

Prosper Mérimée
Tradução de Adriano Messias


Ilustrações
de Jack Azulita

Prosper Mérimée
Tradução de Adriano Messias

Adriano Messias
Ilustrações de Jack Azulita


Lokis / O ursosomem
© 1869 Prosper Mérimée
© 2024 Adriano Messias
Editora Edgard Blücher Ltda.
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenador editorial Rafael Fulanetti
Coordenador de infantojuvenil Adriano Messias
Coordenação de produção Andressa Lira
Produção editorial Thaís Pereira
Diagramação Frederico Moreira
Capa Frederico Moreira
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04531-934 – São Paulo – SP – Brasil
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É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.
Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) – Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Mérimée, Prosper
Lokis : o ursosomem / Prosper Mérimée ; tradução de Adriano Messias ; ilustrações de Jack Azulita. –– São Paulo : Blucher, 2024.
128 p. : il., color.
ISBN 978-85-212-2349-8
1. Literatura infantojuvenil francesa 2. Literatura fantástica I. Título II. Messias, Adriano III. Azulita, Jack
24–3414
CDD 028.5
Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil francesa


Prosper Mérimée
Tradução de Adriano Messias
Manuscrito do Professor Wittembach

Capítulo I

– Théodore1 – disse o professor Wittembach. –, queira dar-me esse caderno encapado em pergaminho na segunda prateleira sobre a escrivaninha. Não, esse não, aquele pequeno in-oitavo2. É nele que reuni todas as anotações de meu diário de 1866, pelo menos aquelas que dizem respeito ao conde Szémioth.
O professor colocou os óculos e, em meio ao mais profundo silêncio, leu o seguinte: LOKIS, e com este provérbio lituano como epígrafe:
Miszka su Lokiu, Abu du tokiu.3
1. Grafei os nomes próprios dos personagens em sua forma francesa, conforme estão no texto de Mérimée.
2. Formato de livro cuja folha, dobrada três vezes, forma um caderno com dezesseis páginas, oito de cada lado.
3. Este provérbio foi ligeiramente alterado pelo próprio autor francês. Deveria ser Meška su lokiu, abudu tokiu. Meška e lokys são nomes diferentes para se designar “urso” em lituano. Literalmente, o provérbio poderia ser traduzido como: “Um urso e um urso são um e o mesmo”. Em melhor tradução, teríamos: “Os dois juntos fazem um par”; “Os dois formam par”. No final da novela, o personagem Professor Wittembach traz ainda uma informação incorreta: miszka não é palavra lituana, mas a tradução de Mishka, forma familiar em russo para “Michael”, que é como se chama o protagonista da história.
Quando apareceu em Londres a pri meira tradução das Santas Escrituras em língua lituana, publiquei, na ta Científica e Literária de Koenigs berg, um artigo no qual – sempre fazendo plena justiça aos es forços do douto intérprete e às piedosas intenções da Sociedade Bíblica – quis assinalar alguns ligeiros erros.
Além disso, fiz observar que aquela versão só poderia ser útil para uma parte das populações lituanas. De fato, o dialeto que foi empregado é apenas dificultosamente inteligível pelos habitantes dos distritos em que se fala a língua jomáitica – popularmente chamada jmuda – e no palatinado4 da Samogícia5. É um idioma que se aproxima do sânscrito muito mais do que o alto-lituano. Essa observação, apesar das furibundas críticas que ela me causou por parte de um certo professor bem conhecido da Universidade de Dorpat6, esclareceu os honoráveis membros

4. Palatinado geralmente é o nome dado a um território administrado por um conde palatino, representante direto de algum soberano. O termo foi muito usado no âmbito do Sacro Império Romano-Germânico.
5. A Samogícia ou Samogítia é uma região da atual Lituânia, habitada historicamente pelos samogitianos, que falam um dialeto próprio. No brasão, figura um lindo urso sobre um fundo vermelho. As palavras “jomáitico” e “jmuda” são palavras que aportuguesei do francês jomaïtique e jmoude, as quais, por sua vez, são variantes do que foi latinizado como “samogício”.
6. A Universität Dorpat, em alemão, é a famosa Universidade de Tartu, a Tartu Ülikool, localizada na Estônia e fundada em 1632. É referência mundial para os estudos de semiótica.
Capítulo II

A noite estava quente e eu havia deixado aberta a janela que dava para o parque. Com a carta escrita, coloquei-me a repassar os verbos irregulares lituanos e a pesquisar no sânscrito as causas de suas diferentes irregularidades. No meio desse trabalho que me absorvia, uma árvore bem ao lado de minha janela foi violentamente agitada. Ouvi alguns galhos secos se quebrarem e me pareceu que um animal bastante forte tentava subir por lá. Ainda um tanto preocupado com as histórias de urso que o médico me tinha contado, levantei-me, não sem um certo temor e, a alguns passos de minha janela, em meio à folhagem da árvore, percebi uma cabeça humana, iluminada em cheio pela luz de minha lâmpada. A aparição

durou apenas um instante, mas o singular brilho dos olhos que vieram ao encontro de meu olhar me impressionou mais do que eu poderia explicar. Fiz involuntariamente um movimento para trás com o corpo; depois, corri à janela e, com um tom severo, perguntei ao intruso o que ele queria. Entretanto, ele já descia com toda pressa e, agarrando-se a um galho grosso com as mãos, deixou-se pender. Depois, caiu por terra e, em seguida, desapareceu. Eu soei o sinete e um criado entrou. Contei a ele o que tinha acabado de se passar.
– Certamente o senhor professor se enganou.
– Tenho certeza do que estou dizendo. – refutei. – Temo que haja um ladrão no parque.
– Impossível, senhor.
– Então será alguém da própria casa?
O criado arregalou os olhos sem me responder. Por fim, perguntou se eu tinha alguma ordem para lhe dar. Eu lhe pedi para fechar a janela e me coloquei na cama.
Dormi muito bem, sem sonhar com urso, nem com ladrões.
De manhã, eu terminava de me arrumar quando bateram à porta. Abri-a e me vi frente a um jovem muito alto e bonito, com um robe de dormir de bucara23, trazendo à mão um longo cachimbo turco.
23. Diz-se do que é próprio da região da Bucara, hoje a quinta maior cidade do Uzbequistão, situada na histórica Rota da Seda. Neste caso, a referência do texto é ao tecido de seda produzido naquela cidade.
Capítulo III

No dia seguinte, após o almoço, o conde me propôs fazermos uma caminhada. Ele queria visitar um kapas37 – é assim que os lituanos chamam os túmulos aos quais os russos dão o nome de kourgane – muito célebre no país porque, antigamente, os poetas e os feiticeiros – tudo era uma coisa só – lá se reuniam em certas ocasiões solenes.
– Tenho um cavalo muito manso para lhe oferecer. –disse-me ele. – Lamento não poder levá-lo em caleça, mas, na verdade, o caminho que vamos tomar não é de forma alguma carroçável.
Eu teria preferido ficar na biblioteca fazendo anotações, mas julguei que não deveria exprimir nenhum outro desejo que não o de meu generoso anfitrião, e aceitei.
Os cavalos nos esperavam embaixo da escadaria. No pátio, um valete segurava um cachorro preso a uma corrente. O conde parou um instante e, virando-se para mim, disse:
– Professor, o senhor é entendido em cachorros?
– Muito pouco, Vossa Excelência.
37. Aqui, a expressão não se refere a um túmulo como conhecemos nos cemitérios modernos, mas a uma ou mais covas cobertas sob um monumento em pedra ou em terra, típico da antiga Idade do Bronze em regiões do Leste Europeu e do norte do Cáucaso. Os kourganes, túmulos muito ricos em achados neolíticos, são também um tipo de kapas.
–
O estaroste38 de Zorany, onde tenho uma terra, me enviou esse spaniel, uma maravilha. Permita-me que eu o veja?
Ele chamou o servo, que lhe trouxe o cão. Era um animal bem bonito. Já familiarizado com aquele homem, o cachorro saltava alegremente e parecia cheio de ânimo. Mas, a alguns passos do conde, ele colocou o rabo entre as pernas, deu passos para trás e pareceu abatido por um terror súbito. O conde o acariciou, o que o fez uivar de maneira lamentosa e, após tê-lo examinado por algum tempo com os olhos de um entendido, disse:
– Acho que será um bom cão. Cuidem dele.
Depois, montou a cavalo.
– Senhor professor – disse-me o conde, logo quando tomamos a avenida do castelo –, pretendi que visse o medo daquele cachorro. Quis que o senhor fosse testemunha ocular...
Em sua condição de erudito, deve saber explicar enigmas... Por que os animais têm medo de mim?
– Na verdade, senhor conde, o senhor me honra tomando-me por um Édipo. Não sou mais do que um pobre professor de linguística comparada. Podia ser que...
– Observe – interrompeu ele. – que jamais bato nos cavalos nem nos cachorros. Teria escrúpulos em dar uma chicotada em um pobre animal que faz uma besteira sem saber.
38. Em polonês, “fidalgo”. Estaroste era um título usado para uma posição, oficial ou não, de liderança na história eslava. Do século XIV em diante, no período da República das Duas Nações até as partições da Polônia em 1795, o estaroste se tornou um oficial real.
Capítulo IV

O jantar foi bem alegre. O general nos deu detalhes muito interessantes sobre as línguas que se falavam no Cáucaso, das quais algumas são arianas e outras turanianas52, ainda que, entre os diferentes povos, haja uma marcante conformidade de usos e costumes. Eu mesmo fui obrigado a falar de minhas viagens porque o conde Szémioth, tendo me parabenizado pela maneira como eu montava a cavalo, disse que jamais encontrara ministro53 nem professor que pudesse suportar tão bem uma cavalgada como a que acabávamos de fazer. Vi-me obrigado a explicar que, encarregado pela Sociedade Bíblica de um trabalho sobre a língua dos charruas54, cheguei a passar três anos e meio na República do
52. Hoje, adotam-se os termos “línguas indo-arianas” ou “indo-áricas”, as quais são faladas notadamente no subcontinente indiano e formam um subgrupo das línguas indo-iranianas, pertencentes às línguas indo-europeias. Há autores que evitam usar o termo “ariano” isoladamente. “Ariano” era o nome dado a um povo que se supunha ter se estabelecido no Irã e no norte da Índia na Pré-História, mas a palavra já foi erroneamente usada para designar uma raça específica. Atualmente, “ariano” é empregado no sentido linguístico, mas somente como parte de termos compostos. Já as línguas turanianas seriam uma proposta de família linguística que incluiria boa parte dos idiomas da Eurásia que não fizessem parte do indo-europeu, do semítico e do chinês. As línguas desse sistema, porém, se mostram distribuídas em nove famílias distintas. É sempre bom ressaltar que os conhecimentos de linguística avançaram muito desde a época de Prosper Mérimée.
53. Ministro no sentido protestante; religioso.
54. Indígenas que habitavam os atuais territórios do Uruguai, do nordeste da Argentina e do sul do Rio Grande do Sul, no Brasil.
Uruguai, quase sempre a cavalo e vivendo nos pampas, entre os indígenas. Foi assim que fui levado a contar que, tendo permanecido três dias perdido naquelas planícies sem fim, e não dispondo de víveres nem água, vi-me obrigado a fazer como os gaúchos que me acompanhavam, ou seja, a sangrar meu cavalo para lhe beber o sangue.
Todas as damas soltaram um grito de horror. O general observou que os calmucos 55 faziam o mesmo em situações extremas parecidas. O conde me perguntou como eu achara tal bebida.
– Moralmente – respondi-lhe. –, ela me repugnava muito, mas, fisicamente, achei-me muito bem, e graças a ela é que devo a honra de jantar aqui hoje. Muitos europeus, quero dizer, brancos, que viveram por bastante tempo entre os índios, habituaram-se a isso e até mesmo lhe tomaram gosto. Meu excelente amigo, Don Fructuoso Rivera56, presidente da República, raramente perde oportunidade de se satisfazer. Recordo-me que um dia, indo ao Congresso em uniforme de gala, ele passou em frente a um rancho onde se sangrava um potro. Parou, desceu do cavalo para pedir um chupón, uma sugada, após o que pronunciou um de seus mais eloquentes discursos.
55. Calmucos ou calmuques eram os descendentes dos mongóis ocidentais que migravam para oeste no século XVII. Vieram a se estabelecer na Rússia, na bacia do rio Volga. A República da Calmúquia fica no centro da Federação Russa e possui cerca de quatrocentos mil habitantes. 56. Fructuoso Rivera foi primeiro e terceiro presidente do Uruguai.
Capítulo V

Recolhemo-nos quando já era bastante tarde. Em muitas grandes casas lituanas, veem-se uma prataria magnífica, belos móveis, tapetes persas preciosos, e não há, como em nossa cara Alemanha, bons colchões de plumas para serem oferecidos a um hóspede cansado. Rico ou pobre, gentil-homem ou camponês, um eslavo sabe muito bem como dormir sobre uma tábua. E o castelo de Dowghielly não era de forma alguma exceção à regra geral.
No quarto para o qual fomos conduzidos o conde e eu, havia apenas dois canapés forrados de marroquim57. Aquilo não me deixou impressionado porque, em minhas viagens, frequentemente eu tinha de dormir sobre a terra nua. Divertia-me um pouco com as exclamações do conde sobre a falta de civilização de seus compatriotas. Um criado veio para tirar nossas botas e nos deu roupões de dormir e pantufas. O conde, após ter retira do o casaco, passeou algum tempo em silêncio. Depois, parando em frente ao canapé sobre o qual eu já me encontra va deitado, perguntou:
– O que o senhor pensa de Iulka?
– Acho-a encantadora.

57. Diz-se do couro curtido de bode ou cabra, por exemplo, empregado na confecção e revestimento de diversos artefatos.
– Sim, mas coquete demais!... O senhor acha que ela de fato se agrada daquele capitãozinho loiro?
– O ajudante de ordens?... Como eu poderia saber?
– É um pretensioso!... Deve, pois agradar às mulheres.
– Nego a conclusão, senhor conde. Quer que eu lhe diga a verdade? A senhorita Iwinska pensa muito mais em agradar ao conde Szémioth do que a todos os ajudantes de ordens do exército.
Ele enrubesceu sem me responder, e pareceu-me que minhas palavras lhe tinham causado sensível prazer. Passeou ainda mais algum tempo sem falar e, depois, olhando seu relógio, disse:
– Minha nossa, já deveríamos ir dormir, pois é tarde.
Pegou seu fuzil e sua faca de caça, que haviam guardado em nosso quarto, e colocou-os em um armário do qual retirou a chave.
– Quer guardá-la? – disse-me, dando-me a chave para minha grande surpresa. – Eu poderia esquecê-la. Certamente, o senhor tem mais memória do que eu.
– O melhor meio de não esquecer suas armas – disse-lhe.
– será deixando-as sobre aquela mesa, perto de seu sofá.
– Não... Veja, falando francamente, não gosto de ter armas perto de mim enquanto durmo… E lhe contarei o motivo. Quando servia com os hussardos58 de Grodno59, estava dormindo certa noite em um quarto com um colega. Minhas
58. Hussardo ou hússar era o soldado da cavalaria ligeira na França e na Alemanha.
59. Nome polonês para a cidade bielorussa de Hrodna, hoje a terceira mais populosa daquele país, próxima à fronteira da Polônia e da Lituânia.
Capítulo VI

Após o almoço, retornamos a Medintiltas. Lá, tendo encontrado o doutor Froeber a sós, disse-lhe que acreditava que o conde estaria doente, pois tinha sonhos apavorante e talvez fosse sonâmbulo e poderia se tornar perigoso naquele estado.
– Já me havia dado conta de tudo isso. – disse-me o médico. – Apesar da constituição atlética, ele é nervoso como uma bela mulher. Talvez tenha nisso puxado à mãe… Ela foi diabolicamente malvada essa manhã… Não acredito muito nas histórias de medos e de vontades de mulheres grávidas, mas, o que é certo é que a condessa é maníaca, e a mania é transmissível pelo sangue...
– Mas o conde – redargui. – é perfeitamente lúcido, tem o espírito justo, é estudado, muito mais até do que eu poderia ter acreditado, lhe asseguro. Ele adora ler...
– Concordo, concordo, meu caro senhor. Mas muitas vezes ele é esquisito. Fecha-se algumas vezes durante vários dias. Seguidamente, põe-se a vagar durante a noite. Lê livros inacreditáveis... metafísica alemã... fisiologia, pelo que eu saiba! Ainda ontem, chegou para ele um pacote de Leipzig. Vamos falar francamente? Um Hércules precisa de uma Hebe. Aqui há camponesas muito bonitas… No sábado à noite, após o banho, poder-se-ia considerá-las princesas... Não há uma sequer que não se orgulhasse de distrair o con-
de. Eu, na idade dele, ah, que o diabo me carregue!.. Não, ele não tem amante, nem vai se casar. Ele está enganado e é preciso que encontre uma distração.
Como o materialismo grosseiro do doutor me chocasse ao último nível, terminei bruscamente a conversa com ele, dizendo que fazia votos para que o conde Szémioth encontrasse uma esposa digna dele. Não foi sem surpresa, confesso, que recebi do médico a informação desse gosto do conde por estudos filosóficos. Aquele oficial de hussardos, aquele caçador apaixonado lendo metafísica alemã e se ocupando da fisiologia era algo que me dava nó na cabeça. Entretanto, o doutor tinha dito a verdade, o que foi confirmado naquele mesmo dia.
– Como o senhor explica, professor – disse-me o conde bruscamente ao fim do jantar. –, como o senhor explica a

Capítulo VII

Elas duraram cerca de dois meses, e posso dizer que não há praticamente vilarejo na Samogícia em que eu não tenha parado e não tenha recolhido alguns documentos. Permitam-me aproveitar essa ocasião para agradecer aos habitantes daquela província e, em particular, aos senhores eclesiásticos, devido ao apoio verdadeiramente prestimoso com o qual acordaram com minhas pesquisas e pelas excelentes contribuições com as quais enriqueci meu dicionário. Após a estada de uma semana em Szawlé, propus-me a ir embarcar em Klaypeda – porto que chamávamos de Memel – para retornar para casa, quando recebi do conde Szémioth a seguinte carta, levada por um dos seus caçadores:

“Senhor professor,
Permita-me escrever-lhe em alemão. Eu cometeria mais solecismos se lhe escrevesse em jmuda, e o senhor perderia toda a consideração por mim. Não sei se o senhor tem muita consideração à minha pessoa e a notícia que tenho para lhe comunicar talvez não contribua para aumentá-la. Sem mais delongas, vou me casar e o senhor já adivinha com
quem. Júpiter se ri das juras dos apaixonados. Assim faz Pirkun, nosso Júpiter samogita. É, pois, a senhorita Julienne Iwinska que vou desposar no dia oito do próximo mês. O senhor seria o mais amável dos homens se viesse assistir à cerimônia. Todos os camponeses de Medintiltas e das circunvizinhanças virão à minha casa comer alguns bois e inumeráveis porcos e, quando estiverem bêbados, dançarão naquele prado, à direita da avenida que o senhor conhece. O senhor verá costumes e vestuários dignos de observação. Dar-me-ia uma grande satisfação, e a Julienne também. Acrescento que sua recusa nos deixaria no mais triste embaraço. O senhor sabe que pertenço à comunhão evangélica, assim como minha noiva. Ora, nosso ministro, que mora a umas trinta léguas de distância, está atacado de gota e atrevi-me a esperar que o senhor quisesse oficiar no lugar dele.
Receba as melhores considerações, meu caro professor, de seu dedicado amigo,
Michel Szémioth.”
No rodapé da carta, em forma de post scriptum, uma linda mão feminina tinha acrescentado em jmuda:
“Eu, a musa da Lituânia, escrevo em jmuda. Michel é um impertinente em duvidar da aprovação do senhor. Só eu, de fato, é que sou bastante louca em querer um
Capítulo VIII

Ao entrar na avenida do castelo, percebi um grande número de damas e cavalheiros em trajes matinais agrupados na escadaria ou circulando pelas alamedas do parque. O pátio estava cheio de camponeses endomingados. O castelo tinha um ar de festa. Por toda parte, flores, guirlandas, bandeiras e festões. O intendente me conduziu aos aposentos que me havia preparado ao rés-do-chão, pedindo-me desculpas por não conseguir me oferecer algo mais bonito, e explicando que havia tanta gente no castelo que tinha sido impossível me reservar os aposentos que eu tinha ocupado em minha primeira estada, o qual estava destinado à mulher do marechal da nobreza. Meu novo quarto, além disso, era muito conveniente, dando vista para o parque, e ficava abaixo dos aposentos do conde.
Vesti-me às pressas para a cerimônia, enverguei a batina, mas nem o conde nem sua noiva apareciam.
O conde tinha ido buscá-la em Dowghielly. Há muito que já deveriam ter chegado, mas a arrumação de uma noiva não era coisa simples. O doutor advertiu os convidados de que o almoço deveria acontecer apenas após o serviço religioso e, por isso, aos apetites impacientes demais, estaria bem tomarem precauções em um certo bufê guarnecido com bolos e com todos os tipos de bebidas. Observei, naquela ocasião, o quanto a espera instigava a
maledicência. Duas mães de lindas senhoritas convidadas para a festa não faziam questão de disfarçar suas más línguas contra a noiva.
Já era mais de meio-dia quando uma salva de petardos e tiros de fuzis assinalaram a chegada do casal e, logo em seguida, uma caleça de gala entrou na avenida, puxada por quatro magníficos cavalos. Pela escuma que lhes cobria o peito, ficou fácil de ver que o atraso não foi culpa deles. Na caleça havia somente a noiva, a senhora Dowghiello, e o conde. Ele desceu e estendeu a mão a ela. E a senhorita Iwinska, num gesto cheio de graça e de coqueteria infantil, fez que iria se esconder sob seu xale para escapar dos olhares curiosos que a rodeavam de todos os lados. No entanto, ela se pôs em pé na caleça e foi tomar a mão do conde quando os cavalos, talvez assustados pela chuva de flores que os camponeses lançavam sobre a noiva, e quiçá também tomados por aquele estranho terror que o conde Szémioth inspirava aos animais, empinaram-se bufando. Uma roda colidiu contra a base da escadaria do castelo e poder-se-ia crer, durante um momento, que um acidente aconteceria. A senhorita Iwinska deixou escapar um gritinho... Logo, porém, fomos tranquilizados. O conde, segurando-a nos braços, carregou-a até o alto dos degraus da escada tão facilmente como se levasse uma pomba. Todos aplaudiram sua destreza e sua galanteria cavalheiresca. Os camponeses davam formidáveis vivat, e a noiva, toda enrubescida, ria e tremia ao mesmo tempo. O conde, que não estava de forma

Lokis é uma pérola gótica de Prosper Mérimée (1803-1870) que não pode ser esquecida. Sua história instigante nos transporta aos pântanos gelados da Lituânia, e vamos bem guiados pelas mãos do exímio linguista, professor Wittembach. O século dezenove foi marcado por descobertas científicas primorosas e debates filosóficos substanciosos, mas também pela presença dos devaneios românticos e por narrativas macabras que muito estimularam as mentes dos leitores – época em que um novo mundo se descortinava ante as tradições e as crendices do continente europeu. Neste livro você encontrará, para além das referências à linguística, o tom burlesco de uma estranha medicina e de uma não pior diagnose psiquiátrica. Além da novela original de Mérimée, traduzida diretamente do francês por Adriano Messias, você encontrará uma sua continuação – também de autoria de Messias: trata-se de uma segunda vida que o monstro meio homem, meio urso mereceu ganhar, vindo assim a habitar duplamente as páginas pelas quais o leitor viverá sua própria aventura. www.blucher.com.br



