Revista Varal do Brasil - ed 25 - Set/out de 2013 - Especial Homem

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Varal do Brasil - Setembro/Outubro de 2013

Suas mãos pueris tocaram com delicadeza

sensibilização para a verdade. Revisou o di-

aquele objeto tão íntimo; limparam-no, poliram

vórcio da sua mulher: chamaria-o de uma des-

-no, imacularam-no. Retornaram-no à sua con-

pedida digna. Revisou a vontade frustrada de

dição natural: acima da boca, em frente aos

ter um filho: chamaria-a de impulso vital. Revi-

olhos. De um pássaro morto, ressurgia a sua

sou a ineficiência perene dos seres humanos:

nova visão.

chamaria-a de tentativa. Revisou a sua própria

Viu que não perdera os seus óculos no

ineficiência: chamaria-a de uma informação a

bonde: caíram de algum bolso na neve en-

ser reprocessada. Revisou a sua velhice: cha-

quanto ele caía na calçada. Viu e reviu a ne-

maria-a de tempo vivido. Revisou a morte:

ve... dissolvida e se dissolvendo. Refletiu que

chamaria-a de ausência de nomes.

a vida, quando definida pela presença do áci-

E viu mais. Viu que o tempo é um nome

do desoxirribonucleico, se reduz a uma heran-

sem sentido; ou o nome de uma convenção

ça codificada geneticamente, se resume pura

cujo sentido se perde com o passar do tempo.

e simplesmente a “tempo congelado”... no en-

Uma lápide: tradicional, mas inofensiva.

tanto, justamente graças à inversão deste pro-

Viu que não há tempo. E que, em última

cesso, quando como por milagre a neve se

instância, não tinha medo de ter pouco tempo,

descongelava e desaparecia bem à sua frente,

mas de não ter tempo suficiente para ver que

pôde finalmente rever os seus óculos desapa-

o tempo não existia.

recidos!

E viu ainda mais: demais e em excesso:

Reviu o mundo e ele estava mais nítido

viu que o que agora via não era novo e sim

do que ontem e mais claro do que antes.

uma revisão: a repetição de uma visão já ex-

Olhou o sol – viu o verão que virá e ele verá e

perimentada quando ainda era jovem e não

nós veremos e vocês verão. Viu o bonde, a

usava óculos nem usurpava o ácido desoxirri-

rua, a calçada, as praças, os canteiros, os gra-

bonucleico, um reflexo tardio de uma experiên-

mados, os jardins, as flores, as árvores, os

cia antiga, uma redundância esquecida.

pássaros, o céu, os prédios, as casas, os pedestres, os carros, o vidro de um carro, o vidro

Ver é rever, reviver, entrever, absorver, sobrever, sobreviver.

dos seus óculos, o reflexo dos seus olhos atra-

Confiando no tato da sua mão direita, viu

vés do vidro dos seus óculos no vidro de um

sem ver: o mesmo leve exagero de creme hi-

carro. Não procurou adjetivos. Viu que o mun-

dratante não absorvido pelo seu nariz... (um

do prescindia deles.

capricho de adolescente?)...

Reviu a sua queda, o seu engano, o seu

Sorriu... em breve o frio já estará indo embora,

erro. E entreviu um outro nome para o que de-

seu nariz não precisará mais de creme, seus

nominava “erro”: revisão. De nomes. Revisou

óculos não precisarão mais esperar o seu na-

a cicatriz do ferimento de guerra no seu joelho

riz secar, todo este ritual não precisará mais

direito: chamaria-a de aviso. Revisou o fracas-

ser repetido; não perderá mais os óculos, a

so de tantas pesquisas não terminadas sobre

partir de agora farão parte da sua face , esta-

o ácido desoxirribonucleico: chamaria-as de

rão naturalmente integrados no (Segue)

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