ME - A FÁBULA DOENTE DO CORPO

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ME - A FÁBULA DOENTE DO CORPO Para Tatsumi Hijikata

POSSIBILIDADE: ME

Aviso: Tudo apresentado a seguir é uma possibilidade que pode ser seguida, mas o importante é que não se esqueça que estamos tratando de uma experiência, a proposta de uma, então cabe a aqueles que passarem por ela decidirem o que ela será, apesar das sugestões aqui colocadas. Esta experiência condiz ao corpo, e a vida, portanto deve-se atentar que por meio da entrada de um sujeito nessa possibilidade narrativa todos os fatores desta devem se reorganizar, e claramente se revelarem incompletos, mediante a necessidade intrínseca que apresentam de um compartilhamento fundamentalmente necessário entre a vida-corpo-experiência daquele que lê o que aqui está escrito com este texto, com esta textualidade aberta. É necessário, desta forma, que aqueles que escolham passar por aqui entendam que isto escrito é apenas uma parte, o que se vive próximo a isto, tornando-se íntimo disto, é o que se precisa encontrar para que possa ser compartilhado com outros, um público, que deve também passar por aqui deixando marcas próprias do que bem lhes ocorrer, lhes acontecer.


CENA ÚNICA (A experiência começa da seguinte forma, temos no centro do espaço uma figura magra ou gorda demais, esta figura se chama Me. Atrás dele apenas um grande fundo branco, e vez ou outra um gemido ou-e um grito, que existem aqui como cenário, como fontes palpáveis que estão dispostos no espaço, independentemente da ação ou tempo transcorrido. Esta possibilidade apresenta ao seu lado uma cama hospitalar, que pode ser flexibilizada tornando-se uma poltrona, ou um trono, como preferirem. O espaço pode ser o quão amplo se pretenda dele, e aqueles que compartilham da experiência podem estar em qualquer lugar deste. A passagem de tempo deve ser marcada no corpo daquele que se dispôs a ser Me, de maneira que sem maquiagem, sem efeitos de iluminação, o corpo condense por meio da própria ação a presença da passagem de tempo através de tensões constantes que se somam em diversas partes do corpo a cada unidade de tempo, definível por quem desejar, sejam anos, meses, dias, horas, minutos, segundos, compondo assim uma estrutura corporal diferenciada, segundo a base do que seria comum ao corpo e vida daquele que se dispôs a ser Me. Ainda sobre esta pessoa é preciso dizer que deve possuir uma capacidade de contorção considerável, ou se valer de estratégias como cordas, correntes, fios de náilon, para subtrair-se de partes de seu corpo, sendo privado de sua mobilidade. Sugerimos também que esta pessoa, seis horas antes do início, trabalhe no ponto que ocupará no espaço diversos estados de dormência em seus membros superiores e inferiores, por meio de pressão ou apoio ou mesmo da utilização controlada de tecidos ou tubos de borracha – como tripa de mico, ou mangueira de soro – para provocar estes diversos estados de dormência em seu corpo).


Me – Eu me lembro deste dia E de tudo que virá adiante. Foi isso o que eu pensei Quando eles me disseram. Homem de branco número entra1, É hora do café, é descafeinado, é horrível, Ele checa a mancha verde crescendo no meu pulso Ele diz não se mova Ele sempre diz que me mover é perigoso, Ele está certo, A mancha verde é devida as borboletas do soro, Mexendo com seus focinhos estéreis No interior da minha pele Criando seus calos no interior da minha pele Colocando seus ovos. Mulher de branco número um entra Ela diz que eu deveria me mexer menos Ela aplica uma dose de qualquer coisa transparente, Um placebo de desânimo no meu braço tenso. Todos esses objetos colados em mim Mergulhando em mim Exigem a mesma medida, Movimentar-me é perigoso, Um estado de convalescença que se difunde A partir de minha capacidade mimética De pré-figurar como serei morto. Então a moldura transparente da dose Despenca sem jamais ser ouvida 1

No que se refere à interação entre Me e os continuamente referidos homens e mulheres de branco, e todos os

seus demais seguidores, a presença real destes não se faz necessária, a não ser no momento das reparações cirúrgicas dos membros, onde estes podem entrar a despeito do enunciado apenas para configurar a forma escolhida, contorção, amarração, ou outra, para subtrair a possibilidade de seu uso.


Das paredes de minhas veias, Aos poucos a sensação de que algo está se apagando, Diluindo-se, A sensação de que a cada dose Algo fixado nas paredes do meu próprio corpo, E não como acreditei antes preso num lugar específico, Estava se diluindo. Eu viro para a esquerda, deitado, o braço Esquerdo começa a ficar dormente, Ele ameaça se apagar, Eu o encaro e a cada minuto resisto à sensação de me apagar junto a ele. Eu o sinto esfriar e se esgotar em si mesmo Ele tenta mostrar ao resto do meu corpo o que sente Eu o proíbo Ele persistiu Eu o mordo, atravesso a pele, sinto a massa consistente Como se enfiasse na boca um grande pedaço De uma lasanha, e que lasanha Devo dizer, Aos poucos seus suculentos limites subterrâneos Voltam a emitir o sinal De permanência Em conformidade com o que eu escolhi, e o que eu Escolhi sem qualquer conformidade além de exercitar Minha capacidade idiota de poder escolher Foi senti-lo, e ele cedeu. Mulher de branco número dois Mulher de branco número três Homem de branco número dois entram, Eles me encontram Meus contornos estão bem definidos Não há nada se apagando Eles se preocupam, porém, em corrigir Os problemas de escoamento, eles o corrigem,


Eles costuram o pedaço da lasanha, Os pontos unem de maneira mais clara o que cometi, A linha que sobrevém na superfície Comprova a união daquilo a mim E mostra na cartografia externa que aquilo é meu E não de um devir do braço É meu. Três horas se seguiram Inclinando-me para o lado Ameacei novamente me apagar, O sono me enganou diminuindo o ritmo Do compulsivo tique dos dedos da minha mão direita. Isso não é certo, Não pode ser certo, Isso é meu, Depois de tanto tempo guardando isso para mim, Mesmo com todo o resto na lama, Na mais profunda merda, Mesmo com a fervura que faz as paredes do compartimento gemerem, Eu guardei para mim, meu corpo. Abrindo e fechando a gaveta Bati com ela contra meus dedos, Em sua dança sem sentido, durante toda a noite Fraturando as falanges do dedo polegar E do dedo indicador, com a borboleta do soro Teci ainda um lindo campo De furos na palma da mão E assisti meus pontos de sangue germinarem Numa planta amorfa e sem surpresas E aquilo me satisfez. Eles vieram de novo, No nascer da manhã.


Mulher de branco número três Mulher de branco número quatro Homem de branco número três Homem de branco número quatro Homem de branco número cinco Entram. Eles secam os bolsões de sangue de minha mão, Limpam os furos, e os aninham com gaze, imobilizam então os meus dedos com uma tala, Cobrindo-a com gaze. Eles me enfiam dentro de uma camisa de força, Eles me olham, eles empurram seus olhos sobre mim, Porque eles escolheram que seus olhos fizessem isso, E isso me faz respeitá-los porque eles são minha audiência E eles não se ausentam de se impelirem a estar na minha presença De contornos bem definidos por quaisquer motivos. Eles vêm e olham o meu projeto, Conferem a arquitetura geral do meu cenário Abrem minhas calças e trocam minha roupa Retiram a placa de fezes sob minha bunda Enxugam com cuidado a urina sobre meu pênis, meu escroto, minhas coxas, Eles visitam meu projeto e tentam auxiliar para que Ponto por ponto o plano não se esquarteje em unidades pequenas Que respondem independentemente, como um pasto que corre para um ímpeto e não como um ímpeto que corre para um pasto. Os homens e mulheres são o meu povo, E como seu soberano eu devo ser gentil e paciente quando Percebo que minha vontade se apresenta em ritmo Intenso demais para que eles compreendam, É preciso o tempo para pensar as deformações compiladas no exercício do poder. Afinal como todos os homens eles escolheram ser regidos por várias forças, E vários soberanos ocuparam as posições que lhes garantiriam Um caminho profícuo, outros homens como eu, que em escritórios, Todos eles localizados aqui mesmo, neste andar, Regem seu pequeno cosmos de forças Num ritual diário de bondosa mutilação


Que mantém funcional a percepção dos papéis que ocupam seus seguidores Na rotina do exercício de seu poder. Nos dias que se seguiram mapeio os meus dentes compenetrados Em sua estrutura de cordilheira, O interior da minha boca, A mucosa pornográfica que funciona como câmara De contenção para os que pretendem adentrar o espaço protegido em seu interior, Como uma grossa camada de húmus entremeando a semente, cheio de promessas Para cerca-la, Os palatos e suas consistências respondendo ao esfregar da língua, A cama se glândulas onde o extremo da língua Deita-se, As gengivas e suas geografias abissais, erodidas pelos depósitos De dejetos que correm os dentes até a base. Todos eles um sistema de espera Dos atos para os quais são compostas suas próprias silhuetas. Todos eles confinados como pequenos animais mutilados Pelo que foi de minha vontade que enfrentassem, Assumindo na ausência de minha atenção Uma antiga hibernação cheia de carícias e esperas. O braço esquerdo volta a insurgir, Reclamando de sua posição e da maneira como Estou paralisado, eu tento dissuadi-lo, digo-lhe: Não há Qualquer desconforto na posição que ocupo, Está tudo bem, Não há nada do que reclamar. Ele simplesmente me ignora Mandando suas mensagens exortas de ódio Pelo próprio prazer de tentar me humilhar, Espalhando seu transtorno, incompreensível para mim, Pelo resto do meu corpo,


Se comunicando com as demais partes do meu corpo, apesar de ter sido advertido Após suas tentativas anteriores. Saído da camisa de força, Devo agora demonstrar aos demais que se deve Manter a atenção com relação à vontade E sua corrente irrefreável. Desenvolvo o plano de execução do braço esquerdo, Pinço uma a uma as gotas de suor Que movo para formular seu exílio e conseqüente execução E as devolvo a boca Para que ciclicamente não haja quaisquer desprendimentos das demais partes, Sejam poros ou neurônio ou estômago, Para realizar um ato cruel com relação a aquele Que em outro momento foi um dos nossos. Com o auxílio dos dentes mordo as talas que protegiam Os dedos do braço esquerdo, durante todo o processo. Primeiro forçando o ombro contra uma das paredes O desloco, fazendo pender o fruto podre Por sua vontade de maturação excessiva, Piso então na mão com o auxílio da perna esquerda E coloco neste ato Todo o meu esforço, e em quatro ou três impulsos violentos Para ficar de pé pisando sobre ele O decepo, rompendo os ligamentos, músculos, pele, e tudo mais. Concluo o ritual Em choque olhando fixamente Para aquela criatura egoísta, fora de meu território, De minha composição, Agora apenas um gomo extirpado em sua infância Separado de sua casa por sua remota pretensão De ir além de minha vontade, Da vontade do meu corpo.


(Aparece neste instante a projeção ao fundo de um texto, as memórias do braço esquerdo. Esse texto2 deve estar escrito em um software qualquer contanto que após dez segundos estático ele comece a ser apagado, de sua primeira linha para a última, no ritmo ditado pelo pressionar da tecla Delete no teclado. Apesar de que nossa sugestão seja que uma profunda investigação seja realizada por aquele que escolheu ser Me, a respeito das lembranças e das ações e das situações nas quais o braço esquerdo teve determinada influência particular em sua vida. O braço esquerdo é um ente físico e físico-verbal, e chamamos ele desta forma apenas para sinalizar ao que nos referimos aqui, mas deve ser compreendido que ele é um conjunto, ou sistema, como prefira, de elementos independentes que por sua carga viva resguardam cada qual memórias, dito isso recomendamos que ao serem inseridos, os elementos citados no texto não devem ser precedidos de pronomes de posse, como “meu” e minha”. Dizemos “recomendamos” pois compreendemos que o que está dito aqui é apenas a sinalização conferida pela experiência e a vida de um corpo, o nosso 3, e compete a cada um ao viver esta experiência, este grafo existencial, como diria Eduardo de Oliveira Elias, estabelecer quais são seus graus e como eles se referem ou não ao seu corpo. Deixamos abaixo nossa contribuição.) Braço Esquerdo – Movimento fechado, ela se aproxima, o calor se espalha, o encaixe entre suas coxas, o silêncio, como uma pausa, como um movimento. Força, força e dor. Dedos se arrastando na pele, o contorno, calor, mais calor. Apoiar o resto do corpo endurecido. Um carinho em sua face, a ponta de seus fios de cabelo mordiscando a superfície. Segurar, com mais força, sangue, sangue, inchar e encolher. Coçar os olhos e aliviá-los. Segurar a arma, permanecer firme, esperar, esperar, puxar o gatilho, a pólvora aquecendo a superfície. O suor na palma, na mão, quando segurei firme você. A consistência estranha da pele da avó. O volume do seio intumescido da mãe, sobre a minúscula palma. O tecido sintético formigando. A ferida. O corte. A caspa dos cabelos presa nas unhas. As unha se expandindo e se expandindo. O frio do álcool e depois o calor, e a agulha incômoda a princípio retira o sangue e nada mais. Pouco sangue, formigar, aos poucos desmaiar, a sensação de estar livre, sem controle, a dormência que retrocede com seus cristais de sal incrustados entre as fibras dos músculos. Um soco, um grande soco, os dedos se comprimindo, o cotovelo em gancho, o sangue nas falanges tensas escorrendo para a palma da mão. Frio, frio, frio, segurar o cubo de gelo, os pingos no antebraço. A 2

Sugerimos que este texto jamais seja salvo, como o foi feito aqui, que ele seja escrito antes do período de

seis horas mencionado na segunda página desta experiência. Todas as vezes deve ser escrito por aquele que escolheu ser Me. Sugerimos também que aquilo que vemos projetado nesse momento não seja o texto em si, mas a gravação do apagamento já realizado imediatamente após o término de sua escritura, na qual o texto ocupa toda a tela. Recomendamos que aquele que escreveu o texto só retorne ao registro videográfico de qualquer deles após ter se escolhido parar de vez esta experiência. 3

Nos utilizamos da expressão “nosso” neste ponto, por duas possibilidades a primeira implicada pelo discurso

na primeira pessoa do plural utilizado, para talvez implicar em certo distanciamento das sugestões oferecidas, e a segunda porque de fato aqui sozinho de frente para o teclado tenho ciência de que nesta experiência é importante ressaltar que “nós” ou “nosso” quer dizer o corpo, este corpo em todas as partes que dele compartilham.


agulha entrando no couro na mão e puxando indolor os pequenos pedaços da superfície homogênea. O ombro deslocado quando caí na cozinha, o frio do piso e as linhas entre a cerâmica sem temperatura, a dor e a cócega simultâneas naquele espaço de tempo, longas horas, nos ocorre, meia hora responde a vontade. Entrar pela calça dela e tocar o seu sexo, e sentir a carne, a vulva aberta, os pêlos rasteiros em sua fervura se arrastando no centro da palma, prazer, calor, prazer. O auxílio à língua para limpar os restos entre os dentes, rastejando a ponta da unha no contorno úmido e amorfo dos dentes, ou na pista lisa da gengiva e seu calor terno. Sangue, sangue, um choque no nervo, no cotovelo, o copo saltando da mão. Sangue, sangue. Calor, calor. Coceira. A tomada fora do lugar, os dedos tocam o pino, uma massa desprovida de espaço me queima e não sentimos, eletricidade, o tremor, o tremor, tudo ao mesmo tempo, fora o impulso e os músculos saltam, saltam, o calor, o calor, sangue, sangue, a pele nos dedos tostada. A brasa do cigarro, queimar, queimar, a pele encolhendo no braço, a ferida em círculo perfeito, a casca cobrindo a pele nova, o pus, quente, lento. Úmido, a saliva escorre na pele, a boca em cima do antebraço, quente, lenta. A cera nos ouvidos untando a ponta da unha, o muco das narinas, quente, lento. Homem de branco número um Homem de branco número dois Homem de branco número três Homem de branco número quatro Homem de branco número cinco Mulher de branco número um Mulher de branco número dois Mulher de branco número três Homem de branco com estetoscópio sem número Entram após ouvirem meu chamado. Eles me acolhem, seu soberano, E me levam para um desfile pelos corredores, Deitado em meu trono eles me carregam Aos olhos dos outros, celebrando o êxito de minha investida, Com a mão direita tento acenar para os demais seguidores Trabalhando no corredor, infelizmente não consigo. Tenho de me retirar aos cuidados De meus seguidores mais próximos. Homem de branco número cinco Mulher de branco número um


Mulher de branco número dois Mulher de branco número três Mulher de branco número quatro Homem de branco com grande agulha Homem de branco com bisturi Eles me colocam sob as luzes4, Averiguam a retirada bem sucedida Do enjeitado, Entre golpes precisos, raspagens e delimitação da fronteiras Para que nenhum traço Do estúpido reste e ameace um traço de metástase, Eles conseguem fechar de maneira bastante eficiente A nova cartografia Do meu corpo, Emancipando-o para o inferno mais recolhido, Aquele copo gordo e agora derramado de Fome insensata e injustificável De destruir minha vontade. (Durante todo o resto do transcorrer da experiência o braço esquerdo permanecerá em cena, ocupando um espaço afastado de Me. Ele se moverá independentemente, e será alimentado pelos seguidores, que também lhe darão banho, lhe entregarão brinquedos, lhe darão um controle remoto, ligarão a TV para que assista, lhe entregarão livros e revistas, das quais ele usufruirá do modo que bem entender, contudo sempre ativamente). Sala branca número indefinido. 4

Sugerimos que nos momentos que concernem à sala de cirurgia e isolamento na sala branca sem número,

possamos ver seguidamente ao vídeo com o texto um curto vídeo arte, nesta devem emergir aspectos de projeção do corpo individual no mundo (aqui trazidos por rituais culinários que concernem a nossa vivência), havendo sempre a presença de cirurgias ou processos médicos cujo principal intuito seja a modificação com fins estéticos do corpo, se aliando a visão de nossa possibilidade (Me), nesse ponto recomendamos o afogamento e fuga de formigas no fundo de um copo que se enche de água por meio de um pequeno tubo transparente que adentra o copo no início do vídeo, contraposto a essas imagens recomendamos o uso de frames de uma lipoaspiração gravada, precisamente o momento da retirada da gordura por meio de sucção.


Eles me trancam, Devo pensar no que fiz, Eles dizem. Eles estão certos, eu não poderia liderar, Seguir a frente deste grande número de miúdos E grandes pedaços de mim sem saber Ao certo para onde estava caminhando. Fiquei quieto, e para encontrar a melhor forma De solucionar a crise após o exílio Do braço esquerdo, retirei da dor em meu ombro O grão que estimularia todo o meu processo De pacificação com o meu corpo. As conclusões eram sempre as mesmas dentro do corpo, É preciso que venha à tona a violência Para que a melhor forma de paz frutifique, É das faíscas de um ato grotesco que virá o incêndio purificador, Do qual finalmente surgirá a sucessão, A continuidade da vontade para além desse momento, A continuidade após esse momento Como os homens bebendo vinho após Imolarem um animal em sacrifício Ao que vislumbravam como um estado de paz Que gostariam que fosse posterior aquele momento em si Que sucedesse a si mesmo No domínio de sua vida. Suceder a mim mesmo no domínio de minha vida Era esse o objetivo que devia encontrar, E a dor de perder o braço esquerdo seria esquecida, Como todas as dores, só lembradas no momento de sua concepção E de seu parto e logo após destroçadas Por sua própria natureza, perdendo-se no mundo com ou sem Aquele que lhe serve de hospedeiro, mas sendo em princípio Esquecidas em suas motivações, pretensões ou desejos, como uma dor


Que se desfaz em seu sentido no mundo, É assim que o braço esquerdo deve ser lembrado. Aparentemente convenço a todos eles, Todas as partes de meu corpo. São necessários oito meses para que meu corpo e meus seguidores Aceitem que finalmente estou seguro de meus atos, Mas por fim eles aceitam, me cumprimentam E me encaram novamente. De volta a minha casa, a sala do soberano. Tudo na mais perfeita paz, O sacrifício foi aceito, estamos salvos Eu digo Estamos salvos, eu digo para toda parte. Assim reinou o silêncio nesse tempo E tudo era apenas sobre ou sob alguma coisa, Nada que se inclinasse Pendesse Caísse Se voltasse Apenas sob ou sobre alguma coisa, E essa coisa era meu corpo Era minha vontade. Certo dia Sentado próximo à janela Pensando apenas que aquela Paisagem era a coisa mais estúpida que Poderia haver, abaixo os meus olhos E vejo minhas pernas balançando, Minha perna direita precisamente, considerando Que a esquerda estava apenas ensaiando a vontade de seguí-la. Eu não ordenei qualquer ação,


Eu penso, eu não solicitei que nada Disso estivesse em movimento, todos sabemos a que custo Mantemos essa paz durante esse período de transição, Tal ato é minimamente uma ofensa Ao estado ao qual elevei nossa vida. Isso não é permitido, Não pode ser permitido. Receberá uma advertência E apenas uma e se tentar me ironizar em minha sala novamente Será punida, esfaquearei você até que Perceba estar apenas movendo a faca Sobre um caroço intumescido de sangue, Não admitirei. Enfio a agulha no joelho, Desta região para baixo estarão todos Em observação, E o único prognóstico possível para essa baba de desgoverno Esmiuçada nesse melodrama infinito de vocês É o exílio e a conseqüente morte. Estão calados. No dia seguinte Volto a sentir o braço esquerdo, Sem perceber o levo ao invés do direito Para me buscar um copo de água. Sinto sua presença, sinto os dedos se movendo, Sinto-o coçar durante toda a noite, Mas não serei humilhado novamente Referindo-me a uma suposta presença Deste idiota Na frente de todos. Pela manhã ainda o sinto e sem notar o levo Para me apoiar para levantar e caio No chão quebrando a ponta de um dos dentes Incisivos superiores. Fazendo-me parecer


Um pedinte imbecil de muletas entre os carros, Justo a mim, foda-se seu bastardinho, Foda-se. Homem de branco número um Mulher de branco número um Eles entram e verificam meus dentes, Meu corpo, ferido por uma prodigalidade Abortada de minha geografia. Enquanto eles me examinam Olho para baixo E lá está novamente o movimento, A marca proibida em meu território O sinal carregado pelo portador Do gérmen podre, aquele que se move E semeia nos solos fronteiriços de minha vontade Sem saber que no território dos limites apenas As facas germinam arrastando em sua ponta A delícia de afirmar novamente o contorno, A passagem entre o pó falso de uma presença possessa e incompleta E a obscenidade encomendada por um domínio rigoroso que tece a gravidade Que dá peso a cada asa. Então estava decidido. Durante a noite eu fui até a sala onde Estivemos pela última vez juntos Eu e ele, Ele que deu início a tudo isso E que com sua humilhação me obriga a tomar tais medidas. Na sala eu tomei em minhas mãos a pequena serra Usada para atravessar a barreira dos ossos Na amputação, O instrumento mestre, a ponta da faca A partir da qual o veredicto pode adentrar o campo


Da fisicalidade. Eu a aciono, e por meu planejamento e vontade Ela começa a girar, o barulho é alto. Do meu quarto às vezes ouvia os gritos E o rosnar de seu motor, não poderia dizer se aqueles Que ouvi pertenciam a um homem ou mulher ou criança ou animal, São indiscerníveis esses gritos e eram eles Que com sua presença fantasmagórica assombravam Os corredores do meu domínio, gritos agudos e graves Emissíveis por qualquer forma viva, sem distinção, Algo que pode ser proferido por todos E que não os distingue uns dos outros, Uma linguagem que não possui graus E cujas palavras, todas elas, possuem um único significado, Um único significante, um único interpretante, Na qual nada mais resta a dizer, na qual está esgotado desde O princípio a fundação dos sentidos. Eu o olho, Um olhar afetuoso, Um soberano não deve se mostrar Ingrato mesmo num momento como esse, afinal Os esforço e apoio de um companheiro Devem ser reconhecidos, Inclusive neste momento, E para este momento o melhor final de todos, Um beijo, uma língua metálica entra nos lábios da ferida Proferindo suas juras de amor, se mostrando apenas apetite e paladar E mais nada a tudo que há no interior de seu amado, E afundando até o fundo da boca da ferida Puxando com força a cabeça contra seus lábios. O joelho se desune e despenca, o som maciço De sua queda no chão me reconforta, E de lá me olhando como um cão


Pedindo minha benção, meu carinho, meu toque, Ele permanece inerte, desalojado, Do convívio daqueles com os quais se habituou, Morto por sua mania desprezível de lamber suas feridas De vomitar para o exterior o veneno que deveria vencer dentro de si, Ele agora era apenas um hidrófobo sem importância Arrastado para receber o golpe derradeiro Por existir sob a premissa de tal forma. (Aparece neste instante novamente a projeção ao fundo de um texto, as memórias da perna direita. Esse texto também deve estar escrito em um software qualquer contanto que após dez segundos estático ele comece a ser apagado, de sua primeira linha para a última, no ritmo ditado pelo pressionar da tecla Delete no teclado. Apesar de que nossa sugestão seja que uma profunda investigação seja realizada por aquele que escolheu ser Me, a respeito das lembranças e das ações e das situações nas quais perna direita teve determinada influência particular em sua vida. A perna direita é um ente físico e físico-verbal, e chamamos ela desta forma apenas para sinalizar ao que nos referimos aqui, mas deve ser compreendido que ela é um conjunto, ou sistema, como prefira, de elementos independentes que por sua carga viva resguardam cada qual memórias, dito isso recomendamos que ao serem inseridos os elementos citados no texto não devem ser precedidos de pronomes de posse, como “meu” e minha”. Dizemos “recomendamos” pois compreendemos que o que está dito aqui é apenas a sinalização conferida pela experiência e a vida de um corpo, o nosso, e compete a cada um ao viver esta experiência, este grafo existencial, como diria Eduardo de Oliveira Elias, estabelecer quais são seus graus e como eles se referem ou não ao seu corpo. Deixamos abaixo outra contribuição.) Perna Direita – Sob a planta no pé a areia, afundar, afundar, e a água eleva em vôo os pêlos na canela e colando-os em seguida na pele, frio, frio, a areia cobrindo o pé. O vento secar, secar, os grãos de areia entremeados nos pêlos, pequenos tumultos de pêlos, em várias direções. Abafar, envolver, a costura dos sapatos roçando no dorso no pé, os dedos empurrados, o dedo mínimo esmagado como um grão cozido pelas paredes do sapato. Câimbra, enrijecer, enrijecer, o fio do tendão se tenciona como a corda de uma cítara, a pressão, a pressão, sangue, sangue, dor, dor, dor, o ranger em tudo se estendendo após o momento. Os chinelos e o ritmo da batida quando andam, separando-se da planta nos pés e retumbando no chão e saltando de volta, um brinquedo, a leveza, a leveza, a repetição, a alça sobre o dorso no pé, a marca na pele deixada pelo sol com o formato da alça. A pele no joelho arranhada, as bordas inchando, o suor pulando dos poros sobre a ferida aberta, uma dor única, toda ela em si mesma, a dor não extrai de si a semelhança com as demais, a dor é apenas urgência após o sentido. Os bolsões, os calos, levantando o couro, e inflando-se de água, enchendo, enchendo, calor, calor, viram carapaças duras, como empilhar um defunto sobre o outro, como um sinal de que a forma pretendida é sempre um desgaste da própria forma. O peso despencou sobre a unha, o sangue se acumulando, um sistema de ejeção que a eleva, descolando-a da carne amolecida sob ela, o vento batendo sobre o ferimento, ânsia,


ânsia. O cachorro salta, ele está preso por uma corda, ela diz que há espaço suficiente para passar, não há, ele se agarra com as patas na panturrilha e crava os dentes sobre ela, o frio, o frio, o frio-morno, o sangue escorre, os nódulos de onde cada dente entrou sobem sobre a pele, ela pega o sabão de cinzas e limpa a ferida esfregando a superfície lisa da barra de sabão como se engomasse os pêlos, a pele em si mesma. O gato se movendo por várias partes no pé, deixando passar cada pêlo e arranhando sem força com as unhas compridas, passando por fim seu rabo cinza e o deixando derramar-se até estar fora, o calor, o calor, o pulso do corpo do gato, rápido, como uma vida explodindo, rápido. As conchas debaixo da planta nos pés, formando uma geografia de decomposições, de cálculos formais sobre imprevisibilidade e acaso, cortando tão lentamente, as ostras, que muito depois essa dormência quase insensível do mar passará e só então os sentirei além da cócega.

Homem de branco número um Homem de branco número dois Homem de branco número três Homem de branco número quatro Homem de branco número cinco Mulher de branco número um Mulher de branco número dois Mulher de branco número três Homem de branco com estetoscópio sem número Entram E me encontram, E o encontram, O cuidado de meus seguidores é o mesmo, Mas a pompa não é mais a mesma, Estou perdendo sua confiabilidade, Um soberano cuja textura esmaece E os contornos se perdem, Seus olhos me indicam. Estão certos, Com o braço esquerdo foi dessa forma, Com o joelho direito foi dessa forma, Eu sinto, algo está se apagando Como esse texto decorado com o passar do tempo sem audiência


Algo está se apagando dentro de mim, Uma memória que pensei estar guardada em outra parte, Mas que com a primeira, assim como com a segunda queda, se manifestam Eles se vão, mas carregam algo que me pertence, Algo simulado ou unido apenas dentro deles, A interrupção súbita de uma fala a qual não se notava até Que se deixa de proferir, uma confissão engolfada com cuidado Que esteve sempre encoberta por determinada parte De repente notada quando o objeto é retirado, Mas então já é tarde e o suor da própria força para movê-lo apaga o escrito. Homem de branco número cinco Mulher de branco número um Mulher de branco número dois Mulher de branco número três Mulher de branco número quatro Homem de branco com grande agulha Homem de branco com bisturi Eles conseguem5 Novamente separar todos os entalhes, A marionete repentinamente ganha vida E sua única vontade é tornar seu plano e a si mesmo reais. (Durante todo o resto do transcorrer da experiência a perna direita também permanecerá em cena, ocupando um espaço afastado de Me. Ela se moverá independentemente, e será alimentada pelos seguidores, que também lhe darão banho, lhe calçarão um sapato, lhe darão um tapete, lhe darão uma pequena escada, lhe entregarão pedras e um pôster com um pôr do sol, das quais ela usufruirá do modo que bem entender, contudo sempre ativamente.) 5

Igualmente à nota número quatro, recomendamos aqui o uso de uma vídeo arte, para esta sugerimos a

imagem de lingüiças cruas colocadas na grelha de uma churrasqueira em brasa, o vídeo deve acompanhar o processo de assadura das lingüiças, durante o qual a mão que as colocou na grelha deve aparecer perfurando com um garfo a película que envolve a carne das lingüiças e deixando a gordura escorrer e cozinhar formando linhas brancas na superfície, e logo após abrindo-a com uma faca ainda na grelha. Contraposto a esta imagem sugerimos a utilização de frames de vídeos de cirurgias de aplicação de botox.


Sala branca número indefinido. Eles não acreditam Mais em mim, não como antes, É a segunda vez que demonstro minha inabilidade Em governar o território Da minha vontade, É necessário concentrar-me para encontrar novamente uma resposta, Já que a última se mostrou Errada em suas conclusões. Não é a dor eu repito, A dor é na verdade a mais completa passagem Para a realidade. Quando pensei na dor não me dei conta de um detalhe, O que me interessava era na verdade O seu processo de desaparecimento, Que aos poucos a tornava invisível, O seu desaparecimento não apenas no sentido Visual, Um impulso que facilmente guia a todos nós E nessa ilusão é fácil padecer, Porém há algo urgente que se atrela a esse Desaparecimento, que se esconde Inclusive atrás da própria forma invisível, Um pequeno gen mutante Que confunde os princípios reais de minha busca, O desaparecimento apenas se dá Se há no campo da memória um apagamento, Um apagamento mecânico Pois seria demais arriscado pensar num apagamento simbólico, Pois os símbolos partem da premissa da união Da opressão das diferenças, e embora Seja isso o que busque devo compreender Que minha escolha não pode ter sua compreensão Compartilhada com ninguém, pois este corpo é meu


E apenas meu e para ele deve haver uma solução que condiga apenas Com ele e que ninguém mais possa compreender por Estar fora dos domínios de seu próprio Movimento impulsivo de sobreviver De estar presente, É isso que me diferencia como líder Dessas partes Desses seguidores. Eles não têm uma camisa de força para mim, Resta uma grande sobra sem o braço, Eles não têm um objeto que possa especificamente me deter, Talvez apenas a morte, mas eles não ousariam, Discutiriam com o mundo inteiro antes de me matarem para meu próprio bem, Para o tipo de pessoa que sou agora Aquelas a quem faltam partes, A quem faltam pedaços, Não existem instrumentos criados para nos combater Somos o melhor exército se nossa batalha é contra nós mesmos Pois não existem objetos que nos detenham, As camisas de força para os que não tem braços, As algemas para os que não tem as duas mãos, As cordas para quem não tem as duas pernas, Sempre teremos a ineficácia dos objetos a nosso favor Quando o objetivo for derrotar a nós mesmos, Mesmo em meio às paredes acolchoadas basta apenas Esperar um dia ou mais fora daqui E consumar a higiene da batalha. Desta vez espero muito mais, É preciso ter paciência, A dor novamente domina Causando o caos em meu domínio, E a paz se torna um movimento cada vez mais irreconhecível Uma ação impraticável, devo escolher Entre uma das formas de violência,


A única opção é escolher entre uma das formas de violência. Minha escolha é deixá-los a deriva Sem quem lhes diga nada, Apenas partes inconsistentes demais Para existirem sem prévia ordem. São necessários três anos Para convencê-los, Mas eles me deixam sair, Mas me mantém sobre a vigia Cerrada de seus próprios olhos, Para que não saia de minha sala sozinho, O melhor seria dizer desacompanhado, Pois afinal como se pode estar sozinho com o corpo (interrogação) A única vantagem de fazer terapia em grupo Quando você está consciente de que não necessita É ter ao seu lado pessoas que compreendem As ações drásticas que deve se tomar Quando se pretende ter o poder sobre seu próprio corpo. Sento-me no círculo de cadeiras e o que Que vejo não são homens e mulheres Que precisam falar algo para estranhos Em semelhantes condições, O que vejo são grandes líderes do mundo Pessoas a frente de seu tempo, profetas tentando mostrar Para aqueles que ainda não compreendem Que uma força nova se aproxima e deve ser reconhecida, Mas como Dostoievski certa vez disse É fácil que confundam os profetas e os mártires, Levando ambos a uma morte parda. O que vejo são homens e mulheres que tiveram a coragem De colocar em seus corpos as evidências Daquilo que apenas os bêbados sussurram acreditando que estão loucos, Quando na verdade estão apenas parando de negar as forças que agem A olhos vistos sobre nosso mundo, nós estamos na linha de infantaria


Mais à frente na batalha, olhando mais próximo do que qualquer um A ação da força que busca nos invadir, E como toda linha de infantaria estamos deformados pelos impactos Da munição usada no combate, só que ao contrário Do que pensam no fundo do palco, nas coxias, Estamos desta maneira porque o que todos ainda não puderam ver Está tentando se comunicar, através de nossos corpos Paralisados, incompletos, desmemoriados, aos tiques. O grande aviso, o grande encontro das nações, as decisões mais Impactantes, os principais abalos para o mundo, acontecem aqui Nesse círculo onde estou sentado ao lado destes grandes líderes, Donos da arte contemporânea, do mais fundo limite da tinta no tinteiro Ou onde quer que ela se derrame, ou deixe ela de ser tinta, Ainda assim estamos no limite mais fundo, E ao contrário do que pensam os demais Apesar de estarmos no limite mais fundo Nosso segundo olho ainda está fora desse salto, Dessa profundidade, acompanhando a superfície. No intervalo da terapia Procuro um dos meus colegas mais distintos Aquele que é o dobro, aquele que não negocia consigo mesmo, O líder epilético que realizou no mercado negro a separação Entre os hemisférios de seu cérebro. Para retomar o poder de seu corpo, todos dizem, Atos impensados, todos dizem, Mas o que ele me diz é que ouvia, Que havia outra voz no seu corpo, Que quando se ausentava havia alguém conversando dentro de seu corpo Que antes de cada ataque e durante cada ataque convulsivo Ouvia outra voz em sua mente, uma voz que não lhe pertencia Ou cuja presença ele nunca houvera estado diante, Sobre a qual ele não tinha controle, E ele precisava saber o que ela pretendia, apenas conversar. Após suas pesquisas e várias consultas com especialistas Convenceu-se que pertencia a um dos hemisférios de seu cérebro,


Aquela voz e seu transe contínuo, como uma borra que resta Nas paredes e no fundo do filtro, o corpo como unidade apenas como uma noção de filtro, Algo para se ter uma compreensão, um sabor, um odor, uma quantidade que Se julgue satisfatória, um filtro de seu real estado, um caco após o outro, Humpty Dumpty unido, mas todas as pessoas do reino Realmente não conseguiram achar todos os seus pedaços, Humpty Dumpty unido em parte, Unido em partes, pois se pensamos o corpo como um sistema, ou conjunto como prefira, É preciso considerar que tal noção abriga primeiramente sua incomplitude, O princípio da incomplitude, Uma parte em um dos hemisférios Que não concordava com certos acontecimentos ordenados Cuja presença ele queria solicitar, Sem fumaça ou gás que enevoe o contato, qualquer sensação possível Do que fosse esta presença. Então para ouvi-la mais nitidamente realizou a cirurgia, como a maioria daqueles Que estavam no circuito comum e eram capacitados para realizar Recusaram-se a realizar a cirurgia, ele conseguiu quem a fizesse sem discussões. Desde então a separação clara tornou sua vida mais simples, Cada hemisfério se manifestava para realizar suas responsabilidades, E embora um não soubesse do outro, agora ele podia controlá-los mais facilmente Nenhum objeto era complicado demais de se explicar, faltavam Os pedaços para compô-los como aprendera a fazê-lo antes, Mas a compreensão é um terreno tênue e a sensação era o que importava, As partes que faltam muitas vezes são o que move todos os processos, Sua percepção estava simplificada, mas a sensação era incomparável, Como encontrar um alguém há muito distante que nunca se conhecera E saber que estava lhe esperando, E destroçar essa unidade que nunca houve nele, nas convulsões, nas crises de ausência, E tornando esta presença viva em seu corpo, ou dando-lhe um processo contínuo de vida, Sem que tivessem que se reservar apenas a determinados momentos. Nesse momento o líder afásico, Que sempre esclarece bem a ironia da terapia em grupo, Pede-me para agarrar o ponto e arrastar o pássaro no escuro, Eu lhe passo o café e ele acena agradecido com a cabeça, ele serve uma xícara e a leva


Para nossa linda líder com a doença de Huntington, que apesar De sempre acabar se queimando com o derramamento Insiste em pedir café. (Apesar de não comporem segundo processos tradicionais a cena, ou seja, em diálogo verbal ou corporal, por meio de pantomima, estas possibilidades citadas no discurso de Me passam a compor o espaço como cenário existencial. O líder afásico atrás de uma grande placa de acrílico transparente escrevendo nesta superfície o que bem lhe interessar, porém guiado pelos processos deste distúrbio 6. Ao acabar a superfície deve voltar ao seu início e continuar escrevendo sobre o que já escreveu, e repetir essa ação sempre que chegar ao fim de sua página, como um palimpsesto não dotado do processo de apagamento. O líder epilético com separação dos hemisférios cerebrais se encontra sentado em uma cadeira em sua sala-quarto de hospital numa espécie de cabine de teste fonoaudiológico, dela correm cinco pares de grandes headphones, até o público que ao colocá-los – a sua escolha – ouve uma narração distinta em cada fone de um mesmo headphone, sobre ações comuns interpretadas em cada hemisfério que não se completam pela falta de comunicação com o outro. A líder com Huntington compõe uma angustiante dança, sem quaisquer palavras, sem quaisquer sons, nesta envolvida nos próprios sintomas de implicação motora ela tenta vestir-se, servir e beber um copo de água, escovar os dentes, sentar-se, pentear o cabelo, calçar os sapatos e cobrir-se com um lençol, e permanecer no interior do lençol no que seu corpo chamaria de estático. As três ações persistem até o fim da experiência).

Eu lhe pedi que me trouxesse algo, Algo especial, E na reunião seguinte ele me trouxe Escondido em seu robe, 6

Não recomendamos que as ações aqui explicitadas sejam realizadas mimeticamente, devem sim ser fruto de

uma investigação constante, daqueles que as escolherem para si, desses processos em seus próprios corpos e experiências, como pequenos atos, ditos falhos, que nos compõem enquanto possibilidade corporal no mundo em que vivemos. Nesse sentido, procurem os próprios “distúrbios” e os conheçam, conheçam quem convive com eles, mas fundamentalmente, procurem as palavras que não se consegue pronunciar, o uso da função poética da linguagem, o discurso amoroso, as câimbras, os choques de teasers, os nervos que disparam batidos num móvel, os psicotrópicos, a dormência, a dispraxia, a apraxia, em seus dias, como potenciais pistas de pesquisa performativa, pequenos vazamentos que estão a vista se procurados quando não nos lembramos de o que devemos fazer com o garfo por um instante, quando um copo escorrega de nossa mão, quando abandonamos a ênfase no sentido direto do que se diz. Procurem.


Um objeto perfurante, Outra ponta de faca, Porque as quinas, os limites pontiagudos, São a presença de uma potência em nosso mundo, Uma potência de morte, de escolha ou acaso, mas de morte, Como se dentro de nossos quartos, salas, cozinhas, salões, estivéssemos Na cova dos leões, dançando em nossa loucura como Daniel, Dançando até que algo acontece, E uma vez acontecido não se desfaz. Ele trabalha no jardim, faz parte da terapia Para alguns de nós, Eles são muito cuidadosos com a maioria dos instrumentos, As tesouras sobretudo, algumas pás também, Mas os dardos são mais simples, afinal eles são muitos, E volta e meia ficam largados no jardim Enferrujando perdidos na grama alta. Eu levei dardo da terapia para a minha sala, E ao chegar lá o guardei Para que aguardasse o momento de sua grande Contribuição. Meu próximo passo estava decidido Há muito tempo. Para recobrar o poder Sobre o meu corpo Eu deveria sacrificar um inocente, Alguém que tivesse demonstrado indícios E não realizado algo proibido, Um possuidor dos sintomas: A perna esquerda. Seria ela então, após ensaiar um movimento de aproximação Com o que fez a perna direita, o braço esquerdo, e todo o tempo que Fizeram-me perder, e permanecer em silêncio, Seria marcada por um ato de profunda brutalidade, Um rasgo tão profundo que tudo que poderia fazer depois dele Era permitir ao que aconteceu ser esquecido,


Uma memória cuja hemorragia inunde os corredores De todas as lembranças e da qual apenas minha mão pudesse Nos libertar. Na noite elas ouvem minha voz, Elas olham assustadas minha aparição repentina, Após tanto tempo sem sobrepor minha vontade, Apenas deixando que o ritmo fosse daqueles Que desejassem ditá-lo, Que a ação não tivesse qualquer base, que eles Brigassem entre si, esfregando-se uns contra os outros em suas condições Grotescas e desordenadas, eu retornei. Minha voz ecoa sem qualquer resposta, Eu tomo o dardo nas mãos e o pressiono contra o joelho, Uma ascensão lenta e um golpe sem precedentes, Uma vez Duas vezes Três vezes Quatro vezes Cinco vezes Seis vezes Sete vezes E um grito de vitória ecoa pelos corredores, Todas as partes restantes reconhecem seu soberano, Aquele que com a mão ensangüentada os afastou do terror Da solidão, da organização falha dos sistemas, Dos conjuntos mal formulados que comandam suas ações, Todas celebram o galope de meu punho


Sobre minha superfície, todos debocham do que fora reverso a atual Circunstância, Minha revolta, A baba ensangüentada de um púbis que acaba de se tornar Maduro e fértil ao retirar de si Os garranchos primitivos de uma barreira de carne discordante, Um hímen de carne morta, Uma protuberância espremida entre os dedos Até revelar que só havia pus em seu interior e nada do que se imaginava Em sua turbulência, em sua revoada de granizo, em sua obssessão, Em seus olhos de Cassandra presos na insignificante canção, Eu, Orfeu, voltava do mundo dos mortos Trazia comigo a parte amada, e ela estava morta, Mas eu acabara de nascer, e da minha boca saiam os sons Desconexos com os movimento da minha boca, Como um ventríloquo, retirando os sons do corpo morto, Retirando os sons daquele que era eu sustentado em meu colo, Retirando das minhas vísceras o som da vitória. (Aparece neste instante novamente a projeção ao fundo de um texto, as memórias da perna esquerda. Esse texto também deve estar escrito em um software qualquer contanto que após dez segundos estático ele comece a ser apagado, de sua primeira linha para a última, no ritmo ditado pelo pressionar da tecla Delete no teclado. Apesar de que nossa sugestão seja que uma profunda investigação seja realizada por aquele que escolheu ser Me, a respeito das lembranças e das ações e das situações nas quais perna esquerda teve determinada influência particular em sua vida. A perna esquerda é um ente físico e físicoverbal, e chamamos ela desta forma apenas para sinalizar ao que nos referimos aqui, mas deve ser compreendido que ela é um conjunto, ou sistema, como prefira, de elementos independentes que por sua carga viva resguardam cada qual memórias, dito isso recomendamos que ao serem inseridos os elementos citados no texto não devem ser precedidos de pronomes de posse, como “meu” e minha”. Deixamos abaixo mais uma contribuição). Perna Esquerda – O impacto da água nos dedos, lançando as gotas no ar, um chute preciso que forma um leque de água no ar, as gotas estourando em toda a extensão da pele, como pequenos universos implodidos por movimento brusco acumulado pelo tempo, pequenas morte encarceradas em cada gota estourada. O joelho se flexiona, o pé se estende para fora do chão e volta, um rápido chute no ar, os dedos marcam com batidas compassadas o movimento, dançamos numa noite sós, e nos movemos sujos de vômito, o calor, o calor, o calor escorrendo, os pequenos caroços e restos ainda não digeridos estalam sob o pé, a capota do carro adere a planta quando ela se ergue, como uma cola primitiva, e a dança


continua. O menisco inflama, peso, peso, dor, sangue, sangue, tocar o chão faz todos os músculos se contraírem como uma sacola plástica ao se aproximar de uma chama. Um prego, um movimento súbito e rotineiro e ele atravessa a planta no pé e se fica em seu interior, a dor, cada movimento, a dor, sangue, sangue, cada movimento cheio de dor por possuir um corpo estranho no interior do próprio corpo, uma estranheza que afeta a ordem estabelecida, formulando a partir de si uma atenção diferenciada para o próprio corpo, alterando por meio da ação intrusa o estopim, o poste que calcula toda a atmosfera da escolha, o prego, a doença, assim. Pisar, pisar, sangue, calor, suor, pisar, um pé, um outro pé pisa o pé, um acidente, o peso do outro corpo, o peso do contato do outro corpo, o peso da presença do contato de outro corpo. O meio-fio caiado, contido todo na pequena zona do meio-fio que salta da calçada está o pé, equilibrando-se, equilibrando outros mais, sangue, sangue, as unhas pressionadas decantam uma fase de cor branca, uma fase de cor vermelha, e retornam e decantam, como a música. A piscina, a água limpa, o piso escorregadio, as ações arredondadas, o pé flutuando, balançando-se, menos peso, a pele engilhando-se formando sulcos como se o tempo a estivesse revirando em sua boca, como um dropes, dissolvendo. Sangue, sangue, os dedos espreguiçam. Calor, bom calor, o chão e frio, mais frio, o chuveiro e calor. Um emaranhado de algas, sargaço, esfregando-se empurrada pela maré no joelho. Um beijo, dentro de uma boca, o dedão, a língua passando entre os dedos, o contato, outro corpo. Novo homem de branco número um Homem de branco número dois Homem de branco número três Novo homem de branco número quatro Homem de branco número cinco Outra mulher de branco número um Mulher de branco número dois Outra mulher de branco número três Homem de branco com estetoscópio sem número Entram Não há surpresas, o processo está se definindo, O palíndromo irreversível, Não há nada além de um corpo verbal Cujas sombras são irreconhecíveis Numa direção profana Cuja busca não possui mais origem.


Novamente. Homem de branco número cinco Mulher de branco número um Mulher de branco número dois Mulher de branco número três Mulher de branco número quatro Homem de branco com grande agulha Homem de branco com bisturi O processo é o mesmo7, Suster Manter Recuperar Estabilizar. (Durante todo o resto do transcorrer da experiência a perna esquerda também permanecerá em cena, ocupando um espaço afastado de Me. Ela se moverá independentemente, e será alimentada pelos seguidores, que também lhe darão banho, lhe calçarão um chinelo, lhe darão uma bola de praia razoavelmente seca para pisar , lhe darão um pequeno gravador com uma música ritmada e cheia de graves, lhe entregarão areia branca e um novelo de lã, das quais ela usufruirá do modo que bem entender, contudo sempre ativamente).

Dez anos dessa vez, Dez anos de uma liderança sábia E antiga que ao retomar seu lugar Provou por sua mão trazer a ordem Através de seu corpo. Meu tronco está preso a cama 7

Igualmente às notas quatro e cinco recomendamos aqui o uso de uma vídeo arte, sugerimos para esta a

preparação de uma galinha à cabidela, desde a morte da galinha, passando por sua depenação, até o seu corte e cozimento. Contraposta a essa imagem sugerimos a utilização de frames de vídeos do processo de realização de tatuagem no olho, além de um processo de limpeza dental feita por meio de raspagem manual.


Por uma grossa faixa sintética, Só me é permitido sair daqui com supervisão, E a comida me é servida na boca. Meus seguidores não me deixam faltar nada. Agora também há medo em seus olhos, mas eles aprenderam aos poucos A me respeitar, a respeitar meu sentido, Minha invenção, cuja patente está marcada para sempre Com os signos de meu nome. Assim a vida sempre o dobro de si mesma Por estar fora e dentro E mais precisamente minha vida Que define, e apenas assim pode ser, Aqui fora E aqui dentro, Nota que está dentro de um mesmo casulo E que foi toda ela parida arreganhando Os grandes lábios dentro de um ovo de cal gigantesco, E que quanto mais ela cresce e se deforma nas paredes do ovo Mais fácil se torna para ela mesma concluir Que o impulso de seguir é ao mesmo tempo o impulso de acabar-se, Que viver é também se aproximar de uma secura Infrutificável, onde o labor das cores vivas Em sua expansão morre na superfície da cal, Que falar e falar Que fazer e fazer, Não significam se aproximar do termo que dá Significado a evocação verbal De que algo está sendo realizado. Acordo então no décimo aniversário E noto a copa aberta e enrijecida de meu pênis Empurrando minha roupa, os testículos Asfixiados pelo escroto colados à base da haste E o freio do pênis puxado como uma corda Que suportasse todo um corpo pendurado.


Sobre a extremidade a usinagem escaldante De um néctar remoto transbordando Do pulso veemente do sangue que eleva nesse altar Os gordos vermes, veias estufadas em suas fibras reluzentes, A carne se reunindo a partir de si para furar a abóbada celeste, As entranhas encolhidas como uma tigela servida Com miúdos cozinhados no sangue do próprio animal Para descobrir as dobras ou revelar as palavras escondidas pelas cicatrizes, Os pêlos como se brotassem e mordessem de novo Os poros entrando e saindo várias vezes como um único fio, Como os dentes parecem ser um só quando a mandíbula do animal Esfola sua vítima. Faço a única coisa que posso, Viro-me no interior da órbita da faixa, Ficando de bruços e contra essa nova ação Involuntária e desnecessária faço o que é certo, Deito sobre seu frágil corpo Rígido e animado por uma algazarra de vozes suspeitas, E o empurro com o peso do corpo para lateral, Deixo que se incline até que ouço o estalo e sinto a dor Enquanto mordo o travesseiro Como quem morde um meio fio caiado Que raspa os dentes com sua resistência, Forço mais para ter certeza e ouço outro estalo mais alto E mordo com mais violência E sinto que agora os dentes parecem Entrar em si mesmos Atravessando-se como pedaços de giz úmidos empurrados Um contra o outro, Viro-me novamente voltando a minha posição. Então apenas me resta aguardar vou ao banheiro e não faço nada, Sempre que sinto o movimento das fezes ou urina Sinto como se houvesse pó de vidro colando nas paredes de meu intestino. Permaneço assim por cinco dias,


Sinto o inchaço cada vez pior, O púbis fermentando e sendo cozido numa ferida que ainda não pude encarar. As partes não se comunicam mais, existe apenas o silêncio da vontade Em meu corpo nesse momento. No sexto dia enquanto abafava meus gemidos no travesseiro Exigi de mim tanta força que não suportei e acabei cagando E urinando ali mesmo, de bruços. A urina escorre como metal quente pela uretra Rasurando com uma cólera infernal Minha capacidade de controle e conseguindo trazer consigo A trompa de fezes presa em meus intestinos que se ejeta Numa coluna seca e áspera e negra, rasgando Lentamente o ânus e fazendo brotar o sangue, Como se fosse estuprado por meus próprios dejetos incontroláveis Untando meu corpo com sua substância cuja suculência Apenas as bestas carniceiras conseguem notar, derramando os fluidos E manchando com aroma e massa a pele, Arreganhando a boca dos orifícios de meu corpo Como se parisse minha prole abjeta, prematura E morta, e se abrisse ainda mais para que todos os seus pedaços Fluíssem de mim. Lembro que minha mãe me contou sobre o meu parto, Ela estava só e entrou em trabalho de parto, E moramos sempre num espaço separado demais De qualquer atmosfera semelhante com a qual as comparações Ou metáforas possam ser tecidas E compreendidas, ela dilatou e dilatou E coroou, O que muitos não falam sobre os partos Normais é que muitas vezes É necessário romper o períneo para que a criança Consiga passar, foi o que meu corpo fez ao dela e tendo feito Isso, como ela me disse, a dor foi tão insuportável Que enquanto ela empurrava com toda sua força Meu corpo para fora do dela,


Ela defecou e urinou, outro detalhe sobre os partos que Não se menciona, empurrar para fora, como ela estava só No instante que acabou de me expelir E antes do instante que pudesse se dar conta De que já havia acabado, meu corpo caiu Sobre a poça de fezes no colchão e a urina que molhara os lençóis, Manchando-me o tronco e a face e a cabeça Enquanto me contorcia. Ela dizia que nunca fui batizado, Que esse foi o momento mais próximo que já estive de sê-lo, E sempre me lembro dessa história Pressentindo o que ela me fez, Eu nasci E então nasci novamente Logo em seguida, que é o que implica um batismo, Através do ventre de minha mãe E do produto que também em seu território jaz. No estábulo de gesso daqueles lençóis de linho Eu fui marcado, Eu trouxe na fronte a marca, A tinta particular daquilo que não era mais preciso ao corpo. Outra mulher número um Mulher número dois Entram e vêem sem surpresa O que me aconteceu, pois é próprio Dos demais líderes no corredor Celebrar o extrato exíguo de seus corpos Arrotando, peidando, e defecando por toda parte, Como se lançassem pedaços de si Para fora, como se examinassem nos odores e texturas Um fotograma exato de seus corpos Um sudário em carne viva. Limpam-me e não se apercebem


Do estado de meu pênis, pois como nos banhos cubro meu sexo Num sinal falsamente pudico não as deixo vê-lo, limpando-o eu mesmo, Acreditam que o sangue está aqui devido às fezes em sua quantidade. Passam-se três dias para que notem, Nesse momento, o da descoberta, tudo que puderam verificar Foi um grande hematoma de sangue coalhado E escurecido, que demarca a morte ao tecido muscular, Um pedaço de carne fétido e impotente Cujos trópicos murcharam ao redor da glande, Cuja manjedoura é feita de fungos que decantam do sangue represado. (Aparece neste instante novamente a projeção ao fundo de um texto, as memórias do órgão sexual. Esse texto também deve estar escrito em um software qualquer contanto que após dez segundos estático ele comece a ser apagado, de sua primeira linha para a última, no ritmo ditado pelo pressionar da tecla Delete no teclado. Recomenda-se que esse texto, seja repetido cinco vezes, apenas mudando as ordem de sua frase, como um movimento repetido várias vezes. Apesar de que nossa sugestão seja que uma profunda investigação seja realizada por aquele que escolheu ser Me, a respeito das lembranças e das ações e das situações nas quais o órgão sexual teve determinada influência particular em sua vida. A perna esquerda é um ente físico e físico-verbal, e chamamos ela desta forma apenas para sinalizar ao que nos referimos aqui, mas deve ser compreendido que ela é um conjunto, ou sistema, como prefira, de elementos independentes que por sua carga viva resguardam cada qual memórias, dito isso recomendamos que ao serem inseridos os elementos citados no texto não devem ser precedidos de pronomes de posse, como “meu” e minha”. Deixamos abaixo uma última contribuição). Órgão Sexual – Sangue, sangue, o movimento compulsivo se agita carregando para frente e de volta a pele ao redor do eixo, no pênis. A língua, outro corpo, se move em sua superfície, pela glande, pelo escroto, sugando os testículos e envolvendo-os em um casulo úmido, toda mucosa, se abre, toda mucosa, como um gato que boceja. Calor, calor, a transparência da cera escorrendo para fora do corpo cavernoso, o esperma em ebulição, um fruto maduro demais que rompe a casca se derramando na superfície de sua pele incontinente pelos buracos que lhe garantem a saída. Calor, calor, branco, todo o branco melado além da moldura. Sangue, sangue, as paredes dos músculos que se enrijecem e apontam cima, a pequena fenda acima de tudo, puxada pelo freio. A pele em sobra do escroto ainda sem pêlos molhada de urina, o pequeno pênis dentro da colcha do prepúcio encharcado, o linho esburacado da fralda de pano roçando empapado. O meridiano traçado por uma fina costura que divide em dois o escroto. Entrar, entrar, abrindo entre os quadris a clareira, tão úmida, tão profunda, uma linha branca de seu interior enlaçando a junção entre o escroto e o pênis, o esfíncter e seu movimento estrangulatório, o períneo sendo arrastado junto ao escroto que se tenciona, sangue, sangue. Os galhos das veias engendrando o alimento, o princípio, sangue, sangue, nutrindo seus afluentes sempre perenes. A ação


apenas resta a ação, que avessa ao próprio ato de encerrar-se se prolonga, enrijecendo mecanicamente em direção ao prazer, desprovido de qualquer propósito, a síncope e novamente a ação injetando a sensação, não o objeto, não a língua, nem mesmo o paladar, mas a sensação que há de vir da conjunção entre os três, grão cujo óleo brota pela uretra, cujos frutos pendurados em seu prazeroso movimento Sísifo de novo e de novo nutrem essa linguagem esgotada e novamente renascida, que estrangulou com o esfíncter os sentido, que mordeu a semântica com o períneo, que afogou em esperma a mensagem. Calor, calor, sangue, sangue, o crescimento e o encolhimento, o pênis. A pequena bolsa colada a cada testículo e as linhas invisíveis que puxam a marionete atrás da cortina. Novamente. Homem de branco número cinco Mulher de branco número um Mulher de branco número dois Mulher de branco número três Mulher de branco número quatro Homem de branco com grande agulha Homem de branco com bisturi Eles o extirpam8, E sem que ninguém mais saiba Meus seguidores numa tentativa de me coagir 8

Igualmente as notas quatro, cinco e sete, recomendamos a utilização de um vídeo arte, sugerimos para esta a

visão de uma corda de caranguejos vivos sobre uma pia, se arrastando pelo seu tampo, e ao fundo a imagem de um grande caldeirão em fervura, em certo ponto a corda é desfeita e uma a um eles são colocados na panela, não utilizando a estratégia de uso de frames dos demais vídeos, aqui temos algo mais próximo de planos seqüenciais de ação interpostos entre um e outro. Assim durante o processo acima descrito que envolve os caranguejos, existem três ou quatro cortes para planos de filmagem distintos, o primeiro e o terceiro condizem respectivamente ao início de um ato de masturbação com o pênis tomando todo o quadro (filmado como se a câmera estivesse apoiada sobre as coxas, incluindo os tremores de tal superfície durante o ato), e ao seu final com o gozo e montagem ao seu redor, nos pêlos pubianos, de um presépio com pequenas miniaturas de animais, pastores, José e Maria. No segundo e quarto plano sugerimos a utilização de imagens de uma cirurgia de implante transdermal (se possível de beading), respectivamente a cirurgia, e no último plano o resultado visível durante o processo de cicatrização.


Trazem o frasco onde bóiam os meus testículos E meu pênis e o colocam de frente a minha cama, Sem saber que de fato colaboram Para a profunda paz, agora quase sem fundo, Que reina em meus domínios, Onde ninguém mais ousa me encarar, sem saber O que lhe espera, Uma cidade extraordinária Onde os cordeiros vomitam cinzas de seu ímpeto febril De tecer perguntas e não as tecem, Onde o único precedente para se guiar pelas ruas, Pelos caminhos, todos eles, é a minha vontade. Porém algo volta a me acontecer, Uma extensão subterrânea de caminhos se afigura, Exortando meu esforço para outra direção, Fazendo-me senti-los, como uma brotação monstruosa Pendendo da pele lacrada, sinto cada dedo, Cada articulação, sinto o pulso, e os vejo com todos os outros sentidos Exceto a própria visão, extensões assombradas Que durante a noite coçam e tentam mover meus lençóis E se incomodam, incomodando a todo o resto, e urinam a cama, E tem câimbras que jamais se reduzem, e ereções que jamais enfraquecem, E se oferecem a me apoiar e me enganam E não se viram quando todo o resto quer fazê-lo, E não se movem quando desejo que o façam, Apenas quando retiro deles minha atenção A sensação e os movimentos se remontam Por completo, como os guardas no portão em Hamlet Ou a lagarta em Alice, fico a perguntar respectivamente, Quem está aí (interrogação) Quem é você (interrogação) E assim Sem clímax Como tudo mais


Acabou, sem mais ruídos Doloridos que descendessem De uma pantomima sem controle Ou expectativa aplaudida em sua propulsão Cessou o movimento além da vontade, paralisado, Todos cumpriam suas funções e seus espaços foram mantidos, Permanecemos reunidos pelo que restou no tempo e no espaço, O meu corpo comprimido sobre uma cama larga demais agora, E a minha vontade proclamando discursos exatos em sua reação. Aleijado, coto, castrado, todo o desenho derramado em comunhão De uma praga seleta, e o assombro persistindo por toda a vida, os Fantasmas do devir de um corpo virtual além as vontade, mas invisível Como uma dor ou outra no mundo, e as tensões gemendo em seu núcleo E espargindo seu soro dispráxico por toda a parte, as tensões da convivência Entre vários corpos num mesmo corpo, como sempre o fora, mas agora feito forma, E as memórias perdidas que existem apenas nos músculos, na pele, nas veias e artérias, Que foram vividas por estas partes que não me pertencem mais, e que levaram com elas, Extraviaram com o corte, pois era de cada uma das partes, e isso eu não sabia, era só delas A experiência vivida, pois se em momentos diferentes somos pessoas distintas vivendo Momentos semelhantes, há de se considerar também que cada parte do corpo, dotada De sua capacidade específica de tato, e sua constituição específica sob e sobre a pele, Acumula para si momentos distintos da seleção que fazemos para o que resta como Memória no consenso das demais partes do corpo, cada parte possui sua rotina Secreta, informações não compartilhadas por nunca serem notadas Ou procuradas por ninguém mais, uma vida clandestina e Possessa, com estruturas habitadas por outras Vozes, por seus próprios verbos E nomes, e a vontade nem Sempre consegue Controlá-los. Como um Copo que Cai da mão estando seguro entre seus dedos, sem que qualquer movimento tenha Se realizado para soltá-lo, uma resposta no contra-fluxo do que é próprio da vontade Conceber, uma resposta da mão, não como se houvesse recebido uma ordem,


Mas como se houvesse enviado uma. Resta-me Assim apenas o grande projeto Que estava dentro de mim E também não estava, Um salto de destempero Onde a visão se ilumina Passando da sorrateira zombaria Ao súbito da bofetada, Quando por fim aparece e novamente transparece, A conexão entre dentro e fora E a dependência, outro nome do vício, Outro processo da abstinência, Que eles apresentam, E que em meu corpo se adianta um Tempo, um tempo que se infla Para soprar para longe a casa de tijolos Um tempo de atores doentes, Bailarinas doentes, Líderes doentes, Todos um duplo faminto Um avatar sem imagem própria Que vinga na carne o estratagema De algo que não se reparte, E quando digo algo não se enganem, O medo de sentir dor Chama-se algofobia, Sendo fobia o que corresponde ao medo, Algo é o que corresponde a dor, E as dores se perdem no mundo, E é isso que será necessário para Assumir a mudança no que se fez comum Em nossos corpos, E não digo que a dor não possua muito de prazer, Mas é por esse botão de pétalas desconhecidas, coladas uma a outra,


Siamesas, que irromperรก o corte, A ponta da faca, O tempo. Meu corpo, tantas coisas mais dentro e fora a partir dele, Mas meu, Meu corpo.


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