino não retribuído nem regulamentado pelo Estado, sob a responsabilidade dos mestres).

Na Pérsia, os seldjúcidas formam as madrasas ou medersas, como instituições públicas de ensino, que vão proliferar no mundo muçulmano, com escassa autonomia e dupla função: formar o pessoal religioso e administrativo. O aparecimento do Estado e a especialização de todos os níveis de ensino (primário, secundário, superior) vai colocar uma opção estatização/liberdade de ensino, passado a educação laica a ser tomada como uma função: escolas estaduais e obrigação escolar – em Gotha (1642) e na Prússia (1716) –, sistema laico revolucionário napoleónico da França, estatização do “ensino moderno”, sob inspiração ocidental, um pouco por todo o mundo (séculos XIX-XX). Então as querelas da liberdade de ensino restringem-se à liberdade académica e científica dos docentes (Humboldt e a Universidade de Berlim –1810; Constituição da Prússia de 1842, formulando uma questão que será crucial em todos os Estados autoritários e totalitários). E o laicismo (maxime na querela escolar francesa, de Napoleão a Combes… e A. Savary e Pierre Mauroy) vai contrapor a escola oficial

3. A FUNDAMENTAÇÃO

Normalmente, porém, numa sociedade com separação da Igreja e do Estado, como as europeias, a escola confessional tenderá a ser privada (ou como tal tratada). Neste caso, a fundamentação do exercício da liberdade é – se nos reportarmos agora à doutrina católica – com evidência parcialmente autónoma.

\ 156 laica, como instrumentos de uma certa liberdade uniformalizadora e abstrata, imposta pelo Estado às famílias em nome de um certo ideal de “progresso”, à liberdade de ensino, sobretudo reivindicada pelas escolas confessionais católicas e pelas famílias (igualdade, não discriminação, direito à diferença…). Neste contexto, cabe procurar os principais tipos de fundamentos da liberdade de ensino moderna, que se não pode confundir com a mera autonomia das escolas públicas.

Na “Divinis Illius Magistri”, de Pio XI, começa essa fundamentação por se situar no campo do direito divino: a missão atribuída por

CRISTÃ Não admira que – misturando por vezes os conceitos de escola livre e confessional (no caso, a escola católica cristã) – a primeira fundamentação moderna consistente da liberdade de ensino corresponda ao pensamento social cristão. No âmbito do Ensino Particular e Cooperativo recorta-se a escola confessional, maxime, a Escola Católica, normalmente no nosso tipo de sociedade – com separação entre Igreja e Estado: pois é claro que a escola confessional pode até ser pública, desde que exista uma relação confessional, doutrinária ou ideológica entre o Estado e dada confissão religiosa, ou entre o Estado e entidades que assumam uma opção de carácter religioso (ou outro afim, marcadamente doutrinário); e essa relação pode gerar a existência de escolas públicas confessionais.

\ 157

Cristo à Igreja (“Ide e ensinai todas as gentes”) é uma missão divina que só pode ser exercida se à Igreja e suas instituições for dado acesso ao ensino, e se existir a forma específica de ensino que é a Escola Católica. Este tipo de fundamentação, para quem partilhe o pensamento cristão católico, não é contraditório com outros, até à Declaração Conciliar “Gravissimum Educationis”, que opera, não uma mudança de doutrina, mas uma reformulação mais clara com referência ao mundo moderno. Em vez de partir apenas – ou sobretudo – do direito divino próprio de ensinar, pode arrancar-se da necessidade do pluralismo social e da inserção da Igreja numa sociedade livre, ou do direito de a Igreja e os cristãos, no âmbito de tal tipo de sociedade, educarem de acordo com as suas próprias convicções. Isto é, sem prejuízo de esse direito ter outros fundamentos, o seu enquadramento mais geral numa sociedade pluralista, com cristãos e não cristãos, apontará para a liberdade religiosa e de consciência de todos os homens (cf. João XIII na “Pacem in Terris”); só neste âmbito e para os cristãos vigorará um outro fundamento – mais forte no plano dos valores, mas menos geral, porque não é partilhado por todos, salvo numa sociedade cristã –, que encontra a raiz da Escola Católica num mandato divino conferido à Igreja e a todos os cristãos. Há assim, de algum modo, fundamentos próprios e específicos do pensamento cristão para a liberdade de ensino na Escola Católica: mas eles não devem, sob pena de se pôr em causa a própria liberdade, traduzir-se em privilégio (cf. “Gaudium et Spes” e “Dignitatis Humanae” sobre a liberdade religiosa), exprimindo antes um direito de todo o homem. O que há de mais significativo numa proposta religiosa como a cristã (nas suas várias alternativas) é que ela que só vale como proposta em liberdade; e é inserindo-se nas estruturas da

Portanto, a Escola Católica é, em regra, uma modalidade de escola particular ou cooperativa (dado que é essa a forma normal da sua organização na nossa sociedade); é uma modalidade não privilegiada, igual às outras em dignidade, na medida em que é isso o que decorre da igual posição e cidadania de todas as pessoas numa sociedade livre; e é de um projeto educativo próprio, que entronca na missão divina da Igreja, a qual só pela liberdade dos homens pode e quer realizar-se.

\ 158

Escola Católica será necessariamente, então, um conceito que se subsume, como sua modalidade, ao mero ensino livre, sendo certo que o que estará em causa é a escolha entre a neutralidade religiosa do ensino (ou a sua neutralidade face a outros valores) e a necessidade de uma opção global por um ensino diferenciado que acolha a generalidade dos valores, sejam eles católicos ou outros, consoante a escolha da pessoa e da sua família e sem discriminações injustas entre crenças e instituições. É, pois, no âmbito do ensino livre – particular e cooperativo – que fundamentalmente se situa o núcleo da natureza da escola, sendo certo que esta tem outras ramificações: por um lado, a liberdade de educação da pessoa e da família e o ensino livre no âmbito de todo o sistema de ensino; por outro, a especificidade própria da escola confessional, cuja natureza coloca dois problemas próprios, a saber: o da missão da Igreja Católica e o do carácter globalizante do ensino, com as limitações do ensino neutro, considerando que as exigências das pessoas, das famílias e do próprio conceito de educação exigem que o ensino seja global, mas que, do ponto de vista institucional, se integre em estruturas de liberdade.

liberdade humana em geral, e também nas estruturas da liberdade de ensino em especial, que ela pode efetuar-se, independentemente dos seus fundamentos próprios e autónomos.

\ 159 Sublinham-se, pois, os principais destes aspectos específicos, na voz do Concílio Vaticano II: a) “A presença da Igreja no campo escolar manifesta-se de modo particular por meio da Escola Católica. É verdade que esta busca, não menos que as demais escolas, fins culturais e formação humana da juventude. É próprio dela, todavia, criar um ambiente de comunidade escolar animado pelo espírito evangélico e de caridade, ajudar os adolescentes para que, ao mesmo tempo que desenvolvem a sua personalidade, cresçam segundo a nova criatura que são mercê do Batismo, e ordenar finalmente toda a cultura humana à mensagem da salvação, de tal modo que seja iluminado pela fé o conhecimento que os alunos adquirem gradualmente a respeito do mundo, da vida e do homem. Assim, a Escola Católica, enquanto se abre convenientemente às condições do progresso do nosso tempo, educa os alunos na promoção do bem da cidade terrestre, e prepara-os para o serviço da dilatação do reino de Deus, para que, pelo exercício duma vida exemplar e apostólica, se tornem como que o fermento salutar da vida humana” (Gravissimum Educationis, 8). b) “A cada família, pelo facto de ser uma sociedade com direito próprio e primordial, compete o direito de organizar livremente a própria vida religiosa, sob a orientação dos pais. A estes cabe o direito de determinar o método de formação religiosa a dar aos filhos, segundo as próprias convicções religiosas. E, assim, a autoridade civil deve reconhecer aos pais o direito de escolher com verdadeira liberdade as escolas e outros meios de educação; nem, como consequências desta escolha, se lhes devem impor, direta ou indiretamente, injustos encargos. Além disso, violam-se os direitos dos pais quando os filhos são obrigados a frequentar aulas que não correspondem às convicções religiosas dos pais, ou quando se

c) “Os pais, cujo primeiro e inalienável dever e direito é educar os filhos, devem gozar de verdadeira liberdade na escolha da escola. Por isso, o poder público, a quem pertence proteger as liberdades dos cidadãos, deve cuidar, segundo a justiça distributiva, que sejam concedidos subsídios públicos de tal modo que os pais possam escolher, segundo a própria consciência, com toda a liberdade, as escolas para os seus filhos” (GE 6). d) “O dever de educar, que pertence primariamente à família, precisa de ajuda de toda a sociedade. Portanto, além dos direitos dos pais e de outros a quem os pais confiam uma parte do trabalho de educação, há certos deveres e direitos que competem à sociedade civil, enquanto pertence a esta ordenar o que se requer para o bem temporal. Faz parte dos seus deveres promover de vários modos a educação da juventude; defender os deveres e direitos dos pais e de outros que colaboram na educação e auxiliá-los; segundo o princípio da subsidiariedade, ultimar a obra da educação, se falharem os esforços dos pais e das outras sociedades, tendo, todavia, em consideração os desejos dos pais; além disso, fundar escolas e instituições próprias, na medida em que o bem comum o exigir” (GE 3). e) “(…) o poder público deve defender o direito das crianças a uma adequada educação escolar, velar pela competência dos professores e pela eficácia dos estudos, atender à saúde dos alunos e, em geral, promover todo o trabalho escolar, tendo em consideração o dever da subsidiariedade e, portanto, excluindo o monopólio do ensino, que vai contra os direitos inatos da pessoa humana, contra o progresso e divulgação da própria cultura, contra o convívio pacífico dos

\ 160 impõe um tipo único de educação, do qual se exclui totalmente a formação religiosa” (Dignitatis Humanae, 5).

4. AS DOUTRINAS E IDEOLOGIAS MODERNAS PERANTE A LIBERDADE DE ENSINO 4.1. A primeira das ideologias do tempo contemporânea é a do liberalismo, cujo fundamento filosófico individualista conduz a uma ordem social baseada na mera liberdade individual e em finalidades de mera e exclusiva felicidade individual. Então, é da liberdade que decorrerá o conteúdo e a forma do sistema de ensino (desde o Emílio de Rousseau…); da liberdade individual resulta ainda o livre exercício da generalidade das atividades sociais produtivas, incluindo portanto o ensino, e decorre que é pelo mercado que ¹ Sobre o pensamento do Papa João Paulo II, cf. Paulo P. Aragão, A Liberdade de aprender e a liberdade das escolas particulares, 1988, pp. 52-54

\ 161 cidadãos e contra o pluralismo que vigora em muitas sociedades de Enfimhoje”).uma citação do Papa João Paulo II: “O princípio da liberdade de ensino tem o seu fundamento na natureza e na dignidade da pessoa humana. Como esta é uma realidade anterior a toda a organização social – embora destinada a inserir-se nesta – tem direito à prossecução do seu próprio desenvolvimento e aos meios necessários, sem que esta capacidade de autodeterminação seja limitada por imposições arbitrárias do exterior (Discurso de 7/12/1981 à União dos Juristas Católicos Italianos)¹. Daqui se avança para outros tipos de fundamentação. Primeiro se fará um breve panorama da posição das ideologias e doutrinas perante a liberdade de ensino e depois se desenvolverão os principais fundamentos objetivos em que ela encontra sustentação, bem como os sistemas de pensamento em que se integra.

E generaliza a análise feita, dizendo: “Se não houvesse instituições públicas destinadas à educação não se ensinaria uma ciência, fosse ela qual fosse, para a qual não houvesse alguma espécie de procura (…)”, “(…) aqueles aspetos da educação para o ensino dos quais não há instituições públicas são geralmente mais bem ministrados”.

De notar que a luta dos Estados liberais da Europa Católica contra o ensino da Igreja criou a situação paradoxal de, à sombra deste princípio, colocar um ensino estadual privilegiado, porque gratuito e obrigatório, a espaços mesmo monopolista, ao lado de um ensino privado formalmente livre, mas sem a cobertura social dos seus custos, portanto caro e discriminatório. Na europa germânica (Bélgica, Holanda, Estados alemães…) a liberdade de ensino é instituída como serviço nacional, ultrapassando o preconceito anti-confessional e a dicotomia mercado (para o ensino privado)

– Estado (ensino público), que na prática acaba por destruir a liberdade substancial de ensino. 4.2. Em oposição radical deparamos com diversas ideologias estatistas, mais ou menos radicalmente estadistas.

\ 162melhor se apurará quais as escolas que mais realizam a utilidade social, por serem procuradas pelos consumidores de educação. É claro, então, que o ensino-mercadoria pode ser produzido pelas empresas-escolas, como negócio de serviços e não como serviço social. Foi com base nesta lógica que Adam Smith (… Riqueza das Nações, Livro V, Capítulo I, parte III, art. II) pôde observar: “As instituições para a educação da juventude podem (…) ter um rédito suficiente para satisfazer as suas despesas. A propina ou honorários que o aluno paga ao mestre constitui naturalmente um rédito desse tipo. Mesmo nos casos em que (…) não provém no seu conjunto deste rédito natural, não é necessário que derive do rédito geral da sociedade (…) da responsabilidade do poder de executivo”.

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A primeira é a do nacionalismo laico, que inspira os Estados iluministas e absolutistas e contra a qual, ao menos em parte, reage a ideologia liberal. Foi em seu seguimento que os Estados absolutistas, nos séculos XVII-XVIII, chamaram a si, em monopólio ou concorrência privilegiada, a responsabilidade pelo sistema de ensino ou por largas fracções dele (entre nós, Pombal). Mas é o sector estatista e totalitário do pensamento socialista que, de formas diversas, fundamenta o monopólio público do ensino ou, pelo menos, um forte controlo do Estado sobre o sistema, com apropriação de partes significativas da estrutura escolar. Já Platão (A República e As Leis) exemplarmente teoriza este traço muito relevante do pensamento pedagógico socialista; o mesmo sucede, v.g., com Tomás Moro e os seus “padres pedagogos”, com a responsabilidade pela instrução e pela educação na Cidade do Sol de Campanella, que já anteviu o importante papel no Estado da classe dos professores; com Morelly e as “oficinas públicas”; com Babeuf que desenvolve o Emílio de Rousseau no sentido de defender a igualdade no acesso à educação e co-educação como forma de suprimir as desigualdades e o “pagamento nacional dos professores” (que só em 1794 viria a ser aprovado pela Lei Lakanal); com as “casas de educação comuns” de Philippe Buonarroti; com a organização da indústria pública, uniforme e de massas, sob a orientação do “poder espiritual” dos sábios organizados em academias no modelo de Saint-Simon; com o sistema único, comum, obrigatório e uniforme de educação e instrução pública de Robert Owen; com o estatismo rígido e utópico de E. Cabet e V. Considérant… Todavia, deve reconhecer-se que, sem omitirem o papel do Estado na instrução pública, defendem certas formas de liberdade de ensino alguns outros autores socialistas, como Proudhon, Jean Jaurès e os anarquistas.

A importância do ensino como forma privilegiada de transformação social e de socialização, a interligação entre sistema social e sistema educativo, a educação como necessidade social, a revolução ou a reforma pelo sistema de ensino (universalidade, gratuitidade, coeducação, ligação à vida, ao trabalho, às atividades produtivas, escola única – “Gesamtschule”), a necessidade de suprimir a escola capitalista como instrumento reprodutor da desigualdade, o laicismo e o aconfessionalismo do ensino: eis algumas das razões principais, quer dos estatistas radicais, quer dos mais moderados (sendo certo que o fabianismo, o trabalhismo e muitas correntes da social-democracia chegaram a aceitar o pluralismo escolar e a liberdade de ensino, no âmbito de um sistema nacional de educação, cujos objetivos fossem definidos e garantidos pelo Estado). Marx e Engels, desde o Manifesto Comunista (1848; cf Principes du communisme, 1847), defendem a “educação de todas as crianças, a partir do momento em que podem ser retiradas aos cuidados maternos, nas instituições nacionais e a cargo da nação (educação e fábrica)”. O ponto 6 do “Programa de Gotha” do SPD (1985) reza: “Educação geral e igual do povo pelo Estado. Obrigatoriedade escolar. Gratuitidade da instrução em todos os estabelecimentos escolares. A religião será considerada assunto privado”. Esta formulação, mais lassaliana que marxista, foi criticada pelos marxistas (cf. O Capital, Crítica do Programa de Gotha, Anti-Duhring), sendo mais clara a fórmula (gerada em Londres, em 1870, por Marx, Engels, Guesde e Lafargue) do Programa do Partido Operário Francês (1879): “Instrução científica e profissional de todas as crianças colocada, pela sua manutenção, a cargo da sociedade pelo Estado e pela Comuna”. Desde então até hoje, os Estados marxistas-leninistas inscrevem na própria Constituição o carácter estatal do ensino e a proibição do ensino privado (cf. ainda Bukhárin, Preobrajenski, Makarenko). Para isso tendem, pelo menos, outros sistemas totalitários do nosso tempo (como o nazi).

representada

\ 164

A primeira ordem de fundamentos da liberdade de ensino situa-se na articulação do sistema de ensino e suas instituições com a liberdade das pessoas, famílias e instituições sociais. Ela prevalece nas correntes de pensamento com inspirações humanistas (personalistas, institucionalistas ou outras). Assume duas dimensões principais: uma no plano dos valores – que se concretiza nomeadamente na conceção da liberdade de ensino como direito do homem, fundamentado na sua natureza, num plano de direito natural, ou num consenso positivo verificado entre povos civilizados; a outra no plano da eficiência e utilidade do sistema de ensino.

4.3. Longe do individualismo e do estatismo, diversas correntes doutrinárias se têm configurado de modo favorável à liberdade de ensino. O personalismo encara-a primariamente como expressão de um direito da pessoa e da família. O institucionalismo vê nela a expressão institucionalizada da liberdade e iniciativa das instituições e grupos sociais. O cooperativismo verá nela um meio de reforma de mentalidades, na liberdade e na solidariedade. Diversas correntes a justificam como expressão de um dos valores inspiradores do sistema de ensino (que deve ser dominado, v.g., no programa do SPD alemão, pelos valores da liberdade, da justiça e da solidariedade) ou como um meio de alcançar maior eficácia do sistema e das instituições escolares (utilitarismo pedagógico). Vejamos, de seguida, as principais fundamentações específicas.

5. A LIBERDADE DE ENSINO E A LIBERDADE PESSOAL, FAMILIAR E INSTITUCIONAL

5.1. Então, a liberdade de ensino terá um sujeito essencial: a pessoa, quando suficientemente amadurecida e consciente, em função do grau dessa maturidade e consciência; ou a família, como entidade

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\ 166 supletiva das escolhas que não podem ser feitas por cada pessoa, por falta de plena maturidade ou consciência. Cumpre ao Estado efetivar esse direito reconhecendo-o no plano formal e dando-lhe conteúdo substancial, mediante a criação de meios para que não exista discriminação entre as diversas escolhas do tipo de educação ou ensino existentes numa determinada sociedade. E cabe às diversas colectividades menores (igrejas, colectividades culturais, sociais, étnicas, etc.) coadjuvarem as famílias, sempre que por estas sejam escolhidas, ministrando a educação, crescentemente socializada e especializada, que nas sociedades modernas compete largamente ao sistema de ensino, suprimindo as carências das famílias, sem nunca suprimir a sua livre opção quando ao conteúdo e valores orientadores. Nalguns casos, o exercício desta função de cooperação com a família, que cabe às colectividades religiosas, culturais ou outras, traduz-se por vezes, para estas, no exercício de um outro direito próprio – como o direito de liberdade religiosa ou o direito à afirmação cultural de minorias étnicas; mas sempre subordinadamente ao dever de cooperarem com as famílias e as pessoas na escolha do tipo de ensino, exercitando de modo responsável o direito e o dever de ensinar e exigindo do Estado a liberdade para agirem neste domínio e os meios efetivos – financeiros, administrativos ou outros – adequados à supressão da discriminação entre os cidadãos quanto à escolha do tipo de ensino que cada um procura. Em tal óptica, o ideal para o qual a estrutura de ensino há de tender é este: que, dentro dos quadros do sistema nacional de ensino não exista qualquer impedimento nem discriminação entre a escolha, pelo sujeito de ensino ou sua família, de educação laica, católica ou protestante, de uma educação inspirada por esta ou por aquela corrente filosófica… A todos se há de assegurar a liberdade e iniciativa necessárias, os meios imprescindíveis e o reconhecimento em pé de igualdade com o ensino do Estado, se o seu nível não lhe for inferior. Nestes

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É este o direito fundamental da pessoa que se acha consagrado, designadamente no n.º 3 do artigo 26.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1984: “Os pais têm, por prioridade, o direito de escolher o género de educação a ministrar aos seus filhos”. E, sobre ele, o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, também das Nações Unidas, fixou orientação ao precisar alguns dos elementos integrantes da liberdade de ensino como faculdade essencial do direito à educação (nos seus n.os 3 e 4). No mesmo sentido dispõe a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, para ratificação em Portugal pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro (protocolo n.º 1, artigo 2.º), e se pronunciou, em 1984, o Parlamento Europeu. A liberdade de ensino implica necessariamente – como se vê – o respeito pela liberdade, iniciativa e propriedade privada e cooperativa, no tocante às instituições escolares integradas no sistema de ensino. Por isso se explica que à regulamentação

termos, a liberdade de ensino é direito fundamental e natural das pessoas e suas famílias – individualmente ou agrupadas em função da partilha de convicções e opções sociais ou culturais comuns –, o qual implica a livre escolha, com o mínimo de discriminações, do tipo de ensino, sua orientação, conteúdo e forma, ao longo de todo o sistema de ensino. E ela integra o conteúdo do direito à educação – ou, mais amplamente, à formação em todos os seus aspetos – que, por se tratar da realização da personalidade de cada um, primariamente cabe às pessoas e famílias, só depois se inserindo na esfera da coletividade e do Estado, responsáveis pela efetivação do direito à instrução em conformidade com as opções fundamentais de cada pessoa e cada família.

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da liberdade em todo o sistema de ensino – público, privado e cooperativo – se siga necessariamente uma regulamentação pormenorizada e concreta do ensino privado e cooperativo. Pois, se não existir, livre e desprovido de discriminações (administrativas, pedagógicas, financeiras ou outras), um ensino privado e cooperativo, sem outros limites que não sejam as finalidades genéricas de um sistema educativo democrático e progressivo e os princípios gerais do sistema nacional de ensino, não existe verdadeira e real liberdade de ensino. Por outras palavras: como a liberdade de uns é indissociável da liberdade dos outros, como a liberdade é sempre global, então não basta que exista liberdade no seio do ensino estatal: a liberdade de ensino afere-se decisivamente, em última instância, pela existência efetiva de ensino privado e cooperativo livre, sem discriminações ilegítimas e com plena liberdade de acesso e exercício.

A liberdade de ensino não pode restringir-se a qualquer forma institucional do seu exercício ou com ela confundir-se, nem deve existir confinada a uma só área do sistema escolar, mas sim em todo ele. Ela não se identifica com a propriedade dos estabelecimentos de ensino, com o mero direito de fundação ou instituição de escolas, com o direito de exercício de uma atividade profissional ou do ensino comercial e mercantil (que deve transformar-se progressivamente num ensino de serviço comunitário e exercício privado ou cooperativo). Contudo, postula necessariamente este tipo de instrumentos, pois até hoje não se conhece qualquer experiência ou modelo social em que, sem eles, existia afetiva liberdade de ensino num âmbito global. Assim, o direito fundamental da liberdade de ensino explicita-se na iniciativa e eventualmente na propriedade dos meios pelos quais se exerce: consoante essa iniciativa, essa responsabilidade e a propriedade decorrente dos meios instrumentais seja particular

O individualismo da sociedade moderna – e o seu gémeo irmão-inimigo coletivista – não extraíram daqui que a liberdade se situasse além da relação educador-educando, e situaram por vezes em²Cf.JorgeMiranda,“Direitosfundamentais–liberdadereligiosaeliberdadedeaprendereensinar”,DireitoeJustiça,Vol.III,1987/1988,pp.39-54.

5.2. Passemos, agora, a outro plano de fundamentação. Numa sociedade humanista – logo, livre – a educação há de por força ser um ato livre e, quando exercida de forma continuada, uma atividade livre. Educar é o contrário de impor, de condicionar, de adestrar. Educar é propor, motivar, formar e dar a conhecer com liberdade: liberdade que nasce da consciência da entidade educadora e da vontade e inteligência do educando, uma e outro envolvidos por essência numa tarefa comum de liberdade responsável, em que ambos cooperam. Ato livre, então, porque momento essencial da formação da personalidade, de criação, transmissão e personalização das escolhas e conceções culturais; ato livre porque encontro, tão pessoal quanto possível (mesmo que se socorra dos meios próprios da sociedade de massa), entre educadores e educandos – que todos aprendem e todos ensinam, embora de modo diferente –, entre pessoas e instituições. Não é preciso citar Rousseau, Pestalozzi, Froebel ou Dewey – entre tantos outros – para afirmar que não há educação sem liberdade.

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ou cooperativa, assim será o ensino em causa. Parece evidente que o ensino particular e cooperativo constitui um núcleo sem o qual não existe liberdade de ensino, e muito menos haverá a mais ampla liberdade de formação, que se impõe às esferas públicas, privada e cooperativa de todo o sistema formativo nacional (e da sua componente sistema de ensino)².

conceções de educação em liberdade no âmbito de estruturas sociais desprovidas de liberdade. Mas, se a educação é um processo global, então a liberdade a há de marcar em todas as suas expressões: educação familiar, educação escolar, educação pela comunicação de massa, e aquela educação continuada que é a formação contínua (profissional, mas não só…). A educação é o momento formativo, personalizante da cultura criada: tal como a cultura, de que é indissociável, a educação não pode conceber-se sem liberdade. Este princípio de liberdade de educação inspira, certamente, a ideia de liberdade pedagógica, na relação pedagógica individual (professor-aluno, professor-classe, família-criança ou jovem). Mas inspira não menos a relação social que a envolve. A escola tem de ser livre; a educação livre exige uma escola que seja, ela própria, sociedade de liberdade: o “self-government” escolar, de que entre nós falou António Sérgio, tem de preparar para a liberdade, e idealmente há de inserir-se numa sociedade livre. E, do mesmo passo, inspira a determinação dos titulares do direito de educar que, numa sociedade complexa, são necessária e hierarquizadamente todas as comunidades globais, todas aquelas em que a pessoa se insere como ente completo: desde a mais pessoal, a primeira titular do direito de educação – a família –, às mais globais – as Igrejas e os Estados –, passando pelas entidades resultantes da liberdade de associação com o fim de propor formas válidas de educação, escolhidas pelas famílias, pelas pessoas (se forem adultos e conscientes) e controladas em liberdade pelas sociedades maiores (Igrejas e Estados).

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Neste âmbito, a liberdade de educação projeta-se em toda a relação da sociedade com a educação, sem se esgotar na relação individualista educador-educando, como redutoramente o entenderam certas correntes tradicionais.

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dois fundamentos, pode dizer-se que as constituições liberais de Oitocentos reconduziram o fundamento do direito de liberdade (pluralista) de ensino à ideia individualista de liberdade, a que essencialmente nos reportámos no n.º 5.2. A liberdade de ensino era, então, um direito decorrente da liberdade

Da liberdade de educação decorre a liberdade de ensino, restringindo-a quanto aos sujeitos e quanto ao objeto. Quanto ao objeto, na medida em que o ensino é, numa “sociedade perfeita” global, o conjunto de estruturas, instituições e respetivas atividades que, completando a função educativa direta da própria sociedade, das pessoas, das famílias, da vida social em geral, se especializam na tarefa de educação. O ensino é, então o conjunto de instituições, desde a mais elementar à mais complexa, que exercem, dentro dum princípio de especialização de funções, a tarefa social da educação de modo tendencialmente exclusivo: e aqui surge uma restrição quanto aos sujeitos, já que nem todos os educadores se inserem no sistema de ensino (mas em toda a educação a liberdade tem sentido; cf. as obras e experiências de Montessori e Neill). Neste sentido, se a educação deve ser livre por natureza, numa sociedade livre o ensino também haverá de o ser. E sublinha-se que terá de o ser, pelas mesmas razões fundamentadoras da liberdade de educação e por outras mais.

O ensino é a instituição cultural fundamental de uma sociedade, indissociável da vida e do projeto cultural dessa sociedade; por isso mesmo, é sobretudo nele que se demarca o carácter livre, pluralista e (adotando agora uma forma organizativa) democrático de uma sociedade. Sem ensino livre não há sociedade humanista livre, pluralista e democrática. E eis que, assim, chegamos a outra ordem de 5.3.fundamentações.Combinandoestes

Se – na linha de raciocínio do n.º 5 – não há sociedade humanista sem que o sistema de ensino respeite a autonomia pessoal, num dos domínios que mais marcam a liberdade e a identidade de cada pessoa (a educação própria e o seu prolongamento na formação dos filhos e familiares dependentes ou a cargo), outra ordem de fundamentações diz respeito à democracia pluralista, desenvolvendo e especificando quanto antes se referiu. Entende-se então que não haverá democracia pluralista sem que o sistema de ensino respeite a autonomia das pessoas e famílias, no tocante às suas preferências e convicções, e sem que dê expressão formativa às principais conceções ou correntes sociais, expressas nas respetivas instituições e associações. A liberdade e o pluralismo devem enformar a formação que cada um recebe e a que, em família e com a ajuda do sistema escolar, vai transmitir aos seus filhos. Numa sociedade aberta e democrática, ensino e liberdade são assim inseparáveis. O ensino deve exercer-se, enquanto estrutura orientada para a educação social, como nas instituições aptas e assegurá-la, em obediência a critérios e objetivos fundamentais, dos quais a liberdade é sempre um dos primeiros. O ensino há de visar a preparação para uma sociedade de que a liberdade é conceito essencial e prática corrente. O ensino deve enfim respeitar a liberdade pessoal e a liberdade social, nas suas diferentes dimensões. Em suma, não há ensino democrático sem liberdade: e a liberdade no ensino assume diversíssimas concretizações e tem

\ 172de pensamento e de opinião – o que restringe, mas não contradiz, a visão personalista do n.º 5.1. (cf. ainda hoje, as polémicas jurídico-constitucionais sobre a oração nas escolas e sobre o ensino do darwinismo nos Estados Unidos da América). 6. LIBERDADE DE ENSINO E DEMOCRACIA PLURALISTA

\ 173 múltiplas consequências. Por isso, o conteúdo do ensino deve poder ser escolhido pelos sujeitos da educação, de acordo com as suas múltiplas opções sociais, doutrinárias ou ideológicas, e não pode ser-lhes imposto por quaisquer outros sujeitos, nem sequer pelo Estado. Não há processo educacional livre se não decorrer em harmonia com as escolhas livres e conscientes do sujeito educativo e se não se orientar para o exercício pleno e consciente da liberdade cívica, cultural e social. Se o ensino é, simultaneamente, expressão da organização social e estrutura da sua reprodução, preparando pela formação as estruturas e as pessoas que a perpetuarão ou a continuarão, transformada, no futuro, então só um sistema de ensino pluralista e diversificado, com respeito pelas diferenças entre pessoas e grupos, entre maiorias e minorias, é coerente com uma sociedade democrática pluralista, quer se entenda que toda a democracia exige uma organização pluralista – como nos parece mais correto –, quer se julgue que a democracia pluralista é apenas uma das formas, porventura a mais perfeita, da organização social democrática.

Democratizar o ensino é, também, torná-lo mais perfeitamente Sempluralista.prejuízo de poderem discutir-se soluções técnicas e possibilidades financeiras, a aceitação ou rejeição do quadro fundamental da liberdade de ensino, como essencial direito do homem, é pois essencial aspeto da clarificação dos modelos de sociedade. Não se pode construir a democracia com quadros centralistas, monistas, autoritários e estatizantes – e muito no tocante à formação das pessoas que serão a sociedade do futuro.

A escolha dos quadros institucionais em que se exerce a liberdade de ensino – e da sua componente essencial, que é um ensino privado e cooperativo efetivamente livre e sem discriminações – constitui pois um revelador teste do modelo social e cultural e do efetivo respeito pelos direitos do homem. Uma sociedade descentralizada, em que ao Estado caiba um importante papel ao serviço de todas as pessoas, em especial as mais desfavorecidas, sem se arrogar fins próprios autoritários ou totalitários, integrará por força a liberdade de ensino. Estruturas autoritárias e potencialmente totalitárias gerarão a inexistência de liberdade de opção quanto ao tipo de ensino. Não há democracia que valha sem efetiva liberdade de ensino, nem regimes totalitários que tolerem a liberdade de ensino (embora haja democracias políticas que são em concreto imperfeitas neste domínio, como em outros, conquando respeitando limiares mínimos sem os quais deixarão de ser democracias…; e certos regimes e sistemas de autoridade podem tolerar espaços de liberdade). No fundo, o futuro da liberdade de ensino será o futuro do modelo pluralista e democrático da sociedade. Onde existem sociedades monistas, no passado ou no presente, ela não existe: na sociedade dominada pelo Estado nacional (“cuius regio, eius religio”), na sociedade dominada pelo monismo liberal do Estado laico (sistema napoleónico), na sociedade marxista em que a religião é avaliada como fenómeno alienatório de classe e em que a uniformidade do sistema pela rejeição da propriedade, da iniciativa social e cultural e do pluralismo, é incompatível com qualquer forma de liberdade de ensino – julgada “individualista”, “capitalista” ou “liberal” –, então não haverá verdadeira liberdade de ensino, porque não há liberdade de ação e organizativa educativa. Ao invés, vê-se que o destino da liberdade de ensino é indivisível do futuro da liberdade, da democracia, do pluralismo, do respeito pelos direitos

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7. LIBERDADE DE ENSINO E SISTEMA ESCOLAR Para além do que se escreveu no n.º 6.2 (supra), outros critérios fundamentam a liberdade de ensino relativamente à conceção e estrutura do sistema escolar, em alguma ou todas as suas Emcomponentes.primeirolugar, a função social do sistema escolar. Se consistir em formar elementos para uma sociedade livre, então pressupõe-se que a escola seja ela própria uma “micro-sociedade” livre, pois só na liberdade se adquire a consciência, o hábito e o jeito da liberdade: e isto cobre a liberdade de ensinar e de aprender, mas

\ 175 do homem. A prospetiva da liberdade de ensino tem um horizonte necessariamente global: os riscos que ameaçam a sociedade humana e livre são bem os mesmos que ameaçam a liberdade de ensino. No limite e no extremo, a liberdade de ensino abrirá espaço às chamadas escolas livres (cf. as experiências de “universidades livres” em Londres e S. Francisco: cf. M. Ball, Education for change, 1974; M. Miles e outros, Innovation in Education, 1971), destinadas a fornecer uma alternativa global à escola competitiva capitalista, baseada na ausência de requisitos formais de ingresso e de currículos e avaliações formais (cf. também as “free schools” de Summerhill – A.S. Neill – e Liverpool). Estas comunidades, auto-regulatórias e não compulsivas, visam integrar-se na sociedade alternativa e promover uma mutação social revolucionária. Também elas são exemplo do largo espaço aberto pela liberdade, em sentido mais amplo e compreensivo, qualquer que seja o juízo que se faça em concreto de tais experiências, as quais, não tendo o exclusivo da liberdade, só em liberdade poderiam surgir.

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há de abranger igualmente a liberdade de criar instituições de ensino. Só pelo “self-government”, pela liberdade de buscar a verdade e transmiti-la, na investigação, no ensino e na procura de ensino, se reproduz a democracia e se socializa para a democracia. E mesmo onde existam regimes autoritários de intenção democrática – isto é, dominados pelo intuito de criarem as condições para uma democracia estabilizada, operando uma reforma de mentalidades – a função do sistema escolar só será efetivamente ajustada a esse objetivo final, democratizador e civilizador, se comportar, pelo menos, as formas possíveis e coerentes de liberdade. O sistema de ensino reproduz e aprofunda a liberdade, se for livre: ou limita-a e destrói-a a prazo, se o não for (como, na óptica da sociedade, se referiu no n.º 6).

Em segundo lugar, outra função do sistema de ensino é a de assegurar a cobertura tanto quanto possível completa e global das necessidades formativas de todos os membros da sociedade carecidos de ensino – ou, mais latamente, de formação (no sistema de formação); e então deverá falar-se de liberdade (plural) de formação, como consequência ampliativa da liberdade de ensino.

A possibilidade de cobrir o mais possível as diversas zonas da sociedade é assim garantida pela maior mobilização de recursos facultada pela liberdade de ensino, sem prejuízo de ser função própria do Estado a garantia da universalidade e acessibilidade do sistema de ensino, com a sua responsabilidade de garantia global e iniciativa subsidiária ou supletiva. E é-o também a necessidade de o ensino facultar uma formação geral – não uniformizada e reduzida a um mínimo denominador comum, mas diversificada em função das escolhas pessoais e da sua variedade, coerente com as visões do mundo de cada pessoa e família, e tanto quanto possível global e aprofundada, cobrindo as zonas formativas que exigem maior profundidade pessoal e adesão à personalidade de

\ 177 cada um (docente e discente). Só se satisfazem qualitativamente as necessidades pessoais de formação se se proporcionar um encontro flexível e diversificado entre docentes e discentes com convergência de formações, nomeadamente nas matérias que são indissociáveis de opções valorativas e de visões do mundo, necessariamente plurais. A liberdade de ensino (também no interior da parcela pública do sistema, mas necessariamente nas instituições privadas e cooperativas, com liberdade de iniciativa e autonomia) é uma condição para haver sistemas formativos plurais, personalizados e diversificados nas sociedades atuais, aliás exigidos pelo futuro; sem ela, é um mero mínimo técnico de informação, uniforme e despersonalizado, que o sistema escolar e formativo oferece às famílias, e não uma formação global integrada com a destas e capaz de gerir, assimilar e provocar as mudanças que “são” o progresso. Enfim, o sistema escolar deve assegurar os grandes valores de justiça e da solidariedade. Então, a liberdade de ensino pressuporá que não exista discriminação entre os sujeitos que têm acesso ao sistema de ensino e o integram: ela só existirá realmente se não houver discriminação entre tipos de escolas (privadas e cooperativas “versus” públicas; oficiais – confessionais, ou socialistas, ou nacionalistas, ou de outras correntes – e não oficiais), a qual, impedindo ou limitando a livre opção dos professores, grupos sociais, famílias e indivíduos, torna uns mais livres, porque mais ricos ou dotados do acesso ao ensino privilegiado (pela sua maior riqueza, nas sociedades capitalistas; por adesão ideológica, nos “estados éticos” de imposição de valores: por origem de classes, nos “estados de classe”, marxistas ou aristocráticos), e outros menos livres, porque desprovidos do acesso igual ao melhor ensino quanto à qualidade (protegido qualitativamente ou externamente favorecido: gratuito ou mais barato; oficialmente reconhecido). Nos Estados capitalistas a principal discriminação é a económica, que

8. LIBERDADE DE ENSINO E LIBERDADE CULTURAL Sem aprofundar muito, pode dizer-se que a educação e a cultura são indissociáveis, se é que não se identificam num mesmo conceito, como o faria já a noção grega de paideia (W. Jaeger). Quanto muito, o sistema formativo/educativo/instrutivo, na sua vertente escolar, tem como função principal a formação/educação/instrução, ao passo que a cultura, em sentido amplo visa diretamente a criação ou promoção concreta dos valores fundamentais, da verdade (admitida a “aproximação” de considerar a verdade como próprio valor, quando é relação ou critério validante do conhecimento científico e da eficácia tecnológica), da beleza e do bem. O sistema cultural visa, então, a criação, a investigação e a preservação das respetivas atividades, valore e objetos. Parece evidente que sem a liberdade de ensino/educação/formação não existe liberdade cultural quer porque muitas vezes nas primeiras se exercitam aptidões para a segunda, quer porque as produções da cultura livre devem ser acolhidas pelo sistema de ensino/ /formação, quer ainda porque em muitos casos (nomeadamente o ensino universitário ou o ensino artístico) a criação e investigação artística, científica, cultural, etc., são indissociáveis do próprio ensino. Tudo isto revelará, talvez, que também a liberdade de

\ 178 limita a opção por escolas privadas aos mais abastados (enquanto as públicas são acessíveis a todos, porque gratuitas ou mais baratas), do mesmo passo que obriga a custear as escolas públicas tanto as famílias cujos filhos as frequentam como aquelas que optam, à sua custa, pelo ensino privado. Há, então, nestas discriminações quebra de critérios fundamentadores e distorção das funções de sistema de ensino, que afetam essenciais valores de sociedade e do próprio sistema: a igualdade, a solidariedade e a justiça.

espírito é indivisível: e ela torna indissociáveis liberdade de ensino e liberdade cultural (de pesquisa, criação, animação/difusão e procura cultural). Isto é verdade sobretudo em tempos, como os dos séculos XIX-XX, em que o sistema de ensino se tornou predominantemente público (estadual, regional, local); e poderá corrigir-se na medida em que a esfera pública e a esfera privada (Habermas) se entrecruzam mais, v.g., mediante a expansão de atividades livres subvencionadas.

9. OUTROS FUNDAMENTOS Mencionam-se alguns, outros, fundamentos que, no essencial, desenvolvendo ou reproduzindo os anteriores, às vezes numa perspetiva mais utilitarista ou pragmática, não fornecem fundamentações autónomas. São antes critérios ou argumentos auxiliares a ter em conta, nomeadamente numa perspetiva de economia, eficiência e utilidade social. a) Como têm mostrado, tanto a história com a mais recente experiência pedagógica, a capacidade de inovação é função do grau do autonomia que, no campo do ensino, se atribui a todos e especialmente aos professores e pedagogos – e, em suma, aos promotores de todas as iniciativas válidas. Se a história da pedagogia não contivesse inúmeros exemplos, tanto no que se refere aos métodos, como no domínio da diferenciação ideológica, dos méritos do ensino privado – as experiências recentes no campo do ensino como nos demais mostram que a diversidade e flexibilidade resultam claramente da autonomia (vejam-se os trabalhos da OCDE sobre inovação no ensino superior ou os estudos sobre inovação de T. Husén). O ensino livre tem assim permitido criar novos tipos de ensino e escolas (v.g., educação pré-escolar e escolar superiores profissionalizantes em Portugal), pôr em prática métodos novos

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c) A cobertura regional – e, em muitos casos, social – do país entre nós (num país centralizado e excessivamente desequilibrado em benefício do Litoral e dos grandes centros) só tem sido satisfatoriamente assegurada pelo ensino privado. Tema fecundo para reflexão é o seguinte: será mais económico e mais adequado às necessidades regionais e locais aproveitar e fazer evoluir o que existe – ou deitar tudo abaixo, na perspectiva de uma utopia futura? O facto parece, pois, confirmar que a descentralização e a cobertura regional das necessidades de ensino podem ser favorecidas pela liberdade de iniciativa escolar.

\ 180 afastados dos sistemas oficiais ou renovar os métodos e sistemas que estes praticam (v.g., o sistema Decroly na Bélgica ou o método Dalton na Holanda), com liberdade, que é algo mais profundo e radical do que a autonomia de ensino público.

d) Um sistema com liberdade escolar pode ser – e tem sido em muitos casos – fator relevante de redução das desigualdades regionais no acesso ao sistema escolar, alargando a rede escolar não oficial às regiões e a certos sectores da população que são mais desfavorecidos.

e) Especificamente, no que concerne ao ensino superior, ela representa uma consequência da autonomia dos agentes de ensino (não quanto ao conteúdo ideológico, mas quanto ao conteúdo pedagógico, científico e didático do ensino) e da liberdade de

b) Está amplamente demonstrado que o ensino privado é socialmente mais económico do que o correspondente ensino estatal: todos os cálculos comprovam que a dimensão que ele atinge, o grau de iniciativa que liberta, a sensibilidade aos custos e benefícios, proporcionam uma lecionação com maior economicidade que a oficial (mais baixo custo e/ou maior benefício).

f) Enfim, o próprio modelo de sociedade descentralizado e diversificado impõe – sobretudo numa conjuntura histórica em que ressurge com mais força – a descentralização e diversificação do seu sistema formativo/educativo/escolar (como sempre com extensão decrescente). É certo que podemos conceber um modelo puramente teórico de ensino público, aberto à inovação, diversificação e assegurando a pluralidade de opções e a liberdade interna dos docentes e discentes, ou mesmo a de criação de escolas, em função das grandes correntes e necessidades formativas do povo. Importa, porém, reter que tal sistema nunca existiu: o monolitismo e a burocracia dominam em regra os ensinos estatais de todo o Mundo. E, ainda que no futuro venha a evoluir-se no sentido de um ensino oficial que não seja essencialmente monolítico e rigidamente conservador, porque reprodutor centralmente conduzido das opções do sistema veiculados pelos órgãos do poder –tal experiência seria, no mínimo, aleatória, com altos custos sociais e graves riscos de recair no dirigismo pedagógico e cultural ou no caos e na anarquia.

10. CONSEQUÊNCIAS

QUANTO AO PAPEL DO ESTADO De quanto precede, decorrem algumas consequências claras, num plano fundamental: a) Que a liberdade de ensino é um direito, quando se adotem as conceções e os critérios que decorrem de quanto se disse

\ 181 regência, investigação e ciência (na medida em que suprime verdades oficiais, sem cair no arbítrio magistral, e na medida em que a investigação e criação científicas, nomeadamente no nível superior de ensino, estão estreitamente ligadas à docência), uma e outra ajustadas às diferentes necessidades sectoriais e regionais.

e não um privilégio, resultante da mera tolerância do Estado ou da maioria da coletividade perante grupos sociais minoritários (porque ricos, ou porque diferenciados da maioria da sociedade, em matéria de convicções ou de estatuto social, por exemplo). Só onde quer que se entenda que o ensino deve ser essencialmente estatal, o ensino não estatal – não livre, mas tolerado – seria: um privilégio, como tal incompatível com a igualdade perante a lei e a igualdade de oportunidades, e até com níveis excessivos de desigualdade desprovida de justificação natural ou ética, que são características de sociedades humanistas e, no limite, democráticas. Mas tal conceção seria claramente totalitária…

182anteriormente,

c) Que a liberdade tão-pouco retira ao Estado as suas responsabilidades globais pelo sistema de ensino e formação, as quais aqui se não definem: responsabilidade que supõe o exercício não discriminatório de certos poderes (normativos ou administrativos) relativamente a todas as instituições, agentes e sujeitos de ensino – públicos, privados ou cooperativos; mas tais responsabilidades hão de respeitar os direitos das pessoas, famílias, associações e movimentos legítimos, colocando-se, se necessário, ao seu serviço, ao invés das doutrinas supra ou transpersonalistas de qualquer natureza e subordinadas a quaisquer valores.

\

b) Que a liberdade de ensino não retira ao ensino a natureza parcial de bem coletivo, o qual, como se sabe, poderá ser oferecido por entes públicos, privados ou cooperativos, devendo, na medida em que tem utilidade social genérica, ser financiado socialmente por todos. Por outras palavras: tão “coletivo” é o ensino privado como o público ou o cooperativo, e, assim sendo, tanto direito tem um à subvenção, como o outro ao financiamento direto, em função da utilidade social que respetivamente prestam por igual.

\ 183

A liberdade de ensino encontra uma diversificada expressão em textos legais, tanto de Direito Interno como de Direito Internacional. Quanto aos primeiros, remete-se o seu estudo (cf., por todos, com bibliografia abundante, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2.ª ed., Coimbra, 1988, pp. 372-373; Paulo Pulido Adragão, A liberdade de aprender e a liberdade das escolas particulares, policop., Lisboa, 1988)

11. EXPRESSÃO JURÍDICA DA LIBERDADE DE ENSINO

d) Que, para que haja liberdade, o primeiro dos consequentes deveres do Estado é assegurar condições de igualdade de acesso, frequência e funcionamento – bem como a liberdade, com respeito pela qualidade e pelos objetivos justos do sistema nacional de formação e ensino – entre ensino público, por um lado, e ensino privado e cooperativo, por outro; bem como entre as diferentes instituições destas várias formas de ensino, sem prejuízo das diferenciações legítimas, baseadas na qualidade ou em valores relevantes de preferência social, que a sociedade pluralista também admite e encoraja, porque representam mérito e não privilégio, abertura e não monopólio. Quanto se disse não pretende mais do que articular as responsabilidades do Estado com os fundamentos da liberdade de ensino e, por conseguinte, com os valores que a regem, já que a dimensão social deste direito efetivo (não meramente formal) é cada vez mais incompatível com a mera abstenção estadual, impondo a sua promoção ativa para haver liberdade equitativa de ensino (com igualdade de condições de escolha e de oportunidade de acesso para todos).

Três deles são direitos que integram o conceito de liberdade de ensinar, em sentido estrito: Em primeiro lugar a liberdade de fundação – a liberdade das pessoas, instituições ou grupos sociais promoverem a criação das escolas de sua iniciativa e orientação, sem discriminações injustificadas,

\ 184

Quanto aos textos de Direito Internacional e Comunitário Europeu, mencionam-se apenas: Declaração Universal de Direitos do Homem, art. 26.º, n.º 3; Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, art. 13.º, n.os 1, 3 e 4; Protocolo Adicional n.º 1 à Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais, art. 2; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 18.º, n.º 4; Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião e Convicção, art. 5.º; Declaração dos Direitos da Criança (princípio 7); Convenção Relativa à Luta Contra as Discriminações no Âmbito do Ensino, art. 5.º; Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, art. 12.º; Resolução sobre a Liberdade de Ensino na Comunidade Europeia, aprovada pelo Parlamento Europeu em 1984 (cf. Organization Internarionale pour le Développement de la Liberté d’Enseignement – La liberdad de enseñanza – instrumentos intercacionales).

CONTEÚDO: BREVES NOTAS 12. A LIBERDADE DE ENSINO E SEU CONTEÚDO

Podemos fundamentalmente distinguir no seu núcleo quatro grandes formas de concretização, que se integram na figura de direitos, que julgamos serem mesmo direitos fundamentais.

\ 185 para que o ensino seja ministrado de acordo com os valores e as conceções por que se regem³.

Em terceiro lugar, a liberdade pedagógica – o poder de os responsáveis pelo ensino, designadamente os docentes, assumirem essa tarefa com atividade livre e conscientes, e não como função executiva, subordinada quanto ao conteúdo e vinculada quanto à orientação. Por outro lado, a liberdade de ensino é também a liberdade de aprender. Neste caso, de que se trata? Trata-se do direito da pessoa quando adulta, ou a família, quando a pessoa não for adulta nem consciente, escolherem o tipo de ensino que desejam receber. A liberdade de aprender, neste sentido, é assim, a escolha correspetiva das opções feitas quando se trata da liberdade de ensinar, que sobretudo existe por causa dela.

Em segundo lugar a liberdade de funcionamento – a faculdade de as escolas existentes, qualquer que seja a sua natureza, funcionarem com liberdade de conceção e com autonomia nos domínios doutrinário, científico, administrativo e financeiro (liberdade fundamental e autonomia instrumental).

³AConstituiçãode1933(art.os8.º,n.º5e44.º)reconheciamaisclaramentealiberdadedeensino,“entreosdireitos,liberdadesegarantiasindividuais”dosportugueses(art.8.º,n.º5;Dispunhaoartigo42.º:“Aeducaçãoeinstruçãosãoobrigatóriasepertencemàfamíliaeaosestabelecimentosoficiaisouparticularesemcooperaçãocomela”.Eoartigo43.º,§4.º:“Nãodependedeautorizaçãooensinoreligiosonasescolasparticulares”.Eoartigo44.º,“ÉlivreoestabelecimentodeescolasparticularesparalelasàsdoEstado,ficandosujeitasàfiscalizaçãodesteepodendoserporelesubsidiadasouoficializadasparaoefeitodeconcederemdiplomasquandoosseusprogramasecategoriadoseupessoaldocentenãoforeminferioresaosdosestabelecimentosoficiaissimilares”.AConstituiçãodaRepúblicaPortuguesa,numtextoatualquefoimuitodiscutido,dispõenoartigo43.º“(Liberdadedeaprendereensinar):1.Égarantidaaliberdadedeaprendereensinar.2.OEstadonãopodeatribuir-seodireitodeprogramaraeducaçãoeaculturasegundoquaisquerdiretrizesfilosóficas,estéticas,políticas,ideológicasoureligiosas.3.Oensinopúbliconãoseráconfessional.4.Égarantidoodireitodecriaçãodeescolasparticularesecooperativas”.

Liberdade de aprender, liberdade de ensinar: ambas integram necessariamente o direito fundamental da liberdade de ensino, e só quando elas se verifiquem – todas elas – em termos substanciais, se pode dizer que existe, numa sociedade, verdadeira liberdade de ensino. A LIBERDADE DE ENSINO E O SISTEMA ESCOLAR

Será necessário não esquecer alguns pontos que nos parece útil desenvolver neste momento. Primeiro: a liberdade de ensino, mesmo com referência a estes princípios, deve enformar todo o sistema escolar, público, privado ou cooperativo. Ela é um direito e, do mesmo passo, um princípio estruturado do sistema de ensino. A discussão de há anos em França, a propósito de mais uma querela sobre a liberdade escolar, na qual prevaleceu a liberdade e o pluralismo, é particularmente nítida a tal respeito. A autonomia das instituições (mesmo públicas), o respeito de todas as instituições pelas opções dos educandos e das suas famílias, é com certeza um caminho necessário para descentralizar e desburocratizar a rede escolar de ensino; mas resulta, sobretudo e em primeiro lugar, da liberdade escolar. Outro ponto: a liberdade de ensino é uma exigência que deve fazer-se também em relação ao sistema escolar público: e em tal plano, designadamente nos países que têm um sistema escolar de tipo francês, extremamente centralizado – como sucede com Portugal –, está bem longe de se encontrar realizada. Em terceiro lugar, a liberdade de ensino pressupõe a conjugação de duas atitudes do Estado: uma, de simples respeito ou abstenção; outra, de promoção e apoio. Simples respeito ou abstenção: criando

\ 186

13.

os quadros legais e administrativos (ou executivos de outro tipo) que sejam necessários para que a liberdade de ensino se exerça.

Apoio: criando condições sociais e financeiras efetivas para todos escolherem em consciência, e não pelo mero orçamente familiar. E se exerça como? Eu diria que o critério fundamental reside na conotação do conceito de liberdade com dois outros requisitos que não são equivalentes, e que para este efeito possibilitam um uso fecundo: o princípio de que o ensino exercido com liberdade deve ser exercido e escolhido de forma não discriminatória, é o primeiro; o segundo, o de que o ensino exercido com liberdade deve sê-lo em termos não meramente formais, mas em termos substanciais ou reais. Que quer isto

Fundamentalmente,dizer?quenão

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deve haver discriminação, nem contra quaisquer pessoas e famílias, nem contra os agentes e instituições que ensinam, em função da sua escolha de valores, ideológica ou outra, nem da sua natureza pública, privada ou cooperativa⁴. Neste aspeto, a existência de discriminações financeiras, a existência de desigualdades injustificadas quanto ao reconhecimento de títulos ou graus, a existência de discriminações que acabam por traduzir-se na tentativa de criar um ensino de nível inferior ou de qualidade menor, tudo é contrário à liberdade de ensino.

Por outro lado, a liberdade deve ser real e não potencial, substancial e não apenas formal. A necessidade e a ignorância destroem a liberdade. Então, as escolhas das pessoas, das famílias e das comunidades, que se regem por tipos próprios de valores numa sociedade pluralista, devem ser condicionadas apenas pela sua ⁴ Apenas poderá haver discriminações (desigualdades de tratamento) baseadas em diferente qualidade de ensino: tratar desigualmente o que por essência não é igual não é discriminar.

vontade consciente e não por outros fatores extrínsecos. Fatores extrínsecos como, por exemplo, uma errada e desigual distribuição regional das instituições, quanto aos grandes sistemas de valores da comunidade; e que derivam sobretudo do facto de haver um ensino privado e cooperativo, designadamente numa sociedade de tipo mercantil (capitalista ou outro). Afigura-se claro que a experiência, feita por exemplo em vários Estados da Europa do Norte, demonstra aquilo que do ponto de vista puramente especulativo se poderia afirmar também: não, isso não resulta da natureza da sociedade mercantil, mas de mera abstenção do Estado, o que é uma coisa bem diferente. Na sociedade mercantil capitalista, os bens mercantis, aqueles que estão sujeitos à lei da oferta e da procura, naturalmente são acessíveis em função do preço e do poder de compra. Mas o problema está em saber se o ensino é por natureza um desses bens ou não; e a resposta – até porque o Estado se lança com maior ou menos intensidade nesse domínio para produzir um ensino acessível, a baixo custo, às pessoas e famílias que têm rendimentos mas que o buscam em harmonia com as suas opções de consciência – é clara: o ensino é, ao menos em parte, um bem público, por criar exterioridades sociais. Ora bem: sendo isto assim, não sendo o ensino só um bem mercantil, porque há de ele ser caro nas instituições do ensino privado e cooperativo, e barato nas instituições de ensino público? Penso que só há uma resposta para isto: é que esta situação resulta de o Estado querer fazer uma discriminação e querer empurrar a generalidade da população para o ensino público, dificultando o acesso dos pobres ao ensino privado e cooperativo e, portanto, negando aos pobres a liberdade de opção escolar. E como há de o Estado evitar esta discriminação? O caminho está bem explorado, não é difícil obrigá-

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insuficientes,

Não é por ineficiência na gestão dos recursos, mas, ao contrário, pela mera discriminação feita pelo Estado em termos orçamentais,

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Em contrapartida, o ensino privado é caro. E é caro porquê? Porque não está significativamente subvencionado, porque a previsão da Lei n.º 9/79 quanto à criação de subvenções não foi suficientemente regulamentada, de acordo com critérios que não tornem os subsídios favores escassos e regateados do poder, mas fontes de recursos certos e previsíveis para a gestão das instituições: porque, permita-se-nos dizer, há um direito das instituições a serem subsidiadas e há um direito, ainda mais fundamental, de as famílias sem posses pagarem nas instituições privadas o mesmo que pagariam em escolas públicas equivalentes. De resto, todos os estudo demonstram que o ensino privado não é mais caro por ter custos mais altos. Todos sabem que, em regra, os custos reais –sociais e de gestão – do ensino privado relativamente ao ensino público são, por cabeça, mais baixos (sublinhe-se: em regra, porque há sempre casos concretos que podem ser de exceção).

-lo através da criação de condições de igualdade financeira de acesso, quanto a todas as famílias, ao ensino público e ensino privado, e do igual reconhecimento de cursos com idêntica qualidade.

O ensino público é gratuito, e talvez nalguns casos isso seja injusto porque muitas famílias que poderiam pagá-lo não pagam e atiram o seu custo para cima dos contribuintes: a isenção ou a redução de custos é decerto necessária para quem não poderia pagar um ensino público oneroso; mas para quem pode é, evidentemente, um privilégio, que faz pesar esse seu benefício sobre o conjunto da comunidade (daí que a gratuitidade do ensino, pensada para ser justa, seja hoje fator de injustiças).

Hoje, neste domínio, temos uma situação perfeitamente irracional.

\ 190 que o ensino privado aparece como ensino caro e o ensino público como ensino barato. Ora, desde que exista liberdade formal – e é este caso de Portugal –, desde que exista uma tendência para o paralelismo e a oficialização (e neste domínio passos significativos se deram com a Lei n.º 9/79, o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de 1980 e o Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo (DL 271/89, de 19 de Agosto), o problema central está na paridade financeira, sem a qual não há igualdade e não há liberdade efetiva de escolha do tipo de ensino. Esta questão central tem obviamente muitas dificuldades, pois não é possível caminhar, de um ano para o outro, do zero, em que tradicionalmente vivemos desde o liberalismo e desde o Estado Novo, para o cem que deveríamos ter, a fim de nos aproximarmos da Europa: o problema básico está em traçar um caminho e em definir critérios, que sejam objetivos, certos, previsíveis e, depois, possam ser cumpridos de modo gradual.

Apenas algumas pistas para uma reflexão serena sobre a realidade Aportuguesa.primeira pista envolve, de alguma maneira, uma referência histórica, mas não se fará aqui a história da liberdade de ensino. Apenas cumpre sublinhar que a liberdade de ensino num sistema escolar moderno é em Portugal uma conquista de hoje. O nosso sistema tradicional, com exceção da liberdade institucionalizada na Idade Média, adotou a partir do século XVIII, uma conceção extremamente centralizada e estatista. A expansão do sistema escolar, tardia e insuficiente, como sabemos, foi, apesar de tudo, durante o liberalismo monárquico, assegurada fundamentalmente

14. SOBRE A LIBERDADE DE ENSINO EM PORTUGAL

por iniciativa e responsabilidade do Estado, em importação do modelo napoleónico. O ensino privado, onde existia era de algum modo meramente tolerado, e mesmo iniciativas meritórias, como convites de vários governantes à iniciativa privada para o lançamento do ensino técnico, ou iniciativas de doação, por pessoas como D. António da Costa e como o Conde de Ferreira, de meios materiais para a expansão da rede pública de ensino, acabaram por ser rapidamente absorvidas no ensino estadual ou subalternizadas na sua periferia. No nosso liberalismo, tivemos um sistema em que o ensino privado e cooperativo era, quando muito, tolerado: tinha, exceto no ensino superior, o máximo de liberdade formal, não tinha liberdade substancial, capacidade de se afirmar, apoio financeiro.

Assim se consolidou o predomínio do ensino público e se criaram condições para a crescente asfixia económica do ensino privado, sendo que o sistema privado, além de viver sob tutela da burocracia e dos programas estaduais e na dependência da escassez de recursos, era extremamente diversificado e secundarizado.

Diversificado, na medida em que a qualidade das suas instituições ia do ótimo ao péssimo. Secundarizado, já pela supletividade que existia relativamente ao ensino estadual, já por ser relegado para uma zona de segunda escolha, já por apenas poderem optar por ele os que dispunham de meios económicos que o permitissem.

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No Estado Novo, apesar da consagração constitucional da liberdade escolar, sempre o ensino não estadual esteve sujeito a fortíssimas limitações administrativas (autorização discricionária, sistema dos alvarás) e foi privado de qualquer apoio financeiro ou social. Daí que a escolha das famílias fosse esvaziada de real liberdade de opção, tornando apenas tal opção e a frequência do ensino privado acessível aos mais ricos dado o elevado custo de qualquer ensino se for sujeito à lei da oferta e da procura.

A primeira é que a liberdade de ensino não significa anarquia escolar, deve pelo contrário, inserir as instituições no sistema de

\ 192Pode dizer-se, todavia, que a escola privada e cooperativa exerceu funções meritórias: criou o ensino pré-primário, que só por ela nasceu, criou formas diversificadas de ensino profissionalizante especial, designadamente ao nível superior, em que foi pioneira em muitos domínios, cobriu uma zona razoável no domínio do secundário liceal, com uma diversificação regional que a tornou elemento importante de regionalização e, nesse sentido, de democratização regional do ensino português. Isto é, além de ser foco de liberdade e apesar de desapoiada, exerceu notáveis funções sociais. Este ensino era um ensino condicionado, de algum modo à semelhança do condicionamento que em todos os domínios existia em Portugal no Estado Novo, por via da autorização administrativa (com discricionariedade política e controlo burocrático), mesmo que se tratasse do exercício de direitos do homem, como o ensino privado o é e era. O início da revolução democrática, naturalmente, foi tempestuoso; a formulação da Constituição de 1976 pareceu a muitos (desde logo, a Igreja Católica) bem deficiente, mas, em todo o caso, a experiência de diplomas recentes sobre a liberdade de ensino que já se referiu, é “revolucionária” no bom sentido e sem precedentes no Portugal moderno. Ela aponta um quadro que seja simultaneamente de liberdade de oportunidades e liberdade substancial de ensino, designadamente por via da equiparação de títulos e da igualdade Àfinanceira.luzdosprincípios que se expuseram, apenas se focarão quatro breves questões.

As instituições privadas podem funcionar de acordo com o seu critério competente, bom senso e sentido de responsabilidade, mas ⁵Comoformaprivilegiada–nestecaso,exclusiva–deiniciativaepropriedadesocialoucomunitária.

\ 193 ensino, cujos quadros gerias hão de ser delimitados, traçados, pelo Estado, como prossecutor principal do bem como e neste aspeto garante do ensino no seu conjunto (quanto aos objetivos, aos critérios curriculares e à garantia de qualidade. O exercício destas responsabilidades pelo Estado – sucessivamente adiado – usando a via legislativa, como generalidade e com certeza prévia por parte de quem exercer o ensino, é requisito imprescindível da existência duma verdadeira estrutura nacional de ensino e da inserção da liberdade na sua responsabilidade e função social. Ora bem, neste momento (1987), parece que nos encontramos numa situação em que não existe uma definição do sistema de ensino, emaranhado de instituições e pessoas que vão boiando no caos. Daqui decorrem muitas dificuldades de funcionamento, por vezes imputadas injustamente à zona privada e cooperativa do sistema (cuja superior qualidade, em muitos casos, se reconhece), mas que derivam da falta de quadros gerais e da ausência dum enquadramento de objetivos e de regras que se apliquem por igual ao ensino público, ao privado e ao cooperativo⁵. Menciono, por exemplo, que neste domínio a política e gestão da rede escolar não é minimamente participada e que a relação entre necessidades sociais, expressa designadamente na oferta de diplomados e ensino profissional, e a procura de cursos superiores e, por conexão, de diplomados para as profissões, não é minimamente programada; menciono, ainda, que a coordenação entre os tipos e os níveis de ensino, designadamente ao nível superior, é praticamente inexistente. E é assim que muitas das deficiências que se apontam ao ensino particular e cooperativo são deficiências de todo o sistema educativo português.

Importa, não apenas regularizar atrasados e avançar numa via de apoio financeiro que (está mais do que provado) só poupa recursos financeiros, em conjunto com o desperdício da burocracia escolar do Estado, mas ainda criar formas de subsidiar as famílias, tanto por prestações diretas como por deduções fiscais e créditos de ensino.

uma certa anarquia é mais grave ainda no grande mamute do ensino público do que nas ágeis e flexíveis instituições do ensino privado e cooperativo. Contudo, a necessidade de definição de regras gerais de articulação do sistema quanto à estrutura e quanto aos objetivos, a necessidade de concertação permanente e participação organizada dos agentes privados, cooperativos e públicos no sistema de ensino, são evidentes, sem o que se não conseguirá pôr cobro às disfunções gravíssimas que se verificam e se agravam.

Em terceiro lugar, a eficácia social obriga-nos a descentralizar as funções mais importantes do sistema social e, em particular, do sistema escolar. Uma das formas de o conseguir é o recurso à liberdade de ensino, onde a participação que se já referiu é um caminho essencial para que essa descentralização se processe

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Por outro lado, a dialética liberdade/igualdade tem de comandar a evolução para que a liberdade escolar seja real e não meramente formal. Já sublinhei que me parece sobretudo decisiva a componente financeira da liberdade, na medida em que hoje, por via do paralelismo pedagógico e da oficialização de fórmulas de algum modo mais mitigadas (mas que para isso tendem), a discriminação de títulos ou qualificações parece estar em vias de atenuação.

Também aqui as regras estáveis e gerais são imprescindíveis, sob pena de se culpar de novo o ensino privado por aquilo que é da responsabilidade do sistema, em particular do Estado, visto que é ao Estado que cabe retirar à atividade do ensino a natureza de bem mercantil e torná-la um bem pessoal, como é por essência.

\ 195 de forma ordenada. Mas, sobre isto, fica apenas um alerta, para quando se pensar na estrutura escolar…⁶.

Claro que tudo isto só se conseguirá corrigir com respeito pela liberdade, através da criação de estruturas de controlo que sejam participadas pelo ensino público, como pelo privado, e cooperativo e de um controlo isento e eficaz. Os males da liberdade curam-se com clareza das leis, responsabilidade – sobretudo – e mais liberdade.

Em quarto lugar, enfim, o nível e a qualidade do ensino em geral são uma preocupação, penso eu, de toda a comunidade portuguesa.

Cabe lembrar contudo que em alguns domínios, designadamente no ensino universitário, em que o estabelecimento de tradições antigas e a sua natureza e funções justificam graus de exigência, mesmo formal, bem maiores, certamente exigem regras, garantias e confrontos que importa fazer, para que em alguns momentos ou instituições não haja excesso de facilidade no acesso à docência, desconexão entre qualificações dos docentes e os graus ministrados, querelas pouco edificantes ou situações de ensino comercializado.

Hoje há uma grande insatisfação quanto ao ajustamento do ensno ministrado pelo sistema escolar relativamente às necessidades da sociedade. Em minha opinião, essa insatisfação dirige-se muito mais contra o ensino público do que contra o ensino privado e cooperativo; e isto é mérito indubitável do ensino privado e cooperativo, que apenas tem em seu favor a liberdade – e é esse um grande meio –mas tem contra si tudo o resto (ou quase). Não obstante, dentro da diversidade saudável, a sua qualidade é, em geral, elevada; e sem dúvida realçou-se e destacou-se nos anos recentes.

⁶Incluindooestudodadiversificaçãodosistemapúblico(escolasestatais,regionaisoumunicipais, etc.)

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António Luciano de Sousa Franco in Direito e Justiça, Vol. VIII, Tomo 1, separata, (1994).

\ 197 25 ANOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

1. A UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA: ORIGEM E FASE INICIAL (1967-1972) 1.1– Origens, criação e lançamento É antigo o sonho da Universidade Católica Portuguesa. Já em 1926 o Concílio Plenário Português, reunido em Lisboa, deliberara: “O Concílio, secundado gostosamente o desejo da Igreja (can. 1379 § 2.º), decreta que se funde, quanto antes, uma escola superior católica ou instituto católico” (art.º 138.º). Em Carta Pastoral coletiva de 1930, o Episcopado português explicava que este instituto católico (designação de inspiração francesa, nascida neste país devido às limitações impostas pela lei Falloux) seria «um estabelecimento de alta cultura intelectual, que sirva para educar e formar um escol de mentalidade católica», e não «simplesmente uma faculdade teológica»¹.

\ 198 OSEDITORIAL25ANOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

¹ Aproveita-se em pequena parte o texto “O reconhecimento oficial da Universidade Católica”, em Didaskalia, vol. I, 1971, pp. 367-393

A Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa é a terceira mais antiga das Faculdades de Direito do País, a seguir às das Universidades de Coimbra e de Lisboa. Parece oportuno, integrando-a na Instituição Universitária de que faz parte, recordar alguns aspetos da sua evolução histórica, a propósito do ano jubilar de 1992/93, que acabou de decorrer.

estabelecendo

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Várias vezes a opinião católica reclamou o cumprimento daquele voto do Concílio, que o tempo fora convertendo em meramente platónico.

Entretanto, o Patriarcado de Lisboa instituía o Instituto Católico Português – mas, apesar de dotado de personalidade jurídica e apto a ser beneficiário de algumas liberalidades, não lhe coube qualquer papel ativo na realização da ideia, que por longos anos pareceu em letargia.

Assim, sucedeu no I Congresso da JUC/JUCF, que constituiu um dos mais sérios esforços de reflexão sobre os problemas universitários em geral²; e não se pode negar que a repetida insistência destes organismos universitários da Ação Católica teve papel decisivo na instituição efetiva da Universidade Católica, que dispunha, como esplêndida base de partida, da prestigiosa Faculdade de Filosofia de Braga, instituída pela Companhia de Jesus como Instituto Filosófico Miguel de Carvalho (estabelecido pela Santa Sé em 1947) e erigida, em 13 de Outubro de 1967, como «primeira realização da UCP», por decisão dos Bispos portugueses. A Pastoral Colectiva do Episcopado Português de 16 de Janeiro de 1965 anunciava ao País a intenção de criar efetivamente uma Universidade Católica. E, em 29 de Junho de 1967, foi solenemente benzida e colocada a primeira pedra dos edifícios destinados à sede central da Universidade Católica Portuguesa por Sua Eminência o Cardeal Dom Manuel Gonçalves Cerejeira. A 13 de Outubro do mesmo ano, a Santa Sé, pelo Decreto Lusitanorum nobilíssima gens da Sagrada Congregação dos Seminários e Universidades –hoje Congregação da Educação Católica –, «deu início à ereção das instituições académicas da Universidade Católica Portuguesa, como primeira Faculdade da mesma a Faculdade ² Cfr. O Pensamento Católico e a Universidade, vol. I, Lisboa, 1953; e vários artigos do jornal Encontro, onde repetidas vezes se abordou o tema. Sobre a história da Universidade Católica, veja-se a valiosa nota de A. Montes Moreira, «A criação da Universidade Católica Portuguesa e da Faculdade de Teologia de Lisboa», in Didaskalia, vol. I, fasc. 1, pp. 183 e ss.

Neste mesmo ano de 1971 viria a ser aprovado o Decreto-Lei n.º 307/71, de 15 de Julho, que procedia – no âmbito do artigo XX da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 7 de Maio de 1940 – ao reconhecimento oficial da Universidade Católica Portuguesa, como instituição de ensino superior da Igreja Católica, criada e regida primeiramente pelo Direito Canónico e colocada por aquele decreto-lei em paridade com as Universidades do Estado.

\ 200de Filosofia de Braga». No mesmo Decreto e documentos anexos se previa e dispunha, para executar-se logo que possível, a instalação em Lisboa da «sede central da Universidade Católica, onde mestres e alunos iniciarão quanto antes estudos superiores» (Declaração da Comissão Episcopal da Universidade Católica, 7 de Outubro de 1968). Depois de ereta canonicamente, em 1967, a Faculdade de Filosofia de Braga, o ano de 1968 terá sido o do nascimento da Universidade Católica: foi inaugurada a sede central da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa; foi designado seu primeiro responsável, como vice-reitor em exercício de funções ao nível de reitor, o Prof. Doutor José do Patrocínio Bacelar e Oliveira, que logo após viria a ser o primeiro Reitor da Universidade por uns fecundos vinte anos; e foi autorizado o início de funcionamento da Faculdade de Teologia em Lisboa, a qual abriu em 19 de Outubro e, no termo do seu primeiro ciclo de estudos, viria a ser reconhecida, a par da Faculdade de Ciências Humanas, como parte da Universidade Católica, ereta por Decreto da Santa Sé de 1 de Outubro de 1971 (Decreto da Sagrada Congregação da Educação Católica: Humanam eruditionem, n.º 850/71/7); também por Decreto da mesma Congregação Romana foram eretas as Faculdades de Teologia (Decreto Ampla cum sedes, n.º 1262/71, de 1/10 e de Ciências Humanas (Decreto Ad singulare, n.º 1260/71, de 1/10).

É justo reconhecer, nesta fase, a influência da ação e do pensamento do Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Gonçalves Cerejeira, Doutor em História e Professor da Universidade de Coimbra, intelectual e universitário de valia, desde há muito preocupado com a necessidade de uma presença universitária cristã na sociedade portuguesa³. Essa preocupação resultava do seu permanente empenho em assegurar o diálogo e a articulação íntima entre a Igreja e o pensamento contemporâneo; preocupação que foi sempre a do intelectual e a do Pastor Doutor Manuel Gonçalves Cerejeira, e que era manifestamente confirmada pelo Conselho Ecuménico do Vaticano II (nomeadamente na Declaração Conciliar Gravíssimum Educationis Momentum, n.º 10). Há muito que o Cardeal Cerejeira vinha defendendo e promovendo pela ação a instituição da Universidade Católica, para a qual constituíra em 1967 uma comissão instaladora presidida por Dom Manuel Franco Falcão, que preparou o lançamento (jurídico, organizatório, financeiro e físico: o primeiro edifício) da Universidade e da sua Faculdade de Ciências Humanas (1967-1971). A preocupação do Cardeal Cerejeira fora sempre a de reatar um diálogo, cuja falta se traduzira num certo ³ Nas obras do Cardeal Cerejeira encontramos uma abundante justificação e doutrinação sobre a Universidade Católica. Destacamos: a conferência de 1946, em Obras Pastorais, III, Lisboa, 1947, pp. 113-127; duas importantes entrevistas, aos órgãos da LUCF e da JUC, «Perspectivas» e «Encontro», nas Obras Pastorais, vol. VI, Lisboa, 1964, pp. 305-308 e pp. 309-323; e numerosos documentos, marcando já a vida real da Universidade Católica, insertos no vol. VII do op. cit., Lisboa, 1970, pp. 229-235, 241-251 e 295-296.

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Desde 1967 até 1971 – ou, porventura, até 1972, ano em que se iniciou o primeiro curso não eclesiástico (após os de Filosofia de Braga e Teologia) da Universidade: o de Organização e Gestão de Empresas, integrado na Faculdade de Ciências Humanas, autorizada por Despacho Ministerial de 19 de Dezembro de 1971 – pode dizer-se que decorreu a fase inicial ou de fundação da Universidade Católica.

\ 202recíproco desconhecimento, ou até divórcio, entre o pensamento católico e o pensamento contemporâneo na sociedade portuguesa; e a de superar as limitações da presença universitária da Igreja [desde Pombal; depois, a extinção da Faculdade de Cânones fundindo-se com a de Leis na nova Faculdade de Direito (1834); e em 1910 o encerramento (não a extinção formal) da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra – aliás durante o liberalismo monárquico afastada da Igreja e fonte de conflitos prolongados e profundos]. Preocupava, igualmente, o Cardeal Cerejeira, para além da superação desse indesejado divórcio, a criação da Universidade Católica como um espaço de diálogo da sociedade, e não como um gueto de cultura eclesiástica.

Justa é esta referência, ainda por cima, pois o próprio Decreto-Lei de reconhecimento – que traduziu para o campo do simbólico e das instituições as muitas obras feitas e, finalmente, eliminou as resistências, ativas e passivas, que ao longo dos anos haviam impedido a criação, de há muito desejada pelo Cardeal Cerejeira – ocorreu logo a seguir à transferência de poderes no Patriarcado de Lisboa do Cardeal Cerejeira para o seu sucessor, Dom António Ribeiro, em 13 de Maio de 1971, e apareceu de algum modo como a sua última obra e o seu principal legado «testamentário», na qualidade de primeiro, desde há muito, entre os Bispos da Igreja Portuguesa.

Importará recordar as resistências que a ideia teve da parte do Poder, oficialmente muito ligado ao catolicismo conservador, mas nem por isso menos reticente à autonomia das instituições da Igreja, como das instituições privadas ou alheias ao Estado, de qualquer natureza. Sabe-se que Salazar sempre se opôs à criação da Universidade Católica. E foi necessário que o Cardeal Cerejeira «arrancasse» o decreto-lei de reconhecimento oficial, na ocasião da

\ 203 sua saída, ainda assim a custo, mesmo com o Governo de abertura e liberalização de Marcello Caetano. Com esta abertura convergiu – apesar de largamente influenciado pela originária orientação estatizante, que era a do regime, a qual marcou as primeiras versões do projeto de Reforma do Sistema Educativo e é coerente com as origens do atraso do nosso sistema educativo estatizado, desde o Marquês de Pombal até ao presente – a abertura do sistema educativo, promovida pelo Ministro da Educação Professor Veiga Simão. Numa escola universitária nova e não estadual ela encontraria, como efetivamente encontrou, um aliado importante para a remoção de obstáculos ao seu projeto de dinamização do sistema escolar, em particular na área do ensino superior e em relação às correntes de opinião mais conservadoras; além disso, a experiência poderia assumir carácter exemplar⁴. A convergência do longo sonho do Cardeal Cerejeira com o projeto de reforma educativa de Veiga Simão tem incontestável peso genético na criação da Universidade Católica, que surge assim como primeiro e mais significativo momento de uma expansão transformadora do sistema universitário, que iria, como ocorreu nos vinte anos seguintes, abri-lo e transformá-lo profundamente na sua relação com a sociedade. Julga-se, todavia, que no caso da U.C.P. sempre sem perda de qualidade ou de rigor. No que se refere à vocação própria da Universidade, sublinhe-se que ela pôde acolher iniciativas da Igreja ou de instituições suas – no domínio da prestigiada Faculdade de Filosofia de Braga como no de outras instituições de ensino e investigação filosófica ou teológica já existentes no âmbito da Igreja. E pôde, ao mesmo tempo, marcar uma vocação originária, consonante com o espírito do tempo, “Faculdade⁴Sobreesteaspectodaquestão,àsvezesmuitoesquecido,recorde-seoqueescrevemos,sobotítulodeCiênciasHumanas,laboratóriodareformadoensino”,emACapitalde29/12/1972.

b) Direito aplicável à Universidade Católica (art. 12.º).

a) Definição dos fins e estrutura da UCP (arts. 1.º e 2.º).

\ 204para o domínio das ciências sociais, criando o primeiro currículo inovador na área de Gestão, com uma visão das necessidades da sociedade portuguesa que certamente não deixará de ser fácil, hoje, reconhecer como acertada e ajustada. Os factos aí estão a provar que a necessidade existia e que a resposta dada teve originariamente uma qualidade e uma oportunidade que o tempo confirmou e reforçou.

c) Organização e funcionamento (arts. 3.º, 4.º, 5.º e 6.º).

d) Reconhecimento dos cursos, diplomas e graus (art. 7.º)

1.2 – O reconhecimento oficial da U.C.P. (1971) Refira-se, em particular, nesta fase o regime legal a que obedeceu a definição do estatuto jurídico da UCP e o seu reconhecimento pelo Estado, com equiparação às Universidades estaduais da Universidade Católica Portuguesa: ele foi profundamente inovador, marcando o exercício da liberdade pela instituição e abrindo espaço de precedente para o reconhecimento mais amplo, que viria a ocorrer nos vinte anos seguintes, da liberdade de ensino em geral, e bem assim para a expansão que o sistema universitário português conheceu nas mesmas décadas. Eis aqui uma boa demonstração de que regimes especiais ou particulares de liberdade – como é o caso deste – podem abrir caminho a novos espaços de liberdade, não constituindo privilégios, mas avanços reais do ideal da liberdade. Foram as seguintes as questões mais relevantes suscitadas pelo Decreto-Lei n.º 307/71, de 15 de Julho:

A Universidade Católica pode ser instituída pela Santa Sé nos termos do Direito interno da Igreja, ao abrigo dos artigos III, IV e XX da Concordata de 7 de Maio de 1940, tal como antes o fora no Patriarcado o Instituto Católico Português. Não é, pois, a atribuição de personalidade jurídica que se visa com este Decreto-Lei – ele seria para isso rigorosamente inútil: é a simples declaração de utilidade pública da instituição, com alguns benefícios a que corresponderão os encargos por ela assumidos.

Importava conceder-lhe determinadas facilidades que – sem prejuízo das tarefas e encargos que ao Estado cabe promover e suportar –diversificassem e enriquecessem a sua atuação pelo concurso das escolas da Igreja. Nesses termos se procurava, criando um regime especial conforme à natureza canónica da Universidade Católica, facilitar-lhe o mais possível a integração na família universitária portuguesa e o respeito das prescrições internas do nosso Direito

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Vejamo-las por ordem:

a) Funções, estrutura e regime geral da Universidade Católica A definição das funções da Universidade Católica e a declaração da sua utilidade pública constava do artigo 1.º do Decreto-Lei: Artigo 1.º – A Universidade Católica Portuguesa é uma pessoa colectiva de utilidade pública e tem por fins, além de promover e difundir a cultura no domínio das ciências sagradas e profanas, ministrar o ensino de nível superior em paralelo com as restantes Universidades portuguesas e cultivar a investigação e o progresso das ciências nela professadas.

e) Benefícios, património e representação da UCP (arts. 8.º a 11.º).

Um Decreto-Lei de “reconhecimento da personalidade jurídica”, em puro rigor jurídico, poderia ser tido como supérfluo: o reconhecimento, por parte do Estado, de tal entidade, resulta dos factos que façam funcionar a estatuição do § 2.º do art. III da Concordata. Também a sua personalidade e capacidade é regulada pelo art. IV. E o Instituto Católico Português, que deu origem à Universidade Católica, já as tinha definidas, por equiparação às das outras pessoas morais perpétuas. Tendo sido canónica a instituição dessa pessoa coletiva, também se lhe não aplicava a apertada tutela e fiscalização policial do Código Civil de 1966: pois a Concordata estatui que estas pessoas (art. IV) “administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica”

\ 206escolas com semelhante dignidade, pensando que a orientação geral da projetada Reforma do Sistema Escolar não iria fora destas diretrizes e lembrando que já no Projeto de Estatuto da Educação Nacional do Prof. Inocêncio Galvão Teles se afirmava “a possibilidade de serem declarados de utilidade pública os estabelecimentos de ensino que reúnam determinadas condições, enumerando-se os benefícios que essa declaração envolve, ou seja, nomeadamente, isenções fiscais, concessão de créditos a longo prazo, concessão de subsídios de instalação ou funcionamento e outros”.

O que se contém nesta declaração geral mais não é do que a aplicação do espírito da Concordata (que não parece ter previsto todos os casos de docência pela Igreja no artigo XX), como da sua letra (art. III). Ademais, o dispositivo é suficientemente justificado pela posição sociológica e histórica da Igreja Católica em Portugal; e acresce que o reconhecimento do direito natural de ensino se operava mais extensamente do que na legislação então vigente.

A simples receção no Direito Português duma entidade criada pelo Direito da Igreja bastava para assegurar o respeito pelas suas finalidades.

Alémportuguês.dadeclaração

\ 207 (cfr. 2.º período). A declaração de utilidade pública geral era, pelo menos, útil para três efeitos: – isenção de impostos; – concessão de equiparação de diplomas, mediante condições de ordem pedagógica e administrativa aceites, de comum acordo, pela Igreja e pelo Estado; – definição mais correta da sua disciplina jurídica, enquanto instituição que exercia atividade pedagógica em território

Não nos deteremos agora num aprofundamento destes fins – que serão afinal os de qualquer Universidade, com sistematização que varia de autor para autor, consoante o critério preferido⁵.

de utilidade pública, constava do mesmo preceito a definição dos fins da Universidade Católica: – a promoção e difusão da cultura, tanto no que se refere às ciências sagradas como às profanas; – ministrar o ensino de nível superior, em paralelo com as restantes Universidades portuguesas; – cultivar a investigação e o progresso das ciências nela professadas.

⁵ Recordem-se, sobre os fins da Universidade, numa referência aos nossos mestres, sem qualquer preocupação de erudição: NEWTAN, The idea of a University; JASPERS, Die Idee der Universität; O pensamento católico e a Universidade, vol I; Mission de l’Université, ed. Pax Romana; ORTEGA Y GASSET, Misión de la Universidad; DARCY RIBEIRO, A Universidade Necessária. Uma importante perspectiva da reflexão atual pode encontrar-se na revista Colóquio Educação e Sociedade, n.º 3, Julho de 1993.

O ensino de nível superior deve decerto definir-se, de maneira meramente formal, como ensino pós-secundário; era o que resultava da noção adotada nas Linhas Gerais da Reforma do

Universidade;

diremos que nos parece que o primeiros dos “fins” apontados, apesar da redação utilizada, se situa antes e acima dos outros dois: promover e difundir a cultura é algo que se faz, entre outras formas, pela realização das duas funções a seguir explicitadas. A promoção e difusão da cultura é pois o mais amplo dos fins de qualquer isto se entendermos a cultura em sentido subjetivo – como formação pessoal e profissional, acrescida de informação geral e especializada –, tanto como em sentido objetivo – conjunto dos valores e conceitos que objetivamente definem a visão (cognitiva e judicativa) que do mundo possui certa comunidade humana. O que é importante é que, de acordo aliás como o que desde o início se pretendia, a Universidade, no seu objeto, visa cultivar tanto ciências sagradas como profanas. Uma Universidade Católica deve decerto cultivar os estudos eclesiásticos superiores, no duplo sentido da expressão (Declaração Conciliar Gravissimum Educationis, n.º 11); mas há de, num espírito de cooperação com as outras escolas “exigido pelo bem comum de toda humanidade” (ibidem, n.º 11), dedicar-se também às ciências profanas, quer para formar completamente os seus alunos (ibidem, n.º 10), quer para “promover o conhecimento dos povos e das religiões” (Decreto Ad Gen tes, n.os 39 e 41), quer para fazer progredir a ciência e a sociedade (G.E., n.º 10).

As formas de promoção e difusão da cultura é que serão – numa maneira objectivista de encarar a atuação da Universidade –principalmente duas: ministrar o ensino e cultivar a investigação (além de outras que visem promover e difundir a cultura e, pela sua vocação geral, lhe não estejam vedadas).

\ 208Apenas

Ensino Superior (II-1, pág. 9), distinguindo-se o universitário das outras modalidades pelas duas finalidades apontadas.

Quanto à estrutura escolar da UCO, dispunha o art. 2.º que se limitava a acolher o desenho canónico-estatutário da instituição: Art. 2.º – 1. A Universidade Católica Portuguesa é uma instituição de carácter federativo, com sede em Lisboa, que tem como elementos integrantes: a) A Faculdade de Teologia, com sede em Lisboa, a Faculdade de Filosofia de Braga e a escola de Direito Canónico que porventura nela venha a ser criada; b) Os estabelecimentos de ensino superior análogos aos das restantes Universidades Portuguesas cuja criação dentro dela venha a ser autorizada; c) Os centros de investigação e institutos anexos a qualquer dos estabelecimentos de ensino mencionados nas alíneas anteriores.

2. As escolas e estabelecimentos a que este artigo se refere poderão ter as denominações que se harmonizem com a natureza das disciplinas neles cultivadas (…). Destacando o carácter federativo da Universidade, usa este artigo uma fórmula feliz: com efeito a sua própria evolução progressiva, a localização em diversas cidades dos “estabelecimentos de ensino” (para usar o velho galicismo) que a compõem, a progressiva verificação dos requisitos de constituição até à ereção Canónica como verdadeira Universidade Católica, que se seguiria até se completar a apreciação pela Santa Sé – tudo isto tornou feliz,

\ 209

é o de Universidade fundada diretamente pela Santa Sé nos termos do cânone 1376 do Código de Direito Canónico então vigente (“É reservada à Sé Apostólica a constituição canónica das Universidades ou Faculdades católicas de estudos”); à Santa Sé pertencerá sempre aprovar os estatutos de todas as Universidades Católicas.

Universidade portuguesa (por exemplo, uma escola de jornalismo); e os não referidos na alínea a), onde se inclui uma escola – a

Com respeito aos “estabelecimentos de ensino superior análogos aos das restantes Universidades portuguesas” – expressão necessariamente imprecisa – previa-se diversamente que a sua criação fosse autorizada (nos termos do artigo 8.º, e com o condicionamento relativo à sua designação, que vem previsto no n.º 2 deste artigo 2.º). É evidente que nesta designação haverão de incluir-se todos os outros estabelecimentos de ensino superior, mesmo que não sejam análogos aos existentes em nenhuma

Refere a alínea a) do n.º 1 deste artigo 2.º três unidades escolares afins: a Faculdade de Filosofia, a Faculdade de Teologia e uma escola de Direito Canónico, que eventualmente viesse a ser criada. Separaram-se assim os estudos de ciências eclesiásticas ou sagradas, que têm por objeto a revelação, inerentes ou intimamente ligados à vida interna da Igreja – os quais comporão uma Universidade Pontifícia ou eclesiástica –, e os de “ciências profanas”. Quanto aos primeiros, desde logo se previa a existência das unidades de ensino correspondentes, sem necessidade de qualquer autorização estadual – designadamente quanto aos planos de estudos e equiparação de graus e diplomas.

\ 210destacando a relativa autonomia interna das escolas e instituições integrantes, a designação usada. É importante notar que o sentido restrito de “Universidade Católica”

Parece, pois, que esta analogia, mais que à existência dos cursos (poderia até falar-se então em cursos idênticos), deveria reportar-se ao teor e conteúdo dos cursos e ao seu nível superior e universitário.

Parece-nos que a lei prevê que sejam em princípio politécnicos, desde que se integrem em escolas verdadeiramente universitárias, ainda que não existentes em outras Universidades portuguesas; contudo, se se verificarem o respetivo nível superior e o espírito subtancialmente universitários permite a sua integração na Universidade Católica, então como hoje.

Isto levantava um problema: poderiam incluir-se na Universidade Católica (ou associar-se a ela) escolas destinadas a ministrar cursos que tenham carácter politécnico ou tecnológico com carácter superior – mas não análogos aos das restantes Universidades, porque expressamente excluídos do seu âmbito?

É mais delicado definir se, em tal caso, o presente decreto-lei ou a legislação que lhe sucedeu seria ou não aplicável a tal escola. Parece-nos fora de dúvida que lhe seria aplicável a legislação reguladora do ensino politécnico. Mas exclusivamente? Ou, pelo contrário, em matérias aqui reguladas – concessão de diplomas, organização de cursos – poderia estar também sujeita ao regime específico da U.C.P.?

Inclinando-nos para a segunda solução – tanto mais que este diploma, subsidiário da legislação comum sobre o “chamado ensino ⁶ Importa o interesse específico da instituição no cultivo das Ciências Humanas (várias vezes objecto de declarações do Episcopado), colaborando com as Universidades do Estado por via de uma certa integração doutrinária e cultural. Para isso, tanto o ensino de base como a investigação de cúpula estarão incluídos na sua esfera de interesses, embora dentro de um espírito que evite duplicações de esforços. Nesta óptica, poderia referir-se mesmo mais do que as simples ciências humanas: porque não as ciências físicas e naturais, tão relevantes para uma qualquer visão do mundo, maxime a cristã?

Faculdade de Filosofia – que é sem dúvida análoga às Faculdades de Letras, ao menos em algumas das suas secções⁶.

\ 211

Previa-se ainda (alínea c) do n.º 1 do art. 2.º – para fins de investigação ou educação permanente, por exemplo – a criação de centros de investigação científica e institutos culturais, anexos aos estabelecimentos de ensino existentes. Neste caso, é claro que a competência para a criação caberia primariamente às autoridades universitárias ou – por motivos que adiante melhor explicaremos – às autoridades eclesiásticas competentes; embora (art. 5.º) se achasse condicionada por autorização ministerial, talvez nem sempre rigorosamente necessária.

2. O Ministro da Educação Nacional resolverá, ouvida a Junta Nacional da Educação, as dúvidas suscitadas na execução deste diploma.

era claramente inspirado mais pela natureza da instituição do que pelos cursos nela ministrados, e apenas regulava aspetos esparsos, remetendo no demais para o Direito Canónico e para o Direito nacional.

b) Do Direito aplicável à Universidade Católica Da natureza da Universidade Católica decorre um outro problema importante, resolvido pelo Decreto-Lei n.º 307/71: o do direito subsidiário – ou seja, na óptica restrita em que devemos colocar-nos, o de saber quais as fontes de Direito que regerão o funcionamento da Universidade Católica e qual a sua hierarquização ou ordem de precedências. Resolvia-o o artigo 12.º.

\ 212não-estatal,

Art.12.º – 1. No que não estiver previsto pelo presente diploma a Universidade Católica reger-se-á, de harmonia com o disposto no artigo XX da Concordata de 7 de Maio de 1940, pela legislação sobre o ensino particular.

⁷ Segue-se a doutrina exposta no referido estudo O reconhecimento oficial…, em 1971, que o tempo veio confirmar; por isso se comenta no texto originário, em vez do que em 1990 o substituiu com leves atualizações.

Quanto à regulamentação contida neste diploma, não se suscitam tão-pouco dúvidas de maior. Sabe-se que a Igreja Católica pretendeu que semelhante texto fosse dimanado do poder civil (a isso alude o relatório do decreto-lei: “A Igreja católica pretende nestes termos, ver definido o estatuto da Universidade cujas primeiras escolas por ela foram já fundadas no nosso país”). E é de presumir algum acordo haja estado na base da publicação das principais disposições do presente diploma. Ele é, pois – no plano do Direito estatal –, a primeira chave de leitura do regime jurídico a que se encontra sujeita a Universidade Católica. A referência exclusiva, que nele se faz, ao art. XX da Concordata, para definir ou inspirar todo o regime da Universidade Católica, pretenderá dizer o seguinte: a) É livre a fundação de quaisquer estabelecimentos de formação ou alta cultura eclesiástica; o seu regime interno não está sujeito

Tal preceito suscita diversos problemas, alguns deles graves, que bem importa dilucidar⁷. Prevê-se neste preceito que, salvo quanto ao que se contém no Decreto-Lei n.º 307/71, a Universidade se rege pela legislação do ensino particular; ao Ministro da Educação Nacional compete, ouvida a Junta Nacional da Educação, resolver as dúvidas suscitadas pela execução do diploma. Esta última intervenção apenas tem, pois, sentido para interpretar ou integrar o diploma especial, ou seja, para tomar posição quanto aos seus critérios de execução ou aplicação.

\ 213

Estas três conclusões que podemos extrair do art. 12.º, em conjunto com o art. XX da Concordata, não esgotam, porém, toda a problemática por ele suscitada. Designadamente, pode levantar-se o problema de saber se a Universidade Católica se encontra também sujeita ao artigo III da Concordata. E cremos que sim, por diversas razões. Antes de as expormos, cabe porém afirmar

b) Nas outras escolas, a criação é livre (1.º trecho do artigo XX da Concordata); ficarão, porém, sujeitas, nos termos do direito comum, à fiscalização do Estado e podem, nos mesmos termos, ser subsidiadas e oficializadas.

c) Mesmo nestas, porém, o ensino religioso não depende de autorização do Estado e pode ser livremente ministrado pela autoridade eclesiástica ou pelos seus encarregados (devendo entender-se, pois, que está isento de fiscalização estadual). É matéria omissa mas – porque consta da Concordata, e ela tem de prevalecer – parece dever aplicar-se (aliás, por paridade de razão com o artigo 3.º, n.º 1 deste Decreto-Lei).

\ 214à fiscalização do Estado, devendo apenas ser a este comunicados os livros adotados de disciplinas não filosóficas ou teológicas e devendo as autoridades eclesiásticas cuidar que no ensino das “disciplinas especiais” se tenha em conta o legítimo sentimento patriótico português. Tudo isto consta do 3.º trecho do artigo XX da Concordata. Mas, porque se trata do regime especial, parece ser também aplicável o regime-regra do 1.º trecho do artigo XX: embora dispensadas de fiscalização, podem ser oficializadas e subsidiadas. Este regime foi claramente pensado para estabelecimentos primários e secundários; não obstante, com diversas adaptações, foi tido em conta em diversos outros pontos do articulado do decretolei (cfr. arts. 7.º, 3.º, etc).

Acresce – e este parece-nos ser o maior erro de óptica que se contém na invocação (sobretudo se exclusiva) do artigo XX da Concordata para inspirar este regime – que isso conduz a conclusões que podem chocar com o próprio espírito da Concordata, se não mesmo com a sua letra. Se a Universidade Católica é considerada uma “escola particular paralela às do Estado” – as quais podem ser livremente instituídas pelas “associações e organizações da Igreja” – fica sujeita integralmente à fiscalização estadual, exercida mesmo antes da fundação da escola (arts. 7.º e segs. do Decreto n.º 37545, de 8.11.1949): esta tem de ser autorizada (embora a Concordata diga que podem ser livremente criadas e mantidas); e podem mesmo ser encerrados pelo Governo alguns dos seus estabelecimentos de ensino (o que contraria a natureza da Universidade Católica).

\ 215 que não pretendemos com isto defender o direito da Igreja a um estatuto especial privilegiado; nem foi esse o sentido, ou a prática, destes 23 anos.

É doutrina da Igreja – a qual foi particularmente precisada pelo Concílio, por especialmente adequada às sociedades pluralistas e aconfessionais do nosso tempo (não haverá ainda aqui excesso de europeísmo, apesar de tudo?) – que na medida do possível se submetam as suas instituições ao Direito Comum, sem procurar para si privilégios. Em contrapartida, pede-se aos poderes civis que prescindam de poderes exorbitantes sobre aquilo que é essencial e próprio da vida eclesial – com a designação dos bispos, etc. Apenas visamos, porém, interpretar o que é, de momento, o regime da Igreja em Portugal (aliás, respeitado, como era imposição constitucional, pela base XVIII da Lei da Liberdade Religiosa).

Se fosse considerada “estabelecimento de formação ou alta cultura eclesiástica” não poderia ser subsidiada nem oficializada (o que

\ 216a Igreja não pretenderia); e perderia a faculdade de se dedicar a estudos de ciências humanas e morais, sem dúvida essenciais à sua finalidade específica. Deste dilema não se sai, se se pretender que só o artigo XX – invocado isoladamente com manifesta infelicidade – rege a Universidade Católica. Felizmente, porém a adequação ao sistema concordatário, afirmada no relatório do decreto-lei, tem de ser entendida como um todo inspirador do diploma – o que implica a aplicação (e, em nossa opinião, com manifesta e necessária prioridade) de outros preceitos, designadamente os artigos III e IV da Concordata. Vejamos melhor porquê. O caminho que resultaria da aplicação do 1.º trecho do art. XX da Concordata não parece poder ser seguido – pois respeita à fundação de escolas, não pela Igreja como tal, mas por associações e organizações religiosas: é o que se poderia chamar fundação eclesiástica indireta. Ora, o cânone 1376 do Codex Iuris Caninici (no texto então vigente) expressamente dispunha que só a Santa Sé tinha o direito de instituir Universidades Católicas. O seu regime cabe primariamente, pois, no das “associações e organizações da Igreja”, contempladas no artigo III da Concordata, que este decreto-lei não teria o poder de afastar. Foi isso mesmo, aliás, o que sucedeu com o Instituto Católico Português – ereto canonicamente e objeto de simples comunicação do Patriarcado ao Governo Civil de Lisboa: a fortiori teria de suceder o mesmo com a Universidade Católica, muito mais intimamente aderente ao que é a essência da Igreja institucional. Por outro lado, as escolas de fundação eclesiástica integram-se, como seu elemento fundamental, na organização da Igreja, como expressão que são do poder eclesial de ensinar: muito particularmente o são as Universidades Católicas. O livro III do Código do Direito Canónico de 1919, então vigente, após regular os sacramentos, o culto, os lugares e templos sagrados, ocupava-se

este argumento sistemático para mostrar como a Universidade Católica não é um qualquer colégio de ensino médio: ela faz parte das organizações estruturais da Igreja, que visam realizar as suas finalidades primordiais (embora por formas variáveis consoante as épocas históricas)⁸.

Assim sendo, à Universidade Católica tem de se aplicar de pleno o que dispõe o artigo IV da Concordata: “as associações ou organizações a que se refere o artigo anterior podem adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos em que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica”. Este é um princípio geral, inderrogável pela lei ordinária: a ele está, pois, sujeita a Universidade Católica. ⁸ Este argumento sistemático foi inspirado por um parecer do Prof. Doutor Manuel Gomes da Silva ondesedemonstraclaramentequeoart.IIInãoserefereapenasaosórgãoscentraisdaIgreja(porexemplo,temdeabrangerosseminários,comoopressupõemosarts.VIIIeXX).EaúltimarazãobastatambémparademonstrarcomoéinaplicávelaumaUniversidadeCatólicaoregimedoensinoparticular,eseimpõeenormepoderdeadaptaçãoaoaplicaroart.12.º:porexemplo,comoadotarosplanoseprogramasdoensinooficial?

Em conclusão: nada pode opor-se a que se considere a Universidade Católica como uma das associações ou organizações em que a Igreja “pode organizar-se livremente”, tanto mais que a própria Igreja prevê como tal a sua ereção (CIC de 1919, can. 1376 e segs); e pode entender-se que ela integra o exercício da sua função docente, que lhe é conatural enquanto Igreja, tanto como a função sacramental e a função pastoral. O regime em causa abrange tanto associações como fundações (organizações): é ponto pacífico.

\ 217 na parte IV do magistério da Igreja [disciplinando sucessivamente a pregação, os seminários, as escolas canonicamente eretas (entre as quais se situa a Universidade Católica), etc.]. Basta

b) Assim sendo, a sua disciplina jurídica básica é de natureza jurídico-canónica – sem amargo do respeito, que o próprio Direito Canónico impõe, pelo que for aplicável das disposições civis.

\ 218É óbvio, porém, que o reconhecimento oficial implica um certo número de contrapartidas. Essas foram estabelecidas neste decreto-lei, em termos que reproduzem substancialmente o art. XX da Concordata: é uma forma de aplicação (ou integração – não interessa agora esmiuçar) legítima. Mas, quanto aos órgãos de execução, não pode fazer-se, sem mais, a analogia com o que se contém na legislação relativa ao ensino particular. Parece-nos que a melhor solução, dentro do espírito do nosso sistema jurídico, consistirá na aplicação, por interpretação extensiva ou integração analógica, do trecho do art. IV da Concordata que, reportandose às atividades de assistência ou beneficiência exercidas pelas pessoas coletivas eclesiásticas referidas no art. III, determina: “ficam, na parte respetiva, sujeitas ao regime instituído pelo Direito Português para estas associações ou corporações, que se tornará efetivo através do Ordinário competente e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para pessoas jurídicas da mesma natureza”. O princípio traduz uma regra de equidade, não privilegiando as organizações da Igreja; mas, reconhecendo-a como poder, torna os seus órgãos executores indiretos do respeito pelo Direito do Estado. Em suma, de quanto foi exposto, cremos poder tirar as seguintes a)conclusões:Sópormanifesto erro se pode considerar a Universidade Católica Portuguesa basicamente sujeita ao art. XX da Concordata; a sede fundamental do seu regime concordatário reside nos arts. III e IV.

\ 219

De quanto precede, decorre ainda que nos parece perfeitamente lícito que fossem criados cursos ou centros de investigação sem autorização do Ministro da Educação (embora, decerto, a hipótese seja meramente académica): isso impõem, quer o art. III, quer o próprio art. XX da Concordata. Em tal caso, a sanção seria, naturalmente, que a esse curso deixaria de se aplicar todo o regime favorável de reconhecimento e outros benefícios estatuídos no presente diploma. Por seu turno, parece-nos que, para o encerramento de escolas e a execução de outras disposições que devam ser observadas do Direito português, este deverá tornar-se efetivo através da autoridade eclesiástica competente (art. IV da Concordata; para tanto serve também o n.º 2 do art. 3.º, embora tal não seja claramente a sua intenção).

d) É nestes termos que deverá ser interpretado – e integrado – o art. 12.º do Decreto-Lei n.º 307/71

c) Os órgãos de aplicação do Direito respectivo devem também ser de duas ordens – os de natureza estadual e os canónicos, consoante resulta do art. IV da Concordata. Quanto aos afastamentos do regime concordatário pelo Direito Comum, podem ser desejáveis, e serão legítimos, se consentidos.

Acrescentaríamos ainda, como corolário, que o próprio espírito da reforma universitária do tempo impõe que se aceitem como fonte jurídica de definição do regime da Universidade Católica os seus estatutos, indubitavelmente canónicos, e desprovidos de qualquer sanção ou homologação estatual. Por tudo isso, melhor fora que a redação do preceito em causa tivesse em conta estes elementos inderrogáveis do sistema jurídico, em vez de os omitir, sem se perceber bem por que motivos.

fica dito apenas se aplica à Universidade Católica porque ela foi de fundação eclesiástica – seria bem diverso se se tratasse de uma “Universidade de inspiração católica”, desprovida de regime eclesiástico e de fundação não eclesiástica. Importa, porém, que fique bem claro o seguinte: a sujeição ao Direito estadual (dentro do espírito e da letra expressa das Normae quaedam) é sempre necessária; nunca a Igreja desejaria que, desde que conforme à autonomia das instituições e ao poder regulamentador da autoridade canónica, se criasse um regime de exceção, pelo qual a Universidade Católica deixasse de estar sujeita aos princípios fundamentais do Direito local; e o Estado também o não poderia aceitar. É isso aliás o que sucede, mais fortemente e a mais justo título, com as escolas previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º; pois são elas que definem uma precisa vocação da Universidade Católica para ensinar e investigar a visão católica do mundo aplicada à sociedade portuguesa, em íntima ligação com as demais Universidades nacionais. A Universidade Católica, enquanto em si incorpore estabelecimentos próprios de uma escola superior de tipo eclesiástico (único caso em que poderia aplicar-se-lhe o art. XX da Concordata), terá pois um regime fundamental moldado pelo Direito Canónico. Mau seria, porém, que a sua vocação se esgotasse neste campo da ordem jurídica, apesar da sua incontestável dignidade. E, enquanto dele saia, o regime fundamental da instituição será então definido pelo Decreto-Lei n.º 307/71 – o qual pressupõe, contudo, o respeito dos preceitos canónicos que, em virtude da sua origem e da sujeição ao poder eclesiástico, continuarão a moldar o estatuto fundamental da Universidade Católica. É o que resulta, e bem, da economia do

\ 220Quanto

c) Organização e funcionamento A este respeito, o regime legal decorre do espírito concordatário por duas vias: uma, que se preferiu seguir, a da aplicação direta do art. XX; outra – que afinal conduz ao mesmo resultado – a da execução do art. III, com aplicação analógica do regime do art. IV. Afinal uma e outra conduziriam, no essencial, a regimes paralelos, se não idênticos, o que só comprova a justeza e coerência da Aregulamentação.autonomiadas escolas (e do ensino) de disciplinas teológicas, filosóficas e jurídico-canónicas é completa – apenas devendo ser comunicadas as disciplinas (e respetivos programas) que não tenham esse carácter. Assim o dispõe o art. 3.º, com claro respeito pela autonomia de organização da escola não estatal e pelo poder do magistério da Igreja nas esferas que lhe são próprias: Art. 3.º – 1. A organização e funcionamento das Faculdades e institutos superiores referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º – são livremente fixados pela autoridade eclesiástica, devendo o reitor da Universidade Católica comunicar ao Ministro da Educação Nacional, até 30 de Novembro de cada ano, o elenco das disciplinas aí professadas e os programas das cadeiras e cursos

\ 221

diploma em causa: verificou-se que a vocação da Universidade Católica Portuguesa, fazendo avançar as ciências sagradas, se não confinou a um âmbito estritamente eclesiástico, o que seria desconforme à sua natureza e inadequado às necessidades sociais que a fizeram nascer, como fruto de um antigo sonho de diversas gerações cristãs de Portugal. Aí estão os factos a definir um sentido claro de prioridade: a UCP, não deixando de ser católica, não subalternizou a sua qualificação e vocação de portuguesa.

Art. 4.º – 1. A instituição e reforma das Faculdades e institutos superiores mencionados na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º dependem de autorização do Ministro da Educação Nacional, ouvida a Junta Nacional de Educação, sob proposta da Universidade em que se definam os programas dos cursos e os regimes a observar quanto à apreciação do mérito escolar e à atribuição de títulos e diplomas, aspetos que serão regulamentados pelos diplomas de autorização.

\ 222que não sejam de carácter restritamente teológico, filosófico ou

2.jurídico-canónico.OreitordaUniversidade

manterá o Governo informado sobre qual a autoridade eclesiástica competente para os efeitos deste artigo. Quanto às outras Faculdades e institutos superiores (os referidos na alínea b) do n.º 1 do art. 2.º), a sua criação dependia de autorização do Ministro da Educação, ouvida a Junta Nacional da Educação, sob proposta da Universidade. O diploma de autorização – que pressupunha decerto um acordo de base entre as duas partes quanto ao essencial – definiria o programa do curso respetivo, o regime de apreciação do mérito escolar e a forma de atribuição de títulos e diplomas. Estas escolas superiores deviam ainda observar as normas jurídicas por que se regem as outras Universidades portuguesas, quanto às matérias referidas no n.º 2 do art. 4.º (definidas de forma algo vaga e porventura, demasiado ampla):

2. Estas Faculdades e institutos superiores observarão as normas jurídicas por que se regem as restantes Universidades portuguesas quanto a recrutamento do pessoal docente, nível do ensino ministrado, habilitações de ingresso, atividades circum-escolares, serviços médico-sociais universitários e, de um modo geral quanto a todos os aspetos pedagógicos.

O espírito destas disposições – também ele inspirado pela ideia feliz de «respeito pelos princípios fundamentais do sistema educativo português», a que se alude no relatório preambular – visa decerto assegurar o objetivo, perfeitamente necessário, de garantir que, pela qualidade do ensino, a UCP não se afastasse da regra geral da portuguesa nem descesse abaixo do seu nível normal ou oferecesse menores garantias aos seus alunos.

regulamentos

\ 223

Se se pretendesse que se traduziria no respeito individual e analítico por cada preceito, sem lugar para regimes especiais – isso não só seria inconveniente, dotando-nos de mais uma universidade de espartilho único e privando-nos das vantagens da diversificação, da autonomia do ensino livre, como contrariaria o Direito Canónico e o regime concordatário. Nada na letra do Decreto-Lei nos diz que o espírito seja diverso do que defendemos; antes a referência expressa ao regime concordatário e as tendências diversificadoras da projetada reforma do sistema escolar apontavam nessa direção, que a prática confirmou sem hesitações até ao presente.

Por seu lado, quanto aos centros de investigação e institutos culturais, dispõe o art. 5.º: Art. 5.º A criação e funcionamento dos centros de investigação ou institutos culturais dependerá da aprovação dos respectivos pelo Ministro da Educação Nacional, ouvida a Junta Nacional de Educação.

O princípio é certo e indubitável. A forma, porém, depende afinal do que acima se disse acerca do Direito aplicável à Universidade Católica: se por «observar as normas jurídicas» se entender assegurar os princípios essenciais (sem prejuízo de o Direito canónico poder conter disciplina diversa, que não ponha em causa os preceitos do Direito local), então o regime parece-nos aceitável.

Universidade

fundamentais

que esta autorização de carácter regulamentar se estenda mesmo aos centros ou institutos que funcionem junto das escolas de Teologia, Filosofia ou Direito Canónico – restringindo assim a sua maior autonomia de funcionamento; é, porém, de notar que estes diplomas serão meramente regulamentares, em nada vinculando o espírito crítico ou a liberdade da investigação.

Ao invés, é muito livre o exercício de atividades de educação

Católica poderá realizar cursos, conferências e outras atividades de educação permanente, designadamente de extensão universitária, que terão como finalidade principal a divulgação do pensamento cristão dentro das disciplinas nela louvar a liberdade atribuída à formação permanente, bem como a ênfase com que ela é tratada, como expressão das necessidades de adaptação à mudança que marcam a essência da civilização atual e da responsabilidade social da Universidade.

Só não concordamos com «a finalidade principal» de divulgação do pensamento cristão: a finalidade principal destas atividades tem de ser a de qualquer modalidade de educação permanente; e seria mau que a função de elaboração e comunicação cultural se visse colocada afinal ao nível da mera «divulgação» de qualquer corrente de pensamento, conceção da vida ou escola cultural – por mais digna que seja.

Art.permanente:6.ºAUniversidade

224Estranhar-se-á

Afigura-se-nos mesmo feliz a referência incidental ao «pensamento cristão» – pondo de lado uma ideia de cultura católica que hoje, face à nova formulação das relações entre Cristianismo e cultura definida pela Gaudium et Spes, seria equívoca, quando não perigosa.

\

Parece-nosprofessadas.de

\ 225

d) Regime pedagógico: a regra da equiparação de cursos, diplomas, títulos e graus Infelizmente sobrevalorizada em relação a outros aspetos fundamentais da atividade universitária, a concessão de um diploma é apenas a atestação da frequência universitária de um curso, a qual deveria valer mais pelos frutos e efeitos do que como pelo valor formal e documental. Sabemos, porém, como uma particular deformação prática tornou o diploma fim principal da frequência universitária; o que, reforçado pelo carácter profissional ou quase-profissional de certos diplomas universitários, tornou esta matéria – bem como as conexas questões do reconhecimento dos estudos e da validade dos graus académicos – pedra de toque da medida em que o ordenamento estadual acolhe ou protege certa instituição do ensino particular. Regula-a o art. 7.º: Art. 7.º 1. As Faculdades e institutos superiores que integram a Universidade Católica poderão atribuir, nas condições constantes dos respetivos diplomas constitutivos, os graus de bacharel, licenciado e doutor, gozando os correspondentes títulos e diplomas do mesmo valor que os das restantes Universidades Portuguesas.

2. A concessão de graus académicos por parte das Faculdades e institutos superiores referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º dependerá, porém, da participação nos respetivos júris de exames, dentro das condições que vierem a ser fiadas, de elementos do corpo docente das Universidades oficiais. É este, sem dúvida, um dos dispositivos mais felizes de todo o Decreto-Lei, pois adota uma posição aberta e precursora relativamente a outras situações de ensino não estadual. Esta disposição – aliás dentro

\ 226do espírito do art. 44.º da Constituição de 1933 – correspondeu afinal à «oficialização» de cursos ministrados na UCP. Em relação a todas as escolas (Faculdades ou Institutos superiores) se previa a possibilidade de atribuição dos graus de bacharel, licenciado e doutor, nas condições constantes dos respetivos diplomas (legais ou canónicos) constitutivos. Para as escolas estritamente eclesiásticas, o diploma constitutivo será canónico; para as restantes, terá carácter civil, embora naturalmente deva respeitar as condições essenciais da estrutura jurídico-canónica da escola, que foi reconhecida tal como é. Findaria assim a capitis deminutio de que certos diplomados, com formação inegavelmente superior (caso dos diplomados em Teologia), sofriam face ao ordenamento civil; deixava de se manifestar uma desconfiança crónica em tudo o que não seja formação ministrada pelo Estado, a qual não foi uma das menores causas da subalternidade do ensino particular entre nós, pelo nível como pelas condições de exercício a que se viu reduzido. Por outro lado, o espírito do preceito aplica-se à generalidade dos graus concedidos – e assim nos anos oitenta veio abranger também os cursos, graus e títulos de mestrado. Era excessiva a condição do n.º 2: a necessidade de participação de elementos do corpo docente das Universidades oficiais condicionava a equiparação de graus e diplomas, quanto às escolas não eclesiásticas. Era lícito esperar que, quando a Universidade se encontrasse plenamente consolidada e dispusesse de um corpo docente prestigiado e dotado das mesmas qualificações académicas que o das escolas estaduais, viesse a merecer plenamente a confiança nos seus graus, tanto por parte do Estado como pela sociedade, convertendo-se esta semi-oficialização numa oficialização plena.

e) Regulamentação financeira e administrativa A regulamentação financeira e administrativa da UCP contida no Decreto-Lei apenas abrangia, como era de razão, a matéria relativa às relações com as autoridades estaduais competentes.

O mais importante desta regulamentação reporta-se aos benefícios que podiam ser concedidos, como consequência da declaração de utilidade pública (art. 1.º). Assim: Art. 10.º Relativamente à aquisição e fruição dos seus bens e às atividades que exerça para a realização dos seus fins, a Universidade Católica goza de isenção de: a) Impostos, contribuições ou taxas do Estado e das autarquias locais, incluindo o imposto do selo;

\ 227

O mesmo, aliás, decorreria do reforço do princípio da liberdade de ensino, que os anos setenta e oitenta efetivamente garantiram, com alguma regressão no início dos anos noventa. A afirmação da qualidade do ensino ministrado na U.C.P. confirmou o espírito de liberdade inspirador destes preceitos e removeu muitos obstáculos formais. Assim, a U.C.P. abriu caminho à liberdade de ensino generalizada a outras entidades não estaduais. E a experiência universitária da Universidade Católica confirma uma tese que temos defendido a propósito de outros aspetos do regime concordatário: os regimes especiais de liberdade “auxiliada” ou “reforçada” podem ser fonte e modelo para a liberdade, especial ou genérica, de outros setores, pessoas ou instituições da sociedade civil; só os privilégios negativos, desproporcionados ou autoritários negam a igualdade e limitam em definitivo a liberdade.

Art. 11.º O Ministro da Educação Nacional poderá atribuir subsídios à Universidade Católica, devendo o diploma de concessão indicar os fins a que os mesmos se destinam.

\ 228b)

Enfim, dispunha-se que a representação da Universidade junto das autoridades públicas cabia ao reitor (ou, como é evidente, a quem suas vezes fizesse), ao qual especialmente competia velar pela execução deste diploma (como, naturalmente, pelo respeito das normas legais e canónicas que a Universidade Católica deve acatar); e definia-se a competência para instruir os processos e assuntos respeitantes à UCP: Art. 8.º – 1. A representação da Universidade Católica junto das autoridades públicas ficará a cargo do respectivo reitor, a quem especialmente compete velar pelo cumprimento do presente diploma.

Preparos, custas e impostos de justiça, em processos que corram em quaisquer tribunais em que seja parte principal, assistente ou interveniente.

Por outro lado, definiam-se os bens constitutivos do património da Universidade Católica: Art. 9.º O património da Universidade Católica é constituído pelos bens que diretamente lhe pertencem, por todos os bens e direitos do Instituto Católico Português, que para ela se transmitem, e ainda por todos os bens que hajam sido doados ou deixados à Igreja, ou a qualquer das suas organizações ou autoridades com expressa menção de deverem ser aplicadas aos fins da Universidade Católica.

Ao reparar erros do liberalismo e da I República (que ensombraram uma obra educativa de grande visão mas, pelas condições gerais do ambiente, pouco eficaz), criaram-se condições para reintegrar a cultura portuguesa, num domínio cuja importância cultural os

f) Síntese e apreciação O espírito do Decreto-Lei n.º 307/71 era no essencial bem simples. Ao abrigo do art. 44.º da Constituição de 1933, estabelecia-se um regime acertado: reconhecimento do ensino, sem fiscalização, tutela ou outra forma de interferência estadual, para as escolas cuja atividade é inerente à própria vida da Igreja; reconhecimento mediante autorização, regulamentação do Estado e sujeição aos princípios fundamentais do sistema educativo português, para as demais. Nestas simples disposições continha-se – de modo concretizado, transcendendo o mero verbalismo –, toda uma série de desígnios novos acerca da educação em Portugal.

Voltou também o Estado a reconhecer – e agora, colocando-a sob a responsabilidade da Igreja – a dignidade universitária da Teologia.

\ 229 2. Todos os assuntos respeitantes à Universidade Católica que sejam submetidos ao Ministério da Educação Nacional correrão pela Direção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes.

Definia-se o estatuto civil de uma Universidade nova, que foi nascendo sob o seio da Igreja e se abriu a novos estudos, mediante a contribuição de uma experiência de educação que – na Igreja e em suas congregações – é multissecular e universal. Assim se combinariam tradição e progresso, única forma de realizar uma verdadeira Universidade, que seja nova, mas sem deixar perder a essência universitária, a qual quase se confunde com a da cultura ocidental.

A Universidade Católica chegou ao 25 de Abril de 1974 com a Faculdade de Filosofia de Braga, geograficamente separada e institucionalmente amadurecida, a Faculdade de Teologia, que havia começado a funcionar em Lisboa em 1968, e a Faculdade de Ciências Humanas, que ministrava um curso de Ciências Empresariais, cujas primeiras aulas haviam principiado em Outubro de 1972. Exceto a primeira – já madura – eram escolas promissoras, mas estavam longe de poder ter atingido a maturidade. A teologia vivia um conflito interno; a Faculdade de Ciências Humanas também. Corria-se pois o risco de, nas duas escolas de Lisboa e, portanto, na Universidade como projeto geral capaz de transcender a fecunda experiência institucional da Faculdade de Filosofia de Braga, haver uma dinâmica de crises e ocupações

\ 230países civilizados reconhecem, possibilitando a recuperação de atrasos que nem sempre tivemos: recordemos no século XVII os DoConimbricenses…mesmopasso, fazendo tábua rasa do preconceito anticlerical e estatista que marcou o nosso caminho – e a nossa cultura – desde o século XVIII, começou-se a ultrapassar a inútil e nociva querela das escolas, que só tem impedido Portugal de ganhar algumas batalhas na guerra da educação. Todas as conquistas, porém, fazem contrair novas responsabilidades: da Universidade e da Igreja, na realização dum desígnio nacional com que se comprometeram; do Estado, na promoção crescente, depois deste primeiro passo, do ensino particular, convertendo-o em verdadeiro ensino livre. Foi o que veio a acontecer, em boa parte, nos anos setenta e oitenta; esperemos que passem as nuvens que hoje ensombram o horizonte.

2. OS ANOS DE AFIRMAÇÃO (1972-1979)

universitário;

A autonomia dos cursos da Faculdade de Ciências Humanas rapidamente a tornou na primeira Faculdade da Universidade Católica Portuguesa em termos quantitativos e, correspondendo aliás a uma resposta correta a situações de irregular funcionamento geradas pelo afastamento de muitos professores (“saneamento”) das universidades estaduais, conduziu a uma prática de ciência e ensino que veio a confirmar decisivamente o prestígio da

\ 231 anárquicas, que o tempo demonstrou depois poder conduzir, como conduziu em várias escolas não estaduais, à descaracterização e à extinção ou à estatização.

Universidade Católica. Como recorda o Padre João Seabra: “Em vez de apostar na produção interna de doutorados, que começou ⁹ Veja-se, sobre este período, o depoimento do Padre João Seabra «A Universidade Católica» em Agência Ecclesia – Semanário, n.º 490, 14-4-1994.

A existência destes conflitos e o ambiente revolucionário tornaram importante – embora seja difícil dizer que dominante – a orientação segundo a qual a Igreja deveria abandonar o domínio do ensino ou a de que, em termos mais práticos, as condições objectivas não tornariam possível a continuação do funcionamento de uma instituição universitária deste tipo e com estas características⁹. Em 1974, a separação dos cursos de Economia e de Administração e Gestão no então Curso de Ciências Empresariais da Faculdade de Ciências Humanas teve um significado importante, como o teve a criação em 1976 do Curso de Direito em Lisboa e, em 1978, a criação da Secção do Curso de Direito no Porto, sob o impulso, que não deve esquecer-se, de Mário Pinto. Sem esquecer a criação do Curso de Ciências Religiosas no difícil ano de 1975 e a filiação do Instituto Superior de Filosofia de Braga e a abertura da Secção de Lisboa da Faculdade de Filosofia, ambas em 1977…

\

Pode dizer-se que este período representou a consagração da Universidade Católica como uma universidade adulta e de qualidade, com nível científico e pedagógico não inferior ao das melhores universidades portuguesas. Para isso contribuiu a situação de crise que a revolução fizera deflagrar nas universidades do Estado, deitando fogo a explosivos acumulados, ao longo dos anos, por diversas situações críticas dessas várias universidades. Todavia, como é evidente, tal efeito não ocorreria se a Universidade Católica não tivesse, com critério que há que imputar aos seus dirigentes do tempo, sabido selecionar os melhores, apostar decisivamente em áreas prioritárias e dar um exemplo e um modelo, até, para a recuperação das escolas estaduais que haviam sido tão abaladas pelos acontecimentos do tempo.

Uma resposta adequada às circunstâncias de crise que marcaram diversas escolas – em particular as de Lisboa, e muito em especial a Faculdade de Direito de Lisboa, com o “saneamento” de todos os seus professores – permitiu consolidar cursos cujo prestígio se tornou, na Universidade Portuguesa, incontestado; e de forma tão intensa e rápida que não tem paralelo em qualquer universidade não estadual (e em diversas universidades estaduais novas, para falar toda a verdade).

232relativamente

tarde, foi buscar as pessoas mais prestigiadas que havia nas universidades portuguesas, o que deu um arranque imenso à UC. Na segunda metade dos anos setenta era o único sítio da Universidade Portuguesa onde se podiam ouvir as aulas de professores catedráticos em paz e sossego”. Recordemos os nomes, fundadores e emblemáticos, de Manuel Cavaleiro de Ferreira e João de Castro Mendes em Lisboa e de João Baptista Machado e Vasco da Gama Lobo Xavier no Porto.

Este período é particularmente importante por representar, além disso, o do nascimento dos dois cursos de Direito da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, em Lisboa e no Porto, como já se referiu. É lícito dizer, de algum modo, que a normalização da vida

\ 233

a) o incremento da cultura nos planos intelectual, artístico, moral e espiritual, como instrumento de realização integral do Homem, inspirada nos valores cristãos; b) a promoção da investigação e do ensino superior, no domínio das ciências sagradas e no das ciências exatas e humanas, numa perspetiva de integração e de síntese do saber e de enriquecimento mútuo das suas várias disciplinas; c) o serviço à comunidade eclesial, em particular nos campos da d)evangelização;apreparação dos quadros para a comunidade eclesial e para a sociedade civil, mediante uma formação científica e profissional atualizada e uma educação deontológica conforme as exigências da Justiça, inspirada nos princípios do Evangelho;

Artigo 3.º A UCP cumpre uma missão da Igreja e tem especialmente como finalidade:

universitária, que coincidiu com a afirmação da maturidade plena desta instituição universitária, conclui, no foro doméstico, o processo de institucionalização da Universidade Católica com a aprovação dos Estatutos por Decreto da Congregação Romana n.º 132/79/12, de 19 de Março. O seu texto enuncia as finalidades da Universidade Católica em termos que, dada a sua importância, se transcrevem:

\ 234e) a criação de um ambiente comunitário favorável ao desenvolvimento harmonioso da personalidade dos estudantes e à compreensão e colaboração entre os seus componentes; f) a educação permanente, em particular dos seus antigos alunos; g) a realização de atividades de extensão universitária; h) a sua inserção na realidade portuguesa, mediante o estudo dos seus problemas e a promoção dos valores culturais da comunidade i)nacional;adifusão do pensamento, dos valores e dos ideais cristãos. Seguidamente, definem-se os seus «princípios informadores»: carácter comunitário (artigo 4.º, n.º 1); inspiração cristã (artigo 4.º, n.º 2); afirmação dos princípios do diálogo, da diversidade, da fraternidade e da liberdade (artigo 4.º, n.º 3); participação (artigo 4.º, n.º 4); representação orgânica por via eletiva (artigo 4.º, n.º 5); compromisso com o mundo contemporâneo e difusão da atividade cultural e científica (artigo 5.º, n.os 1 e 2); importância da investigação científica e da liberdade científica (artigo 6.º, n.os 1 e 2); exigência científica e pedagógica não inferior à das restantes universidades portuguesas, procurando atingir o nível académico mais elevado (artigo 7.º, n.º 1); exigência de uma sólida formação científica e de base (artigo 7.º, n.º 2); liberdade académica (artigo 7.º, n.º 3); referência particular à inspiração cristã (artigo 7.º, n.os 4 e 5); importância da educação permanente (artigo 8.º); extensão universitária (artigo 9.º); cooperação universitária (artigo 10.º); isenção político-partidária e ideológica (artigo 11.º); e princípio da participação pública responsável (artigo 12.º). Na «estrutura da UCP», combinando-se departamentos com faculdades e tendo em

Este é um tempo em que a estabilização, que correspondeu ao período seguinte do longo mandato do Reitor Prof. Doutor Bacelar e Oliveira, se combinou com a expansão, particularmente marcante, após 1988, do mandato do Reitor, Prof. Doutor Dom José da Cruz Policarpo (nomeado por Decreto da Sagrada Congregação para a Educação Católica de 13 de Outubro de 1988, tendo tomado posse em 18 de Novembro de 1988). Na verdade, a Universidade desde cedo se instalou, além de Braga e Lisboa, no Porto – cujo Centro Regional constitui a segunda grande concentração de estudantes – e em Viseu. Mais recentemente, estendeu ainda as suas atividades ao Funchal, Leiria e Figueira da Foz. Além da disseminação dos seus cursos nucleares ou de cursos conexos, a Escola Superior de Biotecnologia representou um primeiro compromisso com a investigação avançada fora do domínio

3. O PERÍODO DA MATURIDADE E DA ESPERANÇA (1980 – …)

\ 235

conta a colegialidade da gestão e a sua regionalização, instituíram-se formas orgânicas participativas, que visavam combinar a estrutura de participação democrática existente nas universidades portuguesas com o princípio da confiança doutrinária que implica o compromisso dos dirigentes supremos com a Santa Sé, com o Magno Chanceler e com o Reitor da Universidade, responsáveis pela fidelidade da Instituição à sua inspiração cristã, mas sempre com respeito pelo método científico e pela liberdade académica.

É justo destacar o papel relevante que na elaboração deste documento consagrador e estabilizador teve o Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró. Os estatutos, exigentes e difíceis, nem sempre puderam ser executados, mas deram luz e geraram tensão e rigor de boa inspiração.

\ 236da Filosofia, da Teologia e das Ciências do Homem. Neste período de expansão, também a criação da nova Faculdade de Ciências Humanas marca a abertura a uma nova e importante área das Ciências do Homem, bem diversa do núcleo da primeira Faculdade com este nome (Gestão, Economia e Direito). A Universidade chegou assim a ter, como no início do presente ano letivo, cerca de 10000 alunos inscritos e 5300 licenciados, nas Faculdades de Filosofia, Teologia, Ciências Humanas, Direito, Ciências Económicas e Empresariais, Escola Superior de Biotecnologia, Instituto de Promoção e Desenvolvimento Social. Ministra 20 licenciaturas, 9 programas de mestrado e 6 cursos de pós-graduação, disseminados por Braga, Lisboa, Porto, Viseu, Funchal, Leiria e Figueira da Foz. Tem cerca de 400 professores e investigadores, 3 bibliotecas e 6 laboratórios, e edita 9 revistas científicas. Neste período de expansão ainda avultam a definição de um novo polo de expansão universitária no Concelho de Sintra, a separação das Faculdades de Direito e Ciências Económicas e Empresariais, a diversificação e expansão dos cursos da nova Faculdade de Ciências Humanas, além de transformações já referidas e outras que estão programadas ou em preparação. Nesta fase de expansão se integram ainda a aprovação do Decreto-Lei n.º 128/90, de 17 de Abril, que redefiniu as condições de reconhecimento pelo Estado da Universidade Católica (por iniciativa do Governo, sendo Ministro da Educação Nacional o Eng.º Roberto Carneiro), e a aprovação pela Santa Sé, para entrarem em vigor em 1 de Dezembro de 1993, dos novos estatutos da Universidade, que substituíram os de 1979. No essencial, o diploma do reconhecimento vem atualizar o texto do anterior diploma: ocorrera entretanto a vigência de uma nova Constituição, a de 1976, com consagração do princípio da liberdade

b) No seguimento desse reconhecimento, mantém-se a hierarquia de normas aplicáveis à Universidade Católica, dispondo o novo art.º 7.º: “Em tudo quanto não estiver previsto no presente diploma, a Universidade Católica Portuguesa rege-se, de harmonia com o disposto no artigo XX da Concordata entre Portugal e a Santa Sé,

Assim, mencionam-se os seus aspetos fundamentais: a) Confirma-se a definição estatutária da posição da Universidade Católica Portuguesa como “instituição da Igreja Católica, canonicamente ereta ao abrigo do art.º XX da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, de 7 de Maio de 1940, e reconhecida pelo Estado como instituição universitária livre, autónoma e de utilidade pública” (art. 1.º).

\ 237 de ensino, em termos estáveis após a revisão constitucional de 1982; e estava em curso ampla expansão do sistema de ensino superior, primeiro com a criação de novas universidades estaduais e, depois, de universidades e instituições de ensino superior privadas (a qual fora enquadrada e consagrada pelo novo «Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo» aprovado pelo Decreto-Lei n.º 27/89, de 19 de Agosto, cujo art.º 3.º, n.º 4 dispõe, todavia, consagrando a autonomia concordatária da Universidade Católica, que é peça fundamental do seu estatuto e do sistema de articulação entre Estado/Igreja que vigora em Portugal, que “a Universidade Católica Portuguesa rege-se pelo art. 20.º da Concordata entre Portugal e a Santa Sé e por regulamentação específica daí decorrente não se lhe aplicando o disposto no presente diploma”). No essencial, as disposições deste diploma acolhem e atualizam a doutrina do Decreto-Lei n.º 307/71, de 15 de Julho, que o Decreto-Lei n.º 128/90, de 17 de Abril, veio substituir na totalidade (com a ressalva constante do seu art. 9.º).

d) O princípio genérico do reconhecimento, pressupondo as duas regras – consagradas essencialmente nos estatutos de 1979 – do mais elevado nível e dos critérios não menos exigentes que os da Universidade pública, obedece ao disposto no art.º 3.º, n.os 1, 2 e 3 e art. 4.º, n.º 2: ¹⁰ O atual Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 16/94, de 22 de Janeiro) confirma, naturalmente, esta doutrina, no seu artigo 2.º, n.º 2: “Durante o período transitório, aplica-se às entidades instituidoras de estabelecimentos de ensino superior particular ou cooperativo já reconhecidos o regime vigente à data do reconhecimento”.

c) Quanto à estrutura, prevê-se, mantendo a liberdade de criação de faculdades e outras unidades orgânicas, que já constava do diploma anterior, o seguinte: “a criação de faculdades, institutos superiores, departamentos, centros de investigação ou outras unidades orgânicas da Universidade Católica deve ser comunicada ao Ministério da Educação no prazo de 60 dias após a sua instituição” (art.º 2.º). Precisa-se, por outro lado, expressamente a possibilidade de a Universidade Católica integrar escolas superiores no âmbito do ensino superior politécnico (art.º 8.º, n.º1) “(…) podendo ainda integrar escolas superiores que desensolvam a sua atividade no âmbito do ensino superior politécnico, nos termos do n.º 3 do artigo 14.º da Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro”; art.º 8.º, n.º 2: “o regime de articulação entre as escolas superiores e a Universidade é o definido nos estatutos da Universidade Católica Portuguesa” e art.º 8.º, n.º 3: “às escolas superiores é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos preceitos anteriores” (isto é, o regime geral de estrutura e exercício de atividades da Universidade Católica Portuguesa).

\ 238de 7 de Maio de 1940, pela legislação canónica aplicável e pelos seus estatutos e regulamentos próprios”¹⁰.

2. Os currículos dos cursos devem ser comunicados ao Ministério da Educação no prazo de 30 dias após a sua aprovação. e) O princípio da exigência, que, conforme já se disse, vem, nas suas duas regras, dos Estatutos de 1979, aparece formulado especificamente quanto aos regulamentos de acesso no art.º 3.º, n.º 3 (antes referido) e, em termos gerais, no art. 5.º, n.º 1 (“A Universidade Católica Portuguesa, conforme decorre dos seus estatutos e tradição universitária, procurará atingir os mais elevados níveis académicos, científicos, e pedagógicos, nunca

Art.º 3.º – 1. A Universidade Católica Portuguesa, por si ou pelas faculdades, institutos superiores, departamentos, centros de investigação ou outras unidades orgânicas que a integram, pode organizar cursos superiores, programas ou projetos de investigação, atividades de educação permanente ou de extensão e outras formas de serviço universitário à comunidade, bem como cursos propedêuticos, válidos para acesso aos seus cursos superiores.

3. O acesso aos cursos organizados na Universidade Católica Portuguesa será feito de acordo com os critérios definidos em regulamento interno, os quais não podem ser de exigência inferior aos das universidades públicas. Art.º 4.º (…)

2. A Universidade Católica Portuguesa e as suas unidades orgânicas podem livremente atribuir, nas condições dos respectivos estatutos, regulamentos e demais direito aplicável, os graus de bacharel, licenciado, mestre e doutor e o título de agregado, tendo os seus diplomas e títulos o mesmo valor e efeitos que os conferidos pelas universidades públicas.

\ 239

4 – Apoio do Estado, sob formas idênticas às previstas para o ensino superior privado (cf. Art.º 6.º – 1. A Universidade Católica Portuguesa é apoiada pelo Estado. 2. O apoio a que se refere o número anterior pode assumir a forma de contribuições financeiras, nos limites das disponibilidades orçamentais do Estado, revestindo, designadamente, qualquer das modalidades previstas no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 271/89, de 19 de Agosto. 3. A Universidade Católica Portuguesa fornecerá os esclarecimentos adequados à concretização do apoio a prestar pelo Estado)¹¹.

2 – Matérias da qualidade de ensino, corpo docente e investigador e ação social (art.º 5.º, n.º 1 in fine);

g) Estabelecem-se regras de paridade e exigência específica quanto a:

3 – Contratação do corpo docente, suas categorias básicas e disposições de segurança social (art.º 5.º, n.os 2, 3, e 4);

f) O critério da autonomia, reconhecendo a posição estatutária da Universidade Católica e consagrando o disposto na Constituição da República Portuguesa (art.º 76.º, n.º 2) para as universidades em geral; assim, dispõe o art.º 4.º, n.º 1: “A Universidade Católica Portuguesa goza de autonomia estatutária, científica, pedagógica, patrimonial, administrativa, financeira e disciplinar”.

\ 240podendo seguir princípios menos exigentes do que os que regem as universidade públicas, no tocante à qualidade do ensino ministrado, recrutamento do corpo docente e investigador, serviços médico-sociais universitários e ação social escolar”).

1 – Acesso ao ensino superior (art.º 3.º, n.º 3, já referido);

Também os Estatutos de 1993 representam uma revisão à luz da experiência – sacrificando um tanto o seu originário espírito participativo – da estrutura, dos princípios e das regras do anterior texto. A Constituição Apostólica sobre as Universidades Católicas Ex Corde Ecclesiæ, aprovada pelo Papa João Paulo II em 15 de Agosto de 1990, inspirou em particular esta revisão – marcada também, tal como outros textos estatutários e regulamentares recentes, ¹¹ Dispunha o artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 271/89, de 19 de Agosto: 1 – Como formas de apoio financeiro à liberdade de ensino, o Estado concederá: a) Subsídios aos estudantes, nomeadamente através de bolsas-empréstimo; b) Subsídios para investimento; c) Constituição de linhas de crédito bonificado; d) Outras formas de apoio financeiro insertas em regimes contratuais.

3 – O Governo criará, progressivamente e segundo for possível, as condições que permitam a igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior particular, designadamente através da atribuição de um subsídio de educação, por aluno, de montante idêntico ao custo por aluno da manutenção e funcionamento das instituições de ensino superior público, deduzido do valor das respetivas propinas. A matéria vem hoje regulada pelo novo Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo (art. 10.º anexo ao Decreto-Lei n.º 16/94, de 22 de Janeiro), de forma mais vaga e restritiva, em coerência com o espírito deste novo diploma; mas isto não prejudica a remissão formal e direta do art.º 6.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 128/90, de 17 de Abril.

\ 241 h) Enfim, consagra-se o princípio da cooperação inter-universitária (art.º 8.º, n.º 1) No essencial, trata-se pois da confirmação do reconhecimento do Estado, com plena equiparação e autonomia concordatária, adaptando os princípios do Decreto-Lei n.º 307/71, de 15 de Julho, à experiência positiva de integração da U.C.P. no sistema educativo português e às transformações sofridas por este (no plano dos factos como no das normas: e, neste último, desde a Constituição às leis da liberdade de ensino e da autonomia universitária e à Lei de Bases do Sistema Educativo – Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro).

2 – O Governo regulará os termos e condições da atribuição dos subsídios e da celebração dos contratos referidos no número anterior, de acordo com o n.º 2 do artigo 58.º da Lei de Bases do Sistema Educativo e segundo os critérios dos artigos 13.º e 14.º do presente Estatuto.

\ 242pela aproximação aos modelos organizatários das Universidades do Estado. 4. A FACULDADE DE DIREITO Debrucemo-nos agora brevemente sobre o curso de Direito da UCP, primeiro nos seus princípios qualitativos e depois nas estatísticas e outros caracteres da atividade desempenhada, referindo, neste caso, de forma especial o curso ministrado em Lisboa¹².

4.1 – O Curso de Direito da Universidade Católica Portuguesa Apesar de apenas em 1989 se ter institucionalizado a Faculdade de Direito, o Curso de Direito da Universidade Católica Portuguesa é, a seguir aos das duas Faculdades estaduais de Coimbra e de Lisboa, o terceiro mais antigo de Portugal. Ministrado, com autonomia científica, didática e de gestão, nos Centros Regionais de Lisboa (desde 1976) e do Porto (desde 1978), em ambos obedece a um mesmo conjunto de princípios e finalidades, mas diferencia-se de acordo com legítimas opções regionais ou académicas.

Com base nos princípios inspiradores da Universidade Católica Portuguesa, tanto por se querer irredutivelmente universitária, sem confusões com muitas outras formas de formação meramente profissionalizante que hoje existem, como por não pretender esconder ou escamotear a natureza cristã de instituição que o ministra, como ainda por se situar ao serviço da nossa comunidade nacional – a Instituição e os seus dois Cursos obedecem a princípios claros e individualizadores. ¹²Utilizam-seelementosextraídosdeUCP,GuiadaFaculdadedeDireito,anolectivode1992/1993.

\ 243

Decorrem eles do seu carácter de instituição da Igreja – como tal estruturada pelo regime concordatário e dotada da especificidade própria de ser uma instituição pública do Direito da Igreja, reconhecida pelo Direito interno português, o qual nem a considera pública no plano nacional nem meramente privada, mas aquilo mesmo: pública da Igreja, em regime concordatário. Deriva também do facto de a UCP ser reconhecida a este título, tanto pelo Decreto-Lei n.º 307/71, de 15 de Julho, como, hoje, pelo texto que atualizou aquele diploma, o Decreto-Lei n.º 128/90, de 17 de Abril, que a Universidade Católica não deseje deixar de dar uma contribuição própria aos mundos universitário e jurídico, especificamente marcada pelo contexto mais universalista em que se insere – o do ensino superior da Igreja – e pela sua particular inspiração assumidamente cristã – no sistema de ensino português e na sua componente universitária. A Faculdade de Direito encerrou agora os primeiros quatro anos, que podem designar-se de seu ciclo de instalação. Cumprem destacar, como inspiração e explicação da sua prática, um conjunto de princípios e objetivos fundamentais, a saber: a) A necessidade de a conceber e entender sempre no âmbito mais amplo da Universidade e não apenas no de uma Faculdade –autónoma mas carecida de toda a Universidade para dar aos seus estudantes uma formação geral capaz de assegurar aos diplomados da Universidade, que irão desempenhar as funções de maior responsabilidade na sociedade portuguesa, como é próprio da educação superior, uma formação geral, humana e social, coerente e responsável. Os universitários são, ainda hoje, antes de tudo o mais, responsáveis pela direção da sociedade nos seus vários níveis, e só na medida em que estiverem preparados para o ser

244desempenharão

a contento a sua função de escol social, competente, responsável e solidário.

b) A preparação de juristas de qualidade, quer para as profissões jurídicas, isto é, as que se prendem estritamente com a produção e aplicação do Direito, quer para as funções e profissões nas quais os juristas, tanto em Portugal como nas sociedades mais avançadas, concorrem com outros cursos e especialidades sociais, da empresa ao sector público, exigindo-se-lhes uma formação social geral que não é compatível com o conceito de meros “técnicos do Direito”.

\

c) A conceção de que o ensino universitário não é uma mera reprodução de saber feito, mas assenta indissociavelmente numa articulação contínua e dialética com a investigação e a criação de saber novo. Só assim os próprios universitários se habituarão à ideia de que o saber não é a memorização e a digestão de alguns manuais, mas o domínio de princípios e métodos que ao longo da vida devem ser objeto de constante questionamento, indagação e aplicação criadora, sempre com capacidade crítica e sempre com rigor no estudo do saber, a que os que nos precederam e os que connosco concorrem na atividade científica ou profissional vão conseguindo ascender.

d) A coerência da formação, acentuando que os cursos da

Universidade Católica, ou são, ou devem ser, cursos diferentes, porque marcados por uma especificidade de formação: incompatível, quer com um exercício científico e profissional meramente utilitário e desprovido de ética, quer com éticas de sucesso e prazer individual, de submissão coletiva ou de simples eficiência positiva, que recusem ao homem e aos seus concretos valores fundamentais – o bem, a liberdade, a solidariedade, a justiça – o lugar máximo no exercício das profissões, e em especial de profissões que tanto

a) A criação de um corpo docente próprio, através do incentivo à investigação e à carreira académica, nomeadamente dos diplomados da Universidade e dos que, vindos de fora, nela ensinam, com a consciência de que o intercâmbio universitário tem os seus méritos mas, a médio prazo, não pode valer como solução exclusiva ou dominante. Só as instituições com um corpo docente privativo e próprio têm capacidade de produzir um pensamento doutrinário, científico e profissional genuíno e original; por outras palavras, de serem verdadeiramente Universidades em sentido pleno.

b) A reformulação pedagógica, que deu origem, nesta fase e tendo em conta os condicionalismos atuais, a uma revisão do método de avaliação, que se considera, pelos resultados obtidos, positiva e ajustada às necessidades atuais, embora carecida de uma eventual reformulação a médio prazo quando as condições de corpo docente e de recursos materiais o possibilitarem.

c) A revisão do plano de estudos, estando em curso neste momento a discussão e decisão pelos órgãos próprios acerca do relatório elaborado por uma comissão presidida pelo Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral (1991-1992). Com base neste se espera estimular uma reflexão institucional aprofundada e participada

\ 245 marcam, para o bem ou para o mal, o andamento geral da vida das sociedades, como são as profissões jurídicas e aquelas a que os juristas, em concorrência com outros cientistas e profissionais sociais, concorrem fundamentadamente. Em obediência a estes princípios e objetivos, aplicados à responsabilidade social da Escola na sociedade portuguesa do presente, apontam-se alguns aspetos fundamentais da presente circunstância da Instituição:

\ 246sobre as necessidades de um plano de estudos que tenha em conta o estado atual da ciência jurídica, as necessidades de formação da saciedade portuguesa e os objetivos próprios desta Universidade, com referência ao horizonte do início do próximo milénio – o ano d)2001.Aintegração

f) A busca constante da qualidade expressa na qualificação dos docentes (investindo no mestrado e no doutoramento), na busca da dedicação, no empenho na investigação científica, nas ações de

universalista da investigação científica, dando-lhe o devido lugar na vida da Instituição, por ora através de uma profunda dinamização das publicações da Faculdade, nomeadamente da Revista “Direito e Justiça”, e da participação empenhada, nomeadamente nas iniciativas de intercâmbio europeu do projeto “Erasmus”, no intercâmbio com os países de língua portuguesa e no ensino e investigação em articulação com as outras Faculdades da U.C.P. e) A ideia de que a Universidade é uma importante instituição da sociedade, a qual se deverá exprimir num constante diálogo universidade / sociedade. Para isso relevam a realização de iniciativas de extensão universitária – cuja qualidade e diversidade está expressa, nomeadamente nos volumes da Revista “Direito e Justiça” relativos a 1991 (vol. V), 1992 (vol. VI) e 1993 (vol. VII) –, e bem assim a criação de um Departamento de Antigos Alunos (em 1992), o qual, no seguimento de iniciativas anteriores, iniciou um contacto permanente entre a Faculdade e os seus 1300 antigos alunos, do qual se espera extrair uma fonte constante de inspiração, mantendo as raízes da Faculdade bem mergulhadas na seiva da sociedade portuguesa.

\ 247

Apontando estes aspetos principais, que se julgam conseguidos ou em construção, não deixa de se sublinhar a necessidade de, para os próximos tempos, continuar o seu aprofundamento, nomeadamente através da imprescindível prioridade que é a criação de mais intensas estruturas de investigação, de um corpo docente próprio e qualificado e da revisão do plano de estudos da licenciatura e dos currículos e métodos de mestrado (o qual constituiu, com as atividades de investigação, uma peça imprescindível, porque é o primeiro espaço onde se realiza investigação científica de nível e com autonomia no plano universitário); sem esquecer os cursos de extensão universitária, prioridade forte do futuro.

Está o signatário certo de que, com o empenhamento de todos, a Faculdade será capaz de subir este novo lanço da sua institucionalização, marcando cada vez mais a qualidade, a diferença específica e a fidelidade profunda ao seu projeto académico próprio, que, no mundo universitário e jurídico português, a distinguem já com clareza das Escolas congéneres.

cooperação, extensão e divulgação, na contenção do número de alunos (caso único nas escolas de Direito portuguesas)…

\ 248 4.2 – Alguns dados sobre o curso de Direito 4.2.1 – Licenciados – Lisboa (estatística) Licenciados 1981/82.............................................................. 79 1982/83.............................................................. 86 1983/84.............................................................. 92 1984/85.............................................................. 136 1985/86.............................................................. 111 1986/87.............................................................. 116 1987/88.............................................................. 81 1988/89.............................................................. 114 1989/90.............................................................. 108 1990/91.............................................................. 126 1991/92.............................................................. 109 1992/93.............................................................. 106 4.2.2 – Mestres (por ordem cronológica de defesa da tese)

da

José Alexandre Teixeira de Sousa Machado Henrique José de Moura Moreira Mota Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia Pedro Nuno Tavares Romano e Soares Martinez Pedro de Sá Carneiro Furtado Martins José Luís Paquim Pereira Coutinho Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da Silva Paulo Manuel Pulido Garcia Adragão Pedro Maria Godinho Vaz Patto Miguel Nuno Gallo Pedrosa dos Santos Machado Luís Manuel Baptista Branco Maria Judite Costa Dias Matias Eduardo de Melo Lucas Coelho Pedro Cunha Manoel Nunes de Carvalho

José Augusto Quelhas Lima Engrácia Antunes Fernando Augusto de Sousa Ferreira Pinto

José Augusto Preto Xavier Lobo Moutinho José Alberto Azeredo Lopes Manuel Fernando da Cunha Cardoso José Manuel da Silva Castela Rio Jorge Manuel da Silva e Sousa Rudolfo Vasco Castro Gomes Mascarenhas Lavrador

\ 249 Paulo Miguel Olavo de Pitta e Cunha Evaristo Ferreira Mendes Dário Manuel Lentz de Moura Vicente António José Bastos Nunes de Carvalho

Rogério Manuel Romão Carreiro Fernandes Ferreira Rui Pedro Costa Melo Medeiros Pedro Manuel Gomes Oretins de Bettencourt Maria Guida Pitta da Cunha Luís Paulo Rebelo Barreto Xavier António José Silva Pinto de Sousa Magalhães Cecília Maria Cabral Lages Azevedo Santana Francisco Xavier Guimarães de Sousa da Câmara Maria Victória Rodrigues Ferreira da Rocha Luís Fernando Pimentel de Oliveira Vasconcelos Abreu Miguel de Varennes Ramos Chaves Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão Pedro Manuel Pena Chancerelle de Machete Mário António de Sousa Aroso de Almeida Paulo Sérgio Pinto de Albuquerque 4.2.3 – Doutores Germano Marques da Silva Luís Alberto de Carvalho Fernandes

\ 250Manuel Afonso Pereira Vaz (Porto) Pedro Nuno Tavares Romano e Soares Martinez Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia 4.2.4 – Corpo Docente – Lisboa (estatística) A B C D E 1987/88 17 4 5 21 2 1988/89 17 4 7 19 2 1989/90 17 4 15 12 4 1990/91 17 4 20 14 6 1991/92 17 3 24 14 7 1992/93 18 3 23 16 10 1993/94 20 3 21 18 10 Legenda: A – Doutores B – Contratados com o equiparados a Doutores C – Assistentes e encarregados de curso com Mestrado D – Assistentes sem mestrado E – Docentes com dispensa de serviço 4.2.5 – Estudantes – Lisboa (estatística) Propedêutico Licenciatura Total 1987/88 109 813 922 1988/89 139 779 918 1989/90 139 902 1041 1990/91 151 954 1105 1991/92 134 918 1052 1992/93 106 853 959 1993/94 147 799 946

\ 251

\ 252

\ 253 PREFÁCIO DA OBRA “LIBERDADE DE APRENDER E A LIBERDADE DAS ESCOLAS PARTICULARES” António Luciano de Sousa Franco in Paulo Pulido Adragão (1995). A Liberdade de Aprender e a Liberdade das Escolas Particulares. Lisboa: Universidade Católica, pp. I-XIII.

A obra que agora sai à estampa constitui uma dissertação de mestrado classificada com distinção na Faculdade de Direito da Católica Portuguesa, e mais não é necessário para dizer da sua qualidade e do seu interesse jurídico.

Universidade

Vejamos, então, quais as razões que – além da qualidade da obra, que seria sempre motivo fundamental para ela ser editada e para ser procurada e lida – justificam, em nosso entender, a oportunidade desta edição e a conveniência de que ela suscite adequada leitura crítica e, se for caso disso, diálogo científico e doutrinário (nas duas diferenciadas vertentes que cobre).

\ 2541.

Sem esquecer – mas considerando que isso fica entendido de uma vez por todas – que a edição científica é um bem em si, que o público ganha sempre em ter acesso às obras de qualidade que são apreciadas, nomeadamente em atos académicos de instituições prestigiadas e que é apenas com base na edição que conseguiremos criar um mercado científico do livro jurídico, que se não divorcie (mas os complemente) dos dois mercados que já existem com alguma expressão: o mercado profissional orientado para o livro jurídico prático ou utilitário, e o mercado escolar orientado para o livro jurídico que é imediatamente útil no apoio ao ensino.

A seu propósito, contudo, pretenderia debruçar-me sobre a importância fundamental desta matéria, em três outros planos.

2. Todas as liberdades – como, mais amplamente, todos os direitos têm funções, conteúdos, âmbito e limites diversos, em razão do fundamento que se lhes atribua. Por isso, uma exigência imprescindível, no nosso entender, para quem pretenda ultrapassar o positivismo jurídico, é estudar as fundamentações ético-sociais (não apenas ideológicas, mas claro

A liberdade de ensino é daquelas liberdades que tem encontrado no âmbito da mundividência cristã um lugar privilegiado. Não é difícil entender porquê. Muito antes da consagração liberal dos Direitos do Homem, quer nas vertentes da tradição anglo-saxónica quer nas da Revolução Francesa, o conceito cristão da eminente dignidade da pessoa humana vincava a ideia de que, por um lado, toda a obra criada estava ordenada para os fins do homem; por outro, que esses fins são os de cada pessoa, como entidade dotada de valor próprio e de fins em si, e não valores abstratos, trans -pessoais ou coletivos (da humanidade, da sociedade, de classes, grupos ou instituições); e, enfim, o de que essa dignidade implica um núcleo central de direitos e deveres, certamente compatível com a ideia dos Direitos do Homem, mas muito mais diversificada e complexa do que ela (note-se que, por isso, e não por qualquer rejeição do personalismo, houve uma resistência demasiado longa, até à Pacem in Terris de João XXIII, ao acolhimento pleno da ideia de Direitos do Homem por parte da Doutrina Social da SendoIgreja).isto assim, um núcleo de direitos fundamentais, mais essenciais e mais próximos dessa dignidade nuclear da pessoa, configura-se de modo por vezes diferente daqueles aos quais as ideologias e as ordens jurídicas estaduais de hoje atribuem prioridade: é o caso do direito à vida, do direito à integração familiar e dos direitos da instituição familiar, como a liberdade de educação (que inclui, como sua forma orgânica, a liberdade de ensino)…

\ 255 que também isso) dos direitos e dos deveres que determinam os seus regimes, condicionam as respetivas funções e, assim, lhes demarcam a natureza ou essência.

\ 256Trata-se, pois, de uma primazia ditada por considerações que se têm por permanentes da natureza humana e da dignidade da pessoa, mais do que por formas concretas de organização da sociedade ou pelos interesses privilegiados por esta ou aquela ideologia.

Mas, sem dúvida também, constituindo um modo de relação das pessoas umas com as outras em família e das pessoas e famílias com a sociedade, a liberdade de ensino pressupõe claramente uma configuração do sistema de ensino que elimine o privilégio do ensino

E, por isso mesmo, a liberdade de ensino aparece como um direito que vai muito para além de alguns dos seus aspetos parcelares ou “técnicos” (como a liberdade científica e a liberdade académica, cuja importância se não discute): ela é essencialmente atribuída à pessoa e à família como forma de modelar a própria personalidade e a dos filhos através da educação, tão naturalmente indissociável das relações pessoais e familiares como o próprio direito de procriar: criar os filhos é gerá-los e educá-los.

E por isso, também a radicalidade desse direito, que não exclui intervenções mais complexas e organizadas da sociedade e do Estado nas formas macroscópicas de vida social que são as da civilização contemporânea, determina certamente uma valoração superior e uma configuração distinta da liberdade de ensino como forma da liberdade de educação das configurações instrumentais ou parcelares que muitas ordens jurídicas consagram (liberdade académica, liberdade em pesquisa, etc.) Essa doutrinação da Igreja Católica tem vindo, sem dúvida, a encontrar-se crescentemente com tomadas de posição de instituições internacionais (como as Nações Unidas, o Conselho da Europa, o Parlamento Europeu).

Recorde-se que esta doutrina, tão sistematicamente desrespeitada na História portuguesa, pelo menos desde o Marquês de Pombal –

Este é um ponto claro, em que os sistemas estatizantes de ensino público que predominaram desde o séc. XVIII em países de tradição latina, como Portugal, entram claramente em conflito com o pensamento cristão. Recorde-se, no meio de uma doutrina constante e invariavelmente rica, a concisa frase do Papa João Paulo II no discurso de 7 de Dezembro de 1981 à União dos Juristas Católicos Italianos: “O princípio da liberdade de ensino tem o seu fundamento na natureza e na dignidade da pessoa humana. Porque esta é uma realidade anterior a toda a organização social – embora destinada a inserir-se nela – tem direito à auto-determinação do próprio desenvolvimento e aos meios necessários, sem que esta capacidade de autodeterminação seja limitada por imposições arbitrárias do exterior”.

\ 257 público, que tem caracterizado os sistemas liberais, em profunda contradição com os seus próprios pressupostos (que não admitiriam, em rigor, o privilégio da escola pública relativamente à escola privada) e, por outro lado, precisamente pela existência do ensino público que introduz um poderoso fator de distorção, na livre opção, implica a garantia, para que exista verdadeira liberdade sem discriminação, de acesso em condições de igualdade plena ao ensino público e ao ensino privado. Não basta, pois, uma mera abstenção ou execução forçada, no caso de violação, por parte do Estado; é essencial uma sua intervenção ativa para repor em concreto as condições de livre escolha, mediante o financiamento em condições de igualdade de todas as formas de ensino, em funções da opção familiar.

3. Esta incarnação portuguesa da doutrina cristã, seja qual for o seu significado e valor, não deixou de produzir efeitos sobre a evolução legislativa, e por isso ela é importante a duplo título para o jurista: como uma relevante dimensão da conceção cristã da ordem social, que não sendo vinculativa não pode ser posta de lado, em particular numa sociedade de tradição católica, e como um fator que influenciou a recente evolução legislativa e prática em Portugal.

Menciona-se, nomeadamente, a Nota Pastoral sobre a Liberdade de Ensino de 24 de Novembro de 1972 (Conferência Episcopal Portuguesa – Documentos Pastorais, 1967/1977, pp. 100-109), a Nota Pastoral sobre o Ensino Livre de 10.10.1975, que apreciou o problema no novo contexto de elaboração da Constituição Política de 1976 sob graves restrições de um ambiente revolucionário desfavorável à liberdade de ensino (Conferência Episcopal Portuguesa – Documentos Pastorais, 1967/1977, citado, pp. 192-198, o qual aborda ainda outros problemas do sistema de ensino) e a Nota Pastoral sobre a Liberdade de Ensino da Nova Constituição de 21.10.1975 (Conferência Episcopal Portuguesa – Documentos Pastorais, 1967/1977, citada, pp. 348-351), na qual se critica a formulação que acabou por ficar do texto originário da Constituição de 1976, entre outros documentos sobre o sistema de ensino, cuja importância parece inútil sublinhar mas que às vezes parece estar um tanto esquecida.

\ 258e daí não resultaram, certamente, efeitos positivos para o nosso tradicional atraso cultural e científico – foi particularmente recordada em Portugal na fase do reconhecimento oficial da

Universidade Católica Portuguesa, que foi também a fase de maior liberalização relativa do Estado Novo, durante a qual o debate sobre as liberdades assumiu uma importância grande, embora limitado pelas condições institucionais de falta de liberdade de expressão.

\ 259

Portuguesasetenta,particularoficializadoe,emzonadepenumbra,ensinomunicipal;depois,pormeadosdadécadadeeporinfluênciaestrangeira,ensinoestataleensinonão-estatal.AConstituiçãodaRepúblicade1976refere-senumartigo(o75.º)a«ensinopúblicoeparticular»,registandoque«oEstadocriaráumarededeestabelecimentosoficiaisdeensino»eque«fiscalizaoensinosupletivodoensinopúblico».Ealein.º9/79,de19deMarço,BasesdoEnsinoParticulareCooperativo,apresentaumacaracterizaçãodeescolas:escolaspúblicas–aquelascujofuncionamentosejadaresponsabilidadeexclusivadoEstado,dasregiõesautónomas,dasautarquiaslocaisoudeoutrapessoadedireitopúblico;escolasparticulares–aquelascujacriaçãoefuncionamentosejadaresponsabilidadedepessoassingularesoucolectivasdenaturezaprivada;eescolascooperativas–aquelasqueforemconstituídasdeacordocomasdisposiçõeslegaisrespectivas”.

A liberdade de ensino, nos sistemas de ensino fortemente estatizados, realiza-se de modo nuclear embora não-exclusivo, pelo ensino particular e cooperativo¹.

Desde o Marquês de Pombal à 1.ª República, a “estatização liberal” (contradictio in terminis?) apareceu como efeito do ataque ao “ensino confessional”, que constituía o grosso do subsetor privado: eis uma “questão escolar” – em que muito, se não em tudo, semelhante à de França. O próprio Estado Novo – geneticamente autoritário e anti-liberal – se debateu com as contradições ditadas por estes dois traços da sua natureza. Logo em 1931, um Estatuto do Ensino Particular, aprovado pelo Decreto n.º 19 244 de 16.01.1931, descrevia com cores negras a qualidade do ensino nas escolas privadas (mas, como de costume, “esquecia-se” de mencionar a falta do apoio financeiro do Estado em que vegetavam), para definir alguns aspetos do seu estatuto e regular como exigência e discricionária decisão do Estado as respetivas criação, direção e “validação oficial”. A Constituição de 1933 consagrava a legitimidade do ensino particular e previa a possibilidade de o subsidiar e oficializar; e a Concordata de 1940, no art. XX, previa ¹ Recorde-se o texto de um esquecido, mas competente pedagogo, Aldónio Gomes, “Ensino público, particular e cooperativo”, em Sistema de ensino em Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1981, especialmente p. 77: “Ensino público, ensino particular e ensino cooperativo nem sempre surgiram suficientemente definidos e caracterizados e, em alguns aspectos, mantêm ainda hoje certa ambiguidade. Talvez por isso, as designações tenham variado: ensino oficial, ensino

²cinquenta-sessenta².AcompanhemosdenovoAldónioGomes(Op.Cit.,pp.80-81):“Noentanto,emaparentecontradição,oensinoparticular,confessionalenãoconfessional,vaiconhecerumperíododecerta‘explosão’atéàprimeirametadedadécadadesessenta,períodoquelheterásidonocivo.Poroutrolado,oensinooficial(numaposiçãosobranceira?ounumaposiçãointencional?),paraalémdoensinoprimário,acantona-se,quandomuito,nascapitaisdedistritoe,semqualquerapoioemtransportesescolares,reduzasuaaçãoaáreaslimitadas,nãotendoemcontaqueoPaísnãoésóLisboa–nemsóascapitaisdedistrito.Entãotrêsviasconvergemnoensinonão-oficial.Emmúltiplaslocalidades,sobretudoàescaladavila,nascemescolasparticularesque,emboraonerosasparaasfamílias,representamaúnicaportaparaaeducação.Seosrecursoseconómicossãomaisamplos,asoluçãodointernatonograndecolégiooudolaraeleanexopareceamaissedutora.Eseosrecursoseconómicosnãochegamanenhumadessashipóteses,ousecontaopesodatradição,recorre-seaossemináriosdoclerosecularoudascongregaçõesreligiosas.“Poroutrolado,osestabelecimentosoficiaisdascidades,inevitáveispólosaindaquedeáreaslimitadas,começamarevelar-seinsuficientesparaaprocura,começamagrandeoperaçãodearmazenamentodealunosemclasses(emnúmerosquechegamaultrapassarossessenta)edequebradeconvivênciaentrealunoseprofessores.Tambémaíoensinoparticularsevaimultiplicando,noseuambientefamiliar,porvezesdemasiado‘artesanal’,comocompensaçãoparaosmalesdogigantismo.“Finalmente,éaépocaemque,porvirtudeprópriaepordefeitodemodorradoensinooficial,oensinoparticularselançalucidamentenoscursosdeplanospróprios,naexperimentaçãopedagógica,nasáreasprofissionalizantes.Assimnascemembriõesdediversoscursoseaçõesoficiaisposteriores.Aeducaçãopré-escolar,aformaçãodeeducadoresdeinfância,oscursosartísticosoudeorientaçãoartística,oscursosdesecretariadooudenovastécnicas,oucursosdegestãooudecinema.

\ 260e regia a liberdade das escolas católicas (Cf. M.E. Bigotte Chorão, “Formação eclesiástica e educação católica segundo a Concordata de 1940”, em A Concordata de 1940 – Portugal-Santa Sé, 1993, pp. Mas233-270).depouco valia isto, pois sucessivos estatutos (de 1932, 1933 e 1934; enfim, o Estatuto do Ensino Particular aprovado pelo Decreto n.º 37 545, de 8.09.1949, que regeu até ao novo Estatuto de 1980, ainda vigente) mantinham como tónica dominante o multímodo controlo administrativo discricionário do Estado: o condicionamento educativo emparelhava com o “condicionamento industrial”… Todavia, uma certa explosão do ensino particular articulou-se com o significativo progresso económico dos anos

\ 261

A expansão do sistema escolar e a sua mutuação qualitativa –em boa parte inseminada, apesar dos obstáculos, pela iniciativa privada possível – vai expandir-se, redundando num modelo global de inusitada prioridade para a educação que foi assumido pela Reforma Veiga Simão e vertido na sua Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 5/73; seria injusto esquecer o carácter precursor do vol. II dos Trabalhos Preparatórios do Estatuto de Educação Nacional, e o respetivo anteprojeto, por iniciativa do ministro Galvão Telles)³. Sem pretender ser exaustivo, não deixará o signatário de recordar que ao Ministro da Educação Veiga Simão

“Trata-se de um período crescente do ensino particular que, em termos quantitativos, chega a ter maior peso do que o ensino público. Mas, também por isso mesmo, trata-se de um período em que

Declaraçãoavultamosdefeitoseaslimitações.Aproliferaçãodesseensinoarrastaumensinonãoconfessionaldecariznitidamentecomercial,menospreocupadocomaqualidade,atécomaseriedadequedeveráserinerenteaoatoeducativo:àcarênciadecondiçõesmateriaissoma-seacarênciadecondiçõespedagógicas,depessoaldocentesatisfatoriamentehabilitado.Eessaatitudepartiajádaatitudetraduzidaemleideminimizaçãodoensinoparticular:menorexigênciadehabilitaçõesdosdocentes,ensinosóválidomedianteexamesnoensinopúblico,inviabilidadedetransferênciaparaoensinooficial,mastransferênciadestedosalunosconsideradosreprovados,carênciatotaldeautonomia.Ecomtudoistoumaetiquetavaiaderiraoensinoparticular–adoelitismo.Porque,narealidade,àgratuidadeouàsreduzidaspropinasdoensinopúblicosecontrapunhamasmensalidadessubstanciaisdasescolasprivadaseporqueasdemensalidadesmaiselevadasesgotavamasuacapacidadedeacolhimento.“Noentanto,ecomofechodeumciclo,sónofimdesteperíodosurgematerreiroforçapleiteandopeloensinoparticular.Assim,aNotaPastoraldoEpiscopadoPortuguêsde1962defendeque‘parecechegadaahoradeencarar,comlargasvistas,oproblemadoensinoparticular,àsemelhançadeoutrospaíses’.NovaNotaPastoral,em1964,afirmaqueoEstadotemodireitoeodeverdeprotegerepromovertudooquerespeitaàeducaçãonacional.EoprimeiroCongressoNacionaldoEnsinoParticular,em1965,paraalémdeevidenciarumasensívelpreocupaçãopedagógicadedemarcarasescolasparticularesdo‘ensinoclandestino,emquesetransformougrandepartedoindividualedoméstico’,impõeque‘oensinoparticulartemdireitos’erequeraassistênciafinanceiradoEstado.Paratanto,oCongressonãodeixadeevidenciarnúmerossignificativos:em1964,enoensinoliceal,nametrópoleoensinoparticularerafrequentadopor75.507alunos,em383estabelecimentosdeensinoeministradopor4020professores,enquantooensinopúblicoteveafrequênciade53.932alunos,em43escolasecom2413professores”.³Recorde-seentão–sinaldostempos,tambémmarcadospeloConcíliodoVaticanoII–aatençãoàUniversaldosDireitosdoHomemde1948(«ospaistêmprioridadenodireitodeescolherotipodeeducaçãoadaraseusfilhos»),aoPactoInternacionaldeDireitosEconómicos,SociaiseCulturais,aprovadopelasNaçõesUnidasem1966(«respeitaraliberdadedospaisdeescolherparaosseusfilhosescolasdiferentesdascriadaspelasautoridadespúblicas»),àConvençãoRelativaàLutaContraaDiscriminaçãonaEsferadoEnsino(1960),àDeclaraçãodosDireitosdaCriança (1959).

\ 262se devem, a par do começo de uma política de subsídios (1971), as primeiras iniciativas no sentido de rever a legislação sobre o ensino particular, no seguimento, aliás, de uma discussão da Lei de Bases do Sistema Educativo que apontara como uma questão sensível a da estrutura institucional do sistema, no tocante ao papel que nele assumiriam as instituições privadas perante a gestão dominante das instituições do Estado. Por iniciativa do ministro Veiga Simão, uma comissão constituída por especialistas e representantes do ensino particular elaborou em 1972 um anteprojeto de novo Estatuto do ensino particular, efetivamente inovador porque inspirado por critérios de liberdade de ensino e não de dirigismo ou condicionamento burocrático; e, com o objetivo de dar enquadramento genérico a esta importante transformação legislativa, em 1974 um anteprojeto de lei foi elaborado pelo signatário deste prefácio⁴. A ocorrência da revolução de 25 de Abril de 1974 impediu a continuidade deste processo⁵. ⁴ Recorde-se que, em 21 de Março de 1974, no encerramento do III Encontro Nacional de Responsáveis do Ensino Particular, o ministro Veiga Simão lembrava que nesse ano 306 escolas particulares estavam a ser subsidiadas, implicando 135 000 contos, e comunicava que o novo estatuto constituiria «um avanço notável no que respeita ao apoio ao Ensino Particular, não apenas como ensino supletivo, mas em condições não só de igualdade mas também de idêntica responsabilidade com o ensino oficial» (Cf. Aldónio Gomes, Op. Cit., p. 93) ⁵ De novo Aldónio Gomes relata: “A mutação social que se seguiu, as tensões e confrontações que ocorreram, as inadaptações de uns e as posições de outros, a liberdade descoberta, mas que por vezes se negava, o simulacro de Maio de 68 chegado em Abril de 1974, desarticularam muitas estruturas do ensino particular. O elitismo desse ensino surge em grande plano como reserva para os filhos da burguesia e muitos pais retiram apressadamente os seus filhos para o ensino oficial. A disciplina mantém-se rígida em algumas escolas, os alunos escapam-se ou criam problemas, os pais acorrem em seu apoio. Os professores querem tratamento idêntico ao do ensino oficial (co-responsabilizaçãonagestão,remuneraçõesiguais)eencontramaobstinação.Osproprietáriosnãosuportamosencargos,nãoaguentamastensões,nãosatisfazemosseuscompromissos,deixamdeaparecernaescola,despedemprecipitadamentedocentes.Ofantasmadasnacionalizaçõespairasobrealgunscolégiosetomaformacomumdespachodetrêsministrosquepermiteaparentementearequisiçãodasinstalaçõesdequalquerescolaparticularquesejamnecessáriasparaoensinooficial.Váriasescolasencerraramentão,outrasmudaramdeproprietário,noutrasaindasurgiramentidadescolectivas(professores,pais,cooperativas)”(Op.Cit.,p.93).

A Constituição de 1976 foi publicada no auge de um intenso debate, chegando o seu texto – como muito bem relata a obra agora publicada – a uma solução não compromissória, não pacífica, e, na opinião de quem este texto subscreve, inaceitável, por muito marcada pelo estatismo do ensino e pela conceção da mera supletividade do ensino particular e cooperativo. Só a revisão constitucional de 1982 viria a gerar um texto mais aceitável e, em si, praticamente consensual (Cf. os atuais arts. 43.º e 75.º e, sobre eles, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Vol. IV, 1993, pp. 367 e ss.; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, 1993, pp. 248-250 e 368-371).

⁶ Trata-se do “Projeto de Lei n.º 25/I sobre a liberdade de ensino”, apresentado na I Legislatura, n.º1.ªSessãoLegislativa:Cf.o“DiáriodaAssembleiadaRepública”(DAR),Sup.aon.º40(18.11.1976),p.1250(1)-1250(7);sobreasuadiscussãoevotaçãodoProjetodeLeinageneralidade,Cf.DAR,52(17.03.1978),p.1924-1937;DAR,n.º54(30.03.1978),p.1974-1994;DAR,n.º55(31.03.1978),p.2018-2022;DAR,n.º56(5.04.1978)p.2039-2049;DAR,n.º81(2.06.1978),p.2934-2961.

\ 263

A história da liberdade de ensino na vigência da Constituição de 1976 conhece, depois, um curto período de afirmação e expansão, sem paralelo no nosso século XX (pelo menos). Logo no início da Primeira Legislatura, o Projeto de Lei n.º 25/I, subscrito por dois deputados – o signatário do presente texto e o deputado Pedro Roseta –, introduzia princípios que correspondiam a uma visão doutrinariamente aceitável e, comparativamente, integrada na família dos “Direitos da Educação” de tipo europeu ocidental, mas encontrou tantas resistências, que nem foi apresentado pelo grupo parlamentar a que pertenciam os dois deputados, mas apenas por estes a título individual⁶. As forças que, de há muito, se opõem à liberdade de ensino, vindas de quadrantes bem diversos, são poderosas nas mais importantes organizações de opinião e poder da sociedade portuguesa; e quanto mais poder estas têm, mais poderosas são no seu seio tais forças.

264Por razões de conjuntura partidária, o projeto veio a ser recusado na generalidade por uma maioria precária e incoerente; mas, retomados os seus princípios, eles deram origem, nomeadamente, à Lei n.º 9/79, de 19 de Março, que estabeleceu regime recheado de consequências práticas, mas também ele oriundo em substância do já referido projeto, e à Lei n.º 65/79, de 4 de Outubro, que criou um conselho para a liberdade de ensino. A elas se seguiram o Estatuto do Ensino Particular, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro, aplicável ao Ensino Básico e Secundário e o Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo de 1989 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 271/89, de 19 de Agosto).

Os condicionamentos

Se esta tem sido a situação, deve dizer-se que no plano fático ela correspondeu a um compromisso entre as já referidas forças que defendem o centralismo do ensino, como prioridade ou regimes de privilégio do ensino público, e os defensores de um sistema jurídico claramente consagrador do pluralismo e da descentralização do ensino, com tendencial igualdade de condições para o ensino público, o particular e o cooperativo. O apoio financeiro sofreu avanços e recuos, embora nunca tenha atingido níveis minimamente satisfatórios em confronto com a generalidade dos países da Europa Ocidental (e, nomeadamente, com os da Comunidade Europeia que fornecem para tais comparações o padrão hoje habitual).

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burocráticos mantiveram-se, nomeadamente no domínio do ensino superior, até à publicação do referido Estatuto de 1989, que muito os restringiu. A falta de apoio técnico, combinada com um aparente desleixo da fiscalização – que na realidade pareceu traduzir a intenção de degradar a qualidade real do ensino para pôr em causa o princípio

a partir de alguns dos seus abusos práticos – marcaram também o período (1980-1990). E iniciativas francamente inovadoras do ministro Roberto Carneiro – nomeadamente as consagradas no seu projeto de novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, que ultrapassaria alguns dos factores de subalternidade e discriminação ainda vigentes no Estatuto de 1980 – depararam com crescente oposição, para se verem totalmente subvertidas após a cessação do mandato deste ministro.

A verdade é que a expansão do ensino superior particular e cooperativo, ponto mais polémico do final dos anos oitenta e do princípio dos anos noventa, caracterizou uma situação de crescimento muito rápido de todo o subsistema superior, permitindo ao sistema absorver parcelas significativas dos alunos saídos do secundário com uma prática estabilização da oferta do ensino superior público (a qual foi bem mais marcada no universitário do que no politécnico).

A partir de então, embora por um curto período, a realidade é marcada por ameaças crescentes: de estrangulamento financeiro; de regresso ao dirigismo administrativo e à burocracia do exercício e do acesso ao ensino por parte de agentes particulares e cooperativos; quando não da ideia velha do privilégio das instituições de ensino público, baseada no falso preconceito de que só ele teria qualidade e todo o privado seria de inferior nível.

A referida falsa querela dos níveis comparativos do ensino público e do ensino privado não tem reais bases objetivas, pois não assenta em nenhum sistema de avaliação; e os casos pontuais a que se alude verificam-se, no sentido positivo como no negativo, quer no subsetor público, quer no subsetor privado do ensino superior.

\ 265

\ 266A

4. Neste sentido e perante esta evolução, é mais atual do que nunca a publicação do presente livro. É ele um estudo de princípios e um estudo jurídico: e ainda bem, pois sem uma correta formulação normativa e sem uma reflexão clara sobre os princípios, caímos no pragmatismo improvisador e no positivismo sem referências éticas. Há muito temos, e largamente, navegado por essas águas em quase tudo o que é política de educação.

Os resultados estão à vista: dirigismo e atraso. Daí que seja de saudar entusiasticamente o esforço de refletir sobre os princípios e os quadros jurídicos do Direito da Educação, num tema tão importante, com a certeza de que, tal como na parábola do semeador, alguma da semente cairá em boa terra e algum dia dará cento por um.

falta de apoio técnico (nomeadamente à formação de professores), a inexistência de apoios financeiros, que não garantem a liberdade de opção e restringem o acesso livre apenas aos mais abastados, a inoperância do sistema de fiscalização, que constitui mais um ataque ao sistema privado do que um favor, por permitir que a degradação do serviço prestado em algumas instituições seja confundida com preconceitos generalizantes que se estendem a todo o sistema privado e cooperativo, e, enfim, a ameaça de medidas legislativas que visem tirar consequências de uma situação que é afinal criada deliberadamente pela máquina burocrática central – tudo coloca gravemente em risco os avanços que se operaram ao longo dos anos setenta e oitenta. Aguardemos para ver. Mas confirmemos que a atualidade de refletir sobre a liberdade de ensino é urgente, crescente e necessária.

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\ 269 CURRICULUM VITAE António Luciano de Sousa Franco

Professor catedrático, por concurso, da Faculdade de Direito de Lisboa - FDL (1979), após ter sido sucessivamente assistente (1966-1972) e professor auxiliar (1972 a 1979). Concluiu na FDL a Licenciatura em Direito com 18 valores, obtendo todos os prémios escolares (cinco), em 1964 (18 valores), o Mestrado em Ciêcias Político-Económicas em 1965 (18 valores) e o Doutoramento em Direito (Juridico-Económicas) em 1972 com a nota máxima, finalizando a agregação à Faculdade de Dreito da Universidade de Lisboa, em 1979, também com a classificação mais elevada por unanimidade.

\ 270António

Luciano de Sousa Franco nasceu em Lisboa em 21 de setembro de 1942 e faleceu, em Matosinhos, a 9 de junho de 2004. Professor universitário, advogado e consultor jurídico-económico.

Fez pós-graduação em Economia na Universidade de Paris (Sorbonne) e no “Institut de Science Economique Appliquée” (ISEA), onde trabalhou com François Perroux, em 1966. Professor, membro da comissão instaladora da Universidade Católica Portuguesa, na Faculdade de Ciências Humanas, desde 1979 e na Faculdade de Direito, desde 1989, sendo Professor Ordinário (Catedrático) da UCP. Foi também Professor convidado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra entre 1981 e 1983 e Professor visitante e conferencista em diversas outras Universidades portuguesas e europeias (espanholas, francesas, belgas, alemãs, italianas e polacas), norte-americanas, brasileiras, africanas e argentinas. Professor titular da Cátedra Jean Monnet de Direito Comunitário na Universidade Católica Portuguesa –UCP (1994). Presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito de Lisboa (1979-1985, 2001-2002, 2003-2004), Diretor da Faculdade de Direito da UCP (1989-1995), Membro do Conselho Superior da UCP (2000-2003), Membro do Senado da Universidade de Lisboa (1999-2004), Presidente do Conselho Científico da FDL (2002-2004), membro da comissão de gestão (FDL), do conselho pedagógico e da assembleia de representantes da FDL em diversos

\ 271 anos. Presidente da Direção do lnstituto/Associação de Direito Económico, Financeiro e Fiscal da FDL desde a sua fundação (2003), bem como fundador e primeiro presidente do Instituto de Direito Económico (até 2004) e do Instituto de Relações lntenacionais (até 1995) da Faculdade de Direito da UCP. Deu colaboração, sempre por tempos e com objetos limitados, às Universidades Livre (1977), Internacional, Aberta e Lusíada. A sua investigação e atividade profissional têm incidido fundamentalmente nas áreas de Finanças Públicas, Direito Financeiro Orçamental e Fiscal, Direito da Economia e Direito Comunitário Europeu. Sócio da Academia das Ciências – Classe de Letras desde 1994. Membro de diversas sociedades científicas nacionais e internacionais. Diretor da revista Direito e Justiça entre 1989 e 1995 e da Revista do Tribunal de Contas até 1995. Membro do conselho editorial de várias revistas científicas, entre as quais a “Common Market Law Review” (Leiden 1986), a “Revue Française des Finances Publiques” (Paris 2000) e diversas revistas cientificas e culturais portuguesas e lusófonas: Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente (Lisboa), Direito e Cidadania (Praia, Cabo Verde), Nova Cidadania (Lisboa), Revista de Direito Público da Economia (Rio de Janeiro). Foi colaborador das Nações Unidas (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD), do Banco Mundial, do Fundo Monetário lnternacional, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e de algumas instituições da União Europeia.

\ 272Foi

consultor, técnico e gestor de diversas empresas e serviços, Presidente da Comissão que elaborou a primeira Lei de Imprensa do regime democrático (1974-1975) e autor de numerosos outros projectos legislativos, membro do Conselho Nacional de Educação (1987-1993).

Proferiu conferências e lições em universidades e instituições de ensino superior em 18 países. Participou em congressos científicos em Portugal e mais 30 países. Fez viagens oficiais, como Presidente do Tribunal de Contas ou Ministro das Finanças, a 48 Estados e diversas organizações internacionais. de campanha.

Fez 510 conferências científicas, académicas e culturais. Participou em 303 congressos, colóquios e seminários científicos e culturais.

Foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo, a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul e outras condecorações e distinções honoríficas de Estados e organizações. Em 2004, foi cabeça de lista, independente, do Partido Socialista (PS) ao Parlamento Europeu, falecendo no Hospital Pedro Hispano, devido a um ataque cardíaco na lota de Matosinhos, durante uma ação de campanha.

Em diversas universidades (cursos de Direito, Economia, Gestão) regeu, até 2003/2004, 108 disciplinas em cursos de licenciatura, 53 em mestrados, 41 em outras pós-graduações e 2 em doutoramento.

Orientou 22 teses de doutoramento e 37 dissertações de mestrado, coordenou 111 assistentes e assistentes estagiários. Participou em 32 júris de doutoramento, 134 de mestrado, 12 de agregação, 34 de concursos para professores universitários. Publicou 61 livros e 240 artigos científicos, 192 textos de síntese ou divulgação, 63 textos de apoio ao ensino, 126 prefácios científicos e culturais, 1011 outros textos diversos, num total de 1713 peças.

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\ 275 MárioTESTEMUNHOPinto Professor Catedrático Jubilado do ISCTE e da Universidade Católica Portuguesa

AntónioIntrodução.Luciano de Sousa Franco (1942-2004) foi um dos mais

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276Sobre a discriminação inconstitucional dos alunos das escolas não estatais. Duas anotações

ilustres portugueses da sua geração, que se distinguiu a vários e importantes títulos, sendo um deles, a juízo de quem escreve, o da destacada defesa, cristalina e exigente, dos direitos e liberdades de educação, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o constitucionalismo moderno. Esta sua honrosa batalha bem merece ser comemorada, e daí o grande mérito deste livro, reunindo os seus escritos sobre tão magna questão: pessoal, familiar, social, cultural e jusconstitucional. Sem dúvida, uma das mais melindrosas entre as mais importantes questões das democracias.

1. A discriminação inconstitucional da gratuitidade universal no ensino obrigatório

1. No seu Parecer oficial n. 1/89, sobre o então pendente projecto legislativo destinado a «complementar o desenvolvimento» da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) no respeitante à gratuitidade universal do ensino obrigatório¹ — projecto que previa restringir ¹ No art. 62.º, prescreveu a Lei de Bases: «O Governo fará publicar no prazo de um ano, sob a forma de decreto-lei, a legislação complementar necessária para o desenvolvimento da presente lei, que contemple, designadamente, os seguintes domínios: a) Gratuitidade da escolaridade obrigatória;» (sublinhado nosso).

Convidado a oferecer uma breve contribuição a esta homenagem, correspondo muito cordialmente, com duas anotações, recordando com saudade e gratidão o companheirismo que com Sousa Franco a vida me proporcionou.

\ 277 a gratuitidade aos alunos das escolas estaduais e das escolas privadas com contrato de associação —, o Conselho Nacional da Educação reconheceu, a todos os alunos das escolas públicas e privadas, o direito constitucional à gratuitidade. Diz-se, nesse Parecer: «como direito fundamental que é, a gratuitidade do ensino obrigatório tem de ser facultada a todos, sem excepções, isto é, sem condições discriminatórias negativas. Logo, não podem dessa gratuitidade ser excluídos os alunos das escolas particulares e cooperativas, tenham ou não contrato de associação.» E mais adiante: «Esta exclusão levanta uma questão fundamental, que pode enunciar-se assim: em matéria de direitos fundamentais, pode haver discriminação baseada na distinção entre estabelecimentos estatais e privados? A resposta só pode ser negativa.» «[…] a referida exclusão é uma verdadeira e própria discriminação em função de uma escolha que a Constituição e a lei garantem e protegem, ou seja, em função da escolha de escola no exercício da liberdade de aprender e de ensinar garantida pelo art. 43º da Constituição e pelo art. 2º da Lei de Bases.»

2. Em concordância com este Parecer, o Ministro da Educação Roberto Carneiro modificou o projecto legislativo em apreço; e, assim corrigido, foi depois aprovado pelo Governo Cavaco Silva e publicado como DL 35/90, reconhecendo expressamente o direito à gratuitidade do ensino obrigatório a todos os alunos, das escolas públicas e privadas. Porém, tendo em atenção o grande esforço financeiro no alargamento imediato da gratuitidade a todos os alunos das escolas privadas, o novo diploma concedeu um regime de progressividade ao seu cumprimento. No capítulo final, intitulado «Disposições finais e transitórias», o legislador incluiu a seguinte disposição: «A aplicação do disposto no presente diploma ao ensino particular e cooperativo far-se-á de modo gradual, de acordo com os meios financeiros disponíveis e com base no disposto no Estatuto

\ 278do Ensino Particular e Cooperativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro.» É de notar que se apôs a este artigo uma enfática rubrica, dizendo: «Disposição transitória», querendo dizer que a sua necessidade seria por pouco tempo.

4. Entretanto, a certa altura deste longo tempo de não cumprimento do DL 35/90 em vigor, e para tornar ainda mais sombrio este episódio anti-democrático, ocorreu algo de surpreendente. A porque não vinha tratar da gratuitidade do ensino obrigatório, mas sim de outra matéria (o regime da acção social escolar²), o DL 55/2009, do Governo Sócrates, incluiu no seu final uma «Norma revogatória» com esta redacção: «São revogados os artigos 2.º, 3.º, 6.º a 8.º e 10.º a 23.º do Decreto-Lei n.º 35/90, de 25 de Janeiro». Ora, estes artigos do DL 35/90 são os decisivos no expresso reconhecimento do direito à gratuitidade do ensino obrigatório a todos os alunos de todas as escolas privadas, tal como tinha defendido o Conselho Nacional de Educação. Deste ² Regime da acção social escolar que aliás o DL 55/2009 veio restringir aos alunos das escolas estatais e privadas com contrato de associação, em revogação do âmbito universal que já estava garantido pelo DL 35/90, violando assim o princípio do não retrocesso no reconhecimento de direitos fundamentais.

3. Paradoxalmente, o resultado prático desta cláusula transitória de gradualidade (na atribuição efectiva e definitiva da gratuitidade do ensino obrigatório aos alunos das escolas privadas) foi que, abusando dela, o Governo Português não iniciou, até hoje, o seu cumprimento.

Já lá vão mais de trinta anos. Este facto histórico prova que o Estado Português não tem honrado, como deve, e por longo tempo, a Constituição e as leis democráticas vigentes, na sua função de garantir os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos no âmbito do ensino escolar. O que constitui facto gravíssimo e escandaloso na democracia portuguesa.

despropósito,

\ 279 modo, referindo artigos e diploma identificados apenas pelos seus números, o mais anonimamente possível, sem qualquer prévia discussão ou comunicação política sobre uma questão que foi muito polémica, sem nova consulta ao CNE e sem nenhuma referência nos considerandos preambulares do novo diploma, o Governo Sócrates veio tentar, por simples decreto-lei, uma verdadeira revolução legislativa. Pretendendo revogar o direito social à gratuitidade universal da escolaridade obrigatória, que, em desenvolvimento da Lei de Bases e da Constituição, já tinha sido definitivamente reconhecido e garantido aos alunos das escolas privadas, porque a jurisprudência dominante considera que uma tal garantia de um direito social fundamental não pode ter retrocesso, pelo menos sem razões poderosas invencíveis que de facto não foram alegadas nem se vislumbram.

5. A menos que toda esta severa crítica só tenha fundamento quanto ao modo de legislar, aí sim, sem dúvida merecida; mas não quanto a uma efectiva revogação do direito de todos os alunos das escolas privadas à gratuitidade da escolaridade obrigatória, pela revogação formal dos artigos do DL 35/90. E como assim? Interpretando que, por iniciativa do mesmo Governo Sócrates, a Lei 85/2009 veio manter (e até reforçar) o regime do DL 35/90 (apenas com um pequeno atraso temporal relativamente ao diploma revogatório), ficando desse modo justificada a sua revogação apenas formal.

A verdade é que o sumário oficial que antecede a publicação da Lei 85/2009 declara que a sua finalidade é: «Estabelece[r] o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar […]». Portanto, regime igual para todas as crianças e jovens que se encontram em idade escolar, sem restrições. E o texto normativo confirma esta interpretação, de modo claro e inequívoco, nos seus três primeiros

\ 280artigos, abrangendo expressamente a gratuitidade universal do ensino obrigatório. É este o regime normativo da Lei 85/2009, que seguidamente se transcreve em texto corrido: «A presente lei estabelece o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar. […]. Para efeitos do previsto no n.º 1 do artigo anterior, consideram-se em idade escolar as crianças e jovens com idades compreendidas entre os 6 e os 18 anos. […] A escolaridade obrigatória implica, para o encarregado de educação, o dever de proceder à matrícula do seu educando em escolas da rede pública, da rede particular e cooperativa ou em instituições de educação e ou formação, reconhecidas pelas entidades competentes, determinando para o aluno o dever de frequência. […] No âmbito da escolaridade obrigatória o ensino é universal e gratuito. A gratuitidade prevista no número anterior abrange propinas, taxas e emolumentos relacionados com a matrícula, frequência escolar e certificação do aproveitamento, dispondo ainda os alunos de apoios no âmbito da acção social escolar, nos termos da lei aplicável. Os alunos abrangidos pela presente lei, em situação de carência, são beneficiários da concessão de apoios financeiros, na modalidade de bolsas de estudo, em termos e condições a regular por decreto-lei.»

6. É patente que, neste regime assim estabelecido na Lei 85/2009, não se encontram quaisquer restrições aplicáveis aos alunos das escolas não estatais. E se esta lei as não faz, e elas também não resultam nem da Constituição, nem de qualquer outra lei (e pelo contrário, como já vimos), então ninguém as pode fundamentar legalmente, face aos princípios constitucionais: da igualdade e não discriminação (art.º 13.º); da liberdade de aprender e de ensinar (art. 43.º); da liberdade de criação de escolas civis (art. 43.º); da liberdade de escolha da escola (reconhecido expressamente na própria Lei 85/2009); do direito de os pais escolherem o género

\ 281 de educação para os seus filhos (arts. 36.º. 67.º e 68.º); e do direito pessoal universal ao ensino escolar, com expressa garantia de igualdade de oportunidades, que compreende o acesso ao ensino básico, universal e gratuito (art. 74.º). E ainda se pode acrescentar: face ao princípio da subsidiariedade do Estado, expresso no art. 6.º. Prevalece assim, finalmente e sem as aderências ideológicas do velho Estado soberanista do passado, o dever que, no art. 73.º, a Constituição atribui ao Estado de Direito Democrático (baseado na dignidade da pessoa humana e nos seus direitos e deveres inatos e invioláveis): «O Estado promove a democratização da educação […]». Dever este que a Lei de Bases interpreta no art. 2.º, sob a rubrica «Princípios gerais», pelas seguintes palavras: «É da especial responsabilidade do Estado promover a democratização do ensino, garantindo o direito a uma justa e efectiva igualdade de oportunidades [note-se o plural de oportunidades] no acesso e sucesso escolares. No acesso à educação e na sua prática, é garantido a todos os portugueses o respeito pelo princípio da liberdade de aprender e de ensinar, com tolerância para com todas as escolhas possíveis [note-se: com tolerância para com todas as escolhas possíveis]³, tendo em conta designadamente os seguintes princípios: O Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas; O ensino público não será confessional; É garantido o direito de criação de escolas particulares e cooperativas».

³ É óbvio que este limite da garantia às «escolhas possíveis» é o limite do económico e social concretamente possível que unanimemente a doutrina constitucional aceita na satisfação a todos os direitos fundamentais a prestações sociais.

7. Prescindindo aqui de mais considerações, conclui-se com toda a clareza e toda a certeza que, antes e depois da Lei 85/2009 — e

[…] Alvo da contestação não era o facto de assim se ter estendido a disponibilização gratuita dos manuais escolares a todos os alunos na escolaridade obrigatória, mas antes o facto de essa mesma disponibilização se restringir, apenas, a quem frequentasse as escolas da rede pública do Ministério da Educação. […]

\ 282agora ainda com menos pretexto, porque desapareceu a cláusula provisória que permitia um cumprimento gradual do DL 35/90⁴—, o Governo Português não cumpre a Constituição, nem a legislação que democrática e validamente a desenvolve, mantendo de facto uma grave e injusta discriminação negativa dos cidadãos alunos (e suas famílias) que legalmente cumprem a escolaridade obrigatória nas escolas não estatais. E esta prática, na sua consciente contumácia, é característica de uma democracia iliberal.

Queixavam-se assim pais, encarregados de educação, associações de famílias e outras instituições de serem destinatários de uma medida ⁴ Assim como sem as disposições que o DL 35/90 estabelecia nos arts. 25.º e 28.º, que — tendo sido esquecidas na disposição revogatória do DL 55/2009 — foram (mais tarde) revogados pelo DL 138C/2010, do Governo Sócrates.

2. A discriminação inconstitucional na atribuição de manuais escolares gratuitos. 1. Em 2 de Janeiro de 2020, enviou a Provedora de Justiça ao Ministro da Educação uma «Recomendação» assim inicialmente «Senhorjustificada:Ministro: Dirijo-lhe esta Recomendação […] na sequência de mais de uma dezena de queixas que fui recebendo ao longo destes últimos dois anos, e que me foram sendo apresentadas quer por cidadãos quer por associações e instituições. Em todas estas queixas se contestava a justiça da medida de gratuitidade dos manuais escolares

\ 283

legislativa discriminatória, porque fundada afinal de contas numa diferença totalmente destituída de sentido. A dicotomia público/ /privado – diziam – não podia ser apresentada como razão bastante para justificar que ficassem excluídos do benefício os seus filhos, os seus educandos e os seus estudantes; e, por isso mesmo, pediam-me que me dirigisse ao Tribunal Constitucional, a fim de requerer a declaração de inconstitucionalidade das normas cuja injustiça veementemente contestavam. […] Não acedi a este último pedido. É minha convicção profunda que a medida legislativa, tal como está hoje desenhada, não contradiz só por si os valores fundamentais da Constituição da República. Aliás – e voltarei ainda a este ponto – é frequente a adoção de medida idêntica em ordenamentos jurídicos que compartilham daqueles mesmos princípios constitucionais que, neste e noutros domínios, são também os nossos.»

2. O Ministro da Educação respondeu que não. E a Provedora de Justiça aquietou-se de maiores diligências nesta questão. Como já tinha deixado entender quando renunciou a recorrer ao Tribunal Constitucional por ser sua «convicção profunda» que o Estado

E finalmente, formulou assim a Provedora de Justiça o seu pedido ao Ministro da Educação: «Por todos estes motivos, Senhor Ministro, recomendo-lhe que promova as iniciativas legislativas necessárias para que a atual medida de gratuitidade dos manuais escolares, que prevê a distribuição gratuita dos mesmos apenas para os alunos que frequentam a rede pública de escolas, seja completada por uma outra, que confira aos alunos comprovadamente carenciados que frequentem o ensino privado e cooperativo (sem contrato de associação), apoio idêntico ou equivalente àquele que é conferido aos estudantes da referida rede pública.»

2. Estranho é que, em vez da alegação de uma prática alheia, que, a existir, não é por si mesma paradigmática, porque não tem força normativa no nosso ordenamento constitucional nem no constitucionalismo moderno, o pedido não tenha sido mais exigente e baseado numa interpretação desejavelmente exaustiva do regime constitucional e legal português sobre os direitos e liberdades de ensino escolar. Desenvolvido na Lei de Bases do Sistema Educativo, e depois em legislação complementar da Lei de Bases, designadamente no DL 35/90 e na Lei 85/2009. Sabendo-se, como se sabe, que há divergências políticas e jurídicas nesta questão, que foram acerbas na Assembleia Constituinte de 1975-1976, continuaram nos debates que precederam as imediatas leis da Assembleia da República que vieram interpretar correctivamente uma leitura literal de apenas um artigo da Constituição (o art. 75.º), e depois ainda nas revisões constitucionais. Basta, para o provar, consultar as duas mais importantes obras da jurisprudência portuguesa de Comentário à Constituição, respectivamente de Gomes Canotilho/Vital Moreira e de Jorge Miranda/Rui Medeiros, onde efectivamente se defendem interpretações muito divergentes.

\ 284não é obrigado a financiar os apoios e complementos sociais da gratuitidade do ensino escolar obrigatório, previstos na Lei de Bases, senão aos alunos das suas próprias escolas públicas.

Confortando essa convicção profunda numa alegada prática dos países com quem partilhamos afinidades constitucionais, sem contudo dar provas dessas práticas nem indicar esses países.

fundamentais

3. Não havendo aqui espaço para maiores desenvolvimentos críticos, limitamo-nos a noticiar como decorreu o mesmo caso em Itália. Diz assim o art. 3.º da Constituição Italiana: «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem

\ 285 discriminação de sexo, de raça, de língua, de religião, de opiniões políticas, de condições pessoais e sociais…». A esta disposição corresponde o art. 13.º da nossa Constituição, que diz assim: «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»

Ora, com base nesta disposição constitucional do princípio da igualdade, que é comum em Itália e em Portugal, o Tribunal Constitucional Italiano aprovou o Acórdão de 30 de Dezembro de 1994 n. 454 (já lá vão quase trinta anos), assim oficialmente concluindo: «São constitucionalmente ilegítimos, porque em contraste com o art. 3.º da Constituição, os arts. […] da L. […] e os arts. […] do DL […], na parte em que excluem a prestação gratuita de livros escolares aos alunos das escolas elementares que cumprem a escolaridade obrigatória de modo diferente da frequência nas escolas estaduais ou habilitadas a conceder títulos escolares com valor legal». 4. No desenvolvido corpo em que o Tribunal Constitucional Italiano fundamenta esta decisão, é em certa altura expresso o argumento de que a evidente razão de ser da atribuição gratuita de livros escolares é em directo favor pessoal dos alunos do ensino obrigatório e das suas famílias, e não em favor das escolas estaduais. Porque são os alunos, ou as suas famílias, que teriam de comprar esses livros no caso de não lhes serem gratuitamente oferecidos pelo Estado. Portanto, a discriminação negativa é directamente entre alunos e famílias de diferentes escolas, e essa discriminação não pode ter justificação na escolha de escolas diferentes em que legalmente

5. Em conclusão. O Tribunal Constitucional Italiano fundamenta as suas convicções nos princípios constitucionais vigentes em Itália — e não em alegadas velhas práticas de outros países. E especifica claramente (não apenas invoca) esses princípios, quando nele se argumenta (repita-se): «Assim, a norma impugnada estaria em contraste com o princípio da gratuitidade da instrução, com o da liberdade de inscrição em escolas privadas, com o da paridade entre escolas públicas e privadas e enfim com o princípio da igualdade A[…]Constituição

\ 286todos cumprem perfeitamente o ensino obrigatório. Lê-se aí, nesse mesmo Acórdão: «Assim, a norma impugnada estaria em contraste com o princípio da gratuitidade da instrução, com o da liberdade de inscrição em escolas privadas, com o da paridade entre escolas públicas e privadas e enfim com o princípio da igualdade […].

Portuguesa perfilha estes mesmos quatro princípios constitucionais, que estão clara e expressamente desenvolvidos em leis vigentes, designadamente na Lei de Bases do Sistema Educativo, no DL 35/90 e na Lei 85/2009. A que se deve acrescentar o mais recente princípio constitucional da subsidiariedade do Estado, que entrou expressamente no art. 6.º da Constituição pela revisão de 1997. Constitui portanto interrogação pertinente saber porque é que a interpretação e aplicação destes princípios tem vindo a ser inexplicavelmente omitida em questões agudas como as referidas nestas anotações — à luz do art. 277.º da Constituição, que impõe expressamente a observância dos princípios, e não apenas das normas-regras: «São inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados». Permitindo-se, deste modo, que em democracia personalista e pluralista baseada na dignidade da pessoa humana e nos seus direitos e deveres humanos-pessoais, inatos, invioláveis, inalienáveis e

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e

irrenunciáveis, continue paradoxalmente dominante a ideologia do monopolista, típica do Estado soberanista do séc. XIX das piores experiências políticas de Estados totalitários e autoritários do séc. XX. Nota: o autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

Estado-educador

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JorgeTESTEMUNHOMiranda

Professor catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Professor catedrático da Universidade Católica Portuguesa

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1.EmAntóniodeSousaFrancoconjugavam-se,harmoniosamente,ocristãoconvicto,bemformadoeinformadoe,porisso,comprometidonaaçãoconcretaporumasociedademaisjusta;ohomemdecultura,emdiálogocomomundomoderno;ouniversitárioprofundoebrilhante,comaltasqualidadescientíficasepedagógicas(quenemtodospossuemoupossuemnomesmograu);oservidorda“respublica”,assumindocomcompetência,sentidodeinteressepúblicoerigortodososcargosparaqueerachamado.2.Nãoháciênciasemcultura.Ciênciasemculturaconduz(oureconduz-se)atecnocracia.SousaFrancofoiumgrandecientista,antesdemaisporqueeraportadordeumagrandecultura.Umaculturaqueabarcavatodasasáreasdosocial–nãosóoDireito,aEconomiaeasFinanças,tambémaHistória,aSociologia,aDemografia–eumaculturaqueseestendiaàLiteratura,àFilosofiaeàReligião.Daíumavisãoabrangentedosfenómenosqueestudavanosdomíniosdasuaespecialidade,emqueonecessárioaprofundamentoeaconstanteprocuradeatualizaçãodefactos,normasedoutrinassearticulavacomosdadostrazidospelasciênciaspróximaseafins.AssuasliçõeseosseusmúltiplosestudosdeFinançasPúblicas,deDireitoFinanceiroedeDireitodeEconomiasãomodelaresehãodeperdurar.Massóéprofessorquemsobresaber,sabeensinar.Sóégrandeprofessoruniversitárioquemaliaàcapacidadecriadoraprópriadeinvestigadoracapacidadedetransmissãodeconhecimentose,mais

\ 290LIBERDADE DE EDUCAÇÃO HOMENAGEM A ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO

\ 291 do que isso, de estímulo à curiosidade e a horizontes de interesse (queSousacadavezmaislargos.Infelizmente,nemsempreistoécompreendido.Francofoiumgrandeprofessor;assimreconhecidoporalunosecolegas,admiradopelainteligência,peladisponibilidade,pelaclarezadasaulasquedava,fossemdalicenciaturaedemestradosabiadistinguir)eaindapeloscritériosderigoredejustiçaquepunhanosexames.Emquasequarentaanosdedocência–sóinterrompidapeloexercíciodecargospúblicos,aquejulgounãodeverescusar-se,sempreoencontreiomesmoentusiastadoensinoedodiálogocomasjovensgerações.Infelizmente,asnossasescolasuniversitáriastêmvindoatornar-semeroslocaisdepassagemedefugazesencontrosparacumprimentodeobrigaçõeslegais,mesmoquandoinstalaçõesrenovadaspropiciariamoconvívioeacriaçãodelaçosmaisfortesdoqueospuramenteconjunturais.Temvindoaperder-seosentidodacomunidadeacadémica,nãoseiseporfatoresespecíficosdePortugal,seporfatorespresentesemtodaaEuropa,nãoaugurograndesmelhoriasparaostemposmaispróximos.SousaFranco,todavia,apenascompreendiaassuastarefasdeprofessoremconjuntocomosdemaiscolegas.Paraeleorespeitoealealdadeentretodoseramvaloresindeclináveis.Emtodasasreuniões,incluindoàvoltadosproblemasmaiscontroversosoudaspersonalidadesmaisdifíceis,eraconstanteasuaatitudedecordialidadeeconstanteeraoambientedesanuviadoe,porvezes,debomhumorqueinspirava.Sóumavezoviperderapaciência.3.Elefoiumgrandedirigenteuniversitário,porque,comoestudante,entendiaqueestudantenãoeraapenasoqueestudava,massimoque,aomesmotempoparticipavanavidaculturaleinstitucionalda

\ 292Universidade – daí ter sido presidente da Juventude Universitária Católica, diretor do seu jornal, o Encontro e de ter participado nas atividades da Associação Académica da Faculdade. entendiaEfoiumgrandedirigenteuniversitário,porque,enquantoprofessor,quenãobastavaasseguraroserviçodocente;eraprecisoassumirresponsabilidadesnosórgãosdegovernodaEscolaedaUniversidade.Em1979eentre1980e1985acompanhei-o,muitodeperto,comovice-presidentedoConselhoDiretivoepossotestemunharopapeldecisivoquetevenaconsolidaçãodaFaculdadeapósasturbulênciasdosanos70,promovendooregressoànormalidadeescolar,semdeixardeintegrarneladuasaquisiçõessignificativasdaquelesanosequeaexperiênciatemreveladoseremdomaiorimpactopedagógicoesocial–aavaliaçãocontínuaeocursonoturno.Porseulado,aUniversidadeCatólicaPortuguesadeve-lhemuito.FoiumdosvogaisdaprimeiracomissãoinstaladoradaFaculdadedeCiênciasHumanas(comigoecomoProfessorJosédeOliveiraAscensão)foioprimeirodiretordaFaculdadedeDireitoquandoaquelasedesdobrou,lançandoasbasesparaoseudesenvolvimento;efoimembrodoConselhoSuperiordaUniversidade.Considerava--seprofessortantodasuaUniversidadedeorigemcomodaUniversidadeCatólica.4.SousaFranconãofoisóumtrabalhadorinfatigávelnapesquisa,noensinoenasatividadesacadémicasemgeral.FoioutrossimalguémquepensouaUniversidade.Fê-loaindaestudante,elaborandoumprojetodereformadoplanodeestudos.Efê-lodepoisemnumerosíssimoscongressos,colóquiosemesas-redondas,empareceresnoConselhoNacionaldaEducação,emváriosoutros

\ 293

Neste texto, com que comovidamente me associo à homenagem a António de Sousa Franco, vou tomar como base o art. 43º da Constituição (Liberdade de aprender e ensinar).

I – A liberdade de educação, a liberdade de aprender e de ensinar e mesmo, a liberdade de educação, surge, ao mesmo tempo, como direito autónomo e como exigência ou decorrência de outros direitos e princípios. Com ela pretende-se propiciar o acesso aos bens de cultura na aceção mais lata sem obstáculos políticos e jurídicos e estabelecer uma relação particular entre as pessoas, bem como estabelecer certo equilíbrio entre a família, a sociedade civil, o Estado e outras instituições.

É uma liberdade de todas as pessoas na sua dupla vertente: todos têm a liberdade de aprender (o que postula o direito à educação, consignado nos artigos 73.º e segs.) e todos têm liberdade de ensinar (quanto mais não seja contribuindo pela palavra, pelo exemplo e pela experiência de vida, para transmitir conhecimentos e valores). Sob este ângulo, revela-se ainda uma manifestação do direito ao desenvolvimento da Mas,personalidade.considerando o processo educativo como realidade a se, autonomizável, depara-se aqui a relação entre educandos, sobretudo, crianças, adolescentes e jovens – e educadores – sobretudo pais e professores. E torna-se então indesligável dos direitos e deveres dos pais para com os filhos [artigos 36.º, n.os 3, 5 e 6, 67.º, n.º 2, alínea c), e 69.º, n.º 1], da liberdade de consciência e religião (artigo 41.º,

escritos, examinando e discutindo as mais diversas questões, sempre apelando aos princípios da autonomia e da liberdade académica. Esses poderiam ser reunidos em volume.

– O direito de criação de escolas distintas das escolas do Estado (n.º 4), com o conferir de graus equivalentes aos destas, verificados os requisitos legais.

– O direito de escolha da escola mais adequada ao projeto educativo ou cultural que se pretenda realizar (n.º 1), designadamente da escola mais adequada à formação moral, religiosa, filosófica, intelectual ou cívica dos filhos (artigos 36.º, n.º 5, e 41.º).

\ 294maxime n.º 5, 1.ª parte), da liberdade de criação cultural (artigo 42.º) e da liberdade de associação (artigo 46.º).

– Dentro das possibilidades logísticas do sistema, o direito de escolha de escola pública em concreto que se queira frequentar, sem adstrição necessária a critérios geográficos ou de residência.

– Para além da escolaridade obrigatória, o direito de escolha da escola (ou do curso) correspondente à formação pessoal e profissional que se queira obter segundo as suas capacidades [n.º 1, de novo, e artigos 47.º, n.º 1, e 74.º, n.º 2, alínea d)].

III – A liberdade de escola compreende:

– O direito de acesso a qualquer escola, verificados os requisitos gerais prescritos na lei, sem impedimentos, nem discriminações (artigos 13.º e 74.º, n.º 1).

II – Ainda mais especificamente, por na época moderna a educação implicar sempre, em maior ou menor medida, escola e por ser, através da escola, que ela se institucionaliza e se projeta no espaço público, a liberdade de aprender e de ensinar apresenta-se como liberdade perante a escola – liberdade de escola e liberdade na escola.

Mas a liberdade de criação de escolas não estatais (naturalmente, em latitude variável do ensino primário ao universitário) salvaguarda também a própria liberdade dentro das escolas estatais: até para que nestas escolas haja liberdade frente ao poder político, importa que em escolas não estatais possa haver opções de fundo, programas, métodos, livros diferentes dos das escolas do Estado ou que os complementem.

Finalmente, embora o direito de criação de escolas particulares e cooperativas implique – pela necessidade de reunir os bens

\ 295

IV – De modo algum se confunde ensino particular com ensino livre. Tão livre tem de ser o ensino nas escolas públicas como o ensino nas escolas não públicas.

Em contrapartida, mesmo que existam escolas particulares e cooperativas, em determinada área, o Estado não pode deixar de criar as suas escolas, sempre tendo em conta critérios de proporcionalidade e de prioridade na satisfação das necessidades (artigo 75.º, n.º 1). O direito à escola pública não se reconduz apenas a um direito económico, social e cultural; reconduz-se também a direito, liberdade e garantia – porque a não confessionalidade da escola pública é uma garantia de liberdade para aqueles que não se reconheçam em nenhuma escola confessional (ou seja, de escola ao serviço de quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas). Para que haja liberdade de escolha, tem de ser assegurada, portanto, em tensão dialética, a existência quer de escolas privadas e cooperativas quer de escolas públicas. E, para que essa liberdade de escolha seja efetiva, têm de ser assegurados a quem deseja frequentar um ou outro tipo de escola os indispensáveis meios económicos.

\ 296materiais

indispensáveis – iniciativa económica (artigo 61.º), ele deve ser entendido não como mera expressão dessa iniciativa económica, mas sim como expressão de princípio de iniciativa cultural ou de pluralismo de projetos educativos.

De todo o modo, ainda em virtude do postulado da reserva de lei, em caso algum dependerá a concessão de autorização de poder discricionário; terá de ser sempre vinculada.

V – Mas o n.º 4 não consagra, em si mesmo, uma liberdade no pleno sentido da palavra. Os interesses em presença – dos alunos, em primeiro lugar, e as exigências de preservação da identidade nacional e de democratização da educação e da cultura – justificam a necessidade de autorização ou de reconhecimento de interesse público [cfr. artigo 6.º, n.º 2, alínea a) da Lei n.º 9/79, de 19 de março], ao contrário do que se passa com as escolas de formação de ministros de culto (artigo 41.º, n.º 5, 1.ª parte).

Cabe, pois, à lei estabelecer os requisitos que essas escolas devem satisfazer – naturalmente, mais rigorosos quanto ao ensino infantil e ao ensino universitário do que quanto aos outros graus. E pode a lei reservar o exercício do direito de criação de escolas a entidades de certa natureza ou dele excluir outras entidades: porque se trata de iniciativa cultural, há de ter a maior ou menor idoneidade para a definição e a prossecução de projetos educativos a prevalecer.

VI – A liberdade na escola, ou liberdade académica na aceção clássica, significa: liberdade dos professores de ensino de acordo com a sua procura da verdade, o seu saber, a sua orientação científica e pedagógica; direito do aluno à compreensão crítica dos conteúdos do ensino em graus crescentes até o ensino superior, mas com respeito pela autoridade institucional do professor.

Uma e outra liberdade, a dos professores e a dos alunos, implicam a proscrição do “livro único”, embora não, evidentemente, a não sujeição a formas administrativas de avaliação de uns e outros e de cada escola em face das demais.

\ 297

Em tese, a liberdade docente deveria abranger a livre fixação dos conteúdos e dos métodos do ensino. Mas ela tem de se compaginar, por imperativos de coerência do sistema, com os planos de estudos e os programas das disciplinas fixados, em linhas gerais (não mais do que isso), por lei. Apenas no ensino superior, indissociável da investigação científica, pode desenvolver-se plenamente (é a chamada liberdade de cátedra).

Já as escolas não públicas, porque se justificam enquanto portadoras de projetos educativos próprios, seguem as diretrizes que entendam mais conformes com esses projetos. E aí o ensino não pode deixar de se inserir no âmbito confessional ou doutrinário

VII – Se nas escolas públicas prevalece a regra da não confessionalidade (n.º 3), nas escolas não públicas pode haver a opção por esta ou aquela diretriz filosófica, estética, política, ideológica ou religiosa. Ou seja: nas escolas públicas, o Estado deve abster-se de impor e nas escolas não públicas deve abster-se de impedir qualquer orientação confessional. Nas escolas públicas manifesta-se o princípio da laicidade ou neutralidade do Estado perante qualquer dessas diretrizes, o que implica a necessária isenção das linhas programáticas dos cursos e das disciplinas estabelecidas a nível nacional. Mas os professores ensinam de acordo com as suas convicções e orientações, no respeito da liberdade de aprender dos alunos que não devem sujeitar-se a aulas de doutrinação ou de propaganda ideológica.

\ 298que, porventura, as caracterize, no respeito, por seu turno, pelas direções das escolas, da liberdade de ensinar dos professores à luz da sua consciência académica e profissional. É algo de homólogo ao que acontece com os jornalistas nos órgãos de comunicação social de natureza doutrinária ou confessional, em cuja orientação editorial não intervêm [artigo 38.º, n.º 2, alínea a), 2.ª parte].

– A liberdade de ensino de qualquer religião praticada no âmbito da respetiva confissão (artigo 41.º, n.º 5, 1.ª parte) – a qual não se reduz à liberdade de ensino nos templos e locais de culto, antes significa ensino no interior da comunidade de crentes, compreendendo, por conseguinte, quer o ensino em escolas criadas para formação de ministros de culto, quer o ensino em quaisquer outras escolas;

– O pluralismo inerente ao Estado de Direito democrático (artigo 2.º): um pluralismo interno nas escolas públicas e externo nas escolas não públicas; interno naquelas por, na mesma escola, coexistirem diferentes perspetivas doutrinais e confessionais dos professores; externo nas segundas, porque a diversidade de orientações de escola para escola traduz o pluralismo geral do VIIIsistema.–A não confessionalidade do ensino público significa que o ensino público se não identifica com nenhuma religião, convicção, filosofia ou ideologia. Não significa que as religiões, as convicções,

Só assim se garantem plenamente:

– O direito dos pais de educação dos filhos [artigos 36.º, n.º 5 e 67.º, n.º 2, alínea c)], com a correlativa prioridade do direito de escolherem o género de educação a dar-lhes (artigo 26.º, n.º 3 da Declaração Universal);

1) Necessidade de declaração dos pais (ou dos alunos a partir de 16 anos), de que o querem ter, e não qualquer tipo de abstenção ou 2)passividade.Igualdade de todas as confissões, assegurando-se o acesso de todos às escolas públicas, segundo as modalidades que com elas sejam ajustadas.

\ 299 as filosofias ou as ideologias não devam ter expressão no ensino público; ela é positiva, não negativa e excludente. Cfr. acórdão n.º 423/87 e anotações aos artigos 41.º e 42.º.

4) Definição dos programas e dos conteúdos pelas próprias confissões religiosas.

IX – Há, contudo, requisitos que devem ser observados relativamente ao ensino de religião nas escolas públicas:

3) Assunção do ensino pelas confissões (artigo 41.º, n.º 5), com docentes por elas indicados, sob a sua responsabilidade e com programas por elas definidos.

O que a Constituição pretende é evitar a unicidade da doutrina de Estado. Não é – sob pena de se pôr em causa a própria educação e cultura – evitar a presença da religião, da filosofia, da estética, da ideologia nas escolas. Nem se compreenderia que, numa sociedade pluralista, também por esta via o pluralismo não entrasse nas escolas; que numa Constituição que o promove no setor público da comunicação social o não viabilizasse nas escolas públicas; ou que o direito dos pais de educação dos filhos não compreendesse o de escolherem para eles aulas de religião e moral.

\ 300

6) Em contrapartida, ainda para efetivação na prática dessa liberdade de opção, ensino de religião e moral nos horários escolares normais (como expressamente preveem o artigo 7.º, n.º 2 da Constituição alemã e o artigo 210.º, § 1.º da Constituição brasileira), em alternativa a outras disciplinas também optativas. A lei da liberdade religiosa (Lei n.º 16/2001, de 22 de junho) respeita quase todos estes princípios, menos o 6.º (cfr. artigo 24.º)

diminuidores

5) Não acumulação pelo mesmo professor do ensino de religião e moral e de ensino de outra disciplina, para evitar constrangimentos da liberdade de opção do alunos.

\ 301

\ 302

\ 303 EduardoTESTEMUNHOMarçalGrilo Ministro da Educação do XIII Governo Constitucional

Alguns anos depois, em 1995, encontrámo-nos como membros do governo chefiado pelo Engenheiro António Guterres onde viemos a ter um relacionamento muito próximo, o que nos tornou amigos e sobretudo solidários na defesa dos objetivos das políticas públicas traçadas para a área da educação.

Conheci o Professor Sousa Franco em 1979, era ele Ministro das Finanças do governo chefiado pela Engenheira Maria de Lourdes Pintassilgo e eu Diretor-Geral do Ensino Superior.

Foi um primeiro contacto, em que percebi estar perante uma pessoa superior, amável, inteligente, competente e com capacidade para assumir responsabilidades na gestão da “coisa pública”.

\ 304

Surgiu nessa altura um problema no orçamento das universidades, que passava por uma decisão a ser tomada pelo Ministério das Finanças e eu desloquei-me ao Terreiro do Paço para tentar resolver as dificuldades existentes, por um lado, entre os responsáveis pelo acompanhamento da execução orçamental nas finanças, e por outro, as instituições de ensino superior que a Direção-Geral tutelava. O problema foi resolvido sem dificuldade. O ministro conhecia bem o funcionamento das universidades, não precisava de grandes “briefings” e decidiu sem que se perdesse tempo com minudências.

O Ministro Sousa Franco foi sempre um aliado solidário na procura de uma melhoria da qualidade da educação, mas foi sobretudo um promotor decisivo do financiamento da Educação Pré-Escolar, setor que tinha sido assumido pelo governo como uma das suas grandes prioridades políticas.

Com o apoio e o empenhamento dos Senhores Reitores entendi dever contactar diretamente o Professor Sousa Franco, que se disponibilizou para uma reunião conjunta onde participassem elementos do Ministério das Finanças e os representantes do Conselho de Reitores, e onde participou o Ministro das Finanças e eu próprio. Assim se fez e assim se resolveu um problema que parecia insolúvel, pelo menos à luz das mentalidades conservadoras e opostas a quaisquer mudanças, mesmo que estas introduzam maior racionalidade no funcionamento da “máquina do Estado”.

Passo a relatar.

Depois de um grupo de trabalho ter realizado um estudo que visava a simplificação dos procedimentos administrativos e burocráticos da gestão financeira das universidades, as estruturas internas do Ministério das Finanças reagiram às propostas de alteração formuladas, negando-lhes qualquer utilidade, dado que iam contra as normas e as determinações em vigor (o que era verdade, uma vez que o estudo tinha exatamente o objetivo de alterar as leis e os regulamentos em vigor…).

Aliás, o Professor Sousa Franco foi sempre um aliado, tanto nas questões da Educação Pré-Escolar como do Ensino Superior, pois ele era sobretudo um apaixonado pelas questões da educação.

Escreveu longamente sobre problemas relacionados com a educação e sobretudo sobre um tema que muito o preocupou, o

Numa outra ocasião tivemos em conjunto um problema muito curioso e bem revelador do espírito que ainda se mantém em alguns setores da nossa Administração Pública.

\ 305

\ 306

Esta posição assumida por Sousa Franco é expressa em diversos outros textos do mesmo autor e constitui uma constante do seu

da “liberdade de ensinar e aprender”, a que dedicou uma atenção muito especial, particularmente no período da sua história recente em que o país esteve próximo de ver comprometido o seu caminho para o estabelecimento de uma democracia liberal como a que temos nos dias de hoje. Deixou-nos uma extensa bibliografia, onde aborda de forma sustentada o papel que o “ensino livre” deve desempenhar em qualquer sistema educativo. De forma veemente, Sousa Franco defende que a educação é primeiramente uma responsabilidade dos pais e das famílias e que são estes que definem e estabelecem os valores em que deve assentar a educação dos seus filhos.

Num texto escrito em 1971 e publicado na revista Brotéria, Sousa Franco tece um comentário ao “Projeto do Sistema Escolar Português”, apresentado nesse ano ao país pelo então Ministro da Educação Nacional, o Professor Veiga Simão, em que de uma forma explícita critica a pouca relevância que o documento atribui ao regime de “ensino livre”, ou seja, do que poderemos designar atualmente como ensino particular e cooperativo. Em certa fase deste comentário, o seu autor diz nomeadamente que “O Projeto do Sistema Escolar Português, ora em pública apreciação, nada dispõe relativamente ao ensino livre em geral, ou quanto ao ensino politécnico e universitário: nem na lista das inovações relativas ao sistema se contém qualquer referência ao regime das instituições escolares privadas”.

Na vasta obra do Professor Sousa Franco existem diversos textos que pela sua relevância devem ser citados sobretudo pelo significado histórico que hoje representam.

De entre estes saliento uma nota escrita na sequência de um despacho de 1 de setembro de 1975, proferido pelo Primeiro-Ministro Vasco

A conceção de um sistema diversificado veio aliás a ser consagrada em toda a legislação relativa à Educação Pré-Escolar aprovada em 1996, quando o governo a que ambos pertencemos lançou os fundamentos de um grande programa de educação destinado às crianças com idades compreendidas entre os três e os cinco anos de idade. Esta legislação, que se mantém quase inalterada até aos dias de hoje, continua a ser um bom exemplo do papel que o Estado pode desempenhar como entidade reguladora e financiadora de um sistema educativo diversificado e de que fazem parte vários subsistemas geridos tanto por entidades dependentes da Administração Central, como de propriedade privada, como pertencentes aos Municípios ou ainda como Instituições Particulares de Solidariedade Social ou cooperativas com diferentes tipos de estatuto.

\ 307

pensamento, uma vez que rejeita de forma inequívoca o conceito de “escola única, hoje quase só aceite em países de índole ou tendência totalitária”, como aliás ele refere no texto citado.

Numa outra defesa do ensino livre e no mesmo texto em apreço, o autor faz ainda uma reflexão sobre a importância da coexistência da escola pública e das escolas livres “como expressão de uma síntese cultural mais perfeita e, também, como elemento imprescindível de uma verdadeira sociedade pluralista”.

\ 308

Gonçalves e pelo Ministro da Educação e Investigação Científica, José Emídio da Silva. O despacho em causa tinha como objetivo “proceder ao adequado estudo no sentido do aproveitamento das instalações afetas a estabelecimentos de ensino particular para a rede escolar oficial no próximo ano letivo”, e mais à frente “assim, determina-se que as Direções-Gerais da Administração Escolar e da Fazenda Pública devem contactar os proprietários das referidas instalações que ao programa da rede escolar interessam, a fim de se fixar a natureza e modalidade das relações contratuais na aquisição futura ou arrendamento das mesmas pelo Estado, de acordo com os estudos técnico-financeiros a efetuar pela Direção-Geral da Fazenda Pública. Sousa Franco é implacável em relação ao conteúdo deste despacho e escreve no seu comentário algumas considerações que lidas quarenta e seis anos depois ganham um sabor especial que caracteriza bem o que foi em Portugal o Processo Revolucionário em Curso, ou seja, o designado PREC. Escreveu Sousa Franco a propósito deste despacho: “Parece estar na intenção dos signatários desta espantosa decisão, afinal, fazer esta coisa singela: nacionalizar o ensino particular. Como quem não quer a coisa, através de um breve texto anódino e mal redigido, pretende-se chegar a 1 de Outubro a um resultado final, que tantos totalitarismos do nosso tempo apenas lograram após uma luta frontal e declarada – acabar com a liberdade de ensino, por via de uma arbitrária e ilimitada expropriação das instalações dos estabelecimentos do ensino particular. Depois virá necessariamente a proibição do exercício desta atividade em quaisquer condições”.

\ 309

E no final do seu comentário ainda escreve: “E importa também que o povo esteja civicamente vigilante ao que se passa no Ministério da Educação, onde, sobretudo nos últimos meses, se tem procurado, em regra por esta forma oculta e pouco límpida, criar um sistema educativo que não serve aos portugueses”. Mas o Professor Sousa Franco tinha uma outra caraterística que cultivou e com a qual eu me identifico na totalidade. Refiro-me concretamente à sua preocupação com o gradualismo das soluções encontradas para os problemas, em contraponto com as posições assumidas por alguns, em que se luta pelo ótimo sem se aceitarem soluções de compromisso acertadas com quem não tem exatamente a mesma solução preconizada por nós.

Em 1979, na ratificação do Projeto de Lei 108/I sobre Bases Gerais dos Ensinos Particular e Cooperativo, o Professor Sousa Franco elaborou uma declaração de voto em que explicitou de forma clara a sua posição, afirmando nomeadamente: “Votei favoravelmente o texto final e não o fiz apenas por disciplina parlamentar. Creio que ela (a Lei) não é, nem na formulação técnica, nem na precisão e rigor das soluções, nem no coerente enquadramento num projeto didático-pedagógico, nem sequer no grau de urgência com que foi produzido, um diploma ótimo. Mas a democracia é compromisso, e o progresso constrói-se apenas com soluções que em cada momento sejam as melhores de entre as possíveis. O acordo com soluções limitadas… é um exercício de realismo e humildade democrática… pois é praticando a convergência e o compromisso, à luz do interesse nacional, que se rejeita a confrontação política, procurada por quem só vê os interesses partidários”.

desta visão que o Professor Sousa Franco tinha em relação ao seu papel de político com responsabilidades, seja como dirigente partidário, deputado ou membro do governo.

Quando se lê este texto curto mas pleno de significado político, temos que reconhecer que as práticas dos nossos políticos de hoje, perante os problemas com que nos debatemos, estão bem longe

\ 310

A vida de Sousa Franco deverá ser vista como uma referência para todos aqueles que no centro do espetro partidário procuram desenvolver uma atividade política capaz de contribuir para o desenvolvimento e o progresso do nosso país.

A sua partida em 2004 constituiu um grande desgosto para todos nós que o admirávamos e que éramos seus amigos, mas representou igualmente uma enorme perda, quer para a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa quer para o País, que dele esperava a continuação do seu inestimável contributo para a gestão da “coisa pública”.

\ 311

\ 312

\ 313 GuilhermeTESTEMUNHOd’OliveiraMartins Ministro da Educação do XIV Governo Constitucional

\ 314

O pensamento de António Luciano de Sousa Franco foi, no tocante à liberdade de ensino, de uma grande coerência, resultando uma reflexão longa e aprofundada, desde os primeiros passos da sua atividade intelectual, académica e cívica. Quando lemos os textos que escreveu sobre a matéria, notamos uma preocupação axiológica e não apenas formal, que articula de um modo dinâmico e substantivo o tema da evolução e aperfeiçoamento das diferentes gerações de direitos, desde a dimensão individual e subjetiva à perspetiva social e de desenvolvimento humano, considerando as mais modernas orientações no tocante a tais temas. Assim, o pensamento complexo encontra-se presente, capaz de atribuir à reflexão económica e social uma atualidade suscetível de poder superar a limitação das lógicas utilitaristas ou das conceções meramente formalistas das liberdades.

Mas tal conceção seria claramente totalitária…” (Cf. A. L. de Sousa Franco, “Para uma fundamentação da Liberdade de Ensino” in “Direito e Justiça” – Revista da F. Direito da Universidade Católica Portuguesa”, vol. IV, 1989-1990; pp. 59-92).

“A liberdade do ensino é um direito (…), não um privilégio, resultante de mera tolerância do Estado ou da maioria da coletividade perante grupos sociais minoritários (porque ricos ou diferenciados da maioria da sociedade, em matéria de convicções ou de estatuto social, por exemplo). Só onde quer que se entenda que o ensino deve ser essencialmente estatal, o ensino não estatal seria não livre, mas tolerado: um privilégio, como tal incompatível com a igualdade perante a lei e a igualdade de oportunidades, e até com níveis excessivos de desigualdade desprovidos de justificação natural ou ética, que são características de sociedades humanistas e, no limite, democráticas.

LIBERDADE DE ENSINO E DIGNIDADE HUMANA.

Deste modo, estamos perante um verdadeiro direito, com carácter universal, consagrado no artigo 26º da Declaração Universal dos

\ 315

Daí que o nosso autor refira que “a liberdade tão-pouco retira ao Estado as suas responsabilidades globais pelo sistema de ensino e formação”. Trata-se de responsabilidades que “supõem o exercício não discriminatório de certos poderes (normativos ou administrativos) a todas as instituições, agentes e sujeitos de ensino – públicos, privados ou cooperativos; mas elas hão de respeitar os direitos das pessoas, famílias, associações e movimentos legítimos,

relativamente

exclusividade

Direitos Humanos, importando interpretar a liberdade de ensino em articulação com a liberdade de consciência e com todos os elementos que consagram a dignidade humana. Daí a ênfase posta na cidadania inclusiva, no respeito mútuo, na recusa da lógica de privilégio e numa conceção de serviço público não confundível com estatal. Assim, para Sousa Franco, a liberdade de ensino não retira a este “a natureza parcial de bem coletivo, pois estes (bens), como se sabe, podem ser oferecidos por entes públicos, privados ou cooperativos, devendo, na medida em que têm utilidade social genérica, ser financiados equitativamente por todos. Por outras palavras: tão ‘coletivo’ é o ensino privado como o público ou o cooperativo; e, assim sendo, tanto direito tem um à subvenção, como o outro ao financiamento direto, em função da utilidade social que respetivamente prestam por igual”. Deste modo, se inserem na nossa ordem jurídica os contratos de associação ou a complementaridade entre as diversas iniciativas na concretização do serviço público de educação. De facto, usa-se o elemento “público” não como sinónimo de estatal. O uso da expressão coletivo reporta-se à consideração do que podemos designar como bens financeiros públicos. De facto, só a lógica estatal poria em xeque a essência, o fundamento dos direitos fundamentais e a prevalência da autonomia individual e da dignidade pessoal dos seres humanos, numa sociedade aberta.

\ 316 colocando-se, se necessário ao seu serviço, ao invés das doutrinas supra ou transpersonalistas de qualquer natureza (e subordinadas a quaisquer valores)” (Ibidem). Na prática, do que se trata é de conceber este direito como uma obrigação de justiça e de equidade na utilização dos recursos disponíveis, pondo-os ao serviço de todos. Assim, “para que haja liberdade, o primeiro dos consequentes deveres do Estado é assegurar condições de igualdade de acesso, frequência e funcionamento, a par da liberdade, com respeito pela qualidade e pelos objetivos justos do sistema nacional de formação e ensino – entre o ensino público, por um lado, e o ensino privado e cooperativo, por outro; bem como entre as diferentes instituições destas várias formas de ensino, sem prejuízo das diferenciações legítimas baseadas na qualidade ou em valores relevantes de preferência social, os quais a sociedade pluralista pode admitir e encorajar, porque representam mérito e não privilégio, abertura e não monopólio” (Ibidem). A igualdade de acesso, frequência e funcionamento tem, assim, de ser assegurada para todos em estreita complementaridade com a liberdade de escolha, dentro das condições concretas existentes. Daí a importância do primeiro objetivo da UNESCO no tocante ao ensino no mundo: Educação para todos. Tudo, sem prejuízo das diferenças baseadas na qualidade ou em valores relevantes numa sociedade pluralista capaz de valorizar o mérito e não o privilégio, a abertura e não o monopólio.

A liberdade de ensino reporta-se à liberdade de fundação e de funcionamento, à liberdade docente e às condições para a formação e exercício de qualidade em condições dignas, bem como à liberdade de determinação dos conteúdos, com autonomia e objetividade. “Liberdade de aprender, liberdade de ensinar. Ambas integram necessariamente o objeto do direito fundamental da liberdade de ensino, e só quando elas se verifiquem – todas elas – em termos

João Paulo II, no discurso aos juristas católicos italianos, em 7 de dezembro de 1981, afirmou, neste sentido: “O princípio da liberdade de ensino tem o seu fundamento na natureza e na dignidade da pessoa humana. Como esta é uma realidade anterior a toda a organização social – embora destinada a inserir-se nesta – tem direito à prossecução do seu próprio desenvolvimento e aos meios necessários, sem que esta capacidade de autodeterminação seja limitada por imposições arbitrárias do exterior”. Se o dever de educar pertence primariamente à família, como educadora natural, precisa de ajuda de toda a sociedade. Assim, além dos direitos dos pais e de outros a quem os pais confiam parte do trabalho da educação, há deveres que competem à sociedade civil, enquanto pertencer a esta a ordenação do bem comum. Deve, pois, promover a educação da juventude, defender os deveres e direitos dos pais, segundo o princípio da subsidiariedade garantir uma educação para todos, defendendo os direitos das crianças e jovens, velar pela competência dos professores e educadores e pela eficácia dos estudos, promover o trabalho escolar e o sucesso dos estudantes, com salvaguarda do pluralismo e da liberdade de consciência. Importa, no fundo, assegurar a concretização da primeira ordem dos fundamentos da liberdade de ensino, que corresponde à articulação do sistema de ensino e suas instituições com liberdade das pessoas, famílias e instituições sociais. É, assim, a pessoa humana o sujeito essencial da liberdade de ensino. Não haverá democracia pluralista sem que o sistema de ensino respeite a autonomia das pessoas e famílias, relativamente a preferências e convicções e sem que se dê expressão formativa às diversas conceções e correntes sociais.

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Numa sociedade aberta e democrática ensino e liberdade são

substanciais se pode dizer que existe, numa sociedade, verdadeira liberdade de ensino” (Ibidem).

\ 318 inseparáveis. Mas importa ainda a satisfação das necessidades da sociedade, através de uma rede escolar, em que o Estado dê garantia da universalidade e acessibilidade do sistema de ensino. A educação e a cultura são indissociáveis, como, aliás, o eram na “paideia” grega.

Sem liberdade de ensino, educação e formação não existe liberdade cultural, já que a liberdade do espírito é indivisível. Urge, assim, ligar responsabilidades do Estado e fundamentos da liberdade de ensino, de modo a garantir o respeito efetivo de um direito fundamental, incompatível com a indiferença ou a abstenção do Estado. Importa garantir uma liberdade equitativa de ensino, com igualdade de condições, de escolha e oportunidade de acesso para todos. “Uma liberdade de ensino passiva ou formal (…) seria uma liberdade para uns poucos (dotados e ricos) e imposição para a maioria (a quem se não facultaria efetiva liberdade de opção)” (Ibidem). No fundo, para António Sousa Franco, a liberdade de ensino pressupõe: “condições de liberdade” para todos, “libertação” relativamente a uma lógica monopolista, qualquer que seja, “intervenção libertadora do Estado e da sociedade”. Em linguagem dos nossos dias, trata-se de uma demarcação plena relativamente ao que muitos designam como “democracia iliberal” – que não é democracia porque recusa a liberdade e a autonomia da pessoa humana. “Pois se até a liberdade de consciência impõe que se proteja a consciência de condicionamento ou coação – as liberdades de ação exigem mais complexa tutela e as liberdades de escolha de meios ainda se perfilam mais exigentes quanto aos meios económicos, jurídicos e políticos” (Ibidem). É assim muito clara a posição de princípio assumida por Sousa Franco: a liberdade de ensino e as condições concretas para a sua realização obrigam a entender que estamos perante uma liberdade, centrada na dignidade humana, que ou é social ou deixa de ser, pura e simplesmente, liberdade.

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Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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PedroTESTEMUNHOBarbasHomem

O aparente caos que rodeava a preparação das reuniões e dos seus textos, nos mais variados assuntos, começados em bilhetes de metro e continuados no suporte que estava à mão e que podiam ser cadernos, folhas A4 ou cartões dos mais diversos tipos e tamanhos. Uma aparente desordem que só o autor compreendia.

Já conhecia bem os seus textos e ideias no domínio da liberdade de educação.

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Os sacos de plástico com que era distribuído o jornal Expresso serviam de arquivo dos mais diversos textos, das suas atividades públicas aos seus textos para o ensino. Deste aparente caos, surgia um pensamento claro, estruturado, exposto sempre com firmeza e polidez. Aprendi com ele a convocar reuniões sempre com hora de conclusão.

Como é conhecido, Sousa Franco desempenhou um papel importante na política portuguesa depois de 25 de Abril de 1974, no Parlamento, como Ministro das Finanças e na presidência do Tribunal de Contas. Nunca descurou as suas tarefas como professor universitário.

Recordo uma primeira impressão.

Não fui aluno de António Luciano de Sousa Franco. Embora, ao longo do curso, tivesse ocasião de estudar pelos seus livros e artigos e de ouvi-lo em conferências, foi apenas quando desempenhei funções como Vice-presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sob a sua presidência, que fiquei a conhecê-lo e tive ocasião de privar com ele.

Pela minha parte, com a criação da Associação Portuguesa de Direito da Educação procurei igualmente suscitar um novo interesse da ciência do direito pelas questões educativas, retirando da esfera do Estado uma matéria que respeita aos direitos fundamentais e, em primeiro lugar, à esfera dos poderes dos pais, como é, desde logo, a lição da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

António de Sousa Franco teve um papel importante na aprovação destes textos, ao lado de outros mestres da causa da liberdade de ensino, como Jorge Miranda e Mário Pinto, entre outros.

Recordo, também, a propósito de Sousa Franco, o lançamento na Faculdade de Direito de um livro que promovi de estudos em homenagem ao Papa João Paulo II e deslocação a Roma de uma comitiva de professores da Faculdade de Direito para oferecer ao

O Estado Novo intencionalmente tinha consagrado um papel dirigista do Estado na educação, que foi apropriado pelos movimentos autoritários posteriores à revolução. A Constituição de 1976, como é sabido, consagrava um estatuto supletivo do ensino público para o ensino particular e cooperativo.

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De antes e de depois de Abril vem uma luta constante pela liberdade de ensino e, em especial, pela liberdade das escolas católicas.

A revisão da Constituição em 1982, tanto na defesa da liberdade de educação como de outras liberdades – designadamente no plano económico –, foi uma etapa fundamental para a consolidação da democracia em Portugal. A aprovação dos Estatutos para o Ensino não público, tanto ao nível do ensino básico e secundário como superior, foram assim marcos importantes na consagração de uma nova defesa institucional de universidades e escolas privadas.

\ 324Papa a medalha Pro Justitia, criada pela Faculdade de Direito para homenagear grandes vultos que se tivessem destacado na defesa da Ajustiça.estada em Roma foi determinante para conhecer a sua personalidade e, em especial, o seu sentido de humor. Com pessoas da sua geração – como Jorge Miranda e Ruy de Albuquerque – essa estada foi um momento importante para privar com intelectuais e juristas extraordinários, que desempenharam importantes papéis na democracia portuguesa. Uma lição que partilho e que procuro sempre transmitir aos meus estudantes. A de que o Direito e a ciência jurídica só podem ser realmente entendidos à luz da sua ligação com a cultura, em geral, isto é, a arte, a literatura, a música, a arquitetura. E, de outro lado, o papel do humano, dos homens em geral e a de alguns em concreto – políticos, cientistas, escritores, mas também de homens comuns – na transformação das sociedades, dos Estados e das suas leis.

Para quem é católico, a personalidade e a obra de um Papa que justamente foi reconhecido como santo, é uma permanente fonte de inspiração, e a oportunidade de conhecer pessoalmente São João Paulo II, na companhia de mestres que se tornaram amigos, foi uma experiência inesquecível.

Em privado, tive ocasião de conhecer melhor a sua vastíssima cultura, que se afirmava nos mais diversos assuntos, desde a literatura, a arte e a música. Mas também aqui o seu sentido de humor fino, nomeadamente na forma como interpretava os acontecimentos históricos da história económica, também à luz

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dos encontros e desencontros de personalidades – como a dele Lembro-mepróprio. de conversas estimulantes acerca de diversos assuntos. Uma dessas lições, que lembro brevemente: a de que em Portugal nunca se extingue nenhum organismo público, uma vez criado. Pode mudar de nome, de configuração, de regime, mas nunca se extingue. A enorme dimensão da administração pública seria assim o resultado de uma dinâmica que vinha dos tempos do Marquês de Pombal e atravessava regimes, desde a Monarquia Constitucional até à Terceira República. A demonstração, feita por Sousa Franco com as instituições responsáveis pelas finanças públicas, pode ser comprovada em muitos outros domínios. O peso do Estado e a dimensão da administração pública resultam também de uma verdadeira incapacidade reformista dos estadistas e das forças da inércia: um problema crítico da sociedade portuguesa, sempre desconfiada da liberdade e da iniciativa privada e sempre pronta a aceitar o paternalismo do Estado. Pela minha parte aprendi com estas intuições de Sousa Franco. Num dos meus estudos de história institucional, a que dei o nome de O Espírito das Instituições, tentei explicitar os critérios que moldam ou moldaram as instituições públicas, a partir dos seus agentes. O vocabulário muda constantemente e, por exemplo, a ideia atual de políticas públicas, não é mais do que, frequentemente, um disfarce da ignorância e falta de estudo da realidade empírica – num país habituado a pensar em reformas de gabinete e sem lugar para a memória crítica de homens e de instituições.

Asgratificante.grandes

\ 326Poucos

dias antes de morrer, jantou em minha casa, com a sua mulher, na companhia de outros professores. A felicidade que irradiava com a campanha política em que estava mergulhado dava-lhe um novo rosto: para quem já tinha desempenhado muitos cargos públicos, parecia uma nova vida, sem dúvida muito distante de um austero Ministro das Finanças ou Presidente do Tribunal de Contas. Mas estar no meio do povo parecia ser uma experiência batalhas do passado, nomeadamente as da liberdade de ensinar e de aprender, pareciam estar ganhas. Mas a lição deste nosso mestre é a de que estas guerras nunca estão concluídas, porque os seus inimigos ressurgem a cada passo com novas roupagens e, por isso, exigem o contínuo comprometimento das novas gerações.

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\\ [António de Sousa Franco] Guiou-se, sem tergiversar, por critérios sólidos de qualidade, liberdade e universalidade: não contemporizava em matéria de rigor académico, pugnou por um ensino livre e plural e procurou alargar o acesso à educação como um bem essencial à disposição de

\\Antóniotodos.GuterresAntónioLuciano de Sousa Franco foi um dos mais ilustres portugueses da sua geração, que se distinguiu a vários e importantes títulos, sendo um deles, a juízo de quem escreve, o da destacada defesa, cristalina e exigente, dos direitos e liberdades de educação (…). Esta sua honrosa batalha bem merece ser comemorada, e daí o grande mérito deste livro, reunindo os seus escritos sobre tão magna questão. Mário Pinto \\ Em António de Sousa Franco conjugavam-se, harmoniosamente, o cristão convicto, bem formado e informado e, por isso, comprometido na ação concreta por uma sociedade mais justa; o homem de cultura, em diálogo com o mundo moderno; o universitário profundo e brilhante, com altas qualidades científicas e pedagógicas (...); o servidor da “res publica”, assumindo com competência, sentido de interesse público e rigor todos os cargos para que era chamado. Jorge Miranda \\ [António de Sousa Franco] Escreveu longamente sobre problemas relacionados com a educação e sobretudo sobre um tema que muito o preocupou, o da “liberdade de ensinar e aprender”, a que dedicou uma atenção muito especial, particularmente no período da sua história recente em que o país esteve próximo de ver comprometido o seu caminho para o estabelecimento de uma democracia liberal como a que temos nos dias de Eduardohoje.Marçal Grilo \\ É assim muito clara a posição de princípio assumida por Sousa Franco: a liberdade de ensino e as condições concretas para a sua realização obrigam a entender que estamos perante uma liberdade, centrada na dignidade humana, que ou é social ou deixa de ser, pura e simplesmente, Guilhermeliberdade. d’Oliveira Martins \\ As grandes batalhas do passado, nomeadamente as da liberdade de ensinar e de aprender, pareciam estar ganhas. Mas a lição deste nosso mestre [António de Sousa Franco] é a de que estas guerras nunca estão concluídas, porque os seus inimigos ressurgem a cada passo com novas roupagens e, por isso, exigem o contínuo comprometimento das novas Pedrogerações.Barbas Homem

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