ARCA - 5ª edição

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um sentimento diferente que, apenas admiração por um corpo de mulher, fez o mais jovem desviar os olhos da moça, para o amigo que enxergava dela, já, a alma. - Apaixonado! Você está apaixonado. Irei ajudá-lo a desposar aquela jovem. Venha. Voltemos para a aldeia. Os tratos para o casamento entre as famílias do noivo e da noiva foram encaminhados por aquele amigo inseparável, que algumas vezes viu a noiva do outro sem que ela soubesse como era seu noivo ou soubesse do acontecido na beira do rio. Assim, chegou o dia em que a donzela e o rapaz sentaram-se para o banquete nupcial e, mais tarde, foram conduzidos por todos à alcova repleta de flores, aposento para o casal feliz. Na porta, o amigo do noivo ficou até o último instante. Ilude-se quem imagina que a vida não prega armadilhas. Desde o casamento, a esposa não via os pais. Viajavam numa carroça aberta; o amigo, o marido e ela. O amigo, servindo-lhes de cocheiro, sentado à frente do casal. Sentados atrás dele, o casal se mantinha em silêncio e por não haver muito para onde olhar, o marido, por algumas vezes, observou o olhar da esposa vagar pelo pescoço de seu amigo. Em certo trecho da estrada e por terem perdido a direção, entrando por uma vereda errada, foram dar num santuário. O jovem, casado, manifestou o desejo de apear para prestar homenagem à Deusa. Desceu da carroça e galgou os toscos degraus do templo. Como demorasse a retornar, a esposa pediu, sussurrando, ao amigo, que fosse saber do marido. Ele preferia que ela não tivesse lhe dirigido a palavra tão docemente... Apeou da boleia e seguiu para o santuário. Assombrou-lhe o pavoroso espetáculo que se lhe descortinava no chão. Lá estava o amigo, a cabeça separada do tronco. Ajoelhou-se, crispando de amargo pranto e se perguntando como ele conseguira fazer aquilo de próprio punho! Serei eu culpado? Será que tenho culpa desta tua façanha por minha mera existência, embora não por meus atos? Nossas cabeças sempre conversaram entre

si, a tua, inteligentemente, a minha, de modo simplório. Há muito previ o que terá que acontecer agora. Eu, que desejava queimar-me vivo, contigo, também quero perder meu sangue em tua companhia. Com estas palavras executou de maneira correta a sentença que ele mesmo acabava de pronunciar. Devido à força dos seus braços musculosos, o corpo caiu sobre o do amigo e a cabeça rolou para se juntar à do outro. O tempo parecia longo, e longos eram os minutos que ela aguardava pelo marido e, agora, também pelo amigo dele. Sem ver razão para um sumir e, o outro, em seguida, desceu da carroça e foi atrás deles, deparando com horrorosa visão. Olhou para as cabeças decepadas, os corpos deitados um sobre o outro e o sangue escorrendo devagarzinho. Chorou, chorou alto. Devo segui-los, pensou. Uma voz ressoando no ar falou-lhe com severidade. Ouvia aquela voz e reconhecia sua culpa pela morte do marido e do amigo dele, sabendo que o pecado havia se apossado dela e o marido o havia percebido. Sim, desejava o corpo do outro; o peito, os braços, as pernas. Entregavase ao marido desejando estar nos braços daquele. Chorava, pedindo clemência. Desejava-os vivos. A Deusa, então, em voz divina, respondeu-lhe que tinha dó dela e igualmente dos jovens. Trovejando em alto som, ordenou-lhe que se colocasse diante da imagem dela e da encrenca que provocara, pegasse a cabeça de cada um deles e as devolvesse aos corpos, muito depressa. Feito isso, os dois jovens ressuscitariam. A jovem sequer disse muito obrigada, correu tão depressa quanto permitia sua saia justa. E, assim aconte-

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