Perigos de uma "história única" e a reconquista do paraíso

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manutenção da sua identidade é mais que estética: é uma forma de resistência e resiliência”, afirma Ribeiro. “Ao falar de apropriação cultural, estamos questionando um ramo dessa árvore do racismo estrutural que atinge diversos povos não brancos, comumente criticados, perseguidos e massacrados por sua identidade.” Para Suzane Jardim, a reprodução de símbolos culturais em escala industrial carrega o agravante de esvaziar os movimentos sociais: “Os símbolos estão lá. Podem até passar uma falsa mensagem de aceitação e de paz entre

os povos, mas a exclusão do negro na hora do registro de sua própria história reforça uma ideologia já velha, na qual o Brasil é o país da miscigenação e do bom convívio entre as raças desde que o negro permaneça escondido e sem oportunidades reais dentro do sistema.” Fiscalizar “quem está usando o quê” nunca foi um real foco da luta antirracista, segundo Jardim. Esta continua focada no extermínio da juventude negra, no encarceramento em massa de sua população, na guerra às drogas e no acesso à Universidade, elenca Borges. No entanto, ela afirma que o

caso da curitibana Thuane Cordeiro foi ilustrativo, já que evidenciou a maneira como as “dinâmicas da apropriação e da manutenção da desigualdade continuam sendo mantidas”. “Grandes jornais e plataformas ­online o noticiaram assumindo a veracidade da história e o fazendo em tom de denúncia contra a atitude ‘radical’ dos negros brasileiros”, critica. “Mas casos de racismo envolvendo desconhecidos são denunciados diariamente sem tomar esse tipo de proporção.”

PARRA, Nathalia; POMPERMAIER, Paulo Henrique. Identidade e apropriação cultural. Revista Cult, São Paulo, 22 fev. 2017. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/identidade-e-apropriacao-cultural/>. Acesso em: 29 set. 2017.

Diálogo aberto Perigos de uma “história única” e a reconquista do paraíso e sobre como tais visões são reflexos das estruturas de poder – estruturas que, no exercício da dominação, contam versões únicas, repetidamente, sobre o que é a África e, dessa forma, tornam o continente um lugar de trevas, guerras inúteis, doenças, incivilização e pessoas incompreensíveis.

No fim das contas, isso ensina que pessoas são extremamente impressionáveis e vulneráveis frente a uma história. Histórias “únicas” são filhas da dominação cultural de povos que submetem outros sob um regime de costumes que elimina a dignidade das tradições subjugadas para imprimir um ANGELA WEISS / AFP

Em julho de 2009, a romancista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (1977-) realizou uma palestra no TED Conference. TED, acrônimo para tecnologia, entretenimento e design, é uma série de conferências organizadas pela Sapling Foundation, uma fundação estadunidense sem fins lucrativos que visa a disseminar ideias pelo mundo. Esse trabalho ocorre por meio da gravação de vídeos com palestrantes de diversas áreas, que são amplamente divulgados em plataformas digitais. Um dos diferenciais do conteúdo apresentado por Chimamanda, na ocasião, foi o fato de que seus comentários apontaram sabiamente para as complexidades de uma dominação cultural que ocorre na atualidade. A autora, inclusive, tem se tornado cada dia mais popular por escrever, ensinar e militar em favor de minorias. Chimamanda intitulou sua explanação de O perigo de uma única história. (disponível em: <www.youtube.com/ watch?v=wQk17RPuhW8>, acesso em: 29 set. 2017). Durante quase 19 minutos, ela fala sobre visões absurdas que o Ocidente alimenta sobre a África

A escritora Chimamanda Ngozi Adichie durante evento em Nova York, EUA, em 5 de abril de 2017.

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Cultura e identidade cultural Não existem definições absolutas para o termo cultura. As muitas ciências utilizam a palavra para diferentes situações e práticas, mas se guiam por algumas linhas comuns. Primeiramente, o fato de que cultura origina-se do latim e remete ao sentido de cultivo. Cultivar é plantar, adubar, colher. Ao transpor essa ideia para o universo do comportamento humano, tem-se algo similar. Cultura é cultivo das múltiplas relações de aprendizado que se adubam sob a influência do meio ambiente e das relações humanas e geográficas. Os frutos colhidos são as formas padronizadas de explicar e entender o mundo. É uma espécie de tecido, sempre inacabado, mutante e dinâmico. Os fios que formam esse tecido são as pessoas que habitam o planeta. Por sua vez, há bordados diferentes que se espalham por toda a extensão do tecido. Esses bordados nascem de fios costurados por similaridades físicas,

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hábitos, tradições. Daí, nasce a identidade cultural, que é a percepção que os indivíduos têm de pertencer a um grupo específico de fios – grupo que também se une ao redor de língua, artes, religião, festas, mecanismos de trabalho etc. Quando as fronteiras territoriais e culturais eram muito mais nítidas, até mesmo rígidas, essa identidade cultural foi muitas vezes mais imposta que construída. A época dos impérios expansionistas, na Antiguidade, seguindo-se às Grandes Navegações e à empreitada colonialista europeia, por exemplo, representam projetos de dominação cultural. Nesses contextos, a cultura dominante (conquistadora) impunha seu comportamento e suas tradições a um grupo conquistado que possuía uma cultura considerada inferior. Essa dominação e imposição segregou grupos e ensinou uma postura de desprezo às identidades culturais locais. Principalmente porque ao deter o poder, os conquistadores se empenharam em contar exaustivamente uma única versão de mundo, uma única história, uma única possibilidade de comportamento aceitável. Com isso, transformou a mera possibilidade da existência de outras versões em mitos a serem ignorados. E Hi-Story/Alamy/Latinstock

caráter padronizador em favor do seu oposto, ou seja, das tradições de quem domina. Como a história é contada, por quem, quando e em quantas versões: tudo isso depende do poder. Tal poder não está relacionado apenas à habilidade e oportunidade de contar uma história, mas também à capacidade de transformar essa história na versão definitiva. Falar de apropriação cultural, de símbolos descontextualizados, de hierarquização e inferiorização cultural, das consequências da dominação, é falar sobre sistemas político-midiatizados que controlam o fluxo e a importância das influências étnico-culturais entre os povos por meio do capital. O principal ponto ao tratar do tema é localizar conceitos. Tanto quanto identificar comportamentos que podem, de fato, ser relacionados à questão. Para começar, o que é cultura? E identidade cultural? O que ambas têm a ver com multiculturalismo, miscigenação, globalização, transculturação? Onde entra capitalismo, exploração, dominação, opressão, segregação, desvalorização? E a dita apropriação?

Propaganda do sabão Lautz Bro’os and Co’s, publicada em Buffalo, EUA, século XIX. Segundo a ilustração, o sabão é tão eficiente que embranquece um negro.

é dessa segregação que nasce o que se pode chamar de apropriação. Na contemporaneidade, por conta do avanço tecnológico, capitalista e dos recentes conflitos, o trânsito de informações e de pessoas vem modificando de forma inevitável os mapas culturais. Esses mapas, que se tornam tão flexíveis quanto os indivíduos, transformam essa identidade cultural em algo bastante abstrato.

Apropriação, miscigenação, expropriação Em um mundo no qual pessoas, alimentos, informações e tecnologias sempre circularam, entretanto em quantidades e velocidades diferentes, não é possível falar em pureza cultural. Todas as identidades culturais se alimentaram (e se alimentam) dos trânsitos, do tempo, dos espaços. Os encontros entre culturas são naturais e impossíveis de deter; são até mesmo imprescindíveis para o desenvolvimento humano. Esse aspecto possui muitas nuances, pois essa relação de troca pode ocorrer por meio de uma subjugação de uma cultura sob a outra ou não. Antes de falar exatamente da apropriação, é interessante abordar quatro modalidades possíveis de encontros entre culturas: intercâmbio cultural, dominância cultural, transculturação e exploração cultural. O intercâmbio cultural deve ser entendido como troca de costumes entre povos. Cada um absorve um aspecto do outro sem que haja, nesse caso, nenhum tipo de dano, submissão ou desvalorização. É apenas um encontro de ampliação. A transculturação está relacionada aos conceitos de miscigenação, multiculturalismo, fusão e hibridismo entre elementos de duas ou mais culturas. Nesse caso, as culturas mesclam-se e resignificam práticas. Parte da sociedade acredita que o Brasil seja um exemplo desse tipo de mestiçagem. A dominância cultural refere-se a situações em que há um processo de hierarquização das culturas no momento em que elas se encontram. Uma das


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solitária na multidão, usando um turbante não significa, necessariamente, nada. Essa discussão não deve reduzir-se a questões individuais. O problema está na estrutura do sistema que organiza a sociedade em questão e tem relação com poder. Aqueles que detêm o poder são também aqueles que contam as histórias da cultura. E são aqueles com a capacidade para transformar suas versões em verdades absolutas, criando estereótipos relacionados à cultura dominada. Tais estereótipos não são apenas mentirosos, mas também depreciativos e estabelecem símbolos vazios. Esse é o problema; esse é o perigo! Portanto, a indignação e o combate à apropriação não devem ser dirigidos a indivíduos isoladamente, mas a um sistema político-midiatizado. Todos os povos são, inegavelmente, filhos de processos dinâmicos de troca e transformação, e os brasileiros, inclusive, costumam identificar-se com a ideia de miscigenação. Ainda assim, trocas, trânsitos, empréstimos, Daniel-Alvarez / shutterstock.com

comerciais. Utilizá-las com fins capitalistas, fazendo delas objeto de desejo e consumo, concedendo-lhes status de padrão, quando em um passado historicamente conhecido tais práticas foram segregadas. Portanto, em uma visão simplista, pode-se dizer que a apropriação cultural acontece quando um grupo marginalizado, excluído, tem sua cultura resgatada e explorada economicamente pelo grupo que o dominou. No processo de apropriação cultural, a identidade do marginalizado é resgatada (as tradições religiosas, os costumes ditados pela sua relação com o entorno ambiental, as manifestações artísticas que o representam social e politicamente) esvaziando-a de seu verdadeiro significado, retirando-lhe, dessa forma, sua capacidade de se afirmar como prática culturamente digna, etnicamente forte. Então não é certo usar turbante, dreadlocks, “terceiro olho”, estampas tribais? Bem, a discussão vai muito além desses aspectos quando analisados individualmente. Uma pessoa,

Pietro D’Aprano/Getty Images

culturas subjuga a outra (ideológica ou geograficamente), e a que foi subjugada absorve os costumes da dominante. O modo de vida ocidental, por exemplo, foi um processo extenso de dominação protagonizado por duas das grandes culturas da Antiguidade: a grega e a romana. A exploração cultural é a modalidade mais perigosa. Ocorre quando, depois de um encontro de dominação cultural e consequente hierarquização, a cultura dominante exila, segrega os costumes da cultura dominada, instituindo como padrão socialmente aceito apenas suas próprias práticas. Tempos depois, pode acontecer de a dominante passar a utilizar elementos da cultura que subordinou de forma banalizada. Ela ressuscita alguns costumes ou símbolos sem que seus significados também sejam revividos. Isso é apropriação cultural. Apropriar-se é retomar, fazer ressurgir práticas bastante específicas dentro de grupos culturalmente minoritários e torná-las (repentinamente) aceitáveis,

Modelo usando turbante durante desfile da marca italiana Mulher afrodescendente usando turbante em Salvador, Bahia, 9 de dezembro Gucci, Florença, Itália, 29 de maio de 2017. de 2012.

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resignificações e mestiçagens só podem ser encarados de maneira positiva se amparados por respeito e pela devida reflexão histórica. Você pode, sim, usar um dreadlock. Mas ao se apossar desse aparato estético, faça-o com engajamento, com consciência, reconhecendo o menosprezo do passado em relação à cultura afrodescendente e assumindo essa prática com a intenção de tributar-lhe seu devido valor cultural. Afinal, a história do mundo, queira ou não queira, é esta: uma história de choque e transformação cultural, de apropriação indébita, de menosprezo e segregação. Talvez o ser humano só tenha chegado até aqui por causa desse dinamismo (quase sempre desequilibrado) da cultura que os permite aprender, mudar, aceitar, evoluir. Isso não desresponsabiliza os povos quanto aos danos identitários culturalmente inflingidos, nem os desobriga de sua dívida histórica em relação aos grupos violados.

Como sabemos, no Brasil e em muitos outros países, houve e há marginalização, opressão, segregação. Ainda mais aqui, fruto de uma colonização ocidental de exploração, herdeira de uma mal-entendida superioridade cultural europeia. Como então utilizar símbolos de culturas subjugadas sem cair na postura da banalização e do desrespeito? Como mudar uma visão estereotipada desses símbolos quando são comercializados vulgar e indiscriminadamente? É preciso começar a contar as histórias (novas histórias, em outras versões) desses símbolos culturais. Histórias importam. Muitas histórias subvertem. Ainda que as versões “únicas” impostas pela dominação cultural ocidental tenham expropriado o valor e a dignidade dessas práticas culturais, são o engajamento, o acesso à informação e as novas histórias que podem ajudar a devolver o que foi perdido. Rejeitar a versão “única”, definitiva, é, nas palavras de

Chimamanda, “recuperar um tipo de paraíso”.

Andréia Moura é jornalista, mestre em Divulgação Científica e Cultural pela Unicamp e doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela USP. Atua como docente em cursos de Jornalismo, Publicidade e Rádio TV no interior de São Paulo. Suas pesquisas e interesses se voltam para a área das visualidades. Estuda quadrinhos, cinema, artes plásticas em suas muitas relações entre si e com os sujeitos sociais e a cultura.

Sua opinião 1. Analise os diversos tipos de relação entre as culturas e discorra sobre seus benefícios e malefícios. 2. Relacione a questão da apropriação cultural com as estruturas de poder. 3. Quando se fala de apropriação cultural, a questão, quase sempre, se liga ao tema do racismo e aos movimentos afrodescendentes. É possivel falar de comportamentos de apropriação relacionados a outras culturas? Se sim, exemplifique.

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