Os Que Sentem e os Que Pensam

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aceitar-se como estando na base das fontes da vida, estas fontes estavam muito próximas e o homem poderia alterá-las e conduzi-las a seu belo prazer para os fins que mais lhe interessassem. E teríamos criaturas como temos cenouras ou frondosos báobás! Pensei no néscio orgulho dos homens e não pude deixar de sorrir… Enquanto sorria, pus-me a desenhar no chão um cão famélico ladrando à lua que corajosos cientistas lhe roubavam – uma fraude e um prodígio. E fiquei hesitante, sem saber dar ao cão a intenção pela qual ele ladrava: se pelo primeiro asserto ou pelo segundo. Entretanto o meu sorriso desvanecia-se, contrariado por um grupo de internados que irrompia de uma álea do jardim numa gritaria de pequenos suínos, perseguindo um deles que, à frente, se esforçava por escapar-lhes. Quando me viu, parou a uma pequena distância, decerto confiante na protecção que eu poderia dar-lhe. De repente todos o rodearam. Percebi que, naquele momento, ele era a vítima do grupo. Uns do mesmo tamanho, outros maiores do que ele, mais possantes, todos o apupavam, beliscavam, massacrando-o com palavrinhas sujas, vindas vindas do calão infantil que se empregaria no hospício. O perseguido respondia mas sem usar palavras viscosas, parecendo orientar a sua conduta mais pela natureza do carácter do que por amedrontamento. Tal passividade exasperava o ímpeto do bando. Cercavam-no como felinos. Alguns mais atrevidos começaram a esbofeteá-lo. Vi-o vermelho, as faces pálidas a afoguearem-se, num galope do seu sangue infantil. Levantei-me para intervir. O grupo afastou-se. Caminhando devagar, com os olhos no chão, envergonhado mas digno, o pequeno rapaz veio sentar-se num banco próximo do meu. Ali se deixou ficar muito calado, recolhido, indiferente à ameaça dos outros. De novo sentado, a seguir com interesse o desenrolar da escaramuça, comecei a observá-lo, a olhá-lo com curiosidade, com amor. Pequeno homem muito metido em si. Em que pensaria ele, com que sonharia ele? O seu futuro estava a nascer naquele momento, a tomar forma, directizes, num rebuliço de forças em embrião que lhe escaldavam o cérebro. Ai dele se, por qualquer desvio, não soubesse entender as vozes que lhe vinham de longe e seladas até então nas camadas misteriosas da sua carne onde o seu destino se inscrevia! Notei que estremecia e que mudava de cor: do afogueado para o branco glácido. Em que mundo cristalino ou obscuro se mergulhavam as raízes do seu pensamento incipiente? Meditando nisso, acompanhei-o então numa longa viagem através do infinito do tempo até às fontes do ser, onde os princípios da origem determinam o risco geométrico e irreversível do que vai existir. Alguma coisa estava a modificar-se nele. Decerto. A pouco e pouco pareceu-me sentir que tudo o que nele era obscuridade e indecisão se animava, falava. Muito dentro dele, não por nenhum impulso mecânico e racional, mas por uma ruptura inesperada daquilo que jazia no depósito misterioso da sua alma, uma forte explosão o abalava, criando nele as reacções imediatas com que devia restabelecer o prestígio da sua ainda mal definida honradez humana. Os companheiros, encorajados pela sua inércia, tinham-se aproximado de novo, a desafiá-lo com impropérios vexatórios: - Diz quem é o teu pai… - Diz! - E como se chama a tua mãe… Foi então que os seus nervos se retesaram. Muitas vezes as chufas dos outros rapazes o tinham conduzido a esse escuro caminho onde o seu coração abafava sem resposta. Sabia bem que não era como os outros, que tinham pais, irmãos, família, que vinham vê-los, falar com eles e dar-lhes o calor dos abraços e dos beijos – dádivas que ele ignorava, que nunca tinha recebido. O amor não se aprende, nasce. E nasce com o


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