Os Que Sentem e os Que Pensam

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começaram, pois, uma carreira pelo mundo em que cada um transportava consigo sentimentos de sinal diferente: ele, com o ardor novo de descobrir cidades e paisagens; ela, rebatida de tédio de rever lugares e gentes a que a ligava mais o seu cansaço que a sua curiosidade. Porque colocar-se no espectáculo do mundo a rever o que já foi visto, pode não ser uma novidade ou um prazer, chegando por vezes a produzir um estado de alma em que se infundem tristeza ou uma decepção inenarrável. Os aspectos da terra variam segundo os nossos olhos e, sobretudo, segundo o estado do nosso coração. E nela o coração recusava-se às pulsações excitantes. Batia sereno, medido, alimentado secretamente pelas recordações do cérebro, que constantemente lhe falavam do seu hediondo mal interior. Ela não era feliz. Cheia de recordações que eram nela, pior que uma chaga física, uma chaga moral, casou-se precipitadamente com o primeiro homem em que os seus pais se compraziam, mas muito mais para fugir do que ela, consigo própria, chamava «o vespeiro de Espanha», do que por um impulso exuberante do seu coração de rapariga. Ora, a sensibilidade da mulher é uma substância frágil em que mordem fundo, à maneira de roedores esfaimados, as faltas graves da carne. No seu caso, a túrbida violência de que fora vítima tornou-se um mal secreto que a moía por dentro gritando o seu horror ao homem e considerando-se mais como objecto de repulsa que de paixão. O próprio marido não escapava ao flagelamento de um tal conceito e, sem atinar com as causas dos seus repúdios, estava sempre pronto a estender-lhe os braços, no afã incansável de reconquistá-la. - Não és feliz comigo? - Decerto. Mas porque não será feliz o homem consigo próprio? - O que dizes parece uma fuga ao nosso amor! - Só isso é pouco. - Mas há mais! É uma fuga ao acto para o qual nos casámos… - Nesse caso, dás-me um argumento. - Qual? - O da esterilidade desse acto, entre nós… - E será minha a culpa? - Eu ponho toda a minha vontade nesse acto! Deste diálogo inquietante passavam muitas vezes a uma discussão frenética, vigorosa, que somente se acalmavam no entusiasmo neutro das recepções e jantares diplomáticos a que, obrigatoriamente, eram convidados. E alguns anos decorreram. Madura de corpo e de espírito, os sentimentos desordenados da juventude foram tomando coesão. E o que era até ali, perante a simples vista do homem, uma obsessão destruidora, converteu-se num objectivo lúcido que totalmente a empolgava: ter um filho! Ele, o varão, o inimigo, o aniquilador insensível da sua castidade, tinha que pagar-lhe o débito em aberto e a forma que ela encontrava mais coerente e menos comprometida era a de dar-lhe um filho. Nessa carne da sua carne ela mataria a sua sede de amar, faria calar a sofreguidão dos arrebatamentos apaixonados que a devoravam e que nunca tinham encontrado ocasião para se saciar. Fora muitas vezes surpreendida pelo marido a observar-se, nua, diante do grande espelho do quarto de vestir, examinando as ancas, palpando o ventre, a arder na ansiedade de prognosticar a possibilidade de uma maternidade que tanto, tanto desejava! Não procurava os médicos porque não admitia que as mãos do homem tocassem a intimidade do seu corpo, mas teimava sempre em concluir, num raio de esperança que a deslumbrava: - Mas eu posso ser mãe. A culpa não é minha, a culpa não é minha!


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