Consciência & Liberdade 28 (2016)

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A vocação para aceitar a diferença

em que a presença de um não pode senão anular a do outro, tanto eles se opõem. Aceitar esta diferença implica um modo inteiro de ser e pensar que precisa de ser revelado, a fim de perceber as razões por detrás de tal ousadia da parte de Deus. Isso supõe, desde logo, a liberdade. Liberdade através do respeito pelo outro, bem como através do respeito por si mesmo, realizando-se. Respeitar o outro significa reconhecer a existência de todo um campo que não nos pertence, que nos escapa; é renunciar aos direitos de escrutínio e de julgamento. O escrutínio horizontal exclui o vertical, e seria perigoso confundir os dois planos. É provavelmente a estas mesmas noções que o Maharal de Praga132 se referia quando refletia sobre a “imanência das coisas”. Maharal, diz André Neher,133 “explora o mundo como se o absoluto estivesse num desvio. O que é horizontal abre-se perante ele com recursos próprios, as suas riquezas que não devem tributo a nenhuma dimensão vertical”. Assim, tudo o que concerne ao bem, ao amor ao próximo, por exemplo, não deveria, em caso algum, referir-se a Deus. Não se pode amar o homem por causa de Deus, com medo de chegar ao escândalo das Cruzadas. O facto de amar o meu próximo não tem nada a ver com ninguém mais, e, certamente, não tem nada que ver com a Divindade. É o que pensa Simone Weil, quando declara que “Deus não está presente, mesmo se é invocado, onde os infelizes são apenas uma ocasião para fazer o bem, mesmo se eles são amados por isso… É por isso que expressões como amar o próximo em Deus, por Deus, são expressões enganadoras e equivocadas… Há momentos em que pensar em Deus nos separa d’Ele”.134 Por outro lado, a relativa vertical é incompatível com a horizontal: quando Deus me fala, seria inconveniente, até mesmo pernicioso, introduzir um olhar horizontal. A minha relação com Deus não tem nada a ver com o meu próximo. Permitir um tal estado de coisas, é dar lugar aos crimes da Inquisição. Respeitar o outro significa igualmente colocar-lhe um ponto de interrogação, não para o encerrar na fórmula dogmática ou psicológica; é, por fim, permitir-lhe ser ele mesmo, no que tem de mais misterioso, e, por conseguinte, mesmo de mais chocante. Falhando isso, o outro será uma espécie de “alter-ego” tranquilizador cujas mínimas reações eu pudesse prever. É por isto, comenta o psiquiatra Henri Baruk, que a lei especial dita de Kiliam, relativa à “distinção dos géneros”, segue imediatamente a prescrição “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Levítico 19:18 e 19), como para a matizar no sentido de um aviso contra o que ele chama um “imperialismo espiritual”, o qual consiste precisamente em colocar a semelhança e a uniformidade como critério de amor e de amizade.135 Ora, para ser livre, o outro tem necessidade da nossa “fé”, daquele tipo que ousa não compreender, do tipo que “espera”.

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