Revista Varal do Brasil - Especial Páscoa 2016

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Revista Varal do Brasil - Edição Especial de Páscoa 2016

volte o bonde e eu me calo cansado: esquecerei a minha ira e o meu desejo irado de vingança – e você, toda esta história exaustivamente repetitiva. Pois nos calemos todos – o mundo que se cale: como eu, tu, ele, nós, vós, eles nos calamos frente à ineficiência universal cujo supremo paroxismo é o nosso envelhecimento perene e inexorável. Envelhecer é o pior dos fracassos. Ninguém escapa, nem mesmo tu, vossa mercê, você ou cê – existir é envelhecer. Tudo tende a nada. Sempre. Nascer é morrer, não nascer é personificar a ausência. Sobreviver é esquecer. Para esquecer basta agir. Caminhou até o escritório de achados e perdidos: hora do almoço. Esperou. Voltou. Esperou na fila; andou, parou; chegou, falou, ouviu; repetiu, ouviu, reclamou, não ouviu, silenciou; andou, parou; olhou, não achou, olhou, não achou, olhou - não viu. Saiu. Se perdeu... Perdido em uma multidão dispersa, sem óculos o mundo era um borrão. Borrado no mundo, se perdia entre as pessoas, as ruas, os bondes e os carros... Perdeu a direção, a paciência, a orientação. Olhou para cima e o sol era uma mancha disforme clareando as nuvens sem nenhum propósito. Caminhou sem fim e, quando a luz se expandiu, viu um imenso parque branco... depois andou mais, viu um pouco mais e o parque era verde e branco; andou muito mais, viu demais e as cruzes do parque mataram a grandiosidade da sua visão: viu que o que via era um cemitério! Hora de voltar para casa; para a sala de jantar com as condecorações de uma guerra perdida, para o escritório abarrotado de livros de biologia esquecidos nas estantes, para a cama vazia de esposa que partiu, para o quarto oco do filho que não nasceu. Entrou no bonde. O veículo chegaria à sua estação antes que a luz do sol desaparecesse por completo. Iria cedo para cama, após mastigar sozinho qualquer coisa insossa da geladeira quase vazia.

N

o leito, seus olhos prefeririam a uniformidade da escuridão às habituais páginas brancas com letras pretas...

Adormeceu... sem se lembrar de que se esquecera de procurar uma ótica...

I I I 6... 7:00... 8:00 horas... 9:00 horas! Um feixe de luz tocou a sua face. Suas pálpebras palpitaram, sua boca sorriu. Despertava... Sem óculos. Sem despertador. E sem lamentar, após 66 anos, a ausência dos 6 toques curtos: os 3 ponteiros estagnados mais sugeriam uma suspensão da contagem do tempo... do que um castigo à sua memória, por ter esquecido de dar corda à sucessão de segundos, minutos e horas. Embaixo do chuveiro, o tempo não escorria. Fora do chuveiro, os poros da sua pele sugavam com avidez cada gota da brancura de um creme que era quase um bálsamo.

U

ma sede, um sabor e um gosto de leite o chamaram à cozinha que absorvia luminosidade e oferecia calor. Lá fora, o sol exibia uma força mais amarela do que ontem.

Firme no corrimão, a sua mão direita conferiu-lhe a força necessária para descer as escadas sem óculos nem hesitação; sem medo, saiu. O mundo estava menos branco e mais cantarolado do que ontem. Um inesperado calor amarelado acariciava o ar fresco, um caótico canto de pássaros encantava as árvores e os postes. O mundo era um borrão abstrato e vibrante. A luz intensificava as cores que surgiam de todas as partes e direções, principalmente de baixo: nos canteiros, gramados, praças e jardins palpitavam o lilás, o vermelho, o amarelo, o verde, o branco – mas um branco menos branco do que antes, um branco que ia desaparecendo, sendo sugado gota a gota pelo solo sedento, umidificando a rigidez da terra áspera que nos circunda... Um biólogo argumentaria que já era quase março e a primavera estava chegando;

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