BRASIGUAIOS - A mestiçagem brasileira

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1 A mes•çagem brasiguaia

Analía Roa Monsalve Fernanda Mar•nez



encontros A mestiçagem brasiguaia ANALÍA ROA MONSALVE FERNANDA MARTÍNEZ

1a. Edição

Engenheiro Coelho

Edição de autor 2020


encontros - A mestiçagem brasiguaia ©Analía Roa Monsalve e Fernanda Martínez 2020 Edição de autor

Projeto desenvolvido para Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado como requisito para obtenção do Diploma de Bacharel em Jornalismo pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo - Unasp Campus Engenheiro Coelho

ORIENTAÇÃO: Ruben Holdorf CAPA: Jonathas Luz PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:

www.agenciaeta.com andreiamoura@agenciaeta.com @agenciaeta IMPRESSÃO E ENCADERNAÇÃO ARTESANAL:


encontros A mestiçagem brasiguaia ANALÍA ROA MONSALVE FERNANDA MARTÍNEZ



A nuestras familias, por el apoyo y soporte desde el primer día. A nuestros amigos, por ser nuestro refugio y alegría en este largo proceso académico. A nuestros entrevistados, por compartir sus experiencias y conocimientos. A Danillo y David, por estar ahí para nosotras. A nuestros profesores y orientadores, Andréia Moura y Ruben Holdorf, por guiarnos a la meta de terminar este libro.



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12 Desde o final do século 20, a indústria editorial brasileira cede cada vez mais espaço para a produção de livros-reportagem. Isso acontece em decorrência da necessidade de exposição de temas cujas demandas requerem aprofundamento nas investigações. Como muitas linhas editoriais discordam de determinados assuntos explorados e apurados, compete aos jornalistas tentarem alcançar seus públicos por meio da literatura. Coube ao repórter Euclides da Cunha, de O Estado de S. Paulo, começar a explorar essa vertente em “Os sertões”, publicado em 1902. No exterior, o norte-americano John Reed se tornou um referencial ao escrever “Insurgent Mexico” em 1910. Quatro décadas adiante, Truman Capote inaugurava o gênero new journalism, cuja versão latino-americana testimonio surgiu com o argentino Rodolfo Walsh no mesmo período, recebendo mais impulso com o realismo mágico do colombiano Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura de 1982. No contexto do Unasp, “Gravando!”, de Fabiana Amaral (Bertotti, 2004), desafiou o modelo tradicional de livro-reportagem ao inserir um elemento fictício, o narrador. Todavia, variados estilos emergem de diversas obras. Mino Carta, em “O Castelo de Âmbar”, empregou o gênero ficcional para relatar a saga da Editora Abril. O próprio García Márquez pintou com tons irreais “Crônica de uma morte anunciada”, acrescentando inclusive fatos e personagens à história descrita e vivenciada pelo autor.


13 As paraguaias Analía Roa e Fernanda Martínez também optaram pelo recurso ficcional a fim de detalhar com propriedade a realidade dos brasiguaios. Para tanto, elas se posicionaram como duas personagens do enredo, sem tirar o mérito do resgate histórico da gênese paraguaia desde os tempos coloniais, passando pela Guerra do Paraguai, a ditadura de Alfredo Stroessner e a migração brasileira daqueles que receberiam o rótulo de “brasiguaios”. Ao utilizar o recurso literário da ficção – a repórter e a socióloga –, as informações levantadas e ajustadas à narrativa e aos diálogos se tornaram mais claras e compreensíveis. Ambas fizeram a “lição de casa” ao consultar fontes especializadas, fontes testemunhais da história recente dos brasiguaios, fontes documentais – em livros, pesquisas acadêmicas e matérias jornalísticas. Com isso, a definição de “mestiçagem” se torna muito mais próxima do entendimento dos leitores. A quarentena forçada pelos governantes impediu o deslocamento das autoras, mas não o contato e o acesso às fontes. O recurso ficcional as estimulou à criativa construção deste livro e à estruturação de um modelo ousado para os padrões convencionais da literatura jornalística.

Orientador




16 Segunda-feira, às 6h30 da manhã, estou no ônibus a caminho do trabalho que, como sempre, segue lotado. A moça de sempre veste o uniforme do banco; o cara dos fones de ouvido que balança a cabeça ao som da música; e a minha vizinha que é enfermeira no Hospital Militar, dentre outros. Eu me vesti com a minha nova camisa, que é o uniforme da redação, com a minhas velhas calças pretas e sapatilhas combinadas. Faz pouco tempo que comecei a minha carreira dentro do jornalismo, mas já tive contato com muitas histórias de vida. Algumas curiosas, outras tristes, mas também algumas muito felizes. Uma coisa que caracteriza a muitos jornalistas é a curiosidade, e eu não fico fora desse grupo. Para mim, ser repórter se assemelha ao narrador dos livros de contos, história ou até de ciência. Dependendo da necessidade, a gente muda de área, ainda mais numa redação pequena como a de Marandu, que no guarani significa “notícia”, pela qual fui contratada há um mês. Desço do ônibus e rumo direto ao quiosque da dona Maria para comprar uma chipa e um cocido. Ela está sempre no mesmo lugar com seu avental, escutando as notícias no rádio. Nesse pouco tempo, ela já sabe o meu horário e meu pedido. Assim que chego, só falo “¡Buen día! ¡Gracias!” e continuo meu caminho até a esquina, onde fica meu trabalho. O escritório se situa no centro de Asunción, que é uma mistura de prédios novos, outros reformados e velhas casas de estilo colonial. As ruas se encontram sempre cheias de carros estacionados. Diante disso, eu sempre recomendo vir para cá de ônibus, táxi ou caminhando. Não vale a pena o estresse de procurar estacionamento.


17 Como sempre, sou a primeira a chegar. Ligo as luzes e abro as janelas, para depois sentar tranquila no meu lugar e ver o que temos para o dia. O e-mail do chefe de redação, Luís, já foi enviado para mim às 5h30 da manhã, algo normal no caso dele que trabalha até quando dorme. Ele pediu que eu pesquisasse sobre os brasiguaios que, até onde sei, são os donos das terras localizadas na fronteira. A pauta visa mostrar como eles chegaram ao Paraguai e como essa comunidade cresce. Vou ter de fazer uma grande reportagem. Desde pequena tive muito interesse em saber das coisas e ser a primeira a responder quando alguém perto de mim tinha alguma dúvida. Na escola, tinha facilidade nas aulas de História, onde a gente aprendia sobre o nosso país, Paraguai, e as lutas enfrentadas. Um fato sempre interessante para mim é que a independência foi levada adiante por uns jovens que conseguiram libertar o país da coroa espanhola de forma pacífica, sem nenhuma morte a lamentar em 1811. Com o decorrer do tempo, o país cresceu e se desenvolveu em riquezas, trabalhos e tecnologia. Mas as relações com os países vizinhos não eram as melhores. Conflitos de terras e de interesses levaram a Argentina, Uruguai e Brasil a formar uma aliança para acabar com o Paraguai, e o conseguiram. Essa ferida se aprofundou muito para meus antepassados, cujas sequelas até agora surgem em distintas conversas e é até um assunto sensível de tratar nos encontros com os países envolvidos nesse massacre conhecido como Guerra do Paraguai1. Depois de perder mais da metade dos homens, incluindo crianças, o país foi aos poucos tentando se recuperar, mas décadas depois 1

Maior conflito armado internacional ocorrido na América do Sul, de 1864 a 1870.


18 outra guerra chegou tentando levar ainda mais terras. La guerra del Chaco ainda é um fato recente na cabeça de muitos de nós, já que temos bisavôs ou até avôs que defenderam com êxito a pátria frente às tropas bolivianas. Um fato da história que até hoje traz consequências é a ditadura de Alfredo Stroessner. Ele governou o país de 1954 a 1989 sob um regime militar autoritário e extremamente rígido. Para os jornalistas da época foi um período difícil, já que todas as publicações deveriam estar em acordo ao pensamento stronista. O jornal ABC Color, por exemplo, teve de fechar as portas e deixar de circular, assim como a Rádio Ñanduti. A base do governo de Stroessner era o nacionalismo, e tudo o que ele fazia era “para o bem da pátria”. Muitos de seus adeptos, que ainda o exaltam e chamam de “Mi general”, ressaltam todas as obras construídas naquela época - para os 35 anos como presidente, poderia ter feito mais - e deixam de lado os terríveis crimes contra os direitos humanos dos opositores, torturados, abusados de forma física, psíquica e sexual, assim como também assassinados e desaparecidos por meio da Operação Condor, aliança pela qual os governos militares da América do Sul buscavam reprimir a oposição. Pensei em todos esses eventos porque tentei encontrar em uma linha do tempo mental a chegada desses estrangeiros ao país, mas não tinha nada. Decidi pesquisar sobre a quantidade de brasileiros que moram no Paraguai e me deparei com uma matéria do jornal Última Hora de 2018, relatando os registros da Dirección del Gabinete de Migraciones2. A maior parte de estrangeiros que moram de forma permanente ou temporária chegou do Brasil, alcançando o total de 201.352. 2

Diretoria do Gabinete de Migração do Paraguai.


19 Porém, também deixa claro que esse número não representa a realidade, por que muitos desses brasileiros ingressaram no país de forma ilegal. A presença desses brasileiros não é tão visível aqui na capital do país. Acredito que seja pelo fato de que a maioria deles se dedicar ao agronegócio nas áreas rurais. Ao olhar para todo esse histórico de ditadura e repressão das liberdades, poderíamos pensar que nenhum estrangeiro gostaria de escolher o Paraguai como lar, mas incrivelmente isso aconteceu graças a uma estratégia que obviamente trouxe muito lucro para os governantes daquele tempo. Em 1963, o governo nacional promoveu uma reforma agrária que permitia a venda de terras paraguaias a estrangeiros nas regiões fronteiriças. Stroessner aproveitou a Marcha ao Oeste3, promovida pelo governo de Getúlio Vargas em 1940, e fez a sua versão paraguaia do mesmo projeto, chamando a atenção dos brasileiros por oferecer terras a um valor muito mais acessível. Se eu tivesse sido uma camponesa brasileira naquela época, aproveitaria essa oportunidade. Nossas terras são muito férteis, o que pode garantir um bom futuro para o cultivo. Pesquisei sobre isso o dia todo até o fim do expediente. Fiz meu caminho até minha casa, situada a vinte minutos do Centro, com essa pauta dando voltas na minha cabeça. Ao entrar em casa, vejo a minha avó preparando a janta, como de costume, cardápio que contemplaria empanadas de carne. – Llegaste! Como foi o dia? – Cansativo, vó. Vou ter que fazer uma reportagem sobre os brasiguaios. Nem sei onde vou achar essas pessoas. Nem internet devem 3

Projeto criado com o objetivo de promover o desenvolvimento populacional e a integração econômica das Regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil.


20 ter. Você lembra de como foi a época na qual os brasileiros passaram a fronteira durante a ditadura? – Mas é claro que eu lembro! Eu morava em La Paloma com a minha tia. Era um desfile de caminhões, dos mais simples até os mais modernos que chegavam com a mudança, com as coisas sujas por conta da terra vermelha do caminho. Essa região era puro mato! Enquanto ela falava, eu imaginava a Ponte da Amizade cheia de gente chegando à busca de progresso. Ela me conta que, na maioria dos casos, eram os pais de família os primeiros a vir para comprar as terras e construir as casas de madeira, para depois buscar a esposa e os filhos. Algumas famílias falavam o português, mas tinham outras que só se comunicavam em alemão ou até italiano, num lugar habitado por nativos guaranis. Ela lembra de uma amiga que fez lá naquele tempo. - Você tem que falar com a Fernanda Feliú. Ela foi professora na cidade, e eu sei que ela até escreveu um livro sobre isso. A energia voltou ao meu corpo e comecei a ficar entusiasmada com isso. Afinal de contas, era um fato interessantíssimo que poucas pessoas prestam atenção no país. Com aquela pesquisa que fiz na internet, percebi que existem pessoas até na França estudando os brasiguaios, ao contrário do próprio Paraguai, com pouquíssimos trabalhos publicados sobre o tema. Com isso, vejo uma das consequências da ditadura… ainda continuamos com um volume baixo em pesquisas e sem conseguir entender os acontecimentos que formam parte da nossa história. Não culpo os profissionais da área por que muito disso depende do suporte do governo, que quase nunca chega. Durante a ditadura, a educação se viu fortemente afetada, já que para o governo não era conveniente ter um povo com muito estudo. Se você naquela época queria ter estudos mais aprofundados, com certeza tinha que preparar


21 o passaporte e juntar dinheiro para viajar ao exterior em busca desse crescimento acadêmico. Em 1973, Brasil e Paraguai assinaram o Tratado de Itaipu, dando início à segunda maior hidrelétrica do mundo atual. Itaipu, que no tupi-guarani significa “pedra na qual a água faz barulho”, também teve sua contribuição na migração de brasileiros ao Paraguai, já que, com a construção da represa, algumas cidades ficaram sob as águas do lago formado posteriormente, expulsando os que ali moravam. Dessa maneira, a população brasileira cresceu e se assentou nos Departamentos de Alto Paraná, Canindeyú e Amambay. Com toda essa informação coletada, fiz o contato com Fernanda Feliú, autora do livro “Brasiguayos: ¿Bandeirantes Modernos?”. Na entrevista, ela relembrou a sua experiência morando em La Paloma, no Departamento de Canindeyú, seu lar desde 27 de fevereiro de 1977. Sim, ela lembra com clareza da data quando empreendeu viagem para aquele lugar. Ela foi com o marido e os três filhos pequenos, com um caminhão e uma camionete, com todos os móveis e roupas que faziam parte da mudança. – Com o que você se encontrou ao chegar lá? - perguntei curiosa. – Foi um choque, por que eu não sabia se estava no Brasil ou no Paraguai. Todo mundo falava português. As únicas emissoras de rádio que a gente conseguia escutar eram em português. A gente começou a trabalhar abrindo um almacencito4 e nossos clientes pagavam tudo em cruzeiros - depois em reais. Ninguém pagava em guarani, o que, de certo modo, era mais conveniente para nós. A gente teve de aprender a falar o português para sobreviver, para ter 4

Mercadinho.


22 o que comer. Sempre fomos minoria. A quantidade de brasileiros era devastadora. E, sem querer, eles terminavam impondo tudo, se sentiam em casa. Não sentiam a necessidade de aprender a falar espanhol e muito menos o guarani, no começo. – Qual era a porcentagem de paraguaios que moravam em La Paloma? Como era criar os filhos naquela região? - perguntei imaginando as crianças sem entender nada do que os outros falavam. – Éramos 10% da população mais ou menos. Como lá não tínhamos escolas preparadas para atender as crianças, eu tive de levar meu filho mais velho à cidade vizinha de Puente Kyjhá para estudar. Já no ano seguinte, nós os paraguaios, nos juntamos e abrimos o Liceo Privado5 “Enrique Torrijos Rubio”, que era um sacerdote líder de uma cooperativa agrícola. A gente colocou o nome dele por conveniência, já que era uma figura-chave na cidade, além de ser muito amigo de Stroessner. Para poder ajudar na alfabetização das crianças, diante daquele abandono e falta de interesse do governo, Fernanda fez cursos curtos e oficinas que pudessem prepará-la para ensinar matérias básicas como literatura, dentre outras para os alunos. As professoras eram improvisadas e a própria comunidade se esforçava para educar os menores. O Ministério de Educação só dava a licença para dar aulas, mas não se preocupava em enviar professores especializados ou construir uma escola com uma estrutura adequada para receber os alunos. Para chegar a isso, teve que passar um bom tempo. Nessa questão, a Itaipu Binacional foi uma das instituições apoiadoras da educação, construindo diversas escolas na região. 5

Escola particular.


23 Fernanda conta que, a princípio, o trabalho dos brasileiros se voltava mais para o corte de árvores, e depois para o cultivo de soja. – Era ouvir o rugir dos tratores e das motosserras todo o santo dia. A terra vermelha invadindo tudo a seu passo. Tudo o que era produzido era levado para o Brasil, já que o trajeto para Asunción era impossível, por causa do estado das estradas, assim como também entravam os produtos brasileiros para serem vendidos aqui. Era um contrabando de ida e volta. Os responsáveis de cuidar da fronteira e a nossa soberania, como os militares, Marinha e os funcionários do Setor de Migrações, só enchiam o bolso de dinheiro. Essa região era terra de ninguém. Fiquei impressionada com tudo o que Fernanda descrevia. Realmente eles eram estrangeiros no seu próprio país. Tiveram de aprender uma nova língua para sobreviver e educar os filhos. Ela destaca que também fizeram bons amigos. Lembra também que alguns brasileiros decidiram comprar as terras e criar raízes em La Paloma, diferentes da grande maioria que chegou com o objetivo de trabalhar por um tempo e voltar ao Brasil com o dinheiro arrecadado. Com o tempo, a comunidade cresceu. Cada religião construiu igrejas e templos para receber os fiéis, assim como também diversos clubes esportivos se instalaram. A maioria sem apoio do governo, destacando a autossuficiência dos moradores. Fernanda disse que naquela região não existe discriminação, pois as culturas paraguaia e brasileira se mesclaram totalmente. Nestes tempos de tanta intolerância racial e cultural, tudo isso para mim é quase que uma utopia. – A discriminação está aqui, só em Asunción. - Ela voltou para a capital em 2003, depois do falecimento do marido, mas visita regularmente Canindeyú. - Os habitantes daquela região são na maior parte paraguaios casados com brasileiras e vice-versa. Até na minha família


24 tem! Meu filho está casado com uma brasileira e minhas netas são brasiguaias. Com muitos dessa nova geração nascidos aqui no Paraguai acontece uma espécie de crise de identidade, já que eles se sentem brasileiros e paraguaios ao mesmo tempo. Essa informação fez voar a minha mente. Como é possível que uma pessoa possa ser de dois lugares ao mesmo tempo? Como as culturas e os costumes podem sobreviver e se inter-relacionar assim? – Fernanda, eu preciso conversar com alguma pessoa de lá para conhecer também a visão deles. Você poderia indicar alguns nomes para mim? Se tiver o contato, seria muito melhor. – Claro! Vou te passar agora – disse, enquanto pegava o celular - o contato da Fernanda Martínez. Ela é uma jovem socióloga de Nueva Esperanza, e agora faz um estudo da região. Salvei esse contato no celular, aguardando o momento preciso para ser utilizado. Comecei a pesquisar mais informações e estudos sobre o tema, mas desta vez sobre a cultura. Deparei-me, então, com a dissertação de Mestrado de História “Cultura, identidade e fronteira: transitoriedade Brasil/Paraguai”. Entrei em contato com o autor da obra, Leandro Baller, e marcamos uma entrevista. Nessa conversa, ele diz que desde pequeno teve contato com toda aquela movimentação na fronteira, já que é natural de Santa Helena, Paraná. Com o tempo, ele se mudou para Dourados, Mato Grosso do Sul, trabalhando como professor. – Ao falar de Brasil e Paraguai é quase que inevitável falar sobre a Guerra da Tríplice Aliança. Mas ao falar do fenômeno dos brasiguaios, é possível perceber alguma relação entre esses dois eventos? - Questionei lembrando das milhares de vezes na quais escutei: “Esses brasileiros, ainda depois da guerra, continuam roubando a nossa terra!”


25 – Bom, devemos deixar claro que essa relação, a presença de brasileiros no Paraguai, e vice-versa, sempre existiu. Desde antes de que o Brasil seja Brasil e o Paraguai seja Paraguai. Os guaranis estão em ambos os países com suas diversas tribos. Para o Brasil, essa guerra é mais relevante nas cidades que se encontram perto dessa fronteira e não é levada com tanta consideração em outras regiões do país, enquanto para o Paraguai isso é um tema nacional. Eu descolaria isso dos brasiguaios, porque após a guerra é que se estabelecem os limites, e é a partir desse momento que as questões nacionais acabam aflorando. – Que pontos são possíveis destacar das relações entre o Brasil e o Paraguai e que tenham maior conexão com os brasiguaios? – As aproximações políticas entre os dois países foram muito grandes durante as décadas de 50 e 60 que, pontuando, começa com a construção da Ponte da Amizade que une Ciudad del Este a Foz do Iguaçu; a ligação de uma rodovia que leva diretamente até a capital do país; depois está a construção da Represa de Itaipu, que seria a mais importante. Essa estrutura criada permitia o trânsito de brasileiros e paraguaios. Esses governos militares eram bastante alinhados às ideias de expansão norte-americana, que empurra a população para as fronteiras. Quando as pessoas chegam à fronteira e não veem muitas oportunidades, elas decidem cruzar para o outro lado, que é o Paraguai, com atrativos muito fortes como uma grande vantagem econômica, qualidade nas terras e matas muito densas, úteis para explorar a madeira que vão outorgando benefícios aos estrangeiros com as leis que são reescritas, o que vai chamando a atenção dos que depois chamamos de brasiguaios. – Como esse fluxo de fronteira influenciou ao Brasil? – Os números de migrantes brasileiros registrados não refletem a realidade, já que muitos ingressaram no Paraguai de forma ile-


26 gal, mas ainda assim são números expressivos. Eu sempre trabalhei com uma estimativa de cerca de 500.000 brasileiros, o que é uma quantidade muito grande para um espaço muito localizado. Eu morava em Santa Helena na época em que a ponte ficou pronta. Tinha fila nesse lugar de ônibus e caminhões para passar ao outro lado. Eu lembro muito bem que esse era um debate acalorado na minha casa, porque meus pais são pequenos agricultores. Meu pai falava: “Eu acho que a gente tem que ir para o Paraguai”; e minha mãe respondia: “Não, toda nossa família está aqui.” O que eu acredito que é o que mais deve ser contado, a história das pessoas e famílias ao invés de números, porque envolve educação, saúde e tudo o que envolve a sociedade foram as grandes dificuldades que esses brasileiros tiveram de enfrentar. Esse seria o primeiro ponto. Depois, essa migração também liberou o espaço para os grandes empresários do Sul do Brasil, o que também tem seu impacto nos movimentos de trabalhadores rurais que lutavam pela própria terra. Não podemos deixar de falar dos outros trabalhadores que também formam parte dessa comitiva, como professores, religiosos e até prostitutas. – O que representa o brasiguaio para a história? - Fiz essa pergunta tentando construir um conceito ou definição de quem é brasiguaio. – O brasiguaio, além de ser um sujeito de estudo muito interessante, não é muito reconhecido nem pelo Paraguai e nem pelo Brasil. Ele é um ser fronteiriço por excelência. Essa identidade criada é manipulada em função de um ou de outro objetivo do sujeito. Se para esse brasiguaio é mais conveniente estar no Paraguai, ele vai ter todos os documentos necessários para se relacionar com o Estado, e acontece o mesmo com o Brasil. Ele é ignorado pelos Estados, mas também ele tem muitas ferramentas para superar esse inconveniente. Eu vivo no


27 meio deles, e para mim é extremadamente complexo definir o que é realmente um brasiguaio. A entrevista durou uma hora, mas a quantidade de informação e de questionamentos que invadiram minha cabeça concedia conteúdo para uma semana de entrevista. Leandro é professor universitário de graduação, mestrado e doutorado. Nasceu, cresceu e mora até hoje em uma região fronteiriça. Não obstante ser estrangeiro, conhece muitos detalhes da história do Paraguai como se tivesse a biblioteca nacional dentro dele. Estuda e convive com brasiguaios, mas ainda assim ele disse que definir o brasiguaio é muito difícil. Já é o horário de saída. Durante o caminho em direção do ponto de ônibus procuro no celular o mapa do Paraguai. Ao olhar a região fronteiriça, vejo o Departamento de Canindeyú. Esse é o departamento no qual Fernanda Feliú morou por tanto tempo e que até hoje tem uma pequena parte da família em Katuete, composta pelo filho, nora e netas. Antes de ser uma cidade, esse território, assim como as cidades vizinhas, pertencera à Industrial Paraguaya S.A., empresa exportadora de erva-mate, utilizada para a preparação do tereré, mate e chimarrão. Com o passar do tempo, a empresa decidiu lotear as terras e vender para aqueles primeiros colonos brasileiros que chegaram à região, aproveitando a nova reforma agrária. Atualmente é um dos principais referentes da agricultura e criação de gado do país, sendo a soja e o trigo os principais produtos, assim como também a mandioca, ingrediente indispensável na elaboração de um prato típico paraguaio. Ao continuar a busca de informação, deparei-me com algo que me surpreendeu gratamente, um poema para a cidade que retrata aquilo que Fernanda comentara.


28 Mi Katuete - Juan Barrios Con corazón lleno orgullo vengo a cantarte mi Katueté Lugar querido, lugar precioso donde la gente ovy` aite Hospitalarios y amigables, entre progreso oñemba`apo Canindeyú ya te tiene siempre allá en fondo del corazón Son tus mujeres bellas, hermosas que engalanan tu atardecer Y cual se viste de estrella y luna cuando comienza a anochecer Recuerdos gratos viene en la mente apuraheivo che Katueté Cuando amigos me visitaban para la ronda del tereré De tus arroyos ya no me olvido, en los domingos con Mbaraka Allí reunidos con la familia hetaitemiteko rovy`a En sus orillas cantando polcas, hasta que llegue el ka`aruete Y es por eso que estas estrofas te las dedico mi Katueté Los Brasiguayos trabajan siempre, todos unidos con hermandad Por eso siempre en nuestra ciudad se ve creciendo prosperidad Javy`aiteningo en Katuetè, de ti ya nunca me he de alejar Donde mis hijos y descendientes, aquí en tu tierra han de plantar Si por desgracias en esta vida la muerte un día me ha de llevar Quiero que lo haga el momento que esté cantando en mi ciudad Entre arpegios y melodías, y rasgueando mi Mbaraka Cantando a mi Katuetè querido lugar de ensueño che vy`aha Esse poema simples, mas com muito sentimento, escrito em jopará (mistura entre espanhol e guarani), retrata as características da cidade


29 e da população, o trabalho, o progresso e a colaboração entre os brasiguaios. Faz-me pensar muito em que realmente a gente, o Paraguai, e acredito que também o Brasil, ignoram todo esse fenômeno encontrado a quase 290 quilômetros de Asunción. Ninguém fala de tudo o que eles desenvolveram juntos, trabalhando em busca de um futuro melhor. Com esse pensamento, caí num sono profundo. No dia seguinte, ao chegar à redação, enviei uma mensagem para a socióloga Fernanda Martínez. – Bom dia, Fernanda! Sou Analía Roa, jornalista de Marandu de Asunción. Estou escrevendo uma reportagem sobre os brasiguaios e me comentaram que você está fazendo um estudo sobre isso. Seria possível marcar uma entrevista com você? - enviei para ela. – Olá, Analía! Sim, claro! Mas olha, eu acho que seria muito legal se você conseguisse vir para Nueva Esperanza amanhã. Vamos ter a Fiesta de San Juan, na qual provavelmente você vai ver algumas coisas interessantes para sua reportagem. O que acha? - respondeu amigavelmente alguns minutos depois. Antes de responder, perguntei para o chefe se isso seria possível, e ele afirmou que sim. Eu parecia uma criança pronta para ir à Disney. Do nada eu ia conseguir ver e conhecer tudo o que estudara e escutara. – Acho que isso seria maravilhoso! Onde a encontro? – No portão do Centro Educativo Canindeyú. Quando você chegar, avise-me e eu lhe buscarei! – respondeu. – Okay! Até amanhã, então! – respondi, finalizando a conversa. Depois da conversa, adiantei algumas coisas do trabalho para não ter nenhum problema no dia seguinte durante a viagem. Saí um pouco mais cedo da redação para ir à rodoviária comprar a passagem. Também aproveitei para comprar algumas coisas para comer ao longo do


30 trajeto, já que, segundo o que me falaram, era uma viagem de quase seis horas. Assim, seria melhor ir bem-preparada. Ao chegar a casa, preparei as minhas coisas. Carregador portátil com baterias extras, tripé, fone de ouvido, bloco de notas, canetas - várias, pois alguma poderia falhar - e a minha identificação de jornalista. Fiquei bastante empolgada com o convite dela, já que a Fiesta de San Juan é um dos eventos mais representativos da cultura paraguaia. Sim, eu sei que é uma festa religiosa, especificamente da Igreja Católica, mas atualmente é considerada mais como um evento cultural e popular. As comidas típicas têm o protagonismo principal neste acontecimento, assim como os diversos juegos que se encontram espalhados no local da festa, geralmente realizados em quadras ou espaços abertos com capacidade para muitas pessoas. Agora, levando para o contexto dos brasiguaios, acredito que essa festa terá também alguns toques brasileiros, o que me deixa bastante curiosa. Com toda essa adrenalina, dormi. Acordei mais tarde, tomei banho e segui direto ao almoço com a minha vó. Ao terminar, despedi-me dela e chamei um táxi para a rodoviária. Ao chegar lá, encontrei o ônibus que me levaria para Nueva Esperanza e, definitivamente, não era o ônibus mais novo da empresa. Mas, parecia estar em bom estado. O ônibus saiu quase vazio, o que para mim era algo positivo. Durante o caminho, chegando a Canindeyú, consegui ver os cultivos na beira da rota. Os nomes das fazendas estavam todos aportuguesados e bastantes diferentes dos nomes aos quais me acostumei a escutar. Quando o GPS avisou a chegada, pedi ao motorista para descer na frente do Centro Educativo. – Lá não vai dar para passar. Vai estar cheio. Hoje vai ter a Fiesta de San Juan, mas vou te deixar ali pertinho.


31 Eu fiquei um pouquinho apreensiva, mas esperei para ver. Ele parou e indicou o caminho a seguir. Peguei as minhas coisas e agradeci. Ao descer, percebi algo interessante. Os cartazes das lojas estavam em português. Algumas coisas eu consigo entender, mas outras não faço ideia do significado. As ruas estão cheias de carros e camionetes de todos os tipos, alguns muito luxuosos e outros mais “normais”. Seguindo rumo à festa dava para escutar as músicas em português e uma fila pequena se fazia para pagar o acesso. Ao entrar na fila, aproveitei e mandei uma mensagem para Fernanda, avisando a minha chegada. Estou bastante animada e com muita vontade de conhecer todos os cantos da festa. É verdade o que a senhora Feliú dissera. A gente se sente estrangeiro no nosso próprio país, mas esperarei para conferir antes de tirar conclusões.




34 Depois de passar alguns anos fora, estou de volta à cidade que havia morado. Nueva Esperanza, mais conhecida como Troncal 4 pelos moradores antigos, localiza-se no interior do Paraguai, junto a Katueté, Cruce Carolina, La Paloma, Puente Kyjha, Salto del Guairá, entre outras vilas no Departamento de Canindeyú. Porém, muitas pessoas que visitam essa região notam algo diferente. Comércios, culinária, conversas, assuntos, muitas vezes não tão parecidos com o que acontece em outras cidades do país. Aqui você escuta diariamente espanhol e guarani acompanhados de um sotaque diferente. Ao chegar, matei a saudade do cheiro de terra molhada, característico daqui por conta dos imensos hectares de plantação que dividem as vilas e cidades de Canindeyú. Cada período conta com um odor típico, seja do veneno das roças dos meses de plantação ou da poeira que se levanta em agosto. Durante o trajeto até aqui, que não é lá muito rápido, vim lendo um livro chamado “A mestiçagem”, de dois antropólogos franceses, François Laplantine e Alexis Nouss. Lembro-me bem quando estava no ensino fundamental e escutei pela primeira vez a palavra “mestiço”. Aprendíamos sobre a chegada dos espanhóis à América Latina. A mestiçagem paraguaia começou em 1540, quando os caciques guaranis conspiraram contra o governo do espanhol Domingo Martínez de Irala. Ao serem descobertos, os caciques foram executados e então se decretou a união das mulheres nativas com os colonizadores espanhóis. Nos meus primeiros anos escolares, talvez


35 conhecer essa história não tivesse me impactado tanto, mas hoje, ao entender a profundidade disso tudo, fez-me querer compreender muitas coisas que, por muito tempo, estiveram ao redor de mim. Perdão por não ter me apresentado ainda. Lá se foram alguns parágrafos e você talvez nem saiba quem está aqui. Eu sou a Fernanda, prazer. Estive por alguns anos estudando no Brasil, mas sou nascida e criada em terras guaranis. No momento em que cheguei pela primeira vez ao país vizinho, nem todos acreditavam que eu era estrangeira. Inicialmente, aquilo me deixou intrigada, pois carrego dentro de mim um amor muito grande pela minha pátria. Mas realmente, como acreditar se não tenho nenhum sotaque ao falar? Muitos até me falavam chocados. – Mas como!? Você fala um português melhor do que o meu. Talvez isso seja efeito dos diversos livros e mundos literários pelos quais viajava quando menor, todos em português. Sempre que ia à fronteira, em Foz do Iguaçu, para visitar meu médico, parávamos na livraria para comprar algum livro novo. Isso fez com que eu aprendesse também a escrita e as palavras mais difíceis que, na região, são confundidas com algumas em espanhol. Essas perguntas surgidas durante os primeiros meses no Brasil me deixavam confusa. Muitos dos costumes que eu tenho eram muito parecidos com os dos meus amigos brasileiros. Não estranhava a música, até mesmo conhecia muitas das atuais antes mesmo de cruzar a fronteira. Sentia falta da comida e não entendia algumas gírias, mas nada tão impactante quanto o fato de que não me sentia uma completa estrangeira. O que deixava ainda mais estranho era que muitas vezes que conversava com algum brasileiro que morava no Paraguai há muito tempo, escutava de que eles se sentiam estrangeiros em seu próprio


36 país, o Brasil. Quando conversava com alguns amigos que vinham da capital, Asunción, para me visitar na minha cidade, percebia que eles comentavam sobre o meu sotaque ao falar o espanhol. Isso tudo me despertou um gosto pelo admirável mundo da sociologia. Decidi estudar e me tornar socióloga. Mudei-me para a cidade mais movimentada da América do Sul, São Paulo, e iniciei a graduação. Fiquei por lá até o dia da formatura, e só então voltei ao Paraguai, curiosa para estudar e escrever sobre o que acontecia dentro da minha sociedade. Assim conheci como LaPlantine e Nouss conceituavam a mestiçagem. A mestiçagem é uma invenção nascida da viagem e do encontro. Mas não basta que as culturas se desloquem, se encontrem ou convivam, para que esta transmutação tenha lugar. Muitas vezes a multiplicidade de populações reunidas numa mesma cidade não cria nada que se lhe assemelhe. O processo de mestiçagem só começa quando o fato de pertencer a essas cidades-mundo serve melhor a definição de identidade do que a nacionalidade em si.6 Esse parágrafo veio ao encontro de minha alma assim que li. Com a descrição de tudo aquilo que havia sentido durante anos, mas dentro de um conceito pensado por alguém que, com certeza, teria muitos anos a mais de vivência do que eu. O processo que ocorreu nesta região desde o período de governo do ditador Alfredo Stroessner, e ocorre até os dias de hoje com a chegada de novos imigrantes a cada ano, é a criação de uma certa identidade. Brasileiros que há anos decidiram mudar suas vidas e cruzar o rio, hoje se identificam muito mais como 6

LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A mestiçagem. Lisboa: Piaget, 2002. p. 18.


37 paraguaios. Já paraguaios que chegaram a Canindeyú e se sentiram estrangeiros em seu próprio país, hoje em seus pratos pode-se encontrar uma combinação diferente do que o habitual de um paraguayo. Mandioca cozida, arroz e feijão. Os filhos da primeira geração passeiam nas duas culturas sem nenhum problema. Eu mesma sou fruto desta mestiçagem. Filha de um paraguaio com uma brasileira. Meu pai, oriundo de Villa Oliva, Departamento de Ñeembucú; minha mãe, nascida no interior do Estado do Paraná, migrou com a família ainda pequena para Katueté, no Departamento de Canindeyú. Foi ali, que depois de alguns anos, meus pais se conheceram. Assim como a minha família, outras se construíram dessa maneira; com idiomas, cultura, costumes diferentes, formando cidades e pequenas vilas do que hoje chamam a população de “brasiguaios”. Talvez você já tenha escutado na mídia ou visto em algum jornal essa palavra: brasiguaio. Segundo o jornalista Carlos Wagner, ela foi usada pela primeira vez em 1985, em Mundo Novo, ao se discutir a volta de muitos agricultores do Paraguai para o Brasil. Durante a reunião, um brasileiro questionou os seus direitos, escutando do então deputado federal Sérgio Cruz: Vocês são uns brasiguaios, uma mistura de brasileiros com paraguaios, homens sem pátria.7 Ao decidir estudar a respeito da minha região, automaticamente pensei em conversar com alguns conhecidos que sabia estarem por BALLER, L. Cultura, identidade e fronteira: transitoriedade Brasil/Paraguai (1980-2005). (Dissertação de Mestrado em História) – Universidade Federal da Grande Dourados, 2008. 7


38 aqui desde o início. Em uma das conversas por telefone, antes mesmo de voltar para cá, ocorreu com a professora de Gastronomia Lucimeire Sifuentes. Ela chegou ao Paraguai com 13 anos, em 1980. Durante nosso bate-papo, ela me descreveu que, naquela época, os considerados brasiguaios eram os brasileiros que se mudaram para o Paraguai e que decidiram voltar para o seu país, inserindo-se então no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Isso fez com que, ao citar o termo durante a conversa, ela declarasse o seu desprezo. – O termo brasiguaia, eu não gosto. Não gosto porque para mim ele soa pejorativo. Porém, o tempo passou e o uso dessa palavra se tornou mais recorrente no próprio Departamento. Criou novas vertentes. Muitos começaram a utilizar essa palavra para identificar pessoas como eu, filha de duas nacionalidades. Muitas vezes, eu mesma - sendo paraguaia - já me identifiquei como uma e, ao começar as minhas pesquisas, assustei-me ao ver esse lado, de certa forma negativo do termo. Essa outra maneira de conceituar a palavra brasiguaio se encontra registrado no livro escrito por Fernanda Feliú, minha xará. Paraguaia, ela chegou à cidade de La Paloma, de mala e cuia com sua família, no começo de 1977. Com medo de não conseguir criar os três filhos no mato, conta que chorou quase uma semana quando seu esposo decidiu se mudar para lá, mas ao chegar, encontrou-se com uma outra realidade. Uma imensidão de brasileiros. Durante os anos vividos por lá, criou escola, festival de folclore e ajudou a manter e a introduzir a cultura e a tradição paraguaias. Hoje, um de seus filhos é casado com uma brasileira, e suas netas, brasiguaias. Atualmente, existe uma nova geração de crianças e jovens, nascidos na região e filhos de pais de distintas nacionalidades. São eles os novos


39 mestiços que conformam a nova sociedade pluricultural nessa parte do território paraguaio.8 Uma das características das cidades e vilas construídas por essa junção é a ligação entre as pessoas, que é algo muito forte. O famoso todo mundo conhece todo mundo. Então, geralmente quando se tem alguma festa em uma das cidades, seja aqui em Nueva Esperanza, Katueté ou La Paloma, a região toda fica sabendo e muitos vão e confraternizam juntos. Um dos momentos mais significativos é a Expo Regional de Canindeyú, que ocorre em La Paloma. Esse evento é uma exposição anual relacionada ao agronegócio, com duração de dez dias. Deu-se início em 1998, com um grupo de produtores brasileiros e paraguaios, dentre eles o senhor Wilfrido Soto e sua esposa Fernanda Feliú. Apesar de também ter vários momentos culturais envolvendo o folclore paraguaio, um detalhe que sempre me impactou desde pequena é que todo ano o cantor ou a banda principal convidada é do Brasil. Isso gera um movimento não só de pessoas da região, mas também do outro lado do rio. Isso é algo característico desse processo desde o início, seja em festivais folclóricos como foram criados para incentivar a cultura paraguaia, como também as diversas festas feitas pelo povo brasileiro. Aliás, isso é um ponto inconfundível e muito bem-aproveitado até hoje em relação aos que migraram para essas terras. Uma dessas festas que possui um toque brasiguaio é a festa junina, ou melhor dizendo, Fiesta de San Juan. Evento ao qual nunca pretendo faltar, pois é o lugar em que meu coração se deleita e é para lá que 8

FELIÚ, F. Canindeyú Zona alta: los brasiguayos. Asunción: Leo SRL, 1999.


40 eu vou amanhã. O lugar perfeito para encontrar brasileiros, paraguaios, brasiguaios, entre muitas outras coisas. Além do mais, acabei de receber uma mensagem de uma jornalista de Asunción. Pelo visto, ela também se interessou pelo mesmo assunto. Convidei-a para vir para cá amanhã e comentei que esse lugar seria muito interessante para o conteúdo que ela produzirá.

*** São quase seis da tarde do sábado e a festa junina já está a todo vapor. Muitas motos e carros estacionados lá fora indicam que o movimento hoje à noite será grande. O fim de tarde já está regado de uma boa música caipira brasileira, fazendo contraste com a fogueira feita para assar o kaburé. Ao citar algo do cardápio, não posso deixar escapar as diversas delícias vendidas por aqui. Porém, no decorrer da noite, explicarei o roteiro gastronômico que farei. Um vai e vem de português, muitas vezes carregado de sotaque sulista, com alguns adendos soltos de um “mba’éichapa che amigo”, e respostas em espanhol, aumentam cada vez mais com a chegada dos festeiros. Cá estou eu, observando ainda de longe cada detalhe. Fazia tempo que não participava de uma típica festa da vila, lembrando-me da infância e da participação nas apresentações de danças típicas a cada ano. Desta vez vim com um objetivo especial. Escrever sobre a cultura e conversar com algumas pessoas. Tinha combinado com alguns conhecidos de meus pais e vim preparada para captar cada momento. Assistindo cada cena, escutando algumas conversas das mesas ao lado, ainda fico curiosa com a ideia de que toda essa mescla de cultura esteja tão intrínseca em uma cidade tão pequena, no interior do Paraguai.


41 “Fernanda”, chamou meu pai. Um de meus entrevistados havia chegado e já estava conversando com a minha família. Um senhor já de idade, seu Jaci Zimerman. Sentamo-nos sob uma das barraquinhas da festa, ele com sua boina e um bigode muito bem feito, encaixando-se ao frio de junho. Antes de ir à festa, eu havia sentado em casa e produzido uma série de perguntas. Estava de certa forma ansiosa para ver como seria, pois queria conhecer o motivo pela qual ele veio para o Paraguai e como tinha sido o processo de adaptação, não só dele e da família, mas da cidade em si. Ele havia morado em Cruce Guarani por 24 anos. Hoje ele vem apenas de passeio para visitar a filha. Voltou a morar no Brasil, mas após muitos anos de trabalho intenso em terras guarani. Ele chegou de mudança em 1980 após trazer o cunhado alguns anos antes. Veio em busca de uma vida melhor, como ele mesmo disse. – É que eu trabalhava de empregado e daí pagava aluguel, e como meus cunhados moravam lá, tinha possibilidade da gente conseguir alguma coisa. Foi o que me animou de ir morar no Paraguai - contou timidamente ao perguntar qual tinha sido o motivo da mudança9. O fator principal que causou a travessia de um número grande de brasileiros foi o preço e a qualidade das terras oferecidas por aqui. Como Fernanda Feliú relembrou na nossa conversa, essa movimentação se parecia com a dos colonizadores em busca do ouro. Ao escutar os preços das terras naquela época, os olhos com certeza brilhavam. Hoje, ao escutar quanto o senhor Jaci gastou, levei um susto. Seis mil guaranies no total. Talvez aqui na festa, esta noite, eu não encontraria nem um espetinho nesse preço. 9

Trecho transcrito da mesma maneira que foi dita pelo entrevistado.


42 Ao decorrer da nossa conversa, pude escutar ao fundo uma música que me trouxe uma memória muito afetiva: Pericón. Uma dança muito tradicional da Fiesta de San Juan paraguaia, que consiste em uma música derivada da polca e, ao decorrer da dança, as duplas mencionam algumas rimas. Dancei muitas vezes quando ainda no ensino fundamental. Paramos um pouco para comer, pois nossa pamonha quentinha chegou à nossa mesa. Durante nossa pausa, perguntei para ele como tinha sido lidar com uma nova cultura. – Tinham aqueles feriados paraguaios e eles queriam que a gente festejasse o feriado deles, e os brasileiros, a gente tinha os nossos, daí então festejava tudo junto. Era tudo unido - concluiu. Essa frase final me marcou. Pensar que desde o começo foi construído de uma maneira tranquila, e que hoje tudo isso que vivemos seria tão normal. Despedimo-nos depois de alguns minutos de conversa e decidi dar uma andada pelo pátio. As pessoas se espalhavam pelo local. Alguns pais assistiam às apresentações artísticas dos filhos, outros permaneciam nas filas das diversas barraquinhas, algumas crianças pulavam no parquinho de brinquedos infláveis e os jovens conversavam entre eles. A festa junina desta região acontece sempre como evento escolar. Pais, junto aos filhos, e a escola organizam a cada ano o evento. Todas, sempre com muito movimento, ocorrem em junho e são regadas de boas coisas: música, entretenimento, comida, reencontros e encontros. Não apenas de pessoas, mas também de mestiçagens. Aqui você precisa vir com o estômago vazio, pois encontrará pamonha, espetinho, cachorro quente, pipoca, doces de amendoim, quentão. Também mbeju, kaburé, pajagua mascada, pastel mandi’o e chicharrón trenzado. O famoso dois lados da moeda. Boa parte das comidas


43 tradicionais do Paraguai tem como base a farinha de mandioca ou até mesmo a própria mandioca cozida. Mesmo tendo em conta todas essas décadas desde a chegada de brasileiros ao território paraguaio, as receitas continuam iguais. A famosa chipa almidón continua produzida da mesma maneira, mas também o famoso arroz e feijão. Por conta das estradas ruins e o difícil acesso à região de Canindeyú, por muito tempo era mais fácil contrabandear produtos vindos do Brasil do que receber os próprios produtos paraguaios, da capital. Isso fez também com que a moeda que circulava nos comércios fosse o Cruzeiro em vez de utilizar a moeda local. Trazendo esses produtos do Brasil, as comidas tradicionais brasileiras não precisaram sofrer alguma alteração, e até hoje o efeito dessa situação ainda é visível nos mercados, contando com a maior parte dos produtos originários do país vizinho, influenciando de certa maneira os costumes paraguaios. Na área da alimentação, a cultura brasileira se sobrepôs em relação à paraguaia. Esta sofreu influência na alimentação modificando sua dieta diária. Alimentos tais como o arroz e feijão foram adotados por quase todos os moradores da localidade, alguns utilizando com mais frequência, outros menos. Ressaltamos também o costume de se comer uma variedade em uma única refeição como o arroz, feijão, salada, carne, e legumes, costume esse que os paraguaios adotaram depois da convivência com os brasileiros. Os paraguaios não deixaram totalmente os seus costumes, mas incorporam os costumes brasileiros. Já com os brasileiros não ocorreu o mesmo. No caso dos alimentos são apreciados, mas apenas em dias de festas. Não é rotina nem faz parte do dia a dia.10 10

SIFUENTES, L. Influências da imigração brasileira na culinária paraguaia na cidade de Nueva Esperanza. (Monografia de Especialização de Gestão em Gastronomia) - Unicesumar, 2008.


44 Chegando à barraca de quentão, encontrei minha próxima entrevista. Um dos casais envolvidos com a organização do evento. Desde que eu me lembre, eles sempre ajudam. Alexandra e Neivo Fritzen. Após finalmente conseguirem sentar para conversar, Xanda, como é conhecida, começou a contar como veio para cá. Ela chegou ao Paraguai com 1,5 ano de idade, pois seus pais vieram em busca de algo novo. Nascida no Rio Grande do Sul, logo no início da entrevista ela fez a seguinte declaração. – Eu me considero paraguaia. Nasci no Rio Grande do Sul, mas sou paraguaia. Neivo, diferente da esposa, vê sua vinda ao Paraguai quase que acidental. Após ter sofrido um acidente, no final de 1994, ele começou a viajar mais ao Paraguai por conta da agricultura. Com essas idas e vindas, ele se identificou com a agricultura feita por essas terras e, como lembrou, apenas pulou para cá. No decorrer da conversa, o vai e vem de gente que parava para dar “oi” ou apenas comentar algo da festa, começou a tornar aquilo mais interessante. Pude prestar atenção na interação de alguns que vinham e pediam quentão em espanhol ou até mesmo paravam para papear e, no meio do assunto, soltavam alguma palavra em guarani. Quando o movimento deu uma acalmada, aproveitei para perguntar qual tinha sido seu maior desafio ao chegar. – A dificuldade inicial foi a documentação. Na época era um problema muito sério. Existia um grupo, uma equipe de extorsionadores, se dá para se dizer assim, por que a gente era extorsionado, extorquido, né, pela questão de documentação pessoal até conseguir “imigrante e tal”. Até o que levou a gente depois de tá enraizado aqui a participar com o padre católico, aqui que era da congregação dos scalabriniano,


45 padre Antenor Marcamo, que é uma congregação dentro da Igreja Católica dedicada aos imigrantes no mundo inteiro, e aqui quando ela tava instalada na época, aqui, nesta paróquia, nessa comunidade, foi justamente isso e acabamos fundando, apoiando a formação da pastoral do imigrante que funciona até hoje.11 Eu que havia morado praticamente toda minha vida em Nueva Esperanza, nunca reparara a existência da pastoral. Ao final da entrevista dei uma pesquisada rápida na internet a respeito da congregação. Encontrei que a congregação dos Missionários de São Carlos, conhecida também como os scalabrinianos, tem como finalidade cuidar da formação religiosa, moral, social e legal dos migrantes ao redor do mundo através de pastorais como a fundada em Nueva Esperanza. Anotei em minha agenda que precisava ir atrás dessas informações o quanto antes. Olhei no relógio e vi que já eram quase oito e meia da noite. A programação estava no auge das apresentações e decidi parar para assistir um pouco. No centro da quadra, em que nos dias da semana as crianças fazem educação física, naquele exato momento dançava a quadrilha da Xuxa. Eu já me acostumara com a mistura de músicas no decorrer das danças e apresentações. Ainda há pouco, as meninas da quinta série estavam com suas cestinhas, saias e typói12, ao som de uma polca paraguaia, bailando chiperita. De repente, meus pensamentos se interromperam por conta do barulho do celular. Acabara de receber uma mensagem. – Olá, já estou por aqui. Onde podemos nos encontrar? 11

Trecho transcrito da mesma maneira que foi dita pelo entrevistado. 12 Blusa ou bata de tela de algodão típica paraguaia.


46 A jornalista da capital acabou de chegar à festa. Como ela se interessava em saber mais sobre os brasiguaios, montara um roteiro na minha cabeça de onde a levaria primeiro. Então pedi para ela permanecer na entrada e que eu estava indo ao encontro dela. – Olá, muito prazer, sou a Fernanda - certeza que ela vai perceber algum sotaque no meu espanhol. – Olá, sou a Analía, jornalista do jornal Marandu. Estou muito ansiosa para ver o que você quer me mostrar. – Bom, você quer conhecer mais sobre a cultura e quem são os brasiguaios, né? Pois aqui é o lugar no qual você verá tudo isso. Saímos em direção ao centro da festa. Durante o caminho, percebi que ela já notava algumas coisas. – Logo ali na entrada, quando fui pagar o meu acesso, a moça do caixa falou comigo em português. Falei para ela que não entendia e ela do nada começou a falar um espanhol perfeito. Fiquei chocada com isso - comentou a jornalista. – Isso é algo comum por aqui. Se você prestar atenção nas pessoas ao seu redor, escutará os três idiomas em menos de cinco minutos respondi animada. Estou feliz de encontrá-la justamente quando iniciei as pesquisas. Os olhos dela brilhavam. Ela pegou a caderneta e começou a anotar enquanto andávamos. Ao fundo escutei que estavam prestes a começar o casamento caipira. Apressei o passo e comentei com ela que queria que ela visse algo. Chegamos ao centro da quadra e começamos a prestar atenção na peça. O português caipira era a base de todo o diálogo entre os personagens principais. De repente, entram dois casais discutindo em espanhol. No momento em que aconteceu isso, Analía deu um suspiro e comentou comigo.


47 – Isso é mais emocionante do que eu pensava. Quando recebi a pauta do meu chefe, eu não tinha ideia do mundo novo que encontraria. E o mais louco de tudo, dentro do meu próprio país. Apenas sorri e fiquei feliz com a empolgação que dava para ver em seu rosto. Quero muito colaborar com ela na produção da reportagem. Acredito que será uma ótima maneira de introduzir para o público paraguaio, de outras cidades, cada vez mais esta região e esse processo que acontece por aqui todos os dias desde os meados dos anos 1970. Depois de alguns minutos, o casamento caipira chegou ao fim. Saímos e fomos em direção das barracas de comida. – Neste momento vou introduzi-la à comida das festas de São João da região. Ela pareceu não se surpreender tanto, até que viu duas barracas, uma ao lado da outra. Uma escrita “Comidas típicas paraguayas” e a outra “Cachorro-quente”, em português. – É impressionante como as duas culturas convivem em um mesmo ambiente de uma forma tão natural! – Sim! Quando eu morava por aqui não percebia isso. Estava tão acostumada, tudo estava tão inserido no meu dia-a-dia que, ao ir para o Brasil estudar Sociologia, comecei a perceber muitas coisas. Muitas vezes me sentia brasileira por que os costumes eram os mesmos, mas meu amor pela minha pátria, pelo país em que nasci e cresci sempre esteve ali também. Passei por uma crise e aí tomei a decisão de estudar sobre os brasiguaios e aí encontrei alguns estudos sobre mestiçagem. Comecei a perguntar para alguns professores, até que uma professora se sentou para conversar comigo e me explicou algumas coisas. - As lembranças das coisas que ela me explicou e aconselhou naquele momento começaram a voltar.


48 Estamos constantemente em transformação. As mudanças nunca se finalizam. Talvez eu não devesse tentar encontrar uma essência ou uma resposta final para tudo aquilo. Mestiçar é estar em constante processo. Eu tenho características brasileiras, como também tenho características paraguaias. Como também aquilo que me lembra o Brasil tem peculiaridades do período de colonização, tanto quanto o Paraguai também tem. É algo que não termina, mas também não deixa de ser. Ao explicar tudo isso para a minha mais nova amiga, o olho dela se encheu de lágrimas. Quando eu percebi, também estava emocionada com tudo aquilo. Ela faz parte dessa história também, como eu, como o senhor Jaci, Fernanda Feliú, Alexandra, meus pais, meus amigos e todos os outros, pois faz parte da história do Paraguai e, de certa forma, faz parte da história do Brasil. – Vamos comer alguma coisa? - perguntei a ela. - Quero lhe mostrar a pamonha e também o quentão. – Aí sim! Toda essa empolgação me fez esquecer que estou há algumas horas sem comer. Saímos em busca das comidas que ela nunca experimentara. Sentadas à mesa com alguns amigos que lhe apresentei, dava para notar que ela se sentia em casa. Talvez não tanto por que ainda estava ali a trabalho, anotando tudo em seu bloco, mas dava para percebê-la muito confortável. Com a ajuda de algumas pessoas, começamos a escrever aquilo que precisaríamos procurar. Dicas para lá, dicas para cá. Todos entusiasmados ao ver que viraríamos notícia, não por conta do agronegócio ou talvez por conta da fronteira, mas sim por sermos quem somos. Nessa hora, o diretor da escola chegou e disse que seria muito interessante falar sobre o processo que acontece dentro das próprias


49 escolas. A forte influência do português dentro das salas de aula entre os alunos. A festa chegava ao fim, mas era a hora mais aguardada da noite. A fogueira já estava pronta, alta e perfeita para esquentar as pessoas. Com o passar da noite, o frio do outono dava as caras mais uma vez. Muita gente em volta, conversando, divertindo-se. Crianças correndo pelo pátio. O fogo foi consumindo as madeiras e o número de pessoas diminuindo. Estava pronta para ir para casa quando decidi perguntar mais uma coisa para Analía. – Eu poderia ajudá-la a produzir a matéria? Assim eu posso coletar dados para o meu estudo também. - Estava ansiosa pela resposta. – Claro, achei que isso já iria acontecer! - respondeu a asuncena - Amanhã começamos. Quero descrever como a vida acontece por esta região. Despedimo-nos e agora estou indo para minha casa. Curiosa para ver como será essa aventura.




52 Comecei a acordar enquanto os primeiros raios de sol apareciam no céu. Um conjunto de passarinhos oferecia um concerto exclusivo na janela para mim, algo que poucas vezes escuto em Asunción. Depois de uma viagem e de uma Festa de San Juan, meu corpo suplicava por mais cinco horas de sono, mas minha curiosidade era mais forte do que o cansaço. Passei a noite em um hotel no centro da cidade, nada luxuoso ou de cinco estrelas. Era um hotel que tinha o básico do básico. O bom é que era bem limpinho e tranquilo. O desjejum foi no quarto, com um café de máquina e um alfajor que tinha comprado em Asunción enquanto passava todas as minhas anotações, fotos e vídeos da festa no computador. Não queria perder nenhum detalhe dessa experiência. Por mais que eu estivesse trabalhando, sentia-me de férias. Era como estar no Brasil, mas sem sair do Paraguai, bem como a Fernanda Feliú tinha falado para mim. Da janela era possível ver que os comércios que ficavam ali por perto tinham placas e propagandas em português e outras em espanhol. Sim, eu já falei sobre isso quando apenas chegara, mas ainda é um ponto surpreendente para mim. As músicas, em sua grande maioria, eram em português e tinham algumas comidas ou combinações que eu nunca tinha experimentado ou pensado na minha vida. Durante a festa, conheci muitas pessoas interessantes da região, dentre elas o Intendente Municipal13 Francisco Viancheto, um senhorzinho de 73 13

Prefeito da cidade.


53 anos, muito amável e sorridente. Ele é vizinho da família da Fernanda e nos convidou para um almoço na chácara dele hoje. Aqui parece ser normal conversar com o Intendente, diferente de Asunción, que é quase como falar com o presidente da República. Ou seja, impossível. Era perto das 10h30 da manhã quando chegou uma mensagem da Fernanda. – Bom dia! Estou indo buscá-la. Daqui a dez minutos estou aí. – Bom dia! Okay!- respondi, enquanto terminava de pentear meu cabelo. Peguei minha bolsa, celular e documentos e fui para a rua, onde dava para sentir que era domingo. Poucos carros na rua, muita música nas casas e o cheiro de fumaça para o asado14 já marcava presença. Era um dia lindo, desses que amanhecem fresquinhos, mas com o decorrer das horas fica mais quente e agradável. Fernanda chegou e eu subi no carro. Não deu para conversar muito por que a chácara do nosso anfitrião era bem perto. Ao chegar lá, percebi que o almoço seria asado, mas lá ouvi que alguns chamam de churrasco. Não parecia ser tão diferente ao que eu estava acostumada, mas tinha elementos novos. Por exemplo, a farofa. Eu sempre vi nas novelas brasileiras, que passavam no canal paraguaio, que as pessoas comiam farofa como acompanhamento do arroz e feijão, mas nunca pensei que isso também podia estar presente no churrasco. Fernanda me mostrou outra coisa diferente, a maionese. Para mim, maionese é o condimento que você coloca no pão do sanduíche, mas para eles é algo parecido com a ensalada de papa que a gente come em Asunción. Apesar de todas essas diferenças, não faltavam a sopa paraguaia e a chipa guasu. Acredito que muitos dos 14

Churrasco.


54 brasileiros que emigraram para cá, a primeira vez que ouviram falar da sopa paraguaia imaginaram uma sopa líquida, mas ficaram surpresos ao ver que era algo mais parecido com uma torta de milho salgado. Bom, no começo era para comer com colher, segundo a lenda. Don Carlos Antonio López, presidente do país entre 1844 a 1862, gostava muito da sopa blanca, que era feita com leite, queijo, ovo e farinha de milho. Um dia, a machu15 sem querer colocou mais farinha do que era necessário e já não tinha tempo de fazer uma nova mistura. Então decidiu assar a preparação no tatakua16 e servir o resultado do acidente para o presidente. Imagine a coragem dessa mulher! López gostou tanto do novo prato que o batizou como a nova sopa paraguaia. Viancheto nos convidou a sentar nas típicas silla cable17 para compartilhar um tereré refrescante enquanto o almoço ficava pronto com umas polkas18 ao fundo. Aproveitei para perguntar sobre a sua experiência de vida e de uma forma muito amena ele relatou que mora em Canindeyú desde 1969. Trabalhou por muito tempo na empresa IBEL Paraguaya, criado por uns irmãos brasileiros, que compraram 30.000 hectares a 1.000 guaranis cada, o que seria um pouco menos que um real na cotação atual. Mostrou para mim uma espécie de documentário que fala da origem e história da empresa, tudo em português. Esses irmãos focaram na produção de palmito edulis, uma espécie que, segundo ele, não “gosta” de crescer fora do mato e que atualmente se encontra em perigo de extinção, mas protegida pelas leis ambientais. Com o tempo, Viancheto adquiriu terras na região e se tornou conheCozinheira. Forno de barro, redondo, que fica na área externa da casa. 17 Cadeira de corda. 18 Música típica paraguaia. 15 16


55 cido pelos empresários que ali atuavam. Antes de ser intendente, foi presidente regional da Asociación Rural del Paraguay e presidente da Comissão de Saúde Animal, da mesma instituição de muito renome e importância no país. – Como é para você ser responsável de uma cidade que tem essa cultura mista? - perguntei enquanto tomava meu primeiro sorbo de tereré. – Preciso dizer para você que isso para mim não é muito difícil porque eu sou casado com uma brasileira -respondeu rindo. Os imigrantes trouxeram sua tecnologia, costumes e idioma. Inclusive, nós aqui falamos o portunhol que não é difícil pra mim. Os estrangeiros são pessoas trabalhadoras, que vieram realmente para produzir e o paraguaio é muito hospitaleiro. Essas duas características são muito importantes para a convivência. Temos o Centro Educativo Canindeyú, onde os paraguaios e brasileiros estudam e onde é possível ver essa fusão cultural. Na escola municipal de dança, tanto brasileiros como paraguaios dançam nosso folclore, aquilo que é nosso. Na filarmônica eles tocam música paraguaias e brasileiras. Isso é muito normal aqui. Não há conflito entre culturas ou raças, o que faz que a gente viva em um ambiente muito tranquilo. É muito lindo ver, por exemplo, um jovem filho de imigrante cumprimentando em guarani. Eles sentem que essa também é a língua deles. – Como você viu a influência dos imigrantes na economia da região? – Eles chegaram aqui já com tecnologia, com o que nós conseguimos dar um pulo gigantesco no que são os cultivos e ter uma melhor produção. Eles já tinham uma forma de trabalho bem-mecanizado. A diferença de nós, tudo isso permitiu que possamos trabalhar com


56 a serraria, palmito e depois com hortelã. Já na área da pecuária, eles trouxeram raças melhoradas. – Nesse tempo que você está imerso no mundo da política, como foi o envolvimento dos paraguaios e dos imigrantes? Teve alguma dificuldade? – Tenho colegas intendentes de outras comunidades que são brasileiros, já que a lei permite que os estrangeiros possam exercer essa função assim como a de vereador. Só é exigido que a pessoa tenha residência fixa no local onde é candidato. Mas ainda assim há um pouco de receio. Quando se fala de eleições, muitos dizem “não, ainda não é tempo do imigrante”, mas isso é questão de tempo por que nada se impõe, tudo se conquista. – Tem uma ideia de quantos imigrantes moram nessa região?perguntei. – Atualmente já não são muitos os imigrantes os que moram aqui. A maioria já são filhos desses estrangeiros, os famosos brasiguaios, o que representaria dentre o 60% e 70% da população. Viancheto é paraguaio e descendente de italianos. Para ele, todos os de origem europeia tem essa vontade de melhorar, de reformar e construir um bom lugar para morar e que isso é possível ver nas cidades da região, já que a grande maioria dos imigrantes brasileiros que chegaram ao Departamento de Canindeyú descende de europeus, assim como também alguns asiáticos, como os japoneses. Segundo ele, o paraguaio é muito conservador e às vezes muito conformado. Com pouca coisa ele já é feliz. – Quando você vê que uma amiga sua tem uma roupa bonita, você também quer isso, não é? - falou olhando diretamente pra mim. Não estou falando de inveja, mas você também gosta de ter coisas bonitas


57 e de boa qualidade. Para mim, é muito bom ter essa influência estrangeira na região, por que traz muita inovação. Essa fusão de culturas que temos aqui é importante por que ainda com distintas opiniões, todos lutamos por um bem comum, o que é beneficioso para todos. – Você acha que ainda há sequelas da Guerra da Tríplice Aliança nos relacionamentos entre brasileiros e paraguaios? – Olha, sei que tem ainda alguns paraguaios que ficam lembrando da guerra e com razão. Foi um enfrentamento muito injusto para nós, onde morreram tantas pessoas, dentre eles os niños de Acosta Ñu, que foram queimados. Mas eu acho que nós já moramos em uma era moderna e devemos nos projetar para o futuro. Enquanto ele falava, eu via como ele servia o tereré cheio de yuyos medicinais e pensava em como foi casar com uma pessoa que provavelmente não toma ou tomava tereré antes do almoço, o que para nós é tão normal e até imprescindível na rotina diária. – Teve algum choque cultural ao construir um matrimônio com uma brasileira? – Olha, eu sou viúvo. Eu era casado com uma mulher paraguaia villariqueña19, que infelizmente faleceu muito jovem. Depois de quatro anos, eu casei de novo e dessa vez foi com uma brasileira. Preciso dizer para você que aí percebi algumas diferenças. Nós, os paraguaios, somos pessoas muito tranquilas. Por mais que esteja dando tudo errado na vida da gente, se você pergunta, “que tal?”, nós vamos responder sempre “iporã”. Minha primeira esposa era muito obediente. Tudo o que eu falava ela fazia sem nenhuma objeção, como era acostumado antigamente. Já depois, ao me casar com uma imigrante, vi que ela co19

Nascida na cidade de Villarrica, Departamento de Guairá.


58 locava regras na casa, e percebi que o brasileiro reclama mais. E outra coisa, eles gostam de ter uma casa linda. Minha primeira esposa nunca pediu nada, mas depois eu já tive que ir atrás de uma casa melhor para minha segunda esposa. Dentro de tudo foi tranquilo - respondeu com um sorriso no rosto. – Você acha que pertencer à uma região onde se transita entre duas culturas diferentes pode criar um problema de identidade? – Os que não moram aqui nas fronteiras vão achar tudo o que acontece na região muito estranho, o que para nós é tão normal. Somos poucos os paraguaios os que temos terras e empresas aqui. Eles me veem e falam: “Olha, um paraguaio aqui.” Mas olha, eu creio que o nosso país é o mundo. “Nosso país é o mundo.” Por mais que ele não respondeu exatamente o que eu esperava, essa frase ficou dando voltas no meus pensamentos durante o dia todo. O almoço ocorreu com normalidade. Eram pessoas muito agradáveis e simpáticas. Alguns tinham o sotaque do português mais marcado do que os outros, mas nada muito grave que possa atrapalhar minha participação nas conversações. Além da família da Fernanda e eu, tinha outras pessoas, dentre eles estavam uns amigos da Fernanda que também tinham sido criados na região, como o Igor Cesca. Ele é filho de brasileiros e nasceu no Paraguai, assim como seus dois irmãos. Atualmente estuda Agronomia no Rio Grande do Sul. Acredito que a escolha do curso esteve influenciada pelo ambiente no qual cresceu, rodeado de cultivos. – Como foi para você crescer entre duas culturas?- perguntei curiosa. Era a primeira entrevista com um filho de imigrantes sem ser a Fernanda. – Olha, para mim é uma maravilha. Sinto que tenho conhecimento em dobro - respondeu sorrindo.


59 – Já passou por uma crise de identidade por causa disso? Pensou e mexeu a cabeça antes de responder e disse: – Talvez um pouco, pois no Paraguai sou conhecido como brasileiro e no Rio Grande do Sul como paraguaio - disse esboçando um sorriso que era correspondido pelos demais componentes da mesa, uma espécie de sinal de que vários deles já tinham passado pela mesma situação. – Como você explica para outras pessoas sua origem? Escutei que você fala muito bem o português. Deve ser difícil para um desconhecido acreditar que você é paraguaio. – Eu falo que sou “contrabandeado” tanto quando explico pra um paraguaio ou para um brasileiro. Acho que assim pode ser mais fácil e descontraído entender. Mas me identifico como brasiguaio. Para mim ainda era surpreendente como ele falava de um jeito tão natural sobre essa cultura mestiça da qual era fruto. Ele e a maioria dos presentes. Eu me sentia a estrangeira naquele lugar, o que era mais estranho ainda, mas não desconfortável. Diversas conversas surgiram até o momento de ir embora. Eram perto das 16 horas quando Fernanda quis me mostrar um pouco da cidade e fomos parar numa praça perto do hotel. Lá, compramos um sorvete e sentamos debaixo de uma árvore enquanto eu explicava para ela as diferenças que tinha visto do churrasco em Nueva Esperanza e um asado de Asunción, até que ela me interrompeu. – Analía, olha isso! Acho que vale a pena falar com essa moça - falou enquanto me passava o celular para assistir a um stories20 do Instagram que tinha a foto de uma família com a legenda “Dia 20

Foto ou vídeo que permanece apenas 24 horas na plataforma.


60 muito especial para a família. Hoje faz 40 anos que meus avós emigraram ao Paraguai.” – Wow! Quem é ela? Será que, se a gente mandar algumas perguntas, ela responderá? - indaguei com os olhos quase saindo do rosto. – Ela é amiga da minha irmã. A família dela é de Santa Rita, em Alto Paraná21. Podemos tentar. Acho que sim! - disse. Minutos depois ela respondeu todas as perguntas via áudio. Minha felicidade não cabia no peito. Nós, os jornalistas, tentamos falar com as pessoas de qualquer jeito. Se não for possível um encontro presencial, a gente tenta via ligação, videochamada, e-mail, WhatsApp, enfim, tudo funciona! Emily Matte, atriz e estudante de Administração, atualmente no Rio de Janeiro. Os avós e pais são brasileiros. Quando sua mãe engravidou dela não tinha hospital na cidade, então os pais decidiram ir até Foz do Iguaçu, no Brasil, para o nascimento. Diferente da irmã, que já nasceu em território paraguaio. Nos áudios, ela foi descrevendo a sua experiência com esse encontro de culturas. – Nas cidades onde eu cresci têm muitos brasileiros. Então eu acabo vivendo imersa mais na cultura brasileira do que de fato da paraguaia. Mas ter contato com os paraguaios, aprender o espanhol fluente desde pequena é algo muito legal. Acho que me fez crescer muito e acho que os brasiguaios que moram lá sentem isso também. Eu nunca tive crise de identidade. Eu sempre falei que sou nascida no Brasil, mas com o coração paraguaio. Tudo o que eu aprendi, tudo o que minha família tem eu devo ao Paraguai. Sempre gostei do fato de ter nascido 21

Departamento de Alto Paraná.


61 no Brasil por que eu sabia que queria fazer a faculdade aqui, mas sempre me senti muito parte do Paraguai também. Algo interessante no último áudio é que ela ressaltou que não se identificava como brasiguaia por não morar mais na região. – Se eu morasse ainda lá, talvez sim me identificaria como brasiguaia. Hoje me identifico como brasileira criada no Paraguai e que minha família mora lá. Com essas declarações percebi que é real o que muitos estudiosos falam, não há uma definição concreta para a palavra “brasiguaio”, já que tem um significado diferente para cada pessoa. Fernanda encaminhou ao meu e-mail essa resposta, enquanto o céu de Nueva Esperanza ficava laranja graças ao pôr do sol. Voltei ao hotel morta de cansaço, tomei um banho e deitei na cama com o computador. Precisava deixar tudo em ordem para amanhã, já que sairia do hotel muito cedo, com todas as minhas coisas. Tínhamos os horários reservados com Fernanda e outras entrevistas, assim como a passagem de volta para Asunción. Não queria voltar. Queria continuar visitando distintas famílias e participando das atividades da comunidade. Queria entender o jeito deles e esse processo de mestiçagem que existe no local. Mas tinha um trabalho em Asunción, uma pauta a cumprir e uma reportagem para entregar. Falando disso, acho que tenho que começar a escrever.


62 São seis e meia da manhã e o dia começou cedo por aqui. Lá fora o céu indica que o termômetro não passará dos 25 graus, típico da estação. Peguei o meu casaco, minha bolsa com caderno, documentos e desci as escadas, para chegar à cozinha e fazer meu desjejum. Os últimos dias haviam sido intensos desde minha chegada ao Paraguai, a festa junina e o nosso almoço de ontem. No dia da Fiesta de San Juan, o diretor da escola nos convidou para visitar o lugar na segunda-feira de manhã. Ele iria combinar com alguns professores e a psicóloga da escola para podermos entrevistá-los. Havia combinado com a Analía de passar no hotel às seis e cinquenta da manhã. Então comi algumas frutas, servi meu café no copo térmico e saí para não chegar atrasada, pois a psicóloga da escola iria nos atender logo no primeiro horário, às sete da manhã. Algumas lembranças do meu período do ensino fundamental por aqui é que me encantava falar em espanhol com as pessoas à minha volta, porém a maior parte da minha sala falava em português. Lembrome bem quando um professor novo veio do interior e ficou abismado com a sala inteira conversando em outro idioma. Ele se esforçava ao máximo para que nós conversássemos apenas em espanhol quando estivéssemos dentro da classe, porém isso tornou-se difícil de controlar, principalmente com crianças. Aos poucos, ele foi aprendendo algumas palavras, costumes e até mesmo gostos. Quando chegamos à escola, o ambiente se aparentava completamente diferente do dia da festa. Os alunos já estavam em suas respec-


63 tivas salas, pois as aulas se iniciam as sete e ponto e, caso você chegue atrasado, segue para a diretoria. Entramos e seguimos para a sala administrativa, na qual recebemos o cronograma do que faríamos. Queremos finalizar essa parte agora pela manhã para que após o almoço possamos ir até Katueté e Cruce Guarani. Quero dar uma volta com a Analía por lá antes dela ir embora no ônibus das dezoito horas. O interior do prédio escolar parece bem diferente de quando eu estudara aqui. No trajeto até a sala da psicóloga fico pensando o quão importante o papel da escola para a nossa formação de identidade. Para a formação de quem somos e seremos. O lugar onde aprendemos que podemos sonhar, ser quem queremos ser e onde aprendemos a conviver em sociedade logo em nossos primeiros anos de vida. A Analía já estava com seu caderno em mãos anotando cada item que via. Em seguida fomos atendidas e então autorizadas a entrar. Ao sentar, comecei a retirar os itens que pensei que seriam úteis. Trouxe alguns dos meus fichamentos de leitura que já tinha feito durante o período da faculdade e alguns dos meus estudos sobre identidade, para pensar em alguma pergunta. Uma citação que está anotada e que acredito que me ajudará durante a conversa foi escrito pelo sociólogo Stuart Hall em seu livro “A identidade cultural na pós-modernidade”, no qual ele discorre sobre as velhas identidades consolidadas e como elas estão mudando: As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio. Se antes elas eram sólidas localizações, nas quais os indivíduos se encaixavam socialmente, hoje se encontram com fronteiras menos definidas, o que provoca no indivíduo uma “crise de identidade.22 22

A identidade cultural na pós-modernidade, 2020, p. 2.


64 A conversa fluía e a pergunta que faço para a psicóloga Jeanine Richter é se o fato de ser fruto de uma mestiçagem poderia em algum momento afetar o conceito de identidade que o ser tem sobre si - se realmente o que Hall escrevera já se encaixasse nessa situação de “novas identidades”. Nesse momento, apertei para que o meu gravador começasse a gravar também, pois queria guardar cada palavra de sua resposta. – Cada indivíduo vai aprendendo em seu ambiente desde o momento de seu nascimento. No caso em que tenha nascido em um país e os costumes de sua casa são de outro, a tendência é que o ser incorpore uma cultura diferente do lugar físico que ele está vivendo. Tudo depende da capacidade de adaptação e consciência das pessoas. Ao migrar, se o fizermos já adultos, deveríamos conhecer e, porque não, também adotar a cultura do lugar como algo enriquecedor à nossa. Se nos fecharmos a novas aprendizagens, possivelmente nossa adaptação será mais lenta ou não acontecerá. As crianças têm uma maior capacidade de adaptação. Enquanto a identidade, um vai construindo de acordo com as experiências vividas no contexto em que lhe toque atuar. Hoje em dia, com a globalização e o intercâmbio cultural que existe, não deveríamos nos fechar tanto a um lugar físico, mas bem forjar uma riqueza cultural e uma resiliência que é a capacidade de adaptação às mudanças. Ao escutar atentamente cada palavra dita por ela, detenho-me ao que ela falou a respeito dos dias de hoje: “Não deveríamos nos fechar tanto a um lugar físico.” Esta frase se assemelha ao conceito de Hall, mas me redirecionou a outro pensamento. Durante meu período morando no Brasil, onde convivi com muitas dúvidas a respeito do que eu era, pensei que todos da minha região sentiam o mesmo. Entretanto, durante as conversas que tive neste fim


65 de semana e após conversar com Jeanine, descobri que não era bem assim. Senti que talvez fosse apenas eu. Continuamos a conversa, Analía fez diversas perguntas mais voltadas ao processo psicológico que uma criança pode passar sendo filha de duas culturas e acredito que o que mais escutamos de Jeanine foi que “não devemos nos fechar para novos aprendizados”. Ao sairmos do escritório, encontrei um dos meus professores da época em que estudava ali. Há treze anos morando em Nueva Esperanza, José Quintana era uma pessoa com quem eu poderia conversar a respeito. Paraguaio, seu primeiro contato com o português foi aqui, quando chegou. Cumprimento e logo as perguntas de como eu estou e o que estou fazendo pela cidade, chegam. Respondo-as como sempre e, após esse momento de reencontro, pergunto-lhe se para ele como professor, já havia notado alguma crise no quesito de identidade a respeito da nacionalidade dos jovens ou crianças. Sua resposta vem como um sopro na mente. – Eu creio e vejo essa crise de identidade mais da parte dos paraguaios por que os brasileiros amam tudo que é deles. Eles são muito enraizados em sua cultura. Porém, o paraguaio pouco ou nada ama e menos ainda valoriza o que tem como identidade. Essa declaração me pegou de surpresa, mas comecei a pensar e tentar compreender o que ele havia dito. De início foi um choque. – Como assim, isso não tem nada a ver. – pensei. Pensamentos como esse vieram à minha mente. Respirei fundo e decidi fazer um exercício mental a respeito. Sair do meu posicionamento natural de moradora da região, para uma mente mais distante de toda a emoção que habita. Captei a mensagem, fiz-lhe mais algumas perguntas a respeito do seu processo de adaptação aqui, mas sua primeira resposta


66 manteve-se em minha mente. Nos despedimos e eu e a Analía pegamos a estrada para ir até as outras cidades. Fui pensativa enquanto escutávamos na rádio nosso mais novo gosto em comum, a banda paraguaia Tierra Adentro, e isso também era outra coisa que queria mostrar para ela. As rádios durante a estrada até Katueté eram todas em português, porém com uma mistura de estilos musicais e idiomas. Lembro-me de quando pesquisei a respeito do consumo dos alimentos e de quando conversei com Lucimeire Sifuentes. Ela cita a questão de se ter a necessidade de comprar os alimentos na cidade do outro lado da ponte. As mercadorias cruzavam o rio para chegar ao Departamento. Porém, isso se tornou um costume, fazendo com que hoje em dia, mesmo sem se ter a necessidade, você ainda encontre uma proporção muito maior de marcas brasileiras do que paraguaias. Isso fez com que, mantendo o idioma e seus costumes e tradições, não existissem impactos maiores que possibilitasse dúvidas a respeito de sua identidade, tanto para nascidos no Brasil como para filhos de brasileiros. Entretanto, ao ver isso na posição de um paraguaio que chega à região, dentro de seu próprio país e se deparando com um mercado que não vende a marca de bolacha favorita ou não o entendem ao falar guarani, causa um choque. Comento isso com a Analía enquanto estamos no trajeto para que ela conheça as outras cidades. Ao falar, ela me responde com um questionamento. – Isso faz muito sentido, Fer. No entanto, como isso se encaixa em você? Talvez seja por isso que, no seu caso, você também sinta essas diferenças e esse sentimento. Você possui essas duas culturas. Você carrega o forte de cada uma e, por isso, talvez lhe gerou dúvidas quando você chegou ao Brasil e quando você ia a Asunción.


67 Nunca tinha pensado sobre isso. Sorrio. Encaixou-se. Parece que finalmente descobri o causador de toda essa confusão mental que já me atordoou muitas vezes. Descubro também o rumo que quero levar aos meus estudos daqui para frente. Ao chegarmos a Katueté, mostro-lhe a cidade. Apesar de ser minha cidade-natal, não a conheço muito bem. Por isso, combinei com mais duas pessoas para conversarmos. Uma jovem, Maisa Tassi, fruto dessa geração, e uma senhora, Alice Lauersdorf, que chegou aqui no começo da cidade. Nossa primeira parada é a casa de dona Alice. Ela já estava nos esperando com um típico chimarrão bem quente - uma derivação da erva-mate com um processamento diferente - algo que você sempre encontrará, independente do horário, nas casas de quem veio do Sul do Brasil. Sentamos em seu sofá e começamos a conversar. Sua história é bem parecida com a de muitos que migraram nos anos 1970. Nascida no Rio Grande do Sul, dona Alice e sua família decidiram mudar-se para o Paraguai por conta dos preços das terras. Em 1977, com seus dois filhos, ela e o esposo cruzaram o rio. – Troquemo um pedacinho de terra no Brasil por mais terras no Paraguai. - Contou, enquanto enchia uma cuia de chimarrão. Entusiasmada para contar, ela seguiu falando sobre como foi quando chegaram a Katueté. – Em 1977, já tinha dois filhos, a gente veio pra cá. Nessa época, começo muito difícil no meio do mato. Katueté praticamente não tinha nada. No começo era difícil por que não tinha comércio e, depois, os filhos foram crescendo e já tô 43 anos aqui. De repente ela levanta e desaparece em outro cômodo. Nesse momento paro para observar as fotos e os porta-retratos expostos na sala.


68 Eles haviam construído toda uma vida no Paraguai. Sua filha Rose, por alguns anos fora casada com um paraguaio, com quem teve três filhos. Ao voltar, dona Alice chega com uma vasilha contendo pedaços de bolo de chocolate. Aquilo abrilhantou os meus olhos e o da Analía. Ao sentar-se, a jornalista perguntou como ela se relacionava com a cultura paraguaia e como foi quando chegaram ao país. – Aqui, pelo menos 80% é brasileiro, tem outra cultura, mas a maior parte é brasileiro e a gente aprendeu a conviver com a cultura deles. Paro para pensar na resposta que, com cada um com quem conversamos durante este fim de semana, haviam dado para nós a respeito da cultura. Cada qual carregando aquilo que o identifica, seja na gastronomia, nos costumes ou na profissão. De alguma forma e, em algum momento, o encontro característico das duas culturas acontece. Pergunto-lhe se em algum momento ela quis voltar ao Brasil, tendo em mente a situação do seu Jaci, que atualmente mora no lado brasileiro. Ela olha para o teto por um instante, como quem tenta encontrar palavras exatas, e conta que voltou. Por três anos ela morou com sua filha na cidade paranaense de Marechal Cândido Rondon, mas confessa que criou raízes em terras guaranis. Após um tempo de conversa e um bom chimarrão que, aliás, a Analía adorou, tivemos que nos despedir, pois um outro encontro nos aguardava. Entretanto, antes de entrar no carro, dona Alice nos descreveu como a cidade era no tempo em que chegou. Em um grande resumo, boa parte do que Katueté é hoje, com seus 17.000 habitantes, encontrava-se mato e as poucas casas citadas, bem distantes uma das outras. Entramos no carro e saímos rumo ao local que encontraríamos Maisa Tassi. Filha de pais que nasceram no Brasil, mas que moram


69 no Paraguai desde pequenos, também tiveram a menina em território brasileiro. Havíamos marcado de nos encontrar em um restaurante conhecido da cidade, Drei Schritte, que por sinal faz parte da família de Fernanda Feliú. Ao adentrarmos no local, já a avistei sentada nos aguardando. Apresentei-me, pois também não a conhecia pessoalmente, e introduzi a jornalista. Iniciamos nossa conversa com as perguntas já de tantas vezes feitas, decoradas, até que, em um dado momento, Analía perguntou se ela se identificava como brasiguaia e se em algum momento havia sentido algo diferente ao falar sobre sua identidade. – Sim, me identifico muito como brasiguaia! - destacou Maisa. Sempre me senti bem-vinda em ambos países, mas acho que eu poderia ter me infiltrado mais à cultura paraguaia. Gostaria de ter aprendido o idioma guarani ou ter vivenciado algumas tradições daqui, que teoricamente conheço, mas não costumava praticar. Ao decorrer desses três dias intensos, vivenciei diversos sentimentos. Iniciei com o mais intenso e puro do meu coração. Aos poucos fui percebendo que aquela realidade não era a de todos, mas que cada um vivenciava da sua maneira. Aos poucos fui vendo que muitas vezes os mais tocados diante dessa miscigenação são os paraguaios, desde o início. Jovens, filhos de duas culturas, carregam dentro de si um sentimento de pertencer, porém dentro dos detalhes e não como um todo. Saímos às pressas, pois o horário corria de nós. Quase nos esquecemos de que ela teria de pegar o ônibus das seis da tarde, para que amanhã pudesse estar na redação do jornal Marandu novamente. – Bom, de barriga e ideias vazias ela não voltará - pensei comigo mesma. - Nem eu. Uma ansiedade tomou conta do meu coração naquele exato momento. O meu simples e também complexo trabalho tomava outras


70 proporções. Do nada, tudo o que eu queria realmente acontecia: fazer com que as pessoas falassem sobre nós. Porém, não apenas de nossa soja, das nossas terras, mas sim da profundidade das histórias que temos por aqui. Das cidades construídas em repleta mestiçagem. A ideia de identidade tão diferente entre um e outro. Estamos agora em condições de compreender porque razão conferir uma identidade singular a mestiçagem se revela um absurdo. Já não se trata de mestiçagem, se demasiado bem ou demasiado depressa identificada. Uma fotografia minha não poderá ser totalmente eu; eu não posso aceitar essa redução a uma pose, ou seja, a uma só das minhas representações. (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p.81)23 Eis que LaPlantine e Nouss descreveram o que acontece em Canindeyú e em outras partes do Paraguai ao trazer o conceito de mestiçagem para dentro do movimento, algo que pertence ao ato. Nesse exato momento, já na porta do ônibus, nos despedimos. A jornalista asuncena e a brasiguaia socióloga hoje têm muito em comum. Diversas inquietações compartilhadas fizeram com que nos tornássemos amigas, tornando este momento até mesmo doloroso. Porém, ela leva consigo ideias, a receita de bolo de chocolate da dona Alice, algumas palavras novas em seu vocabulário e uma playlist renovada para curtir o embalo da viagem até a capital. Eu, agora, voltarei para Nueva Esperanza, sentarei em frente ao computador e darei início à minha pesquisa com um novo olhar. 23

LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A mestiçagem. Lisboa: Piaget, 2002.


71 ***

Há alguns dias estávamos na correria em prol da reportagem especial para o jornal Marandu. Ao chegar na terça-feira à redação, Analía conversou com o chefe, mostrou tudo que havia conseguido aqui nas terras de Canindeyú e, logo após, mandou-me uma mensagem. – Fernanda do céu! A matéria vai ser capa do jornal especial de domingo! Eu estou muito feliz, pois além de ser a primeira vez que um conteúdo meu vira matéria de capa, as pessoas poderão entender o que é e chamará mais a atenção das pessoas. Fiquei muito emocionada e animada. Tudo o que eu mais queria era que domingo chegasse depressa. Passei a semana ocupando a mente, fazendo coisas variadas e respondendo diversas mensagens dela no decorrer do processo de escrita. Conseguia perceber que ela estava muito empolgada pelo tema e que havíamos conquistado seu coração. O tempo foi passando e, finalmente, o sonhado domingo chegou. Uma manhã calorosa que não me recordava o inverno de julho que deveríamos estar, porém carregada de encontros e reencontros na escrita de Analía. De repente, ela me envia o tão desejado link de leitura. – AMIGA! SAIU! estou te mandando o link: www.marandu.com. py/brasiguaios. Assim que recebi, cliquei automaticamente e me emocionei do início ao fim.


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Retratos da fronteira brasiguaia A mes•çagem cultural da região é cul•vada desde o século passado graças à reforma agrária realizada durante o governo de Stroessner Asunción, 12/10/20

Analía Roa Monsalve Colaboração de Fernanda Martínez A cultura de uma sociedade está composta pela língua, crenças, hábitos, arte, leis e costumes, que são transmitidos de geração em geração. Porém, transforma-se, adotando novos elementos e apagando outros, assim como também podem se misturar com distintas culturas, como é o caso dos brasiguaios. Em 1963, durante o governo de Alfredo Stroessner, teve lugar uma reforma agrária que permitia a venda de terras para estrangeiros em regiões fronteiriças. Essa mudança veio para aproveitar a “Marcha ao Leste” promovida pelo governo de Getúlio Vargas no Brasil, já que as terras oferecidas no Paraguai eram muito mais baratas. Isso favoreceu a que uma grande imigração de brasileiros chegasse ao Paraguai, intensi•icada depois com a construção da Hidrelétrica de Itaipu. A Ponte da Amizade, que naqueles tempos era ainda uma novidade, começou a •icar cheia de caminhões de mudança, ônibus e pessoas que deixavam o Brasil para trabalhar nas terras vermelhas do Leste paraguaio.

Bienvenido a la República del Paraguay Seu Jaci Zimerman inicialmente veio ao Paraguai para ajudar com a mudança do cunhado. Com o objetivo de buscar uma vida melhor em Cruce Guarani, Departamento de Canindeyú, em 1980 ocorreu a mudança dele. “Eu trabalhava de empregado e daí pagava aluguel, e como meus cunhados moravam lá, tinha possibilidade da gente conseguir alguma coisa. Foi o que me animou de ir morar no Paraguai”, recorda. Para comprar as terras, Zimerman gastou ao redor de seis mil guaranis. Ele voltou a morar no Brasil, mas constantemente visita o país já que tem uma •ilha que ainda mora aqui. Neivo Fritzen instalou-se no país aproximadamente em 1995, época quando era muito di•ícil ter acesso aos documentos de residência, já que

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eram extorquidos. Essa experiência serviu para que ele atualmente possa ajudar aos imigrantes por meio da Igreja. “Comecei a participar da congregação dos scalabriniano, que é uma congregação dentro da Igreja Católica dedicada aos imigrantes no mundo inteiro”, EXPLICA.

Visão paraguaia dos primeiros tempos Fernanda Feliú mudou-se para La Paloma, Departamento de Canindeyú, em 1979, com seu esposo e os três !ilhos. Ao chegar, encontrou algo que não esperava. “Foi um choque, por que eu não sabia se estava no Brasil ou no Paraguai. Todo mundo falava português. As únicas emissoras de rádio que a gente conseguia escutar eram em português. A gente começou a trabalhar abrindo um almacencito e nossos clientes pagavam tudo em cruzeiros.” Ela lembra também como funcionava o comércio na região, que evidenciava o abandono das autoridades. “Tudo o que era produzido era levado para o Brasil, já que o trajeto para Asunción era impossível, por causa do estado das estradas, assim como também entravam os produtos brasileiros para serem vendidos aqui. Era um contrabando de ida e volta. Os responsáveis de cuidar da fronteira e a nossa soberania, como os militares, Marinha e os funcionários do Setor de Migrações, só enchiam o bolso de dinheiro. Essa região era terra de ninguém”, enfatiza. Para Fernanda, nos dias de hoje não há discriminação entre os brasileiros e paraguaios que moram na região fronteiriça, já que as culturas estão totalmente mescladas. “Os moradores são na maior parte paraguaios casados com brasileiras e vice-versa. Até na minha família tem! Meu !ilho está casado com uma brasileira e minhas netas são brasiguaias”, ressalta. Fernanda retratou toda essa experiência de vida no livro “Brasiguayos: ¿Bandeirantes modernos?”, publicado em 2003 e outra edição em 2018.

Quem são os brasiguaios? Não existe uma de!inição concreta para o termo “brasiguaio”, já que é interpretado de distintas formas. Utilizou-se pela primeira vez em 1985, em Mundo Novo, em Mato Grosso do Sul. Ali, um brasileiro que voltara do Paraguai, reclamou seus direitos, e o deputado federal Sérgio Cruz falou para ele: “Vocês são uns brasiguaios, uma mistura de

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brasileiros com paraguaios, homens sem pátria.” A partir daí surgiram diferentes signi•icados para a palavra. Igor Cesca se identi•ica como brasiguaio. Ele nasceu no Paraguai e é •ilho de brasileiros. Para ele, crescer entre duas culturas “é uma maravilha. Sinto que tenho conhecimento em dobro”. Já Lucimeire Sifuentes veio do Brasil com 13 anos, mas reage com desprezo ao mencionar esse termo porque “para mim soa pejorativo”. Há distintas concepções sobre os brasiguaios, mas em todas as situações a mestiçagem cultural é algo a ser levado em consideração. “A mestiçagem é uma invenção nascida da viagem e do encontro. Mas não basta que as culturas se desloquem, se encontrem ou convivam, para que esta transmutação tenha lugar. Muitas vezes a multiplicidade de populações reunidas numa mesma cidade não cria nada que se lhe assemelhe. O processo de mestiçagem só começa quando o fato de pertencer a essas cidades-mundo (cosmópolis) serve melhor a de•inição de identidade do que a nacionalidade em si” (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p. 18). Esse fenômeno social dos brasiguaios é foco de estudo no Brasil, a diferença do Paraguai, no qual quase não há pesquisas disponíveis sobre o assunto. O historiador Leandro Baller baseou seu estudo de mestrado na dissertação intitulada “Cultura, identidade e fronteira: transitoriedade Brasil/Paraguai”. Em entrevista, ele expõe a in•luência que essa imigração massiva teve para o Brasil. “Os números de migrantes brasileiros registrados não re•letem a realidade, já que muitos ingressaram no Paraguai de forma ilegal, mas ainda assim são números expressivos. Eu sempre trabalhei com uma estimativa de cerca de 500.000 brasileiros. O que eu acredito que é o que mais deve ser contado é a história das pessoas e famílias ao invés de números, por que a educação, saúde e tudo o que envolve a sociedade foram as grandes di•iculdades que esses brasileiros tiveram de enfrentar. Essa migração também liberou o espaço para os grandes empresários do Sul do Brasil, o que também tem seu impacto nos movimentos de trabalhadores rurais que lutavam pela própria terra”, ressalta. Para ele, o brasiguaio é um ser fronteiriço por excelência e manipula essa identidade criada de acordo com o que seja mais conveniente para ele. “Ele é ignorado pelos Estados, mas também ele tem muitas ferramentas para superar esse inconveniente”, sublinha.

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A psicóloga Jeanine Richter explica que, “enquanto identidade, um vai construindo de acordo com as experiências vividas no contexto em que lhe toque atuar. Hoje em dia, com a globalização e o intercâmbio cultural que existe, não deveríamos nos fechar tanto a um lugar •ísico, mas bem forjar uma riqueza cultural e uma resiliência que é a capacidade de adaptação às mudanças”.

A cultura regional Em Canindeyú, as festas tradicionais como a de San Juan, são comemoradas com as comidas típicas paraguaias e brasileiras, como o pastel mandi’o e a pamonha. No asado, a ensalada de papa é substituída pela maionese, acompanhada de um bom pedaço de chipa guasu e um pouco de farofa. Isso ocorre apenas em eventos especiais e não forma parte da rotina. Segundo a monogra•ia “In•luências da imigração brasileira na culinária paraguaia na cidade de Nueva Esperanza”, a professora de Gastronomia Lucimeire Sifuentes destaca que “os paraguaios não deixaram totalmente os seus costumes, mas incorporam os costumes brasileiros”. Para Francisco Viancheto, Intendente municipal de Nueva Esperanza, as expressões artísticas paraguaias e brasileiras convivem sem maiores di•iculdades na região, já que são ensinadas na mesma proporção pelos institutos locais. “Na escola municipal de dança, tanto brasileiros como paraguaios dançam nosso folclore. Na •ilarmônica eles tocam músicas paraguaias e brasileiras. Isso é muito normal aqui. Não há con•lito entre culturas ou raças, o que faz que a gente viva em um ambiente muito tranquilo”, comemora.

Economia e política A região é reconhecida pela grande quantidade de cultivos e pela pecuária em desenvolvimento que, segundo Viancheto, resulta da junção dos imigrantes e paraguaios. “Eles chegaram aqui já com tecnologia, com o que nós conseguimos dar um pulo gigantesco no que são os cultivos e ter uma melhor produção. Eles já tinham um jeito de trabalho muito mecanizado, diferente de nós. Tudo isso permitiu que possamos trabalhar com os aserraderos, palmito e depois com hortelã. Já na área da pecuária, eles trouxeram raças melhoradas”, detalha.

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Ainda é pouca a participação dos estrangeiros na região, já que muitos dos moradores acreditam que ainda não é o tempo deles na liderança municipal ou governamental. Mas, para o atual líder de Nueva Esperanza isso é questão de tempo, já que “nada se impõe, tudo se conquista”.

Conhecer o Brasil sem sair do Paraguai O Departamento de Canindeyú é um lugar pouco explorado na área turística, ainda com atrativos naturais como o Las Cordilleras de Mbarakaju, Amambay e San Joaquin ou os saltos de água em Ype Jhú, especial para os que gostam de acampar. Também, para os que gostam de estar em contato com a natureza, o Refúgio Biológico Binacional Mbaracayú, que pertence à Itaipu Binacional é ideal, como a Reserva Natural del Bosque Mbaracayú. É Importante destacar que muitos moradores da capital ou habitantes de outras cidades do país já tem manifestado sentimentos como de “estrangeiros” mesmo sem cruzar a fronteira. Já que as placas dos comércios são quase todos escritas em português. Também, é nessa língua que a maioria dos moradores da região se comunicam, mas se alguém fala em espanhol eles entendem perfeitamente e até respondem na mesma língua. Outro fato interessante é que nos supermercados os produtos brasileiros superam em quantidade os paraguaios, obviamente pela demanda dos clientes. Algo intrínseco, que ao início era causado pela necessidade e di!iculdade no acesso aos alimentos da capital, porém atualmente se tornou um costume. Assim, com todas as peculiaridades e diferenças, este Departamento oferece uma cultura diferente a que pode ser achada na capital do país, combinando os costumes paraguaios com os brasileiros, e abrir os olhos para conhecer mais sobre a mestiçagem que também formam parte da história paraguaia.

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80 “Nosso país é o mundo.” Essa foi uma das frases que escutamos durante o ciclo de entrevistas para escrever este livro. Em meio aos contextos e diversos assuntos relacionados ao processo que ocorre em Canindeyú, em resumo podemos chegar a essa resposta que Francisco Viancheto descreveu. Seja na gastronomia, nos costumes ou no próprio sobrenome que carregamos, a mestiçagem se encontra. De forma bela, construída em diversas formas e trejeitos, muitas vezes criando contrastes nítidos entre povos. Imagine se todos fôssemos iguais, com os mesmos costumes, comidas e estilo de música para sempre. Qual seria a graça? Ao início desta jornada éramos duas jovens com o desejo inerente no coração de escrever sobre sua terra e o que se tem de singular no Paraguai. Porém, ao decorrer de todo um ano literalmente único - com suas diversas peculiaridades não muito agradáveis que foi 2020 -, descobrimos que dentro da singularidade de um povo há um mundo de histórias, conectadas entre si, esperando para serem descobertas. Paramos para escutar uma delas. O encontro que aconteceu lá em meados dos anos 1970, em uma região que pouco se conhecia, continua em constante movimento e a cada dia com uma nova característica. Hoje, com o avanço da globalização, os encontros vão muito além de uma fronteira física, estando presentes dentro daquilo que nos deparamos no mundo da internet. Estudar os encontros é estudar quem somos, de onde viemos, para onde vamos e isso não nos permite um ponto final. A história dos brasiguaios continua...



IMPRESSÃO E ENCADERNAÇÃO ARTESANAL:



84 A par•r de 1954, ano em que Alfredo Stroessner assumiu a presidência do governo paraguaio, o processo migratório de brasileiros às terras paraguaias se intensificou. Esse aumento de imigrantes nas cidades do Departamento de Canindeyú tornou o número de brasileiros maior do que de habitantes paraguaios na região. Processo que gerou uma mes•çagem cultural e fez emergir uma sociedade conhecida como brasiguaia. Este é um livro sobre os modos de vida construídos na confluência destas culturas.


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