Fanon, educação, ação

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tradução do inglês

R. Takatu & R. Velasco

Fanon, educação, ação

Criança como método

Fanon, educação, ação

Criança como método

Apresentação

Amana Mattos & Ilana Katz

Prefácio à edição brasileira

Emiliano de Camargo David

Tradução

Renata Takatu & Rafael Velasco

Fanon, educação, ação: Criança como método, Erica Burman

Título original: Fanon, Education, Action: Child as Method

Série pequena biblioteca invulgar, coordenada por Paulo Sérgio de Souza Jr.

© 2019 Erica Burman, All Rights Reserved

Authorised translation from the English language edition published by Routledge, a member of the Taylor & Francis Group © 2025 Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenador editorial Rafael Fulanetti

Coordenadora de produção Ana Cristina Garcia

Produção editorial Luana Negraes

Revisão técnica Amana Mattos e Ilana Katz

Preparação de texto Maurício Katayama

Diagramação Guilherme Salvador

Revisão de texto Regiane da Silva Miyashiro

Capa e projeto gráfico Leandro Cunha

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4° andar 04531-934 — São Paulo — SP — Brasil

Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela

Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570

Burman, Erica Fanon, educação, ação : Criança como método / Erica Burman ; tradução de Renata Takatu e Rafael Velasco. – São Paulo : Blucher, 2025.

544 p. : il. – (Série pequena biblioteca invulgar / coord. Paulo Sérgio de Souza Jr.).

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2677-2 (impresso)

ISBN 978-85-212-2678-9 (eletrônico – Epub)

ISBN 978-85-212-2676-5 (eletrônico – PDF)

Revisão técnica feita por: Amana Mattos e Ilana Katz. Título original: Fanon, Education, Action: Child as Method.

1. Psicanálise. 2. Trauma psíquico. 3. Psicanálise e infância. 4. Psicanálise e educação. I. Título. II. Série. III. Souza Jr., Paulo Sérgio de. IV. Takatu, Renata. V. Velasco, Rafael. VI. Mattos, Amana. VII. Katz, Ilana. CDU 159.964.2

Índice para catálogo sistemático:

Conteúdo

Apresentação: A criança não existe

Fanon, educação, ação: Criança como método, que agora chega ao público brasileiro, é o primeiro livro de autoria de Erica Burman a ser traduzido na íntegra para o português no país. Autora de uma extensa obra de referência no campo dos estudos da infância, Burman tem se dedicado a discussões teóricas e epistemológicas no campo dos feminismos, da crítica à psicologia do desenvolvimento e ao neoliberalismo nas ciências humanas, às discussões sobre o lugar das infâncias no pensamento geopolítico e, mais recentemente, à pactuação epistêmica que propõe em Criança como método. Seus trabalhos dialogam com referenciais clássicos e contemporâneos, como a análise do discurso, os feminismos interseccionais, as teorias descoloniais, os estudos das relações raciais, a psicanálise e os estudos pós-estruturalistas. Poucos deles estão acessíveis em traduções para o português no Brasil, o que, a nosso ver, dificulta o encontro potente entre o pensamento de Burman e a produção brasileira no campo das infâncias.

Apresentação: A criança não existe

Em interlocução que vem se consolidando com a autora há mais de dez anos, identificamos as muitas linhas de articulação entre os trabalhos críticos que se desenvolvem no Brasil e as discussões elaboradas por Burman em seu percurso. A escolha por este livro como primeiro a ser traduzido deu-se por algumas razões: além de ser sua publicação mais recente no momento em que iniciamos as conversas sobre a tradução, pareceu-nos oportuno que contemplasse o seu primeiro livro a colocar em prática e esmiuçar Criança como método. Aqui, ela o faz tomando a obra de Frantz Fanon, autor que tem merecidamente ganhado destaque no Brasil no campo das relações raciais, das ciências humanas e psicanálise, inclusive com a publicação de seus trabalhos em edições brasileiras recentes. A escolha por esse título de Burman para a tradução, portanto, pareceu-nos evidente: ela explicita neste livro que Fanon pode e deve ser lido como um autor decisivo para pensar raça, colonialidade, luta antimanicomial e, também, infâncias.

Em sua pesquisa ativista e, especialmente, em Criança como método, Burman recusa modelos deficitários de infância e insiste na necessidade de avançar contra a compreensão de infância como entidade monolítica a ser salva, restaurada e protegida. A autora demonstra como essas concepções, ao assediarem as experiências das infâncias, performam subjetividades.1 Para sustentar essa concepção e, destacadamente, para discutir a ideia de Criança presente no pensamento de Fanon, Burman propõe que entendamos Criança “como uma figuração ou

1 Millei, Z. & Burman, E. (2025). ‘Goodbye, Lenin!’: Exploring Cold War childhood memories and knowledge production with Child as Method. Annual Review of Critical Psychology, 20. Disponível em: <https://discourseunit.com/arcp-20-childas-method-in-movement-work-action-subject-2025/>.

tropo; a infância, como uma categoria ou condição social; e as crianças, como entidades vivas e corporificadas que as habitam” (p. 437). Assim, as palavras “criança”, “crianças”, “Criança”, “infância”, “infâncias” aparecem no texto demarcando usos e funções específicos, que buscamos preservar e traduzir nesta versão brasileira em diálogo com as proposições da autora. Vejamos, sucintamente, como Burman propõe Criança como método para, em seguida, justificarmos as escolhas feitas pela tradução e revisão técnica neste texto.

Ao situar infâncias em suas condições espaço-materiais, a autora recusa a essencialização da criança e dá um passo além: expõe a constituição mútua das gerações em articulação com outras categorias sociais. É nesse sentido que formula a tese, para nós central, de que criança e infância são categorias geopolíticas. Em suas reflexões e proposições, crianças são percebidas de forma relacional, ou seja, em interdependência com outros sujeitos e posições institucionais (familiares, cuidadores, profissionais de saúde, professores, escolas etc.) que estruturam seu lugar no laço social.

Com esse entendimento e, neste livro, para ler Fanon, ampliando sua incidência interpretativa no laço social, Criança como método toma Criança como uma posição interpretativa ou narrativa a partir da qual é possível constelar leituras sobre os discursos dos quais ela participa e é também, e fundamentalmente, considerada “como objeto de estudo que permite elaborar modos de injustiça — os praticados contra crianças, mas também os praticados em nome das crianças, assim, desnaturalizando essas injustiças”.2

2 Burman, E. (jul. 2023). Child as method and/as childism: conceptual-political intersections and tensions. Children & Society: The International Journal of Childhood and Children’s Servicies, 37(Special Issue: Childism), pp. 1021-1036.

A criança não existe

Para alcançar essa perspectiva antinormativa na abordagem, a estrutura discursiva do texto conta. Assim, a autora, que também é analista do discurso, lança mão de modalizações: ao eliminar o artigo antes de escrever criança (“the” child/“a” criança), pretendeu marcar a não essencialização de criança nas experiências discursivas analisadas. Acompanhamos essa formulação para compreender que a essencialização da criança vai ao encontro de sua universalização e se opõe à experiência de crianças e de infâncias como categoria social, o que, por consequência, impede a leitura de Criança como um tropo capaz de interpretar os discursos dos quais participa. Assim, nesta tradução, quando grafada com inicial em maiúscula, Criança indica uma figuração (ou tropo, imagem) de criança produzida nos discursos e nas práticas, de maneira consciente ou não. Neste livro, a autora propõe quatro figurações de Criança: Idiótica, Terapêutica, Traumatogênica e Extímica, que podem ser exploradas com Fanon desde sua obra. Quando grafada em minúsculas, refere-se a criança/s e infância/s sem recorrer a uma universalização de seu sentido — universalização que é invariavelmente carregada de colonialidade e eurocentrismo, como discute Burman ao longo de sua obra. A elisão do artigo “the” antes de child, no inglês, é disruptiva e produz um estranhamento intencional na escrita. Em português, esse efeito é potencializado, uma vez que a norma culta pressupõe o uso do artigo antes do substantivo, via de regra. Na revisão técnica da tradução e em diálogo profícuo com a autora, sustentamos essa elisão. Mesmo que sob o risco de produzir ruídos no texto, entendemos que acompanha a torção epistemológica proposta por Burman. Estranhar a pressuposição de uma criança universal, também na forma do texto, é uma tarefa mais desafiadora do que poderia parecer.

Ainda em relação ao tensionamento dos universais, um desafio a mais que se colocou nesta revisão técnica foi como evitar a primazia do gênero universal masculino na tradução do inglês para o português sem dificultar a leitura, já que no português a generificação dos substantivos é muito mais presente e evidente do que no inglês. Optamos, assim, pelo uso de termos neutros sempre que possível (pessoas, pacientes, estudantes, profissionais…). Em outros momentos, flexionamos os termos no feminino e no masculino (as leitoras e os leitores; as cidadãs e os cidadãos). Essa escolha foi pensada em diálogo com a autora e com o editor, para manter a coerência com a discussão proposta e sua fundamentação nos estudos feministas interseccionais. Um elemento desse processo que vale ressoar é que criança, em português, é um substantivo feminino, o que produz no texto efeitos interessantes (que não estão presentes no original em inglês, inclusive).

Na mesma direção, a referência a quem exerce a parentalidade, “os pais”, em português, traz a marcação de gênero que na escrita em inglês, the parents, fica apagada. Para enfrentar essa outra problemática e sustentar no texto a abertura necessária à experiência contra-hegemônica da criação de crianças nos diferentes modos possíveis ao seu acontecimento, a tradução se faz acompanhar das expressões “cuidadores e cuidadoras principais”, “familiares” ou “parentalidade”, escolhidas em relação ao contexto discutido pela autora. Ainda no âmbito da criação de crianças, a autora escreve (m)other para, de forma perspicaz, encontrar na grafia do termo o caráter da alteridade constituinte das relações inaugurais — o que não encontra correspondente no português. As formas possíveis de fazer o neologismo funcionar em nossa língua reduzem a maternidade à condição da genitora,

Fanon, educação, ação: rumo a Criança como método

Este livro elabora as ideias e os escritos de Frantz Fanon para oferecer uma visão renovada do projeto de educação. Seu foco na ação põe em pauta questões de subjetividade (autoconhecimento, entendimento e mudança) que incluem, mas transcendem, os espaços formais e informais de aprendizagem para levar em conta o engajamento político. As ideias de Fanon são apresentadas como recursos centrais para abordar a análise das noções de infância e desenvolvimento, que aqui se denomina “Criança como método”. Embora os escritos de Fanon tenham suscitado ampla discussão dentro e fora das áreas educacionais, proponho que ainda não esgotamos a relevância de suas ideias e que, de fato, essa atenção renovada pode viabilizar um melhor enfrentamento — quando não a resolução — de alguns

problemas persistentes na teoria e na prática educacionais. Aqui, o foco na ação também sinaliza os compromissos ético-políticos que são tão claramente articulados nos escritos de Fanon voltados a confrontar a opressão e a forjar as condições subjetivas e sociais para a mudança e a transformação política. Criança como método apresenta-se como uma estratégia de leitura e visualização do que é — e do que poderia ser — a educação, que se alinha com a posição das pessoas marginalizadas e é construída a partir das ideias de Fanon, porém conectando-se também com as atuais discussões feministas, pós-coloniais e pós-humanas. Questões de resistência e transformação tanto pessoal quanto política são preocupações centrais que conduzem este livro. As descrições apaixonadas de Fanon acerca da alienação produzida pelas opressivas condições coloniais também incluem a discussão das condições para a — por ele chamada — “desalienação”. Essas ideias são retomadas na discussão de Criança como método como um projeto educacional anticolonial, descolonial1 ou pós-colonial.

1 Apesar do frequente emprego do termo “decolonial” no Brasil de hoje, não custa entrever a problemática que seu uso desvela, minimamente em sua qualidade de decalque de línguas centrais como francês e inglês (décolonial, decolonial), de cujas bibliografias dimanam boa parte das teorias a esse respeito na direção de idiomas periféricos. Ademais, se por vezes o prefixo de- exprime um movimento de cima para baixo (como em “defluxo” e “decair”), ele também significa, muito produtivamente em língua portuguesa, um reforço ou intensificação (como em “decerto” e “demorar”). Optamos, portanto, pelo termo “descolonial”, perfeitamente sintônico ao uso da partícula no português brasileiro, bem como às traduções correntes de termos morfologicamente homólogos. Cf., entre outros: De Bona, C. & Nunes Ribeiro, P. (2018). Sobre a produtividade e a semântica do prefixo des- no português brasileiro atual. DELTA, 34(2), pp. 611-634 [N.E.].

A contribuição deste livro

Esta é uma intervenção interdisciplinar ou transdisciplinar. Coloca os estudos educacionais em diálogo e debate com os estudos da infância, a teoria feminista e queer, os estudos pós-coloniais, a psicanálise e a teoria política. Por um lado, a mobilização desses recursos reflete minha própria trajetória desde a psicologia crítica do desenvolvimento até a educação, junto com uma sensibilidade terapêutica oriunda de minha formação como analista de grupo e meu presente trabalho formando psicoterapeutas. É a partir desse repertório, no entanto, que almejo indicar como a leitura de Fanon — paralelamente, por meio de e em relação a esses recursos — ajuda a levantar novas questões e convida a outras agendas de pesquisa. Como uma contribuição para a educação e a psicologia, este livro amplia a apreciação teórica e metodológica da relevância de Fanon no engajamento com questões centrais em torno da subjetividade e da mudança. Como contribuição para o campo mais abrangente — e extenso — dos estudos fanonianos, também oferece uma leitura crítica e sistemática das representações da infância feitas pelo autor. Esse enfoque não foi explorado previamente; assim sendo, a originalidade da intervenção deste livro funciona em — pelo menos — duas direções disciplinares. Em primeiro lugar, reafirmando a relevância de Fanon para a educação por meio de uma avaliação de seus repertórios sobre infância e, em segundo lugar, tomando seu texto e comentários associados como um campo exemplar para o questionamento da política pedagógica performativa mobilizada pela Criança. Assim, Criança como método amplia, atualiza e, em seguida,

educação, ação: rumo a Criança como método

avalia esse engajamento fanoniano, identificando também as implicações conceituais e metodológicas correspondentes. Em particular, as leituras dos escritos de Fanon apresentadas aqui sublinham a importância de três pontos-chave. Em primeiro lugar, enfatizam os elos inextricáveis entre emoções e aprendizagem. Em segundo, enfatizam como o político inscreve o pessoal, embora de maneiras específicas e idiossincráticas — como indicam as histórias de casos de Fanon em Os condenados da terra, 2 doravante referido como Os condenados. Ao passo que muitos outros modelos atualmente em discussão — como a teoria sociocultural — também assumem esses compromissos, sugiro que os ler a partir de e com uma perspectiva fanoniana oferece alguns lampejos adicionais. Além disso, há um terceiro argumento, ou ponto, que diz respeito a como retóricas ou mobilizações de apelos às noções de criança — incluindo conceitos abstratos de “infância”, bem como discussões sobre crianças específicas — desempenham um trabalho ideológico particular e significativo que conecta as cenas educacionais com as políticas, e a psicologia individual com as políticas sociais. Os capítulos substanciais que compõem este livro identificam e avaliam a importância política das concepções complexas, múltiplas e mutáveis de Criança em jogo nos textos de Fanon, conectando-as a outros debates e cenas mais atuais. Cada capítulo explora uma problemática distinta (ou quadro conceitual distinto) e uma pedagogia da infância (ou abordagem para pensá-la e engajar-se com ela), conforme lida a partir e por

2 Fanon, F. (1961/2022). Os condenados da terra (L. F. Ferreira & R. S. Campos, trad.). Rio de Janeiro: Zahar.

meio dos textos de Fanon (e textos relacionados). Essas análises indicam que, mesmo que não possamos escapar totalmente da ideologia, podemos, no entanto, perceber o que está e onde ela está em ação.

Criança como método, como uma abordagem de matriz fanoniana, oferece uma metodologia analítica para ler a prática da Criança no âmbito da teoria social e política; ou seja, ela interroga as representações da — ou atributos associados à — infância e também, de modo correspondente, da Criança, como uma ferramenta analítica para melhor compreender essas coordenadas sociopolíticas. Como contribuição à teoria educacional, ela evita alguns dos problemas que acompanham o binômio agência-estrutura. Também oferece uma abordagem que é normativa — no sentido de estar politicamente alinhada — sem ser normalizadora. Como método, e não como teoria (ou mesmo metateoria), seu foco no processo evita os limites (ou o que Fanon chamaria de problemas “reacionais”) de compromissos utópicos. Essa posição utópica de domínio, que os argumentos foucaultianos3 demonstraram limitar possibilidades futuras, também se reflete em seu processo. Proponho que a adesão de Fanon ao que ele chamou de método das “falhas”4 traz uma crítica psicanaliticamente informada dos limites da certeza e do saber para o projeto de pedagogia educacional, ou teorias de ensino e aprendizagem. Esse projeto cumpre suas aspirações

3 Ferguson, K. E. (1991). Interpretation and genealogy in feminism. Signs: Journal of Women in Culture and Society, 16(2), pp. 322-339.

4 Fanon, F. (1952/2008). Pele negra, máscaras brancas (R. da Silveira, trad.). Salvador: Edufba, p. 38.

ação: rumo a Criança como método

Criança Idiótica

Falo aqui, por um lado, de negros alienados (mistificados) e, por outro, de brancos não menos alienados (mistificadores e mistificados). […] dirigimos nossa crítica aqui aos mistificados e aos mistificadores, aos alienados […].

— Frantz Fanon1

Este capítulo reflete sobre o funcionamento específico de uma posição predominante de Criança no âmbito das práticas sociopolíticas de opressão, que, no relato de Fanon, é exemplificada pelo racismo colonial. Essa é a posição da criança que não sabe ou que (ainda) não tem discernimento. Essa posição,

1 Fanon, F. (1952/2008). Pele negra, máscaras brancas (R. da Silveira, trad.). Salvador: Edufba, pp. 43, 44; trad. modificada.

obviamente, fundamenta muitas práticas educacionais — sobretudo as que Freire2 descreveu como o “sistema bancário” de transferência de conhecimento que sustenta as relações adulto-criança e demais relações paternalistas, especialmente as classistas —, bem como práticas sociojurídicas, culturais e midiáticas de grande circulação. Muitas teóricas e teóricos da infância e do feminismo destacaram que a inocência ou a suposta falta de conhecimento atribuídas à infância têm um duplo aspecto, não somente por caracterizar apenas uma pequena parcela de crianças reais e corporizadas — para não dizer nenhuma —, mas também por tornar aquelas que, de fato, demonstram indícios de “saber” — seja sobre sexualidade ou trabalho, para citar dois exemplos-chave — como desviantes, até mesmo desqualificando-as como integrantes da categoria Criança.3 Isso não só destaca as seletividades de gênero, culturais, de classe e racializadas que regem o acesso aos modelos dominantes de infância,4 com graves consequências para crianças do mundo majoritário, mas o vigor e o investimento afetivo com que esses limites são regulados por meio do tropo da inocência e de (falta de) saber — de tal forma que questioná-los geralmente provoca indignação ou desconfiança — também demandam mais questionamentos.

2 Freire, P. (1968/2019). Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz & Terra.

3 Também é possível observar como crianças violentas são particularmente propensas a serem extirpadas dessa categoria, o que talvez seja um indicativo em vários aspectos, como veremos.

4 Meiners, E. R. (2016). For the children?: protecting innocence in a carceral state. Minneapolis: University of Minnesota Press.

Criança Idiótica

O presente capítulo, portanto, aborda a problemática do saber, da crença e das relações adulto-criança por um outro viés. A designação provocativa de Criança Idiótica não é mobilizada aqui em sua acepção idiomática cotidiana atual, como uma atribuição de estupidez ou ignorância, salvo de forma indireta, como um efeito de dinâmicas sociais específicas. Ela surge do termo grego Idios (ΙΔΙΟΣ), que significa o si-mesmo, ou “indivíduo em seu mundo privado”, elaborado em uma época em que as noções de privacidade ou solidão não eram culturalmente valorizadas. Enquanto Parker et al. abordam esse assunto para discutir o caráter culturalmente específico das representações populares da angústia, em que se considerava que o tratamento moral dos “loucos” exigia solidão e segregação,5 considero aqui como o termo designava os “si-mesmos” ou partes que não demonstravam responsabilidade social e consciência política. O termo adquiriu significados de inexperiência e, então, associações à ignorância e à falta de educação, além de tratamento corretivo que exigia deliberação e reflexão sobre a experiência do sujeito. Mas enquanto essas autorias, na esteira de Padel,6 utilizam o termo para discutir a posição dos designados “loucos” — e, assim, tornados alheios ou inscientes

5 Parker, I., Georgaca, E., Harper, D., McLaughlin, T. & Stowell-Smith, M. (1995). Deconstructing Psychopathology. London: Sage.

6 Padel, R. (1981). Madness in fifth-century (bc) Athenian tragedy. In P. Heelas & A. Lock (org.). Indigenous psychologies: the anthropology of the self (pp. 105-132). London: Academic Press.

e, consequentemente, exonerados das responsabilidades sociais devido a esse estatuto marginal —, eu o emprego aqui para descrever um posicionamento de Criança como excluída ou apartada dos consensos e convenções sociais.

A título de elucidação, não defendo nem celebro aqui um posicionamento de Criança Idiótica, nem presumo que esse seja um posicionamento preciso ou necessário. Como veremos, trata-se de uma representação da posição de Criança, e não de uma posição reivindicada ou assumida, que atende a propósitos específicos (individuais e sociais) para quem elabora essa posição. Portanto, este capítulo aborda o que está em jogo nesse processo de criar ou construir Criança como idiótica. Partindo do significado original em grego do termo “idiota”, como não engajado ou não contribuinte para a vida política, este capítulo destaca, de forma correspondente, uma pedagogia convencional da infância, ou um posicionamento socialmente sancionado, que faz da(s) criança(s) algo separado e estrangeiro ao corpo social principal. Essa separação opera para excluir crianças do que, nos discursos contemporâneos sobre os direitos da criança, seria chamado de “participação” social e política, negando, assim, potencial ou efetivamente, o seu protagonismo.

No desenvolvimento dos argumentos apresentados pelo psicanalista Octave Mannoni em seu influente ensaio “Eu sei, mas mesmo assim” (originalmente publicado como “Je sais bien, mais quand-même”),7 sobre a estrutura da ideologia, percebe-se

7 Mannoni, O. (1969/1973). Eu sei, mas mesmo assim… In Chaves para o imaginário (pp. 9-34; L. M. P. Vassalo, trad.). Petrópolis: Vozes.

que essa exclusão também opera produtivamente para assegurar uma série específica de pressupostos. Nesse sentido, então, antecipando os argumentos dados por Mezzadra e Neilson8 em seu texto Border as Method [Fronteira como método] (que é uma fonte política paralela a Criança como método), podemos ver como uma prática de exclusão — neste caso, a exclusão da criança da participação social ou do acesso ao conhecimento disponível aos participantes sociais plenos — constitui assim essa mesma prática social. A inclusão não é apenas provisória e discricionária, ela também depende da exclusão e é por ela constituída. Aqui vemos como os discursos de inclusão e exclusão da Criança trazem consequências não apenas para crianças, mas como essa exclusão também garante, estruturalmente, a de outros. Como veremos a seguir, estruturar essa posição de “inscientes”/excluídas para crianças institui uma ordem sociopsíquica que permite que outras formas de insciência, no mínimo igualmente perniciosas, como a adesão voluntária a ideias racistas, subsistam sem serem detectadas. Os mecanismos psíquicos dos quais esse processo depende são individuais e idiossincráticos, mas também sociais e culturais — em parte, por meio de entendimentos trans-históricos e universalizados dos significados atribuídos à infância. Explicar esses mecanismos nos leva à teoria psicanalítica, notadamente às discussões sobre fetichismo ou a uma configuração psíquica específica de defesa contra a falta, que Fanon e outros reconhecem como subjacente à dinâmica do racismo.

8 Mezzadra, S. & Neilson, B. (2013). Border as method. Durham: Duke University Press.

Criança Traumatogênica

“há uma relação de sustentação entre a língua e a coletividade”. — Frantz Fanon1

Este capítulo aborda a representação mais famosa da infância associada aos escritos de Fanon: a criança que o denomina “preto” em Pele negra, máscaras brancas — ou seja, a Criança Traumatogênica. É esse encontro que inicia o relato de Fanon sobre o caos existencial produzido pela racialização. Apresentado como um relato de experiência e, portanto, biograficamente específico, ele também é lido como uma descrição geral e até

1 Fanon, F. (1952/2008). Pele negra, máscaras brancas (R. da Silveira, trad.). Salvador: Edufba, p. 49.

mesmo lógica — de acordo com a ordem racista predominante — da posição vilipendiada e abjeta concedida às pessoas que foram excluídas das normas sociais. Como se sabe, considera-se que o ato de racialização tem impactos traumáticos e irreversíveis, incluindo não apenas a separação entre Fanon/a pessoa agora tida como negra do mundo branco e das pessoas brancas, mas também a instituição de uma alienação tanto corporal como psíquica. É com base nessa cena icônica — talvez a cena primordial da racialização, ecoando relatos de outras autorias negras que escreviam naquela época (incluindo Notas de um filho nativo, de James Baldwin,2 e Homem invisível, de Ralph Ellison3), mas também relatos posteriores (como a biomitologia Zami, de Audre Lorde4) — que o outro racializado é produzido junto com a imposição de um relacionamento fixo com conjuntos de tradições e culturas e assegura uma essencialização limitada e perigosa de qualidades que Fanon parodia sucintamente como sendo arrebatadas pela “antropofagia, [pel]o atraso mental, o fetichismo, as taras raciais, os negreiros”.5 Como afirma Nancy Fraser: “Esse foi o grande lampejo de Fanon: a racialização

2 Baldwin, J. (1955/2020). Notas de um filho nativo (P. H. Britto, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.

3 Ellison, R. (1952/2013). Homem invisível (M. Gama, trad.). Rio de Janeiro: José Olympio.

4 Lorde, A. (1982/2021). Zami. Uma nova grafia do meu nome. Uma biomitografia (L. Prates, trad.). São Paulo: Elefante.

5 Fanon, F. (1952/2008). Pele negra, máscaras brancas (R. da Silveira, trad.). Salvador: Edufba, pp. 105-106.

aprisiona as pessoas de cor em seus corpos; a própria ‘raça’ é uma forma de dano corporal”.6

Este capítulo revisita tal relato, analisando como Fanon o narrou e também o que dele entenderam comentadoras e comentadores. A atenção ao caráter seletivo de sua representação, tanto da cena quanto dos protagonistas envolvidos, é usada para aprofundar a análise do estatuto dessa criança dentro desse evento — ou sequência de eventos — crucial. Longe de diminuir a importância desse momento, essa leitura o enriquece, pois leva em conta outras dinâmicas de classe, gênero e sexo que se cruzam e condições geo-históricas específicas, além de identificar momentos de subespecificação potencialmente frutíferos. Embora a maioria dos comentários não dê atenção à posição de Criança apresentada por Fanon, ou então a ignore em favor de outras partes presentes na cena — principalmente a mãe da criança —, ou até mesmo a elimine, como parte do projeto de Criança como método, são considerados os modelos de subjetividade ou agência da criança disponibilizados em leituras desse acontecimento, sejam eles permitidos ou proibidos. Se a “criança” fala a “verdade” vital que os outros contornam, como uma espécie de versão maligna da história da Roupa Nova do Imperador,7 que pistas são oferecidas quanto à intencionalidade ou cumplicidade? Criança aqui é um efeito da ideologia ou uma transmissora, uma comentadora dela? São identificadas as

6 Fraser, N. (2017). Interview. In G. Yancy (org.). On race: 34 conversations in a time of crisis. New York: Oxford University Press, p. 162.

7 Andersen, H. C. (1837/2019). A roupa nova do imperador (M. Stahel, trad.). São Paulo: Martins Fontes [N.E.].

principais ambiguidades que, tanto no relato de Fanon quanto nas suas várias recepções, também podem ser lidas como reflexo dos modelos predominantes de relações sociais. Isso inclui não apenas a inscrição de modelos de infância nas relações sociais, mas também a forma como esses modelos instituem e dependem de outros, em particular das relações de gênero e classe, de maneiras que possuem implicações importantes para a teoria social e política, bem como para as possibilidades pedagógicas.

Orientação metodológica desta leitura

Se o Capítulo 2 defendeu um posicionamento psicanalítico a favor do envolvimento com as ideias psicoafetivas de Fanon, em termos de estruturas metodológicas e analíticas utilizadas para a análise no presente capítulo, outras discussões filosóficas sobre reconhecimento e desreconhecimento serão revisitadas, o que exige que Fanon seja colocado ao lado de outras filósofas e filósofos do campo social, notadamente Althusser e Foucault. Com base nas discussões iniciadas no Capítulo 2, é necessário um maior envolvimento com os relatos psicanalíticos da formação da subjetividade. Agora, porém, o foco incide nos impactos afetivos constitutivos do encontro com a Criança, em vez de — como discutido no Capítulo 2 — nos que são sustentados pela criação dessa posição para a Criança (idiotizada ou tida como idiótica e separada). Como o título do capítulo sugere, isso inclui a revisão das discussões sobre a noção de trauma, especificamente dando atenção às maneiras pelas quais a criança é afetada e, assim, serve de reflexo a modelos de temporalidade. Paralelamente, também abordaremos

o papel lógico que a temporalidade desempenha nos modelos de formação do sujeito, incluindo como a questão do tempo, ou sequenciamento da narrativa, é importante para entender o estatuto de Criança Traumatogênica dentro dos argumentos mais amplos de Fanon.

Considerando o estatuto icônico dessa versão de Criança nos estudos fanonianos, o principal foco da análise é como ela aparece nesse campo. Como praticamente nenhum relato de Fanon deixa de mencioná-la, tive de ser seletiva em meu foco. De particular relevância para fundamentar a discussão a seguir são os envolvimentos feministas que se concentram nas características de gênero da cena, junto com aqueles que leem a representação da racialização de forma interseccional e também por meio de dinâmicas de classe. Os estudos da infância, é claro, dão especial atenção aos significados atribuídos às relações intergeracionais em jogo, além de, junto com a teoria queer, trazerem nuances conceituais às reivindicações de capacidade ou possibilidade utilizadas ao lado das que atendem à temporalidade.

Este capítulo, então, revisita a relação de Fanon com a psicanálise, iniciada no Capítulo 2, aqui especificamente com a psicanálise lacaniana, por meio de uma leitura atenta de sua retórica da infância — principalmente como utilizada no episódio “Olha, um preto!” de Pele negra. Este capítulo explora a representação de Criança com a qual Fanon está mais associado, o que contribui fundamentalmente para Criança como método. Áreas de ambiguidade são mostradas para qualificar não apenas os processos de racialização vivenciados por Fanon como um tipo prototípico, mas específico, de sujeito negro, mas

Criança Terapêutica

Se a imagem prototípica de Criança nos estudos fanonianos é a Criança Traumatogênica — conforme discutido no Capítulo 3 —, isso talvez seja ainda o mais notável, uma vez que a iconografia dominante da infância na cultura é a Criança Terapêutica. Ou seja, uma representação de Criança e infância alinhada com o eu. Essa criança sentimentalizada, incessantemente explorada pela cultura capitalista de consumo moderna, tanto para adultos quanto para crianças, baseia-se na concepção de um período de vulnerabilidade ontogenética que exige indulgência e proteção, o que é vital para sustentar uma narrativa experimental de mudança pessoal. A “criança interior”, que nos tempos atuais é estimulada a ser cultivada, é uma metonímia para o eu adulto. Mas isso não é tudo o que ela logra. Pois ela

só pode ocorrer como corolário da criança estragada. É essa criança estragada ou mimada que exige reparos para facilitar um futuro pessoal — e político — transformado. Pense, por exemplo, nos discursos de política social de “intervenção precoce”, que oferecem uma linha de pensamento particularmente concreta sobre isso e, é claro, atraem críticas de teóricas e teóricos da infância por subordinarem e instrumentalizarem as crianças como seres em meros devires.1 Aqui, Criança Terapêutica é capaz de vincular o pessoal e o político, o individual e o social. E Fanon, assim como outras escritoras e escritores, utiliza essas noções, embora em modalidades variadas e — de acordo com o ponto de vista específico sobre colonialismo e racialização que ele vai defender — com resultados variados. Aqui vemos Fanon trabalhando como psiquiatra e psicanalista, como testemunha da angústia causada pela violência e pela injustiça, e como defensor político da mudança revolucionária.

Este capítulo avalia a narrativa de Criança Terapêutica no corpus fanoniano. Isso é feito por meio da leitura cerrada de um dos casos clínicos de Fanon em Os condenados da terra, no longo capítulo que cataloga os impactos psicológicos embrutecedores da guerra colonial. Relembrando a análise de Kuby discutida no Capítulo 1,2 é ali que a análise de Fanon sobre

1 Qvortrup, J. (2005). Varieties of childhood. In J. Qvortrup (org.). Studies in Modern Childhood (pp. 1-20). Basingstoke: Palgrave; Lee, N. (2001). Childhood and society: growing up in an age of uncertainty. Basingstoke: McGraw-Hill Education.

2 Kuby, E. (2015). Our actions never cease to haunt us: Frantz Fanon, Jean-Paul Sartre, and the violence of the Algerian war. Historical Reflections/Reflexions Historiques, 41(3), pp. 59-78.

o trauma diverge da de Sartre, e que Fanon surge como um crítico da violência. Enfocando principalmente uma leitura detalhada da descrição fanoniana do seu caso clínico mais completo em Os condenados — o do combatente da FLN que ele chama de “B.”, vemos como nesse relato Criança funciona como um significante do estrago colonial, que pode então ser utilizado para garantir um projeto de desenvolvimento (pessoal e nacional). Talvez surpreendentemente, esse caso específico atraiu pouca discussão por parte dos estudiosos de Fanon, e ele é discutido aqui porque oferece uma narrativa de desenvolvimento terapêutico, em vez de — como em muitos dos outros “casos” — simplesmente afirmar estragos irreparáveis. Outros exemplos semelhantes são identificados nesse e em outros textos de Fanon. Crianças estragadas povoam os textos de Fanon como acusações dos males e da brutalidade da opressão e repressão coloniais, bem como de suas cumplicidades com elas.3

Para relembrar sua trajetória, como preparação do cenário para a análise a ser feita, tendo se formado como psiquiatra em Lyon, na França, Fanon trabalhou como diretor clínico de Blida-Joinville, um hospital psiquiátrico nos arredores de Argel. Lá, aplicou a abordagem de “psicoterapia institucional” que havia aprendido com François Tosquelles em seu estágio no Saint Alban, reformando radicalmente o atendimento a pacientes.4

3 Como discutido em mais detalhes no Capítulo 5, Fanon descreve a burguesia colonial como “Crianças mimadas ontem do colonialismo”. Fanon, F. (1961/2022). Os condenados da terra (L. F. Ferreira & R. S. Campos, trad.). Rio de Janeiro: Zahar, p. 45.

4 Cf. Gendzier, I. (1973). Frantz Fanon: a critical study. New York: Pantheon Books; Macey, D. (2012). Frantz Fanon: a biography. London: Verso; Keller, R. (2007).

Conforme discutido anteriormente, Tosquelles esteve envolvido profissional e politicamente na luta antifascista na Espanha. Murard traça as origens dessa abordagem seguindo os desenvolvimentos, na Grã-Bretanha, do tratamento de combatentes traumatizadas e traumatizados pela guerra.5 Aqui é importante observar que esses desenvolvimentos no Reino Unido6 foram diferentes dos Estados Unidos. Enquanto as origens norte-americanas da psicoterapia de grupo estão nos sermões ou palestras morais de Trigant Burrow para aflitos e alienados,7 com orientações fortemente individualistas e prescritivas,8 no Reino Unido, apesar de suas diferenças técnicas e teóricas entre si, a ênfase compartilhada por pioneiras e

Clinician and revolutionary: Frantz Fanon, biography, and the history of colonial medicine. Bulletin of the History of Medicine, 81(4), pp. 823-841; Razanajao, C. L., Postel, J. & Allen, D. F. (1996). The life and psychiatric work of Frantz Fanon. History of Psychiatry, 7, pp. 499-524; Khanna, R. (2013). The lumpenproletariat, the subaltern, the mental asylum. The South Atlantic Quarterly, 112(1), pp. 129-143; Menozzi, F. (2015). Fanon’s letter: between psychiatry and anticolonial commitment. Interventions, 17(3), pp. 360-377; Sikuade, A. (2012). Fifty years after Frantz Fanon: beyond diversity. Advances in Psychiatric Treatment, 18(1), pp. 25-31.

5 Murard, N. (2008). Psychothérapie institutionnelle à Blida. Tumultes, 31(2), pp. 31-45.

6 Cf. Harrison, T. (2000). Bion, Rickman, Foulkes and the Northfield experiments: advancing on a different front. London: Jessica Kingsley.

7 Scheidlinger, S. (2000). The group psychotherapy movement at the millennium: some historical perspectives. International Journal of Group Psychotherapy, 50(3), pp. 315-339.

8 Van Schoor, E. P. (2000). A sociohistorical view of group psychotherapy in the United States: the ideology of individualism and self-liberation. International Journal of Group Psychotherapy, 50(4), pp. 437-454.

pioneiros da psicanálise de grupo como Bion e Foulkes estava na reconstrução dos vínculos sociais e no funcionamento cotidiano por meio de atividades e discussões em grupo. Com Tosquelles, Fanon aprendeu uma prática psicoeducacional semelhante, baseada na psicopolítica, que, segundo Gibson, também está ligada ao seu modelo de organização revolucionária.9 Ademais, além de suas responsabilidades clínicas, Fanon abrigou dissidentes e prestou ajuda psicológica a vítimas da guerra. Essas vítimas incluíam tanto as pessoas torturadas quanto os torturadores, o que foi criando para ele, enquanto terapeuta/médico, situações cada vez mais inviáveis em termos de manutenção da confidencialidade médico-paciente, junto com as tentativas de utilizar sua situação aparentemente distanciada para propor negociações. Por fim, Fanon renunciou ao cargo em 1957, deixando a Argélia e indo para Túnis, onde continuou a trabalhar como psiquiatra e porta-voz político da Frente de Libertação Nacional (FLN).

Como psiquiatra, mas também revolucionário político e psicoeducador, o relato de Fanon é lido neste capítulo como indicativo de sua abordagem pedagógica para motivar mudanças sociopolíticas e pessoais, bem como um exemplo de como isso influenciou a sua abordagem terapêutica, embora isso precise de uma releitura feminista do conceito de gênero da violência, incluindo a violência sexual. De fato, como veremos, a figuração da Criança Terapêutica em questão aqui, talvez de forma contraintuitiva, nomeia o sujeito masculino em terapia,

9 Gibson, N. C. (2013). A wholly other time? Fanon, the revolutionary, and the question of organization. South Atlantic Quarterly, 112(1), pp. 39-55.

Criança Extímica

Crianças figuram de forma complexa e controversa nas análises anticoloniais de Fanon, o que inclui os afetos mobilizados e praticados ao seu redor. Assim como ocorre com outros comentadores e outras práticas culturais, Fanon retrata Criança como um local de resistência ao colonialismo, bem como a matéria-prima para a exploração colonial, ou como vulnerável às distorções das brutalidades da repressão e da guerra. Ao discutir o contexto dos Estados Unidos, porém valendo-se de influentes análises britânicas e europeias, especialmente as de Rose e Steedman,1 Karen Sánchez-Eppler observa que “a relação

1 Rose, J. (1984). The Case of Peter Pan, or, The Impossibility of Children’s Fiction. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press; Steedman, C. (1995). Strange dislocations: childhood and the idea of human interiority, 1780-1930. London: Virago.

entre infância como discurso e infância como indivíduos tem se mostrado tão intrincada porque a sociedade americana frequentemente atribuiu às crianças o papel de expressar pessoal e emocionalmente as estruturas sociais e institucionais”.2 No presente capítulo, retomo a “expressão pessoal e emocional” de Criança para considerar não apenas Criança como representante do social, mas também Criança como estrutura social.

Ou seja, diferente dos capítulos anteriores: não apartada nem (tão) asseguradora (Criança Idiótica); ou, por outro lado, absorvida (Criança Traumatogênica); ou como uma característica do si-mesmo a ser salva do social ou a ele integrada (Criança Terapêutica). Com a atenção voltada para as ricas e diversificadas mobilizações de Fanon, podemos acompanhar o trabalho realizado por tais apelos retóricos. Assim, mesmo abstraindo-se das especificidades da cultura, da história e da nacionalidade que cercam as mobilizações dominantes da infância — ou talvez justamente graças à abstração —, é possível iluminar seu estatuto de repositório vital para a manutenção e a reprodução de normas culturais, de classe e gênero específicas.

Como contribuição final para qualificar Criança, chegamos então à Criança Extímica. O termo “extímico” é um neologismo que atribui uma posição tanto externa quanto interna e, consequentemente, tanto interna quanto externa. Eu o tomo emprestado do psicanalista francês Jacques Lacan, que o cunhou (extimité em francês) para descrever como aquilo que aparentemente é mais interior para o sujeito é, na verdade, exterior

2 Sánchez-Eppler, K. (2005). Dependent States: the child’s part in nineteenth-century American culture. Chicago: University of Chicago Press, p. xxiii.

a ele, a exemplo da banda de Moebius, que tem uma única superfície e uma única borda.3 A função é enfatizar como o social também é individual e vice-versa. Em vez de uma oposição binária entre social e individual, dentro e fora, podemos vislumbrar um processo de ciclo contínuo entre eles, ininterruptamente conectado — como uma entidade unitária, de fato, cujas características societais ou individuais emergem apenas do ponto de vista pelo qual são percebidas. Ao aprofundar essas ideias para uma psicologia social crítica, Parker discute a “extimidade” (extimité) como a “exterioridade íntima do sujeito em discurso”, assim constituindo como discurso aquilo que é “o mais íntimo do sujeito”, que é “exterior” ou “êxtimo ao sujeito, a ele não redutível”.4

No presente capítulo, portanto, emprego o termo “Extímica” para caracterizar Criança como simultaneamente inclusa — no sentido de estar no mesmo espaço topológico — e exclusa das práticas societais; sua especificidade é tanto subdeterminada quanto sobredeterminada por essa copresença. Ao passo que as demais formas de Criança discutidas nos capítulos anteriores foram puramente concebidas como o outro, como o lado de fora — a prática simbólica social de sua representação (Criança

3 Pavón-Cuéllar, D. (2014). Extimacy. In T. Teo (org.). Encyclopedia of Critical Psychology (pp. 661-664). New York: Springer; Parker, I. (2005). Lacanian discourse analysis in psychology: seven theoretical elements. Theory and Psychology, 15(2), 163-182; Miller, J.-A. (1994). Extimité. In M. Bracher, M. W. Alcorn Jr., R. J. Corthell & F. Massardier-Kenney (org.). Lacanian theory of discourse: subject, structure and society (pp. 74-87). New York: NYU Press.

4 Parker, I. (2005). Lacanian discourse analysis in psychology: seven theoretical elements. Theory and Psychology, 15(2), p. 172.

Idiótica) ou como a ela assimilada (Criança Traumatogênica), ou ainda arregimentada em direção ao interior da narrativa desenvolvimentista que conecta o individual e o social (Criança Terapêutica) —, o que Criança Extímica oferece para esta análise é uma compreensão de Criança como sujeito do e no social; como agencial e até mesmo resistente.

O presente capítulo explora, portanto, uma gama mais ampla de temas relativos à infância e à educação presentes nos escritos de Fanon, sugerindo que eles não apenas explicitam melhor a distinta análise do autor sobre a descolonização, mas também fornecem subsídios para a abordagem dos atuais debates acerca das ambiguidades políticas dos discursos sobre infância, gênero, educação e desenvolvimento.

Em diversos de seus trabalhos, Fanon mobiliza um amplo repertório de associações a crianças, inclusive referindo-se a elas como sujeitos e agentes de pleno direito, às vezes — como discutido anteriormente em seu primeiro livro Pele negra, máscaras brancas5 (doravante Pele negra) — valendo-se até de memórias de sua própria infância e anos escolares para indicar as complexidades da identificação e da subjetividade colonial racializada na Martinica. Não surpreende que, dado o compromisso de Fanon com um modelo de subjetividade capaz de agir e reagir, de transcender as determinações históricas e sociopolíticas, seus escritos apresentem diversas representações de crianças ativamente engajadas. Como veremos, algumas dessas agências podem não ser consideradas “positivas”, no sentido de acarretarem consequências políticas distópicas e 5 Fanon, F. (1952/2008). Pele negra, máscaras brancas (R. da Silveira, trad.). Salvador: Edufba.

não desejáveis. Mas é aqui que Fanon se encontra, talvez, em seu momento mais presciente e relevante para nossos dilemas e desafios contemporâneos envolvendo crianças e jovens. É também onde ele oferece a mais ampla gama de conceitualizações de crianças.

Em conformidade com os preceitos de Criança como método, inspirados pelas ideias de Fanon, essas crianças não são as crianças prototípicas de modelos normalizados e globalizados. São, ao contrário, crianças que estão à margem, devido — conforme descrições do autor — à racialização, à filiação política, à classe e ao gênero. Essas crianças são descritas por Fanon, para o bem ou para o mal, como sujeitos políticos plenos — para quem o estatuto da infância é apenas ocasionalmente assinalado dentro desse contexto. Ou seja, o fato de ser uma criança, de ocupar o estatuto biográfico ou cronológico da infância, não diminui nem excede seu pertencimento à sociedade. Questões de responsabilidade são colocadas de diversas maneiras — mas, em geral, não mais do que seriam no caso de adultos. Assim, Criança Extímica não é estrutural, no sentido de sujeitar e subordinar crianças a uma dinâmica política quer seja de deferência (afetiva) ou exoneração (por meio de algum estatuto especial da infância de não ser plenamente social). Por outro lado, Criança Extímica tampouco é desenvolvimentista, no sentido da sujeição a uma dinâmica de adiamento ou instrumentalização que postergue temporariamente a sua subjetividade — e, proporcionalmente, autorize-a apenas de maneira provisória ou discricionária. Aqui, Fanon se dirige à criança do agora, produzida no momento político-cultural vigente, e em relação à qual reconhece-se que ela tanto reage como age de

Criança como método

Ao longo deste livro, denominei “Criança como método” a estrutura analítica que informa a análise das várias figurações de Criança que habitam os escritos de Fanon, como um corpus significativo e indicativo. Neste capítulo final, delineio o que Criança como método é, como uma abordagem em desenvolvimento. Identifico seus fundamentos e reivindicações conceituais, além de situar essa abordagem em relação a outras. Conforme indicado nos capítulos anteriores deste livro, Criança como método é uma abordagem analítica que lê as práticas sociopolíticas por meio do posicionamento concedido à criança/à infância/às crianças, em que Criança é entendida como uma

figuração ou tropo;1 a infância, como uma categoria ou condição social; e as crianças, como entidades vivas e corporificadas que as habitam. Ela formula um conjunto de problemas e agendas para os estudos da infância, mas também para além deles, que funda um projeto político interdisciplinar e cruzado via a análise da infância. Crucialmente, Criança como método contraria a prática cultural dominante de abstrair a preocupação com — e para — crianças de outras dinâmicas político-culturais, como tem ficado evidente nas campanhas de assistência e desenvolvimento de instituições de caridade,2 adentrando políticas e práticas sociais mais amplas.3 O objetivo, ao contrário, é ocupar-se dos modos como essas dinâmicas produzem e interagem com os significados conferidos à infância. Em segundo lugar, como consequência disso, embora focada na criança, nas crianças e nas infâncias, essa abordagem é orientada tanto para situá-las no que diz respeito a relações

1 Burman, E. (2008). Developments: child, image, nation. London: Routledge; Castañeda, C. (2002). Figurations: child, bodies, worlds. Durham/London: Duke University Press.

2 Por exemplo: Burman, E. (1994). Innocents abroad: projecting Western fantasies of childhood onto the iconography of emergencies. Disasters: Journal of Disaster Studies and Management, 18(3), pp. 238-253; Burman, E. (2013). Desiring development? Psychoanalytic contributions to antidevelopmental psychology. International Journal of Qualitative Studies in Education, 26(1), pp. 56-74; Wells, K. (2013). The melodrama of being a child: NGO representations of poverty. Visual Communication, 12(3), pp. 277-293; Zarzycka, M. (2016). Save the child: photographed faces and affective transactions in NGO child sponsoring programs. European Journal of Women’s Studies, 23(1), pp. 28-42.

3 Meiners, E. R. (2016). For the children?: protecting innocence in a carceral state. Minneapolis: University of Minnesota Press.

sociopolíticas mais amplas quanto vice-versa. Criança como método é, portanto, aliada a uma leitura fortemente culturalista-materialista da infância, que vai além das reivindicações construtivistas “mais leves”4 — que sofrem de voluntarismo — para entender o que é a infância e, na mesma medida, como crianças habitam essa categoria, conforme formulada e organizada dentro de condições sócio-históricas e políticas específicas e contingentes. Isso permite um cruzamento do binário estrutura-agência que tradicionalmente preocupa os estudos da infância e da educação, e —mobilizando especialmente uma leitura mais ativista de Foucault, evidente em seus próprios escritos5 junto com Butler6 — entende as práticas classificatórias, regulatórias e normalizadoras para produzir subjetividades que são efeitos dessas práticas e que também, por tais interações e reencenações, transformam-nas além de reproduzi-las.

A indexação múltipla de “criança/infância/crianças” destaca como as construções da infância, incluindo aquelas que atendem à figuração de Criança, produzem e limitam as formas de infância que cada criança vive e pratica. A ausência do artigo (definido a ou indefinido uma) que qualifica “Criança”

4 Danziger, K. (1997). The varieties of social construction. Theory & Psychology, 7(3), pp. 399-416.

5 Foucault, M. (1977). Language, counter-memory, practice: selected essays and interviews (D. Bouchard, org.). Ithaca, New York: Cornell University Press; Foucault. M. (1972-1977/1980). Power/knowledge. Pantheon: New York. Além disso, cf. Allen, A. & Goddard, R. (2014). The domestication of Foucault: government, critique, war. History of the Human Sciences, 27(5), pp. 26-53.

6 Butler, J. (1997/2017). A vida psíquica do poder: teorias da sujeição (R. Bettoni, trad.). Belo Horizonte: Autêntica.

aponta para o problema de normalização ou, por outro lado, de diferenciação que qualquer uma dessas designações poderia representar: qual criança? Filha de quem? De forma semelhante, pode-se entender “infância” hoje como um estágio de vida legalmente definido — por meio da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas (UNCRC) — de acordo com um limiar de idade cronológica (o estatuto de “menoridade”/criança atribuído à faixa inferior a 18 anos); contudo, a disciplina de estudos da infância fala dos muitos outros significados que o termo “infância” carrega, que refletem histórias culturais distintas e respectivas posições filosóficas, e que operam muito além — embora também impactando muito significativamente — nas vidas de crianças específicas, históricas e corporificadas. Até mesmo ao pluralizar criança para crianças, corre-se o risco de subordinar as especificidades e diversidades à suposta generalidade ou ao caráter comum do substantivo coletivo.

Criança como método preocupa-se, portanto, com as posições — estruturais e subjetivamente ocupadas — produzidas para e sobre crianças, e como crianças interagem com essas posições. Mas também se trata igualmente das consequências de tais construções para os outros mobilizados e organizados pela e através da infância, inclusive adultos, e os outros papéis e identidades com os quais crianças e infância estão entrelaçadas e enredadas. Isso também inclui necessariamente reflexividade/difração crítica7 como parte do enquadramento

7 Barad, K. (2014). Diffracting diffraction: cutting together-apart. Parallax, 20(3), pp. 168-187; Thiele, K. (2014). Ethos of diffraction: new paradigms for a (post) humanist ethics. Parallax, 20(3), pp. 202-216.

ético-político do projeto. Embora o estatuto de “método” seja analisado a seguir, por ora, o que também deve ser observado é o trabalho realizado pela preposição “como”, indicando uma relação entre os termos circundantes, mas não uma identificação.8 Inevitavelmente, questões de reconhecimento, falso reconhecimento e da violência simbólica do que é incluído e excluído dos alinhamentos implícitos passam para o primeiro plano, junto com colocar em pauta o necessário envolvimento, implicação ou emaranhamento do ponto de vista a partir dos quais esses alinhamentos são feitos.

Em terceiro lugar, o reconhecimento dessa base sociopolítica não deve ser interpretado como significando que tais construções determinam direta ou completamente essas infâncias. Longe de negar a crianças sua atividade agencial, voltar a atenção para os modos de infância disponíveis em contextos político-culturais específicos possibilita dar atenção a como crianças os navegam e negociam, e reconhece seu necessário envolvimento com eles. Daí sua agenda ser um convite a uma análise mais profunda de como as formas de práticas da infância (incluindo as que são praticadas por crianças) refletem e inspiram dinâmicas sociopolíticas mais amplas, em vez de tentar resolver ou fazer julgamentos sobre debates a respeito do estatuto ontológico de crianças. Questões que giram em torno do estatuto das perspectivas ou “experiências” de crianças — junto com a forma como elas podem ser acessadas, geradas, coproduzidas, escutadas ou interpretadas —, embora

8 Burman, E. (2013). Conceptual resources for questioning ‘Child as Educator’. Studies in Philosophy and Education, 32(3), pp. 229-243.

Posfácio à edição brasileira

É com imensa satisfação que vejo esta edição de Fanon, educação, ação: Criança como método chegar ao Brasil. É o resultado do imenso trabalho e comprometimento por parte de estimadas amigas e colegas, por quem tenho total gratidão e carinho. Também agradeço a oportunidade de escrever este posfácio para situar este livro a um público leitor brasileiro, uma vez que ele foi primeiramente publicado em inglês no ano de 2019. Dito isso, após aguardar ansiosamente esta publicação, senti-me perplexa diante da dificuldade de preparar este posfácio. Apenas posso supor que tenha alguma relação com a sensação de não saber ao certo como e por quem ele será lido — e o que será feito a partir dele —, mesmo que eu esteja fascinada com a forma como Criança como método vem sendo acolhida

e desenvolvida no Brasil. No entanto, a missão imposta pela preparação de um posfácio exige algum tipo de relato das principais transições entre os contextos de produção do texto original, em termos de tempo e lugar, bem como de objetivos e escopo, e sua chegada aqui no Brasil: ou seja, a posterioridade, bem como a (espero que agora) futuridade deste livro.

A seguir, tentarei complementar e suplementar o texto original deste livro, trazendo um pouco mais de contexto e esclarecendo seus principais temas e preocupações, o que inclui considerar em que consiste o projeto de trazer a lente de Criança como método para a leitura de Fanon e, ao mesmo tempo, explicar as contínuas ressonâncias fanonianas que inspiram Criança como método além deste livro especificamente. Ademais, delinearei outras particularidades que podem ajudar a situar as intenções e a motivação por trás deste livro, o que suscita uma análise pessoal e epistemológica que espero que o leitor me permita. Isso envolve, também, a discussão de várias de minhas publicações anteriores, bem como dos textos e debates que embasaram minha leitura de Fanon e de Criança como método. Embora eu corra o risco de parecer um tanto autocentrada, faço isso para melhor explicar a trajetória do trabalho que culminou neste texto, além de incluir as citações específicas para permitir que qualquer leitor interessado acompanhe tais declarações e as avalie autonomamente.

Contextos: antes e agora

Uma questão que me vem à mente é como o intervalo entre a publicação original em inglês e esta versão em português

brasileiro foi preenchido — em diversos sentidos — por uma pandemia global que revelou as múltiplas e interligadas maneiras pelas quais uma emergência sanitária universal reproduz, exacerba e intensifica as desigualdades locais e transnacionais. Um benefício paradoxal decorrente da transição para o ensino e aprendizado online, no entanto, foi o fato de colegas brasileiros — e também outros, internacionais e nacionais — terem se juntado aos nossos seminários locais, enriquecendo suas análises, aprofundando os relacionamentos existentes e até mesmo possibilitando novas parcerias. Foi uma luzinha brilhante em um momento difícil.

Os impactos diferenciais e totais da covid-19 são um testemunho eloquente das análises prescientes de Fanon sobre o racismo estrutural e sistêmico, bem como interpessoal. Isso inclui como essas formas de racismo se manifestam nas desigualdades de saúde e saúde mental, bem como na dinâmica relacional da assistência social e do apoio terapêutico. Ademais, por mais difícil que seja imaginar um mundo anterior ao ocorrido, Fanon, educação, ação surgiu antes do assassinato de George Floyd, em 25 de maio de 2020, que galvanizou as mobilizações globais em torno da campanha #BlackLivesMatter [#VidasNegrasImportam]. Isso, é claro, trouxe um renovado interesse pelos escritos de Fanon, especialmente suas vívidas representações dos efeitos físicos e corporais, crônicos e agudos, das respostas afetivas à brutalidade e à opressão racializadas, incluindo a violência policial e estatal.

Os incisivos enfrentamentos de Fanon à base epistemológica do racismo em seu trabalho posterior, particularmente o racismo antiárabe decorrente da ocupação francesa da Argélia,

combateram os conluios e as legitimações da dominação colonial racista por meio de modelos psicológicos e psiquiátricos. Esses modelos permanecem mais relevantes do que nunca diante do ressurgimento de formas de racismo científico que se valem da psicologia evolutiva ou mesmo da neurociência. Da mesma forma, também permanecem relevantes seus escritos políticos no contexto e em prol da luta de libertação da Argélia sobre as condições para e da consciência revolucionária, suas advertências sobre políticas populistas e a denúncia de elites nativas que substituem as regras coloniais para deixar intactas as mesmas formas opressoras e antidemocráticas de governo. Noto que há um ressurgimento do interesse por seus escritos no Brasil, assim como em outros lugares, nos últimos anos.

No que diz respeito à política nacional em meu próprio contexto, escrevi e publiquei o livro ao longo dos diversos governos conservadores do Reino Unido que impuseram catorze anos de austeridade. No entanto, embora a Grã-Bretanha esteja agora sob a administração do Partido Trabalhista, assim como o Brasil agora tem novamente um governo do Partido dos Trabalhadores, pouco parece mudar, uma vez que o “centro” da política nacional e internacional tanto se deslocou para a direita.

No âmbito pessoal, 2019 me faz retornar a um período em que minha mãe ainda estava viva. O processo que levou à sua morte em 2022 envolve, para mim, questões e significados particularmente pungentes de Criança, infância e as constelações de relações afetivas em torno das crianças, que também compõem o assunto deste livro.

Além disso, escrevo estas palavras no momento em que grande parte do mundo está abalada com a notícia da reeleição de Trump nos Estados Unidos, o que, em termos de política global, parece não apenas indicar a continuidade da invasão russa na Ucrânia, mas também sinal verde para o contínuo genocídio de palestinos pelo Estado colonial israelense e seu bombardeio no Líbano. Esses eventos intensificaram as discussões sobre a contínua importância das análises anticoloniais de Fanon. Ainda mais porque, depois de Pele negra, máscaras brancas, as análises de Fanon sobre o racismo abordaram principalmente o racismo antiárabe dos 150 anos de ocupação colonial francesa da Argélia e suas tentativas brutais — mas, em última análise, sem sucesso — de reprimir a libertação argelina.

Fica claro que, embora Fanon tenha se posicionado notoriamente como pertencente “irredutivelmente a [sua] época”1 e advertido contra “verdades decisivas”,2 suas ideias continuam a ser assombrosamente relevantes, bem como inspiradoras, e têm adquirido significância contínua à medida que geram novas leituras e interpretações. De fato, como indico a seguir, os escritos de Fanon vêm sendo atentamente relidos e calorosamente debatidos no contexto do atual genocídio em Gaza. No entanto, mesmo antes do momento atual, em que este texto está sendo escrito, de quase quinze meses de ofensiva genocida do

1 Fanon, F. (1952/2008). Pele negra, máscaras brancas (R. da Silveira, trad.). Salvador: Edufba, p. 29.

2 Fanon, F. (1952/2008). Pele negra, máscaras brancas (R. da Silveira, trad.). Salvador: Edufba, p. 25.

Burman analisa e organiza as contribuições de Fanon no campo da educação, ressaltando o foco na criação de espaços descolonizados que favoreçam e fortaleçam a resistência em vez de puni-la. Fazer resistência ao mundo em vez de se adaptar a ele.

Manter uma posição dócil e contida para a criança ajuda a tornar os adultos igualmente dóceis e, portanto, menos capazes de questionar as “verdades” recebidas, particularmente em questões de raça e gênero.

Nesse sentido, Fanon surge como um teórico da educação que a reconhece como um modo de regulamentação, hierarquização e adaptação social, mas com potencial para restaurar as capacidades criativas e a luta emancipatória.

pequena biblioteca invulgar

Cida Bento

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