FLÁVIO JOSÉ ROCHA DA SILVA
Vendo água privatizada
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Vendo água privatizada
Vendo รกgua privatizada
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Vendo água privatizada
Flávio José Rocha da Silva
João Pessoa/PB – 2020 Edições do Autor
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SILVA, Flávio José Rocha da Vendo água privatizada – SILVA, Flávio José Rocha da – 1ª Ed. - João Pessoa - Edição do Autor – 2020.
1. Água 2. Privatização 3. Direito Humano 4. Título
ISBN E-BOOK: 978-85-922818-2-3
Capa: Flávio José Rocha Foto: Flávio José Rocha (Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros)
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Dedicado à Meu pai José (in memoriam) e minha mãe Maria José Minha esposa Katia Minha filha Maya Minha irmã Flavia e meus irmãos Fabio e Fabiano Todas as pessoas que lutam pela água de cada dia Todas as pessoas que resistem à privatização da água Henrique Cortez e ao Portal EcoDebate Missionários e Missionárias de Maryknoll
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Porque nada mais importante no estudo do homem que as suas relações com a água: com a água do mar, com a água dos rios, com a água condensada das nuvens, com a água de chuva e de degelo, com a água subterrânea, com a água que corre na seiva das plantas ou que circula nas artérias e nas veias dos animais. Por conseguinte, o próprio sangue e a própria vida do homem. Quase uma mística da água. (Trecho do livro Nordeste de Gilberto Freyre)
Da água é uma espécie de remanescente quem já incorreu ou incorre em concha Pessoas que ouvem com a boca no chão seus rumores dormidos pertencem das águas Se diz que no início eram somente elas Depois é que veio o murmúrio dos corgos para dar testemunho de Deus (Poema Água s.f. de Manoel de Barros)
Ezequias vendo que Senaquerib, rei da Assíria, estava se aproximando com a intenção de atacar Jerusalém, eles e seus oficiais guerreiros decidiram fechar todas as minas d´água que havia fora da cidade. E todos ajudaram. Reuniram bastante gente para fechar as minas e o riacho que atravessava a cidade. Diziam: “Por que o rei da Assíria deveria encontrar tanta água ao chegar aqui?” (Segundo Livro de Crônicas, 32, 2-4)
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Índice Introdução...................................................................................................................07 1. A Mercantilização da Água no Brasil...................................................................08 2. A água brasileira corre para as multinacionais.....................................................13 3. Dia Mundial da Água: não há o que comemorar..................................................17 4. A questão da privatização da água na encíclica Laudato Si.................................19 5. Fórum Mundial da Água: o gato se veste de lebre................................................23 6. O direito à água.....................................................................................................25 7. Água e modelos de desenvolvimento...................................................................29 8. Água, poder e política...........................................................................................33 9. Por que evitar beber água engarrafada..................................................................38 10. Da Indústria da Seca para a Indústria Seca...........................................................42 11. As águas brasileiras correm para o Neoliberalismo..............................................44 12. A privatização da água nas hidrelétricas brasileiras..............................................49 13. O ainda desconhecido Semiárido brasileiro..........................................................53 14. Água e Sínodo da Amazônia.................................................................................58 15. Água: dessacralizando para privatizar...................................................................61 16. Rio Opará: um rio marcado para morrer?.............................................................64 17. Educação Ambiental e resistência à privatização da água....................................71 18. Do governo Collor ao governo Bolsonaro: os caminhos da privatização da água no Brasil.......................................................................................................74 Sobre o autor...............................................................................................................80
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Introdução Começo este livro afirmando que não sou contra a iniciativa privada. Ela, inclusive, está presente das mais diferentes formas na distribuição da água que nos chega diariamente. Por outro lado, sou fervorosamente contra a privatização da água (em suas mais diferentes formas). Isso porque que detém o poder sobre a água, detém o poder sobre a vida. A sua falta pode moldar histórias de pessoas e lugares. E, no entanto, estamos assistindo a uma nova forma de colonização com a monopolização de sua posse com o incentivo dos últimos governos brasileiros. A história do Brasil, não é novidade, foi forjada por uma sucessão de saques contra as nossas riquezas naturais. A lista é longa: pau-brasil, açúcar, ouro, diamantes, algodão, café, ferro, borracha, nióbio, sal, mogno, petróleo, etc. Como o que está ruim pode piorar, como diria um pessimista inflexível, eis que agora podemos acrescentar a água a esta lista. Antes já privatizada pelos Senhoras da Água em partes diferentes do país, hoje ela é ambicionada por grandes grupos econômicos nacionais e transnacionais e até ficou conhecida como “ouro azul”. Sabemos que a água sempre foi privatizada por alguns grupos humanos em diferentes partes do mundo, incluindo o Brasil. No entanto, neste momento esta privatização torna-se uma política de governo com a justificativa de que este será o caminho para facilitar o seu acesso para a população brasileira. A experiência em outros países demonstra justamente o contrário. Este livro tenta refletir, com linguagem simples, sobre a questão da privatização da água no Brasil. Todos os capítulos foram publicados como artigos no sítio eletrônico do EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais nos últimos anos. Fiz pequenas revisões e correções sem alterações que comprometam as publicações originais. O tempo verbal, em alguns textos, revelará o momento histórico da escrita. Algumas vezes acrescentei uma informação recente que julguei relevante para atualizar o leitor e a leitora. Todos os artigos foram inspirados pela preocupação com a perda da soberania brasileira sobre esta que é a nossa maior riqueza. Espero poder contribuir de forma a esclarecer o perigo da privatização da água e suas consequências, em especial para os mais empobrecidos do nosso Brasil.
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1 A Mercantilização da Água no Brasil1 Recentemente o Presidente Michel Temer anunciou um programa de privatizações que inclui a Companhia Estadual de Águas e Esgotos – CEDAE 2– do Rio de Janeiro como uma das empresas a serem vendidas para a iniciativa privada. É o início de um processo que vem sendo anunciado há algum tempo: a mercantilização da água através de sua privatização. Devemos nos perguntar se um bem comum e essencial para manter a vida de todos os seres vivos do planeta deve ser mercantilizado3, valorado economicamente e gerenciado em sua distribuição por alguns grupos econômicos como uma mercadoria qualquer? Há algumas décadas tivesse esta pergunta como referência a água, certamente a resposta seria respondida de forma negativa. Porém, não é isto que observamos em muitas partes do mundo atualmente, inclusive no Brasil. O processo de mercantilização da água não é algo novo, mas vem se tornando uma política governamental com o apoio de organismos internacionais, a exemplo do Banco Mundial. Basta comprovar como vários documentos nos fóruns, congressos e encontros mundiais sobre a questão da água respondem a um dos mais importantes dilemas do nosso tempo: como promover o acesso da água potável para todos os seres humanos do nosso planeta? As respostas encontradas nestes documentos, que possuem um número expressivo de países signatários, estão sempre impressas (de forma nítida e sem subterfúgios linguísticos) que a água tem um valor econômico e que somente o seu gerenciamento por parte de grupos privados a tornará mais acessível. Em seu livro O Manifesto da Água, Ricardo Petrella (2002, p. 51) ressalta que uma das primeiras afirmações do documento resultante da Segunda Conferência do Fórum Mundial da Água, realizada entre 17 e 22 de março de 1999 em Haia, foi que “A água é um recurso econômico escasso, um bem vital econômico e social. Como petróleo ou qualquer outro
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Artigo publicado originalmente no dia 28/11/2016 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 2 Em Janeiro de 2020 a população do Rio de Janeiro viu as águas distribuídas pela CEDAE chegarem às suas torneiras impróprias para o consumo humano. A falta de investimento foi a causa para este acontecimento, mas o Governador Witzel ainda sonha com a privatização da empresa. 3 “Mercantilización , en este contexto, hace referência a la circulación del agua como um bien privado cuyo valor de cambio incluye uma ganancia que es apropriada por um agente quien detenta el derecho de propriedad.” (CASTRO, 2009, pp. 11-12). Mercantilização, neste contexto, é uma referência a circulação da água como um bem privado cujo valor de troca inclui um lucro que é apropriado por um agente que detém o direito de propriedade. (Tradução do autor).
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recurso natural, deve ser submetido às leis do mercado e aberto à livre competição.” Ao nivelar a água a qualquer outro recurso natural,4 este documento, e muitos outros produzidos em eventos anteriores e seguintes, buscaram influenciar as políticas para a gestão do patrimônio hídrico de vários países e direcioná-las para a sua mercantilização, almejando que este seja um fato que deve ser encarado com normalidade por parte das populações destas nações. Com a posse de 12% da água doce do planeta, o Brasil é detentor de um grande e valioso patrimônio hídrico. Com toda esta “riqueza” hídrica (70% na Amazônia), o país está na circunferência de interesse das empresas que lucram cada vez mais com o Mercado da Água.
O Brasil e suas águas
Foi somente em 1934 que o Congresso Nacional aprovou a primeira lei para o ordenamento do patrimônio hídrico brasileiro (embora houvesse decretos desde o império tratando do tema). O presidente Getúlio Vargas sancionou o Código das Águas pelo Decreto 24.643 daquele ano. O governo brasileiro só voltou ao tema da água de forma mais sólida com o Plano Nacional de Saneamento - PLANASA – e a criação de várias companhias estaduais de saneamento nos anos sessenta. Depois, em 1977, instituiu o Padrão de Potabilidade da Água com o Decreto 19.367. A Constituição de 1988 voltou a tratar do patrimônio hídrico brasileiro. Entretanto, muitas leis somente seriam regulamentadas posteriormente. Em 1989 o país passou a contar com a Lei de Proteção das Nascentes e Rios, através do Decreto 7.754, já resultante das preocupações ambientalistas. A iniciativa para
a
organização
da gestão
da
água
através das
bacias
hidrográficas5 somente tornou-se lei em 1991, com o Decreto-Lei 8.171, que tratou da política agrícola e da desertificação. Era o início da Era Neoliberal no Brasil e o
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A própria terminologia recurso natural precisa ser melhor discutida, visto que o termo recurso pode representar a visão utilitarista sobre a natureza, possibilitando a sua posse com a liberdade para negociar o elemento natural possuído. 5 “Ainda que seja um conceito novo em termos de gestão, a bacia hidrográfica é uma unidade de investigação antiga no campo da Geografia Física.” (CUNHA; COELHO, 2003 p. 70).
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governo Collor defendia a privatização de vários setores da economia. A palavra privatização tornou-se um mantra para solucionar todos os problemas econômicos e sociais e a palavra estatal passou a ser sinônimo de ineficiência e incapacidade para o gerenciamento dos bens públicos. Estava montado o cenário para que a água começasse a ser vista como mais uma mercadoria, a exemplo de outros bens naturais. As portas abriam-se para a mercantilização da água em nosso país. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso instituiu, através do Decreto 9.433, de 1997, a Política Nacional de Recursos Hídricos e trouxe a ideia de sua valoração econômica pela primeira vez em uma lei brasileira. Começava, de fato, o caminho para a mercantilização do patrimônio hídrico brasileiro. A criação da Agência Nacional de Águas - ANA - através do Decreto Lei 9.984, no ano 2000, possibilitou a administração do nosso patrimônio hídrico com uma visão economicista e instituiu a cobrança da água sob a responsabilidade dos comitês de bacias que viriam a ser criados posteriormente. Também passou a exigir que cada estado da federação criasse uma Agência Estadual de Águas para reproduzir o modelo federal. A
Lei
9.984
citou
as
palavras cobrança, ou
termos
a
ela
relacionados
como compensação financeira, arrecadação, receitas provenientes e pagamento, por treze vezes em seus artigos. Todos estes termos estão relacionados com a valoração econômica da água. Por outro lado, apenas uma vez a lei citou o termo conservação qualitativa dos recursos hídricos em seu arcabouço. Tal constatação demonstra qual era a real interesse com a criação da ANA por aquele governo. Nos últimos anos, o processo de mercantilização da água no Brasil continuou a ganhar folego nos governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da expresidenta Dilma Rousseff com o Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco e a construção de grandes barragens para a produção de energia hidroelétrica cujo modelo dominante é a Parceria Público Privada – PPP.
Privatizar não é a solução
Nem sempre a água foi pensada como um bem comum a qual todos tem direito. Esta concepção é algo muito recente na história da humanidade, pois a posse da água sempre foi muito importante para manter a hegemonia política e militar, principalmente onde ela não é tão abundante. Este fato a tornou, e ainda a torna em alguns lugares, um 10
bem pertencente a alguns poucos grupos como forma de manter o domínio absoluto sobre territó-rios e pessoas. Desde os primórdios, agrupamentos humanos perceberam que a posse dos mananciais era também a posse do espaço territorial e uma arma poderosa para vencer os inimigos pela sede. A propriedade da água sempre representou um mecanismo para assegurar o poder. Longe de resolver a questão de sua má distribuição ou sua má qualidade para o consumo, a mercantilização da água terá apenas um lado ganhador: os grupos econômicos que por ela serão beneficiados. A distribuição da água não alcançará os que dela necessitam com a privatização de suas distribuidoras pois, em muitos casos, estes não terão como pagar o preço estabelecido pelas empresas para a sua venda. A privatização, isto sim, os privará do acesso a este bem natural comum. Os menos favorecidos economicamente serão, mais uma vez, excluídos de um direito essencial à sua sobrevivência. Posto que a lei do mercado é o lucro máximo para sobrevivência do empreendimento econômico e o retorno do que foi investido, o preço pago pelas populações pela água deverá aumentar de forma sempre crescente, fazendo com que as populações carentes tenham dificuldade, também crescente, para obtê-la. Este resultado já é conhecido em algumas localidades onde este modelo tornou-se uma realidade, causando conflitos entre as populações e as empresas privadas de distribuição de água, como foi o famoso caso da Bolívia no início deste milênio. Casos de mercantilização da água abundam no Brasil há décadas, porém eram contra as leis do Estado. Atualmente é o governo quem patrocina a visão monetária sobre a água através de uma campanha para a sua privatização e de políticas de concessão das empresas públicas distribuidoras de água, retirando destas o seu caráter público e caracterizando a água como um bem passível de negociação no mercado como qualquer outra commodity. Uma possível privatização da CEDAE é apenas o começo. Referências Bibliográficas BARLOW, Maude. El convenio azul: la crisis del agua y la batalla futura por el direcho al agua. Santiago: Chile Sustentable. 2009. Disponível em http://www.archivochile.com/Chile_actual/patag_sin_repre/03/chact_hidroay3%2000022.pdf BRASIL. Código das águas. Brasília: Senado Federal. 2010. CASTRO, José Esteban. Apuntes sobre el processo de mercantilización del agua: um examen de la privatiación em perspectiva histórica. In COMISSION PARA LA 11
GESTION DEL AGUA EM BOLÍVIA. Justicia ambiental y sustentabilidade hídrica. Cochabamba. 2009. pp. 11-30. CUNHA, Luís Henrique; Maria Célia Nunes, COELHO. Política e gestão ambiental. In CUNHA, Sandra Baptista; GUERRA, Antônio José Teixeira. A questão ambiental: diferentes abordagens 2003. pp. 43-79. GONÇALVES, Claudio Ubiratan; OLIVEIRA, Cristiane Fernandes. Rio São Francisco: as águas correm para o mercado. In: Boletim Goiano de Geografia. v. 29. n.2. jul/dez 2009. pp. 113-125. Disponível em http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=337127152008. MARTINS, Rodrigo Constante. De bem comum a ouro azul: a crença na gestão racional da água. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCAR. V. 2 n. 2. pp. 465-488. Jul-Dez. 2012. Disponível em http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/92. PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água. Rio de Janeiro: Vozes. 2002. SIQUEIRA, José Eduardo de Campos. Ideologia da água e privatização dos serviços de saneamento. In DOWBOR, Ladislau; TAGNIN, Renato Arnaldo (Orgs). Administrando a água como se fosse importante: gestão ambiental e sustentabilidade. São Paulo: Editora Senac. 2005. pp. 37-46. SUASSUNA, João. Hidrocoronelismo hídrico na transposição das águas do São Francisco. In PELAZZO JR, José Truda; CARBOGIM, João Bosco Priamo. Conservação da natureza: e eu com isso? Fortaleza: Fundação Brasil Cidadão. 2012. pp. 104-127. Disponível em http://www.globalgarbage.org/praia/downloads/Conservacao_da_Natureza_e_Eu_Com _Isso.p df.
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2 A água brasileira corre para as multinacionais6 A história do Brasil, não é novidade, foi alicerçada por uma sucessão de saques contra as nossas riquezas naturais. A lista é longa: pau-brasil, açúcar, ouro, diamantes, algodão, café, ferro, borracha, nióbio, sal, mogno, petróleo, borracha, etc. Como o que está ruim pode piorar, eis que agora podemos acrescentar a água a esta lista. Há muito explorada na irrigação e dando base para o que hoje é chamado de “exportação da água virtual” com a venda de frutas e de soja para fora do país (há outros itens, mas estes são os mais relevantes atualmente), o controle dos recursos hídricos avança no país por parte das multinacionais. A água nossa de cada dia já gera, há um longo tempo, lucro para alguns grupos econômicos estrangeiros vindos de países sem a mesma abundância em mananciais como o Brasil. Há razões para essas empresas se instalarem aqui no nosso país. Basta afirmar que para produzir 1 quilo de banana são gastos 790 litros de água, segundo o site da Waterfootprint7 (uma das organizações que medem o gasto de água para produzir alguns alimentos e produtos). No caso da soja, para produzir 1 quilo desta leguminosa são necessários 1.500 litros de água. Adivinhem o nome do país que se tornou o maior produtor de soja no mundo. Sobre a apropriação da água para a fruticultura irrigada, basta perguntar aos moradores do entorno do Canal da Integração construído pelo então governador do Ceará, Ciro Gomes, o que eles acham da presença das grandes empresas de fruticultura na Chapada do Apodi cearense e qual o acesso que eles têm sobre aquela água. Por lá a água tem dono, e não são os moradores locais. Experimentem ter que amarrar a si próprio em uma estaca para descer em um canal para conseguir uma lata de água durante a madrugada correndo o risco de ser pego por seguranças e ainda ser acusado de roubar água. Nem todos são convidados para o banquete do progresso da agricultura em grande escala e mecanizada do Apodi. Quero tratar aqui também de outra forma de comercializar/mercantilizar/privatizar a água. É sobre o que vem acontecendo com a administração das distribuidoras de água do nosso país. Desde a Era Collor de Mello, aprofundando-se no governo do expresidente Fernando Henrique Cardoso e nos governos petistas (em menor velocidade, é 6
Artigo publicado originalmente no dia 15/02/2017 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 7 Há várias maneiras de calcular o gasto com a água na produção de alimentos. Escolhemos o da Waterfootprint que pode ser acessado no link http://www.pegadahidrica.org/?page=files/home
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verdade) a posse deste serviço pelos Estados e municípios vem sendo lentamente repassada para empresas privadas. Não tenho nada contra as empresas privadas, mas água é importante demais para ficar sobre o seu controle. Privatizar pode significar privar as pessoas do acesso a um bem natural em muitos casos. Se você não conseguir pagar a conta do serviço que faz chegar a água, você será privado do seu acesso nas torneiras da sua casa o mais rápido possível. Empresas privadas precisam pagar funcionários, impostos e ter lucro. E quanto mais lucro melhor para garantir a sobrevivência no mundo cruel dos negócios. É a natureza delas. Goste-se ou não, é assim que funciona. Se você pensa que é diferente, pergunte aos bolivianos sobre a relação nada amigável entre eles e a empresa estadunidense Bechtel que administrou a distribuição da água por lá e, por causa do aumento das tarifas impagáveis pelos mais pobres e o consequente corte da água para as suas casas, provocou a chamada Guerra da Água causando a morte de mais de setenta pessoas nas ruas de Cochabamba no ano 2000. Pode também perguntar aos franceses porque as empresas distribuidoras de água na França, que por décadas foram administradas por empresas privadas, foram remunicipalizadas em vários municípios de lá, incluindo Paris. No entanto, o Brasil segue o caminho da privatização da água já fracassado em outros países. A linguagem não é neutra. Mas o que há entre a não neutralidade da linguagem e a privatização da água no Brasil? Simples: ela é utilizada a favor da justificativa do repasse das nossas águas para as mãos de multinacionais. Você lerá/verá/escutará cada vez mais que a água é um bem econômico e assim deve ser tratada. Interessante é que nunca se afirma que por isso mesmo ela deva ser administrada pelo Estado e gerar mais dividendos para melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes. Outro artifício linguístico é falar em concessão do saneamento básico das empresas públicas de saneamento para a iniciativa privada. Concessão é ceder para, ceder o que se tem para outros. A ideia de que a estatal continuará a pertencer ao governo, mesmo que ela passe a ser administrada por uma empresa privada, retirando todo o poder governamental sobre a mesma não é uma realidade, posto que as concessões duram décadas. Quem não quer melhorar a situação do acesso e o tratamento dos esgotos brasileiros. Mas acreditar que as empresas privadas vão sair por aí cavando asfalto nas periferias para promover a expansão da rede de esgotos pode ser enganoso? Um outro elemento linguístico utilizado para ajudar a convencer a todos da boa natureza da privatização da água é o discurso da escassez para amedrontar a população. 14
Esta é outra estratégia que vem dando certo. Não que a escassez não exista. Ela é real e mortífera em várias partes do globo. Mas onde não é realidade ou não seja tão impactante, a escassez tem sido amplificada por parte da mídia. Todos já ouvimos: “Ficaremos sem água”, “a água está acabando,” “é preciso economizar água,” “Não desperdice água,” “o desperdício é causado porque a água é gratuita,” “A próxima guerra será pela água”, etc. Não há no mesmo discurso o chamamento de atenção para o fato de que 70% da água doce no planeta são gastos com irrigação e menos de 10% em uso doméstico. O discurso é tão eficaz que existem crianças policiando o banho dos pais. Não que não devamos economizar água, longe disso. O problema é culpar o usuário comum quando ele não é o grande vilão da história. Outro bom exemplo da linguagem a serviço da manipulação é a forma como o atual governo e as mídias encontraram para retratar as negociações para as privatizações das estatais da água. Primeiro era por meio da Parceria Público Privada – PPP. Então surgiu o Programa de Parceria de Investimento – PPI. No final é o dinheiro público financiando a compra das empresas públicas por empresas privadas e ainda com a garantia de lucros nos contratos. Sem essa garantia, os grupos econômicos não considerarão entrar no Mercado da Água brasileiro. O bom e velho BNDES foi acionado pelo governo da vez para ajudar a “democratizar o saneamento” com a PPI. Seus “atos bondosos” incluem a pressão para que os Estados da federação concedam a administração das suas distribuidoras de água para as empresas privadas. A fila vai começar com a CEDAE – Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro. O BNDES está financiando grupos econômicos que queiram entrar no negócio da água e 18 Estados estão na fila para entregar o leite a um bebê faminto. Mas se engana quem pensa que as multinacionais da água ainda vão chegar. Hoje o Brasil já tem mais de 17 milhões de pessoas atendidas na distribuição de suas águas por uma multinacional canadense em doze Estados brasileiros8. Ela comprou esta “fatia do mercado” da Odebrecht Ambiental. Parece pouco, mas o valor da transação foi de quase 3 bilhões de reais. Não é um mercado para qualquer um, como se vê.
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Segundo o relatório anual Panorama da Participação Privada no Saneamento 2018, publicado conjuntamente pela Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto – ABCON – e pelo Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto – SINDCON, empresas privadas de saneamento já atendem a uma população de mais de 31 milhões de pessoas em 322 municípios brasileiros.
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O Ouro Azul, como é chamada a água em contraposição ao título de Ouro Negro dado ao petróleo, é um bom negócio, mas não para as populações carentes. Em um pequeno livrinho chamado O Manifesto da Água (2002), de autoria Riccardo Petrella e em outro livro publicado pela canadense Maude Barlow intitulado O Convênio Azul: a crise global da água e a batalha futura pelo direito a água (2009), as consequências negativas para as comunidades e positivas para as empresas estão descritas com vários exemplos ao redor do planeta. São Paulo conhece bem as negativas quando sofreu um choque com o racionamento provocado pela ideia do lucro primeiro, população depois. É que 49,7% da Sabesp pertencem a empresas privadas. Vários analistas da questão hídrica culparam a empresa por não ter investido na melhoria da infraestrutura por anos, uma das causas do problema. Teoricamente o governo paulista tem maioria para a tomada de decisões. Mas nós todos sabemos como falham as teorias… O avanço das ondas com as novas privatizações vem como um tsunami. O problema é que agora não há mais estatais como Vale do Rio Doce, Embraer, Telebrás, Rede Ferroviária, etc. Todas já foram vendidas nos anos noventa. Se é preciso satisfazer a sede dos grupos econômicos, que venha a bebida disponível no momento e esta é a água nossa de cada dia.
Referências Bibliográficas
BARLOW, Maude. El convenio azul: la crisis del agua y la batalla futura por el direcho al agua. Santiago: Chile Sustentable. 2009. Disponível em http://www.archivochile.com/Chile_actual/patag_sin_repre/03/chact_hidroay3%2000022.pdf PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água. Rio de Janeiro: Vozes. 2002.
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3 Dia Mundial da Água: não há o que comemorar9 Não há o que comemorar neste 22 de março de 2017 quando o mundo celebra o Dia Mundial da Água. Com a privatização do nosso patrimônio hídrico a pleno vapor no Brasil, só nos resta uma pergunta: Por que comemorar? Com a posse de 12% da água doce do planeta, o Brasil é a bola da vez para o chamado Mercado da Água. Tudo, claro, justificado com eufemismos como: modernização do setor hídrico, bom gerenciamento, alavanca para o desenvolvimento, água para quem tem sede e outros mais. Todos nós já conhecemos muito bem o resultado do “cuidado” por parte dos que detém o poder para com os nossos recursos naturais. Basta pensar no que aconteceu com os nossos minérios nas últimas décadas para temer pela água brasileira. Acontece que a água não é um elemento natural qualquer. Ela é essencial para manter a vida no planeta. O Brasil sediará na capital do país, em 2018, o Fórum Mundial da Água e certamente a mídia comercial dirá que a discussão será pautada pela universalização do saneamento. A conclusão do documento final deste Fórum eu adiantarei aqui para vocês: sem a participação da iniciativa privada não será possível levar saneamento para toda a população brasileira. Não, eu não tenho o dom de prever o futuro. É que basta ler alguns dos documentos dos Fóruns Mundiais da Água anteriores e dos eventos promovidos pelo Banco Mundial com relação a este tema. O resultado é sempre a afirmação de que a água tem valor econômico e deve ser tratada como uma mercadoria. Houve um tempo que a água era privatizada por grandes proprietários, e ainda o é em muitos lugares deste país. Hoje, multinacionais e algumas empresas nacionais perceberam que a água pode ser o último recurso natural na lista dos privatizáveis. Ainda há um outro grande atrativo: diferente das outras matérias primas, a água quase nunca precisa passar por uma transformação para a venda. Está pronta para ser comercializada . Basta que seja captada, transportada e seguir para a comercialização. A autorização para que a CEDAE, empresa de saneamento do Rio de Janeiro, seja privatizada acendeu a luz vermelha em outros Estados. Há pouco ficamos sabendo que uma multinacional canadense comprou uma empresa privada de saneamento brasileira e
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Artigo publicado originalmente no dia 22/03/2017 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais.
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será responsável pela distribuição de água de cerca de 5% da população no Brasil. Para os próximos anos anuncia-se a privatização de mais de uma dezena de companhias estaduais de água utilizando outros eufemismos como Parceria Público Privada – PPP e Parceria Pública de Investimento - PPI. Uma verdadeira ironia quando sabemos que cidades como Berlim e Paris remunicipalizaram as suas companhias de distribuição de água, gesto que já foi repetido por mais de 200 cidades ao redor do mundo nos últimos anos. A questão da privatização da água tornou-se tão séria que até mesmo o Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si afirma que “em alguns lugares cresce a tendência de se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado.10” Hoje sabemos que um destes lugares é o Brasil. Só há uma maneira de parar esta insanidade. A necessidade de conscientização da população brasileira é urgente e necessária para contrapor-se com celeridade e eficácia a esta ameaça ao acesso a um bem comum. Sabemos por experiência com o que aconteceu na Bolívia no ano 2000 que a privatização da água afetará os mais pobres e que estes pagarão o preço com esta política de exclusão. Água é importante demais para ser uma mercadoria.
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A Encíclica Laudato Si´ está acessível e pode ser lida http://w2.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papafrancesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf
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no
seguinte
link
4 A questão da privatização da água na Encíclica Laudato Sí11 Muitos de nós raramente paramos para pensar que quando estamos bebendo um copo com água este líquido é essencial para nos manter vivos. Humanos podem morrer após três dias sem ingerir líquidos. A água é tão central para manter a vida no planeta que ela vem sendo a causa de guerras por milhares de anos entre sociedades que muito cedo aprenderam que a sua posse resulta em poder. Sede não tem um competidor a sua altura. Bastariam estes motivos para impedir que ela seja controlada por grupos econômicos e evitar a desigualdade hídrica. Não é sem motivo que a palavra água foi citada quarenta e sete vezes pelo Papa Francisco na sua encíclica Laudato Si12. Isso mostra a preocupação do Papa e a importância dada por ele a água como elemento sagrado e essencial para manter a vida. Nesta que é a sua mais famosa encíclica, ele afirma que, Uma maior escassez de água provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais poderiam afetar milhares de milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflitos deste século.(Papa Francisco, 2015, p. 27)
Sem dúvida, a escalada inflacionária de alguns alimentos tem, muitas vezes, a falta de acesso a água como causa e, em alguns casos, o agronegócio aproveita-se da situação para lucrar ainda mais, mesmo sendo ele o setor produtivo que gasta 70% da água doce no planeta. O Brasil conhece bem esta situação. Ao comentar sobre a poluição das águas no planeta, o Papa afirma que Em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição produzida por algumas atividades extrativas, agrícolas e industriais, sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles suficientes. Não pensamos apenas nas descargas provenientes das fábricas; os detergentes e produtos químicos que a população utiliza em muitas partes do mundo continuam a ser derramados em rios, lagos e mares. .(Papa Francisco, 2015, p. 26) 11
Artigo publicado originalmente no dia 31/05/2017 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 12 A Encíclica Laudato Si´ está acessível e pode ser lida no link http://w2.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papafrancesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf
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Não há quem duvide que esta poluição é a causa de muitas enfermidades no planeta. Se é a poluição e a falta de saneamento básico que ceifa todos os anos milhões de vítimas por doenças que poderiam ser evitadas, especialmente em crianças, as soluções apontadas pelo pensamento Neoliberal, inclusive no Brasil, é a privatização do serviço, como alerta o documento papal ao ressaltar que, “Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado.” Ressaltamos que muitas distribuidoras de água estaduais do nosso país estão em processo de estudo para a sua privatização, ou concessão para a iniciativa privada. É a confirmação da tendência que Laudato Si´ nos alerta. Em um mundo onde mais de 50% das pessoas vivem em grandes cidades, o resultado é que muitos seres humanos estão perdendo o contato com os ciclos da natureza ou tem uma relação distante com o que podemos chamar de ritmo natural da Terra. Este fato afeta profundamente a percepção de como se deve lidar com a água no cotidiano. Reflitamos sobre o seguinte exemplo: uma família está visitando a cidade do Rio de Janeiro em um daqueles verões escaldantes e decide parar em um restaurante para o almoço. O garçom vem com o cardápio e pergunta se querem uma bebida. Depois de andar sob o sol do verão carioca por horas, a única coisa que os integrantes desta família desejam é beber um pouco de água gelada que logo será trazida engarrafada e servida pelo garçom para todos os que estão sentados à mesa. Quando ao final da refeição a conta chega, a família será cobrada pela água que, a depender do restaurante, muitas vezes é mais cara do que gasolina na mesma quantidade. Esta família deve estar preparada para gastar entre 10 e 20 Reais por dia de passeio apenas com a compra de água para se manter hidratada. Isso sem contar com a incerteza se a água comprada é mesmo mineral. A outra opção seria levar a própria água, um hábito que deve começar a aumentar cada vez mais entre os brasileiros. O que aconteceu com esta família, não aconteceria em países como os Estados Unidos, já que é uma tradição nos restaurantes de lá ter água servida de forma gratuita. Na cidade de Nova York, por exemplo, você pode até mesmo tomar água vinda da torneira, pois aquela cidade é famosa por pagar aos proprietários das terras de onde vem as águas para abastecer as casas de seus residentes para que eles preservem os rios e assim a cidade não precisa utilizar agentes químicos para tratá-la. No Brasil, seja porque a água não é tratada adequadamente para o consumo humano ou porque os restaurantes lucram mais 20
vendendo água engarrafada para os seus clientes, pagamos pela água nos bares e restaurantes. O preço da água tem aumentado em várias partes do mundo depois de sua privatização. A história da relação entre a iniciativa privada e a água não é nova. Em décadas recentes a sua privatização tem sido causa de conflito em países como a França, os Estados Unidos, Brasil, Honduras, Argentina, Israel, Palestina, Turquia, Sudão, Sudão do Sul, Egito e muitos outros. Um dos conflitos mais conhecidos aconteceu na Bolívia no ano 2000 quando dezenas de pessoas morreram em um protesto contra a privatização da água na cidade de Cochabamba, no que ficou conhecido como A Guerra da Água. Como chegamos a este ponto? Como permitimos que multinacionais controlem um dos elementos essenciais para manter a vida no nosso planeta? Uma das respostas pode ser encontrada nos documentos do Banco Mundial. Esta organização internacional tem feito lobby para modificar leis relacionadas com a posse da água e para que ela seja classificada como passível de valor econômico, isto é, uma mercadoria, o que facilita a sua comercialização. O fato é que algumas multinacionais veem a água como o novo ouro, ou ouro azul como é agora chamada pela perspectiva de lucro imensurável que pode gerar. Comunidades ao redor do mundo estão se organizando para resistir a privatização da água. Bolívia tomou de volta a concessão que deu para a multinacional americana que administrava a água em Cochabamba. Nos Estados Unidos há ONGs nos estados de Michigan, Califórnia e Oregon que estão em batalha contra políticos que apoiam a privatização da água e multinacionais como a Nestlé, famosa pelo comércio de água mineral. Na França, a cidade de Paris retomou a administração da distribuição da água após protestos contra os altos preços e denúncias de corrupção no sistema. Em Minas Gerais, comunidades se organizam contra a escalada privatista de suas fontes de águas minerais. No Rio de Janeiro, a privatização da CEDAE levou milhares para as ruas. Na Paraíba, a pressão dos movimentos organizados fez com que o governador desistisse de privatizar a CAGEPA. Laudato Si´ nos convoca a proteger a sacralidade da água, tão sagrada que simboliza o sacramento do batismo para católicos e vários outros credos. Esta Encíclica nos chama a tomar uma atitude para que a água se torne um direito para todos os seres do planeta. Nós devemos lutar para que água não se torne causa de sofrimento para os 21
mais marginalizados da nossa sociedade e que a situação não piore, caso a água se torne apenas um produto de mercado como outro qualquer. Não é à toa a advertência que Francisco nos faz ao lembrar que, Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável.”
Sem o direito a água, todos os outros direitos sequer podem ser reivindicados. Água não é mercadoria!
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5 Fórum Mundial da Água: o gato se veste de lebre13 A cidade de Brasília sediará o 8º Fórum Mundial da Água entre os dias 18 e 23 de março de 2018. No site do evento podemos ler que “O Fórum Mundial da Água é o maior evento relacionado à água do mundo e é organizado pelo Conselho Mundial da Água - CMA (World Water Council – WWC), uma organização internacional que reúne todos os interessados (sic) no tema da água.” Há até mesmo uma consulta online onde todos são convidados a sugerir ideias a serem discutidas e a promessa de que as vozes dos participantes serão possivelmente adicionadas às discussões durante as datas do evento na capital do Brasil. Vale ressaltar que 40% dos gastos com o Fórum serão bancados pelos governos federal e do Distrito Federal. O Fórum Mundial da Água promete discutir como a água pode chegar ao maior número possível de pessoas no mundo. Parece coisa boa falar de acesso a água para todos, mas o gato se disfarça como lebre com mais frequência do que imaginamos. Será que as vítimas da privatização da água no planeta também serão convidadas para contar as suas histórias? Comecemos por conhecer um pouco mais sobre a entidade organizadora do evento, o Conselho Mundial da Água (CMA). Esta organização é presidida atualmente pelo brasileiro Benedito Braga, que também é o Secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo. Esta secretaria estadual paulista é a responsável pela Sabesp, órgão que ficou bastante conhecido durante a crise causada pela falta de água nas torneiras de São Paulo há poucos anos e foi acusada por vários especialistas na questão hídrica de não ter investido o necessário na infraestrutura de abastecimento de água para privilegiar os seus acionistas (49% da Sabesp pertence a empresas privadas) em detrimento dos usuários, sendo essa uma das causas da crise. O CMA afirma em seu site que é financiado por taxas pagas pelos seus membros e doações de governos e organizações internacionais, embora não cite os nomes das organizações doadoras ou a quantia por elas doadas. Entre os membros listados estão governos, grandes ONGs, empresas que controlam a distribuição de água em várias partes do planeta, entre outros. Sabe-se que o Banco Mundial é muito próximo a este Conselho, assim como é de conhecimento público que o Banco Mundial lidera uma campanha internacional pela privatização da água difundindo a ideia de que esta tem um 13
Artigo publicado originalmente no 11/07/2017 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais.
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valor econômico como qualquer outro recurso natural e que a única forma de fazer com que seja acessível a todos é sendo administrada pela iniciativa privada. Em seus documentos, o CMA prega a busca pela boa gestão da água para alcançar a universalização do saneamento básico. Também externa a preocupação com o que pode acontecer ao setor produtivo caso haja um colapso no acesso a água. Para que uma boa gestão aconteça, esta organização recomenda que o setor privado seja parte integrante do sistema de distribuição da água. Sabemos que o setor público não pode gerir todas as demandas da sociedade, mas será a água uma demanda qualquer? Por que então mais de 200 cidades no mundo inteiro que tinham a água distribuída por empresas privadas retomaram o seu controle nos últimos anos, a exemplo de Paris? E o que dizer de cidades nos Estados Unidos, Honduras ou aqui no Brasil que estão em luta para que suas cidades não tenham a distribuição dos seus recursos hídricos privatizados? A ausência sobre o gasto de água com a irrigação do agronegócio industrial também é notada nos documentos e nas discussões do CMA, sendo que este setor sozinho gasta cerca de 70% da água doce no mundo. Este seria um tópico essencial para ser discutido em Brasília se realmente o CMA estivesse preocupado em preservar os nossos mananciais e promover o acesso a água de qualidade às populações carentes. Há algo mais a se ressaltar sobre o Conselho Mundial da Água e os fóruns por ele organizados. Eles nunca mencionam a água como um direito humano que deve ser garantido pelo Estado. Por isso é preciso tomar muito cuidado com a promessa da universalização do saneamento básico preconizada por estas organizações. Não por coincidência, o governo Temer, através do BNDES, está forçando os Estados brasileiros a privatizarem as suas companhias de distribuição de água com a desculpa de que isto aliviará as contas públicas estaduais e que as empresas compradoras melhorarão o serviço de abastecimento nestes Estados. O Rio de Janeiro está sendo o primeiro a ser forçado a privatizar a sua companhia, a CEDAE, mesmo sendo ela uma empresa lucrativa. Sabendo que o gato pode vestir um disfarce de lebre para encantar o público, movimentos sociais organizarão, nas mesmas datas, o Fórum Alternativo Mundial da Água. Será uma forma de confrontar o discurso neoliberal, lutar contra a privatização da nossa riqueza hídrica e mostrar que o miado pode até ser diferente, mas o gato sempre será o gato, independente da roupa que esteja vestindo.
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6 O direito à água14 Por que falar de direito à água? Porque cada vez mais este direito pode ser ameaçado por novas circunstâncias políticas e econômicas na sociedade brasileira. Este tópico é muito recente como reflexão e discussão no Brasil e no mundo. Basta dizer que ele nem consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos15. Avalio que a sua ausência neste documento, que nasceu depois das atrocidades da Segunda Guerra Mundial se deve ao fato de que o direito à água era visto como algo tão assegurado que sequer necessitava ser ressaltado naquela Declaração. Ele somente foi mencionado em documentos internacionais anos mais tarde nas convenções que tratam das minorias que ainda lutam por direitos sociais e individuais como as mulheres, as crianças e os portadores de necessidades especiais, por exemplo. Foi apenas na primeira década deste milênio que a Organização das Nações Unidas teve este tema discutido com maior profundidade ao ter uma resolução pelo direito à água votada pelos países membros, discussão esta pautada pela Bolívia e que em sua primeira votação foi derrotada, sendo aprovada posteriormente em 2010. É bem verdade que no Brasil este direito já estava presente no Código das Águas16, elaborado nos anos trinta do século passado, ao garantir que as águas públicas deveriam priorizar a “necessidade da vida”. Esta lei garantia o acesso à água, mesmo que fosse necessário aos que dela necessitassem que caminhassem por áreas privadas que as margeassem. Mas na prática nem sempre este direito foi assegurado aos grupos mais vulneráveis no Brasil. Hoje sabe-se que para proporcionar mão de obra barata para as fazendas de café e para as indústrias do Estado de São Paulo, por exemplo, governos federais dos anos quarenta e cinquenta atrasaram obras hídricas no Nordeste como forma de pressionar a migração forçada de moradores de áreas atingidas pelas secas, em um flagrante desrespeito ao direito humano à dessedentação. Favelas e zonas rurais sempre foram relegadas ao esquecimento no acesso a água limpa e de qualidade. Basta lembrar que na última crise hídrica de São Paulo, comunidades periféricas sofreram com a falta 14
Artigo publicado originalmente no dia 24/08/2017 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 15 Originalmente chamada de Declaração Universal dos Direitos do Homem. Pode ser acessada em https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm 16 Confira o Código das Águas em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d24643.htm
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de água enquanto as mansões dos bairros ricos da cidade continuaram com as suas piscinas cheias (não se conhece campanha publicitária da Sabesp para que piscinas não fossem abastecidas, apenas as que destacam o “banho demorado” pelo desperdício de água). E como não lembrar dos povos indígenas do Brasil e de outros cantos do planeta que são expulsos de suas terras muitas vezes porque estas possuem água em abundância, obrigando-os a mudarem para áreas onde terão dificuldade no acesso aos rios ou lagos tão necessários às suas atividades sociais e espirituais. Isso nos leva a concluir que muitas vezes este direito é negado por interesses políticos e econômicos. Estudos também demonstraram que por causa da dificuldade no acesso a água de qualidade para o consumo, mulheres em áreas rurais caminham por quilômetros para conseguir chegar às fontes, poços, lagos ou rios e trazer água para suas casas em latas ou potes carregados em suas cabeças17. Este direito negado também vem vitimando milhões de crianças em todo o mundo com doenças que são transmitidas por águas contaminadas em áreas pobres das grandes cidades e em zonas rurais. Como não concluir que sem direito à água, vários outros direitos também são negados aos mais pobres ou a grupos historicamente vulneráveis. Populações precisam migrar ao seu encontro para fugir da morte e muitas vezes é a morte que encontram nesta busca por água. Há um outro aspecto com relação a este assunto nem sempre é mencionado: o aproveitamento político que a negação deste direito gera. Embora o Nordeste sempre apareça em primeiro plano quando o assunto é a troca de favores políticos por água no Brasil, como não lembrar dos chamados “políticos de bica d´água” no Rio de Janeiro18 em um passado não muito recente (décadas de sessenta e setenta), quando lideranças partidárias trocavam votos por bicas d´água nos morros cariocas. Também é o caso de algumas populações das periferias da cidade de São Paulo e sua luta pela água encanada em suas casas ainda em nossos dias. Há ainda o exemplo da transposição do Rio São Francisco, vendida como garantia de água para parte da população nordestina, quando é do conhecimento que aquela água transposta será a garantir de irrigação de grandes plantações do agronegócio industrial no Semiárido.
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Sobre este fato, há uma bela canção chamada A força que nunca seca. Composta por Chico Cesar e Vanessa da Mata e cantada por Maria Bethânia em cd com título homônimo ao da canção. 18 O maior representante destes políticos foi o carioca Chagas Freitas.
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A ideia de que a água é um bem comum a que todos os seres (humanos e não humanos) têm direito vem sendo ampliada basicamente porque ela é cada vez mais um alvo do mercado que nela vê uma oportunidade de lucro a perder de vista. A posse da água ou o poder para distribui-la por monopólios empresariais privados em um mundo cada vez mais urbano, coloca em perspectiva até que ponto os governos não estão garantindo este direito fundamental para a vida. Assegurá-lo é a garantia de que outros direitos como saúde, higiene, lazer, o cultivo e o preparo de vários alimentos, etc. também sejam garantidos. É preciso ressaltar que não basta ser acessível, é fundamental que seja limpa e de qualidade. Algo cada vez mais difícil devido a sua poluição por agrotóxicos no campo e detritos industriais e domésticos nas cidades. A boa notícia é que esta discussão já vem trazendo resultados positivos em várias localidades do Brasil e do mundo no tocante a garantia do direito à água para as famílias mais carentes. Em nosso país há a tarifa social com bases de cálculo diversos, a depender do estado ou do município19. Em outros lugares existe a discussão sobre a gratuidade de uma quantidade de litros de água per capita20, com o entendimento de que isto garante outros direitos como saúde, higiene, boa alimentação, etc. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS) é necessário o consumo mínimo per capita de 100 litros diários de água. Este montante seria o suficiente para uma pessoa saciar a sede, ter uma higiene adequada e preparar os alimentos (muitas vezes não levamos em contar que a quantidade de água que possuímos vai incidir na forma como nos alimentamos). Não seria então o caso de garantir que cada cidadão e cada cidadã tenham o direito a estes 100 litros de água e somente paguem o que for consumido acima deste número de referência? O quanto seria economizado em gastos com saúde, por exemplo? Porém, atualmente mesmo a suposição deste direito está ameaçada pelo curso da privatização das empresas de distribuição de água no Brasil.
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Atualmente há no Senado um Projeto de Lei para unificar a tarifa social de água e esgoto baseada na renda do usuário. “A medida está prevista no PLS 505/2013, que cria a tarifa social de água e esgoto, com descontos inversamente proporcionais ao consumo, para famílias com renda per capita de até meio salário mínimo, cadastradas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. “ Confira em http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/06/05/regras-para-tarifa-social-de-agua-e-esgotopodem-ser-unificadas 20 Outras instituições propõem quantidades diferentes. A quantidade também poderia ser calculada levando em conta a idade do consumidor, o clima local, etc. A Proposta de Emenda à Constituição Nº 4 “Inclui, na Constituição Federal, o acesso à água potável entre os direitos e garantias fundamentais.” E “Garante a todos o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar meios de vida, bemestar e desenvolvimento socioeconômico .”
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O Mercado da Água como uma das últimas fronteiras a ser desbravada por empresas privadas. Este novo negócio é uma realidade vivenciada por várias populações em nosso país. Não que ela não tenha sido privatizada antes em muitas localidades brasileiras, mas esta privatização não estava sob a tutela da lei e o incentivo de governos. Também não significa que sendo pública o seu acesso será garantido. Muitas comunidades ainda reivindicam água em suas torneiras nos Estados e municípios brasileiros que monopolizam a sua posse. Entretanto, sendo pública isso torna mais fácil a pressão sobre os poderes responsáveis pela sua distribuição, por uma tarifa que contemple a realidade socioeconômica dos mais pobres ou até mesmo pela distribuição de uma quantidade mínima gratuita que garanta a saúde, a higiene e a alimentação de qualidade. Não devemos e nem podemos demonizar o mundo dos negócios privados, pois o Estado não pode a tudo prover, mas a água é um elemento natural basilar para manter a vida no planeta e a sua monopolização por um grupo econômico é por demais perigoso. O lucro gerado para estas empresas será imenso e há de aumentar em seus balanços anuais, pois diferentemente de outros itens comercializáveis, a água está pronta para a venda tendo como custo a captação, o seu transporte e a sua distribuição. A água privatizada não alcançará os que dela necessitam e priorizará apenas aqueles que podem por ela pagar. Os menos favorecidos da sociedade serão, mais uma vez, privados de um direito essencial à sua sobrevivência. Não custa sempre repetir que “água não é mercadoria”.
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7 Água e modelos de desenvolvimento21 Certa vez fui convidado por um grupo para uma conversar sobre o tema “O que é desenvolvimento?” Comecei perguntando o que cada pessoa presente entendia pela palavra desenvolvimento e as pessoas que aceitaram satisfazer a minha curiosidade deram respostas diferentes umas das outras. Ouvi cerca de quinze conceitos distintos sobre esta que é uma das palavras mais pronunciadas em nosso tempo. Então eu chamei a atenção do grupo para o fato de que se ali, onde quase todos pertencíamos a uma mesma corrente ideológica, postulávamos visões tão diversas, isso significava que não existia um só modelo de desenvolvimento a seguir. No entanto, cada vez mais as comunidades rurais sofrem com um modelo de desenvolvimento trazido com o agronegócio de larga escala, e a elas imposto, resultando na perda dos bens naturais como a água. Tudo isso com as bênçãos de governos eleitos “democraticamente” e organismos internacionais como o Banco Mundial e como resultado de uma cartilha que ensina o que é “necessário” para se tornar um lugar “desenvolvido”. No entanto, estes mesmos governos e organismos internacionais, os arautos do “desenvolvimento”, nunca divulgam o que o economista Joan Alier (2007) chama de Mochila Ambiental, ou seja, o impacto negativo que vem escondido com este modelo imposto, em especial para os mananciais. O que é entendido como desenvolvimento para o mundo urbano, por exemplo, pode perder completamente o sentido no mundo rural e vice-versa. A verdade é que para muitos “Desenvolvimento é o nome síntese da ideia de dominação da natureza. Afinal, ser desenvolvido é ser urbano, é ser industrializado, enfim, é ser tudo aquilo que nos afaste da natureza e que nos coloque diante de constructos humanos, como a cidade, como a indústria.” (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 24). Mas há uma situação em que todos deveríamos concordar: se um modelo de desenvolvimento envenena, exaure, polui e destrói os mananciais de água consumidas pelos seres vivos, este não pode ser bom pelo simples fato de que condena a si próprio à morte. Afinal, o que pode ser mais importante do que a preservação do patrimônio hídrico que é o sustentáculo da vida no nosso planeta? Sem água nenhum modelo de desenvolvimento pode sobreviver por muito tempo porque ela é essencial para a produção na agricultura e na indústria. Mas, 21
Artigo publicado originalmente no dia 17/10/2017 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais.
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então, por que a exploram até a exaustão e a poluem, em especial os dois setores citados acima? Porque os donos dos empreendimentos não vivem naquelas comunidades e não sofrerão as consequências dos seus atos. A pilhagem do meio natural não os afetará, já que uma vez exaurido o recurso, mudarão os seus empreendimentos para uma outra área geográfica onde repetirão a mesma operação. A palavra desenvolvimento tem sido praticamente um mantra cantado pelos mais variados atores políticos nas últimas décadas e é uma palavra “sagrada” tanto para os campos políticos da Direita quanto para uma parte da Esquerda22. No dizer da professora e ativista Marijane Lisboa (2014), “ela é a ideologia no nosso tempo”. A grande maioria dos políticos promete trazer o desenvolvimento caso sejam eleitos em uma afirmação que deixa subentendido que o local onde pedem votos é um lugar não desenvolvido. Até mesmo algumas pessoas que se contrapõe ao modelo neoliberal muitas vezes reproduzem esta fala sem uma maior reflexão sobre o que defendem e a conexão com a política que condenam. O geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves (2004), alerta que para trazer o que definem como desenvolvimento para as nossas comunidades, seus defensores precisam nos des-envolver e des-sacralizar os nossos valores e a nossa cultura. Isso é possível porque estes modelos impostos causam o não-envolvimento daqueles e daquelas que são por eles afetados, muitas vezes fazendo com que absorvam uma outra cultura que facilita a sua dominação e assim percam aos poucos as suas terras e as suas águas. O modelo vai se impondo como o único possível e vai se apossando do territó-rio, a começar pela água. Quem não conhece uma história de um riacho que secou por casa do desmatamento para as grandes plantações, um rio desviado para alimentar uma hidrelétrica, uma lagoa que secou para irrigar o agronegócio ou um lençol freático que foi contaminado com agrotóxico. Se atentarmos como tudo começou, encontraremos a promessa de desenvolvimento bem lá no início dos megaprojetos governamentais e dos grandes empreendimentos econômicos. Com ela, o sonho dos empregos, da educação formal ausente, do asfalto desejado, etc. Seus “beneficiados” não sabiam o que perderiam a longo prazo com a chegada das grandes obras e das grandes plantações das monoculturas. Mas engana-se quem imagina este como um processo recente. Leiam o 22
Porto-Gonçalves (2004, p. 25) alerta que o discurso dos nacionalistas e socialistas ao questionarem o subdesenvolvimento, almeja a chegada do desenvolvimento. Porém, sem uma crítica ao modelo. “Desse modo, os que criticavam a desigualdade do desenvolvimento contribuíam para fomentá-lo, na medida em que a superação da desigualdade, da miséria, se faria com mais desenvolvimento.”
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que disse Gilberto Freyre nos idos da década de trinta do século passado sobre a relação entre as usinas de cana de açúcar de Pernambuco e os rios daquele Estado brasileiro. Disse Freyre (1967, 35): “ Quase não há um rio do Nordeste do canavial que alguma usina de ricaço não tenha degradado em mictório.” Para ele foi a monocultura da cana (agronegócio) e as usinas industriais (algumas de origem estrangeira) que degradaram os rios, modificando a relação que os ribeirinhos tinham com aqueles naquela região do Brasil. Justo quando começamos a perceber que muitas das promessas que utilizam a palavra desenvolvimento vestem uma fantasia para nos encantar, eis que surgiu o termo Desenvolvimento Sustentável. Nós nos atemos mais ao adjetivo do que ao substantivo, já nos alertaram alguns ambientalistas. O desenvolvimento pode ser sustentável? De que sustentabilidade e de que desenvolvimento estariam falando os seus propagadores? É preciso redimensionar a discussão sobre produção no campo e na cidade e começar a incluir a água como elemento para a sustentabilidade. Quando os governos e a indústria da carne enaltecem esta última como alavanca do Produto Interno Bruto brasileiro, como entra no cálculo o consumo de água para produzir um quilo de carne para exportação?23 Hoje devemos, mais do que nunca, falar em Comunidades Sustentáveis. São as comunidades que devem, de forma verdadeiramente democrática e com um Modelo Circular de Poder e não o velho conhecido Modelo Piramidal de Poder, ainda tão presentes no modelo de desenvolvimento imperante, discutir o que é melhor para elas. Esta pode ser a solução para os graves problemas que estamos enfrentando neste momento da nossa história. É preciso voltar ao envolvimento com a terra e a água, sacralizar os nossos espaços, envolvê-los em nossas vidas e, mais do que tudo, refletir sobre quem está ganhando com este modelo que está destruindo a nossa Casa Comum.
Referências Bibliográficas ALIER, Joan Martínez. O ecologismo dos pobres. São Paulo: Editora Contexto. 2007.
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Segundo o site do Waterfootprint (Pegada Hídrica) são necessários 15.400 litros de água para produzir um quilo de carne. Confira em http://waterfootprint.org/en/resources/interactive-tools/product-gallery/
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FREYRE, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio. 1967. LISBOA, Marijane. Em nome do desenvolvimento. In ZHOURI, Norma; VALÊNCIO, Norma. Formas de matar, de morrer e de resistir: limites da resolução negociada de conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2014. pp. 51-78. MENDES, Armando Dias. Envolvimento e desenvolvimento: introdução à simpatia de todas as coisas. In CAVALCANTI, Clóvis (Org.). Desenvolvimento e Natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez. 2009. PORTO-GONCALVES. Carlos Walter. O desafio ambiental. Rio de Janeiro; Record. 2004.
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8 Água, poder e política24 Desde muito cedo na história da humanidade, como nós a conhecemos por relatos historiográficos, a posse da água foi importante para manter a hegemonia de alguns agrupamentos humanos, principalmente onde ela não jorrava com abundância em certas regiões onde viviam as antigas civilizações. A posse dos mananciais de água doce era uma arma poderosa para dominar a terra e o rio (territó-rio) na defesa contra os inimigos. Seu controle sempre representou e representará um meio essencial que tem como objetivo final tomar e assegurar o poder. Obviamente isso gerou e gera guerras até os dias atuais. Entender a dinâmica das águas, saber transportá-la em aquedutos, desenvolver a irrigação para grandes plantações, entender o poder medicinal que elas oferecem25, entre outras formas de com ela se relacionar, transformou as vidas de pessoas. A história demonstra claramente que o domínio sobre este conhecimento se traduz em poder e riqueza econômica. O saudoso estudioso da questão hídrica, Professor Aldo Rebouças, revela um pouco de como a água influenciou a tomada de poder por alguns povos antigos. Relata ele que, O controle das inundações do rio Nilo foi a base do poder da civilização Egípcia, desde cerca de 3,4 mil anos a.C.. Nos vales dos rios Amarelo e Indu, a utilização da água como forma de poder foi iniciada em 3 mil a.C., sendo exercida por meio de obras de controle de enchentes e da oferta de água para a irrigação e abastecimento das populações. O controle do rio Eufrates foi a base do poder da Primeira Dinastia da Babilônia, possibilitando ao Rei Hamurábi – 1792 a 1750 a.C. – unificar a Mesopotâmia e elevar sua região norte a uma posição hegemônica. Dessa forma, o poder que reinava no sul da Mesopotâmia, desde o terceiro milênio a.C., foi deslocado para a região norte, onde permaneceu por mais de mil anos. Para alguns, a politização e centralização atuais do poder sobre a água teriam tido suas origens nessa época. (2002, p. 17).
Embora outros povos tenham desenvolvido técnicas de irrigação e canalização das águas séculos antes dos romanos, este povo foi profundamente moldado pelo entendimento de como utilizar as águas em seu benefício26, e muito se deve a este conhecimento para manter a sua força sobre os inimigos políticos e militares. A água 24
Artigo publicado originalmente no dia 03/11/2017 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 25 Crenoterapia é o ramo da medicina que estuda o poder curativo das águas minerais. 26 Provavelmente muito deste conhecimento foi adquirido com outros povos dominados pelo império romano.
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tinha tamanha importância para os romanos que até foi criado o termo rival27 dada a disputa entre os moradores da Roma antiga por este elemento natural. A apropriação da água também foi essencial para o processo de soberania territorial de muitas nações. Não por acaso rios e lagos marcam as fronteiras de vários países e Estados. Cada vez mais nações necessitam dialogar sobre o consumo das águas que dividem as suas fronteiras. São 263 rios com o papel de dividir fronteiras entre nações28, com o potencial para gerar grandes conflitos econômicos, políticos e militares quando é necessário definir quem é o dono do patrimônio hídrico, pois a sua posse vai influenciar diretamente no desenvolvimento econômico e na autonomia política das nações envolvidas e nenhuma delas quer sair perdendo quando o assunto envolve influência econômica e soberania territorial. A indústria, seja ela qual for, depende visceralmente da água. Em algumas regiões, o transporte é feito pela navegação e isso inclui transportar remédios e alimentos. É possível afirmar que grande parte do lazer é ligado à água. Basta ver para onde vão muitos habitantes das grandes cidades nos finais de semana ou feriados: praias, rios, cachoeiras, lagos, açudes, piscinas públicas, etc. Sem falar nas culturas que são inspiradas pela relação que os diversos grupos humanos desenvolvem como os corpos de água próximos de onde residem. Água e poder caminham juntos há milênios e é por isso que cada vez mais os grupos econômicos interessam-se por este assunto. Possuir a água é ter poder político, social, cultural e, principalmente, econômico.
Água e poder no Brasil Aqui no Brasil não podia ser diferente a relação entre os agrupamentos humanos e a água. Os primeiros povoamentos aconteceram próximos aos mananciais de água doce. Alguns povos indígenas que habitavam as margens de rios e lagoas foram expulsos de seus territórios quando da invasão dos europeus. Um exemplo foi que aconteceu com alguns destes povos no Semiárido brasileiro. Vaqueiros, a serviço do latifúndio agropastoril, apossaram-se de várias fontes de água utilizadas pelos povos indígenas que
“A palavra “rival” (ou “rivalidade”) vem do latim rivus (corrente ou riacho); um rival, portanto, é alguém que da margem oposta usa a mesma fonte de água – daí a ideia de perigo ou ataque.” (PETRELLA, 2002, p. 60) 28 Segundo Ribeiro (2008, p. 94), baseado em dados da UNEP, “São 263 rios que tem seus cursos passando por dois ou mais países, sendo 69 na Europa, 59 na África, 57 na Ásia, 40 na América do Norte e 38 na América do Sul.” 27
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habitavam o sertão para matar a sede das boiadas que transportavam (GARCIA, 1984). O mesmo aconteceu por causa da extração de minerais em várias outras partes do Brasil. O desenvolvimento econômico industrial deve à água um papel muito importante. Pode-se afirmar que a água foi uma peça fundamental para a expansão do poderio europeu no Brasil. Isso aconteceu principalmente porque os engenhos de açúcar do litoral nordestino eram instalados próximos aos rios que faziam movimentar as rodas d´água que moíam as canas. Foram estas rodas d´água que alavancaram a indústria açucareira que enriqueceu Portugal. E foi esta mesma indústria uma das grandes poluidoras dos rios brasileiros. Hoje, esta relação entre indústria e poder econômico tem nas hidrelétricas um dos seus pilares. Atualmente, mais de 60% da geração de energia é de responsabilidade de empresas privadas. Como mais de 90% de energia elétrica brasileira vem da hidroeletricidade, isso significa muita água em mãos privadas, pois controlar a geração de energia elétrica é controlar as águas que a geram. Foi para prevenir este tipo de coisa que Getúlio Vargas sancionou, em 1934, o Código das Águas (Decreto 24.643) para o ordenamento do patrimônio hídrico, colocando a água como um bem público. É claro que sendo pública não significa que a água será acessível a toda a população. E disso sabemos muito bem no Brasil. Na última crise hídrica de São Paulo, por exemplo, enquanto os bairros periféricos sofriam com dias de racionamento, os bairros abastados continuaram com suas piscinas cheias e algumas indústrias continuaram pagando menos que o usuário comum pela água consumida em um caso típico de lucro privatizado e prejuízo partilhado pelos mais pobres. Também é o caso aqui de ressaltarmos a disputa pela água na agricultura. O agronegócio monocultor tem se apossado cada vez mais de águas subterrâneas e daquelas que correm pelos rios, como é caso do rio São Francisco. O Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco levará parte da água transposta para o agronegócio na região semiárida do Nordeste e beneficiará proprietários de empresas produtoras da fruticultura irrigada. Os grupos que detém o poder no campo estão conseguindo continuar o trabalho iniciado durante a Ditadura Civil-Militar e colocar o maior manancial do Nordeste em perigo. É essencial para os donos dos meios de produção possuir toda a rede produtiva envolvida, e a água, como já afirmamos acima, é parte essencial para produzir alimentos. Além do mais, este poder sobre a água impede 35
que os pequenos produtores possam competir na produção de frutas, legumes e verduras, gerando monopólios sobre a cultivo de diversas culturas alimentares. Controlar a água é controlar a vida pela sede e pela fome, já que todo o processo de produção de alimentos dela depende. Água e política Este tópico é bem conhecido dos brasileiros. A água como moeda de troca para manter grupos políticos no poder é uma tradição antiga em nosso país. O clássico samba “Lata d´água na cabeça”29 conta um pouco a história de Maria, representando tantas mulheres faveladas que vivem nos morros cariocas. Lá era necessário, para lavar roupa ou conseguir água para outros afazeres domésticos, subir os degraus do morro para encontrar as bicas que jorravam água. Foram as instalações dessas bicas que se transformaram em moeda de troca por votos, criando até mesmo a figura do “Político da bica d´água” que teve o seu maior expoente em Chagas Freiras. Seu estilo, a troca das bicas d´água por votos, dominou a política fluminense a ponto de ter sido criado o termo Chaguismo. O caso do Semiárido nordestino já é por demais estudado e conhecido, mas parece que ainda não condenado como deveria. Basta ver o caso do Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco e como mais uma vez a água é utilizada para ganhar votos por vários políticos de campos ideológicas diferentes. A onda de privatizações das empresas distribuidoras de água nos Estados brasileiros forçada pelo ex-presidente Temer não passa de outra política influenciada pelo Banco Mundial repetida e fracassada em várias partes do mundo. Já de olho neste mercado, foram reveladas que grandes empresas doariam dinheiro para campanhas de candidatos aos governos dos estados para que estes, caso eleitos, facilitassem a privatização das empresas30. É urgente colocar a questão privatização da água, e sua consequente posse por alguns grupos econômicos, na pauta política. Precisamos saber o que os candidatos Confira a composição de Jota Jr. E Luís Antônio: “Lata d’água na cabeça/Lá vai Maria, lá vai Maria/Sobe o morro e não se cansa/Pela mão leva a criança/Lá vai Maria/Maria lava roupa lá no alto/Lutando pelo pão de cada dia/Sonhando com a vida do asfalto/Que acaba onde o morro principia.” 30 O Grupo Odebrecht foi acusado de pagar 24 milhões de Reais para conseguir contratos na área de saneamento. Confira em https://oglobo.globo.com/brasil/odebrecht-teria-pago-ao-menos-245-milhoespor-contratos-de-saneamento-em-12-estados-21204422. Já o Grupo JBS é acusado de pagar propina a políticos brasileiros com o objetivo de entrar no mercado do saneamento básico. Confira emhttp://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1890211-jbs-pagou-propina-para-assumir-saneamentode-estados-diz-delator.shtml 29
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pensam sobre este assunto. Quem sabe poderiam assinar um
documento
comprometendo-se a firmar a água como um bem público e a recuperar nossos rios, que mesmos públicos, estão cada vez mais sendo tomados por empresas do agronegócio monocultor e grandes indústrias que dele retiram a água e a devolvem de forma imprestável.
Referências bibliográficas BRASIL. Código das águas. Brasília: Senado Federal. 2010. GARCIA, Carlos. O que é Nordeste brasileiro? São Paulo: Brasiliense, 1984. PETRELLA, Ricardo. O manifesto da água. Rio de Janeiro: Vozes. 2002. RIBEIRO, Wagner Costa. Geografia política da água. São Paulo: Annablume. 2008. REBOUÇAS, Aldo da Cunha; BRAGA, Benedito, TUNDISI, José Galízia. Água Doce no Mundo e no Brasil. In: REBOUÇAS, Aldo da Cunha, BRAGA, Benedito; TUNDISI, José Galízia (Organizadores). Águas Doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação. São Paulo: Escrituras Editora. 2002. pp. 1-37.
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9 Por que evitar beber água engarrafada?31 As exigências do mundo urbano fizeram com que o tratamento da água distribuída para as nossas casas passasse a ser uma política pública de saúde. Governos foram obrigados a melhorar e expandir os serviços de saneamento no início do século XX porque a qualidade da água consumida pelas populações de algumas cidades estavam aquém do aceitável de acordo com as autoridades sanitárias da época. Grande parte deste processo deve-se ao avanço da Ciência que resultou na conclusão de que existia uma relação entre algumas doenças e o consumo de águas contaminadas. O tratamento da água buscava garantir a diminuição destas doenças transmitidas por bactérias para as populações consumidoras. Mesmo com o avanço no tratamento da água, todos nós sabemos que nem sempre (mais frequente do que desejamos) a nossa água é bem tratada32. Resta a muitas pessoas apenas o pagamento por uma água que acreditam ser pura, a exemplo da água mineral engarrafada. A crença na pureza desta água alimenta a venda deste “produto” por empresas brasileiras e por multinacionais, gerando um enorme lucro com este comércio. O aumento exponencial de seu consumo contribui para o avanço da exploração desenfreada das fontes de águas minerais e, em alguns casos, fazendo com estas sequem, gerando prejuízos para às populações locais . O hábito de beber água engarrafada popularizou-se muito recentemente em parte pelo medo de que a água que abastece as nossas casas esteja contaminada pela falta de um tratamento adequado e seja impura. Por estarem armazenadas no subsolo, há uma crença de que as águas minerais estão protegidas33. Como bem mostra o vídeo A História da Água Engarrafada34, os consumidores podem, em alguns casos, estar consumindo uma água não tão pura como imaginam. Em outros casos, a água
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Artigo publicado originalmente no dia 15/05/2018 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 32 A cidade de Nova Iorque fornece água aos seus habitantes que não passa por tratamento químico. O investimento financeiro é feito na proteção da água das nascentes e dos rios que abastece aquela cidade e não na compra de produtos químicos para tratá-la. Veja interessante reportagem do Globo Rural em https://www.youtube.com/watch?v=paxGLzKjCyA. 33 Leia o artigo A química por trás da água de torneira e da água mineral no link https://carollinasalle.jusbrasil.com.br/noticias/114536054/a-quimica-por-tras-da-agua-de-torneira-eda-agua-mineral 34 O vídeo pode ser visto no Youtube no link https://www.youtube.com/watch?v=KeKWbkL1hF4.
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engarrafada não é mineral e sim água adicionada de sais35. Temos ainda as águas gaseificadas artificialmente, resultado de um processo industrial, diferente da água com gás natural. Os brasileiros estão entre os dez maiores consumidores deste “produto” em mundo que engarrafa mais de 300 bilhões de litros de água por ano. É um negócio que movimenta muito dinheiro e é bastante lucrativo. Como não ser lucrativo um “produto” que já vem pronto para o consumo e basta ser extraído, embalado e transportado para o local de venda? Mas não é em todo o mundo que o consumo de água engarrafada vem aumentando. Nos países nórdicos o consumo de água mineral caiu porque foi constatado que a qualidade da água da torneira é superior à engarrafada e estudos mostraram o desperdício de recursos naturais, entre outros, com o transporte da água até chegar aos consumidores (Pietila et al, 2013). Além disso, o descarte das garrafas plásticas utilizadas para o seu engarrafamento é uma verdadeira praga para os rios e os oceanos,36 sem contar que muitas das garrafas descartadas nos países do Norte do globo vão parar nos lixões de países pobres de outros continentes (Barlow, 2009). Apenas a questão dos plásticos que poluem o planeta já valeria como um bom motivo para consumir água engarrafada apenas quando não há uma outra opção ou por questões de saúde. Além dos motivos já elencados acima, muitas vezes um litro de água mineral custa mais do que um litro de gasolina. Motivações como essa fizeram surgir no Canadá o movimento Ban the Bottle para desencorajar o consumo de água engarrafada. No Brasil há um sítio eletrônico chamado Água na Jarra que incentiva o consumo de água tratada não engarrafada em eventos e restaurantes37. A cidade de Londres planeja instalar fontes de água pela cidade para evitar o consumo de água engarrafada e o descarte de plástico no meio ambiente. Mercado que movimenta bilhões no mundo, a água engarrafada entrou no rol de produtos muito rentáveis para grandes empresas. No caso brasileiro, este mercado é
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Confira algumas diferenças entre a água mineral e a água adicionada de sais no linkhttp://www.abinam.com.br/sites/arquivos/downloads/folhetoaguamineralxadicionadapaisagem.pdf. 36 Em 2009 a cidade de Concord, nos Estados Unidos, proibiu a venda de água mineral em garrafas com menos de 1 litro como uma forma de desestimular o consumo de água mineral, movimento iniciado em uma cidade da Austrália. Outras cidades e universidades estão seguindo o mesmo exemplo em vários outros países. Leia reportagem sobre Concord em https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/cidadeproibe-venda-de-agua-em-garrafas-com-menos-de-um-litro-7193409. 37 Confira o blog do Ban the Bottle em https://www.banthebottle.net/ e o sítio eletrônico do Água na Garrafa em http://www.aguanajarra.com.br/
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dominado ainda por muitas empresas locais, mas a tendência é que as grandes empresas transnacionais comecem a abocanhá-lo. Mas por que o interesse das multinacionais pelas nossas águas minerais? Com o avanço do conhecimento científico sobre os malefícios dos refrigerantes e outras bebidas industrializadas, muitas pessoas optam pelo consumo dos chás ou das águas minerais como uma opção mais saudável e isso afetou o faturamento das indústrias dos ramos de refrigerantes. O novo foco para estas empresas é a venda de água mineral, chás e sucos, já que a venda de seus produtos açucarados como os refrigerantes estão em queda em todo mundo dado a epidemia de obesidade38. O passo mais lógico do ponto de vista mercadológico para as empresas do ramo das bebidas foi adentrar em um mercado em ascensão e é exatamente isso que elas estão fazendo. A chegada das grandes empresas na exploração das fontes de água mineral também traz o medo da degradação com o meio ambiente. O caso mais famoso até agora no Brasil foi o das fontes das águas minerais de São Lourenço, em Minas Gerais, concedidas para exploração à Nestlé nos anos noventa. O conflito entre moradores daquele município mineiro e a multinacional suíça revelou que algo novo estava acontecendo no mercado das águas minerais nacionais. A Nestlé é acusada por moradores daquele município de causar dano ambiental porque algumas fontes secaram com a exploração exaustiva feita pela empresa, segundo alguns moradores da cidade.39 Não é apenas em São Lourenço que há conflitos envolvendo a exploração de água mineral em Minas Gerais. Organização sociais reclamam que o Governador do Estado, Fernando Pimentel, está tentando privatizar a CODEMIG –Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais – e as populações de algumas cidades do Sul de Minas denunciam que pode acontecer com as fontes de águas minerais daqueles municípios o mesmo que aconteceu em São Lourenço, já que a proposta do governador petista é repassar 49% das ações da CODEMIG para investidores privados e isso pode influenciar nas decisões sobre concessões para a inciativa privada explorar as fontes das águas minerais daquelas localidades, fato já consumado em Caxambu e Cambuquira recentemente quando estas tiveram algumas de suas fontes concedidas por 15 anos 38
O ótimo documentário Criança, a alma do negócio mostra quanto açúcar é consumido nos refrigerantes. Veja em https://www.youtube.com/watch?v=ur9lIf4RaZ4 39 Leia matéria do portal Pública de 2014 sobre o conflito envolvendo a Nestlé e moradores de São Lourenço em https://apublica.org/2014/04/em-guerra-contra-a-nestle/.
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(podendo ser renovadas por mais 15 anos) para empresas privadas. Araxá, Lambari e Contendas também estão na fila da CODEMIG para o mesmo processo. Vale destacar aqui o valor terapêutico dessas águas minerais. Estas cidades são visitadas durante todo o ano por turistas que querem beber ou aproveitar os banhos receitados como terapias para a cura de várias doenças.40 O medo de muitos que se opõem a exploração das nossas águas minerais por grandes empresas é que se repita o que já aconteceu com tantas outras das nossas riquezas naturais como o Pau-Brasil e o ouro, para citar dois exemplos. Como de praxe, empresas vem, lucram, exploram até a exaustão os recursos naturais e vão embora. É um ciclo vicioso que não para e move a roda da fortuna parando sempre no mesmo lugar, e este nunca é o da nação e dos mais pobres. Algumas coisas que podemos fazer para mudar esta situação é começar a denunciar a exploração desenfreadas das nossas águas minerais. Porém, o mais importante e urgente é parar de consumir água engarrafada, fazendo com que ela seja comprada apenas quando estritamente necessária. Muitas pessoas têm as suas garrafas permanentes que carregam com água filtrada quando estão na rua, no trabalho ou em eventos. Agindo assim protegeremos as nossas águas e deixaremos uma herança que não tem preço para as gerações futuras.
Referências Bibliográficas
BARLOW, Maude. El convenio azul: la crisis del agua y la batalla futura por el direcho al agua. Santiago: Chile Sustentable. 2009. Pietila et al, Serviços descenbtralizados: a experiência nórdica. In HELLER, Leo; CASTRO, José Esteban (Orgs.) Política pública e gestão de saneamento. Belo Horizonte: Editora UFMG; editora Fiocruz. 2013. pp. 294-312.
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Crenoterapia é o ramo da medicina que estuda o poder curativo das águas minerais.
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10 Da Indústria da Seca para a Indústria Seca41 Ouvi a expressão “Indústria Seca” pela primeira vez em uma palestra do saudoso Professor Paulo Rosa, geógrafo e docente da UFPB. Em um dos inúmeros eventos promovidos pelos grupos contrários ao Projeto de Transposição da Águas dos Rio São Francisco em 2008, na cidade de João Pessoa, ele fez referência ao fato de que enquanto o Semiárido sofre com estiagens e com a Indústria da Seca, lá acontece um enorme gasto de água com as indústrias têxtil e avícola. Já a cidade de Manaus, cercada por rios, produz eletroeletrônicos. Estes produtos são bem menos dispendiosos no quesito água e são produzidos na região amazônica por causa das vantagens fiscais com a Zona Franca de Manaus. O termo Indústria da Seca sempre esteve atrelado ao sofrimento do povo nordestino com as longas estiagens e ao ganho financeiro de alguns poucos com este fenômeno natural através da privatização da água por latifundiários e políticos (as vezes a são as mesmas pessoas). Não seria o momento de criar mecanismos para mudarmos da Indústria da Seca para uma Indústria Seca? De acordo com alguns estudos, para se produzir uma camiseta de algodão são necessários 2.700 litros de água42. Já para uma calça jeans chegar ao consumidor, são gastos em média 10 mil litros de água. Não por acaso, indústrias têxteis do Sul do Brasil enviam calças jeans para serem lavadas no Nordeste43. Além do gasto com os nossos recursos hídricos e a exploração de mão de obra barata, os rios nordestinos ficam poluídos com os produtos químicos necessários para colorir o tecido. Pensar uma industrialização que respeite os limites e as ofertas socioambientais da região e dialogue com os conhecimentos locais e suas possibilidades poderá revelar um sucesso lento, mas certamente duradouro, ao contrário do falso êxito rápido de indústrias que exaurem o meio ambiente e deixam um passivo ambiental. Um planejamento que abarque o potencial econômico reprimido por décadas de imposição de um modelo de industrialização importado e conivente com a degradação ambiental
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Artigo publicado originalmente no dia 29/08/2018 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 42 Confira no sítio eletrônico do waterfooprint no link https://waterfootprint.org/en/resources/interactivetools/product-gallery/ 43 Confira o ótimo documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar (Marcelo Gomes, 2019).
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trará os resultados almejados por milhões de moradores da região semiárida, valorizando a diversidade socioambiental e os talentos para o empreendedorismo como potencializadores de mudança das estruturas de desigualdades socioeconômicas da região. O Semiárido pode dar um salto ao inovar com o incentivo para a instalação de indústrias que utilizem pouca água. Um parque tecnológico para a produção de eletroeletrônicos ou similares com uma política de prevenção e fiscalização contra o desperdício hídrico pode ser muito mais eficaz do que uma Zona Franca do Semiárido, projeto que vem sendo aventado por alguns políticos nordestinos. Essa ideia pode vir a beneficiar apenas grandes conglomerados econômicos com isenção fiscal, como acontece atualmente em Manaus, e aumenta ainda mais a privatização da água em uma região marcado por conflitos hídricos. Sendo este um ano de eleição, é um bom momento para abrir a discussão sobre que tipo de desenvolvimento queremos. A escolha pode recair sobre um modelo onde todos saem ganhando ou um modelo predatório focado apenas no mercado e sem as preocupações ambientais que desejamos. O que está aí já experimentamos e não surtiu o efeito desejado. É hora de inovar!
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11 As águas brasileiras correm para o Neoliberalismo44 O Neoliberalismo é um pensamento econômico e é também chamado por alguns teóricos de Globalização ou Mundialização da Economia. Elaborado na cidade de Chicago pelo austríaco Friedrich Hayek e pelo estadunidense Milton Friedman, se espalhou para várias partes do mundo. Sua ideia principal é que tudo pode ser resolvido pelo mercado que, acreditam os seus formuladores, pode se autorregular. Teve como seus principais propagadores a ex-primeira Ministra da Inglaterra Margareth Thatcher e o ex-presidente Ronald Regan. Não por acaso a Inglaterra foi o primeiro país a privatizar o seu sistema de distribuição de água com Thatcher no poder. Claro que a água foi privatizada em várias partes do planeta antes, a diferença é que com o Neoliberalismo este fato passou a ser uma política governamental fomentada com a justificativa de que o Estado é incompetente para gerir suas riquezas naturais através das empresas estatais e a iniciativa privada pode administrá-las de uma maneira bem mais eficiente. Aliás, um dos motes neoliberais é a eficiência das empresas privadas. Claro que a crise financeira causada pelos bancos privados e os escândalos da Lava Jato que tiveram as empreiteiras como protagonistas na última década desmentem este fato. No entanto, ele continua sendo repetido. Uma empresa pública pode ser bem administrada e uma empresa privada pode ser um fracasso em termos de gestão e vice-versa. Exemplos abundam em muitos países. A questão não é ser privada ou não, mas sim o que se controla através da empresa, e neste caso é a água. Com o advento do Neoliberalismo no Brasil, grupos econômicos nacionais e internacionais têm se mobilizado para que possam ser alçados a protagonistas da distribuição da água com a privatização das empresas públicas estaduais e municipais de saneamento como acionistas ou através das Parcerias Público-Privadas – PPPs – desde os anos noventa. Embora o lobby venha se intensificando nos últimos anos, é fato que desde o governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) o discurso da necessidade de privatizar este setor público vem sendo alicerçado com leis elaboradas e promulgadas para facilitar este processo. O caminho foi trilhado com mais afinco no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e com menos 44
Artigo publicado originalmente no dia 07/10/2018 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais.
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intensidade nos mandatos do presidente ex-Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), mas não ausentes de todo nos governos petistas. Seu auge acontece atualmente com o atual ex-presidente Michel Temer (2016-) como detalharemos mais adiante. Durante as últimas décadas, o monopólio45 da distribuição da água pelos Estados e municípios brasileiros vem sendo lentamente repassado para empresas privadas. Atualmente já são 33 milhões de brasileiros atendidos em mais de 322 municípios por empresas privadas de saneamento46. É como se quase toda a população do Canadá recebesse água em suas torneiras por empresas privadas. A justificativa é que o problema da falta de saneamento para grande parte da população brasileira somente será resolvido com a entrada do capital privado, pois o Estado foi e é ineficiente para expandi-lo para um maior número de residências, segundo os defensores da privatização. A incompetência e a incapacidade do Estado são repetidas à exaustão praticamente como um mantra pelos neoliberais que apregoam que haverá a universalização do sistema com o repasse das empresas públicas para os grupos econômicos privados. Um dos possíveis resultados desta transferência de poder sobre a distribuição da água é que o monopólio privado poderá fixar, junto aos usuários, uma tarifa alta, fato este já ocorrido em países como a Bolívia no passado e a Inglaterra atualmente. Como alerta Peixoto (2013, p. 504), “Ressalve-se, porém, que nos casos de monopólio e oligopólio, não havendo instrumento de defesa da concorrência ou de regulação econômica, os preços naturais (custos econômicos) podem ser distorcidos por lucros exorbitantes que os produtores se atribuem.” Não há que se condenar o mundo dos negócios privados, posto que para se manter e se expandir no mercado as empresas necessitam aumentar os seus lucros em escala crescente. O aumento dos preços dos produtos vendidos e a diminuição dos custos é uma regra que se segue há séculos para tal intento. Se o aumento de tarifas já acontece algumas vezes de forma desmedida com o serviço prestado por empresas públicas, imagine-se com a visão mercadológica que imperará depois da privatização. Há que se ter em conta que uma empresa privada de 45
O monopólio da distribuição da água pelas empresas de saneamento é inevitável por causa do custo das redes. 46 Os dados fazem parte do Panorama 2018 of the private sector´s sanitation in Brazil . Cf. em http://abconsindcon.com.br/wp-content/uploads/2018/05/ABCON_PAN18_AF_pack_ingles_web_.pdf
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saneamento não terá um olhar para o interesse coletivo por ter outra relação com a água comercializada. Foi no governo neoliberal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que a água começou a ser vista como mercadoria de fato. Aquele presidente pregava que as privatizações guiariam o país para a globalização. Um dos seus primeiros atos a frente da presidência foi vetar o Projeto de Lei 199/1991 que previa um fundo para custear os investimentos em saneamento básico no Brasil (COSTA; RIBEIRO, 2013). O corte de gastos sociais que resultam na melhoria de qualidade de vida da população passou a ser uma regra nos seus dois mandatos. Além disso, com as pressões do Banco Mundial submetendo os seus empréstimos para infraestrutura a uma política de privatizações das empresas públicas, aquele governo passou a incentivar a concessão dos serviços de saneamento no Brasil. A criação da Agência Nacional de Águas – ANA – através do Decreto Lei 9.984, no ano 2000, estabeleceu a cobrança da água sob a responsabilidade dos comitês de bacias hidrográficas. Esta lei citou as palavras cobrança, ou termos a ela relacionados tais como compensação financeira, arrecadação, receitas provenientes e pagamento por treze vezes em seus artigos. Todos estes termos estão relacionados com a valoração econômica da água. Por outro lado, apenas uma vez a lei citou o termo conservação qualitativa dos recursos hídricos nestes mesmos artigos. Tal constatação demonstra qual era o real interesse na criação da ANA por aquele governo. Ainda é importante ressaltar o grande avanço na privatização do setor hidroelétrico no governo de Fernando Henrique e o fato de que uma empresa privada ou um conjunto destas ter o poder sobre a vazão dos rios não deixa de ser uma privatização das águas brasileiras. O bem coletivo representado pela água não pode estar atrelado a poucos interesses privados. Não há dúvida de que o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi o mais privatizante dos governos brasileiros e tentou inserir o país no Mercado da Água. Embora o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva tenha diminuído as privatizações, foi naquele governo que as normas para a Lei Federal 8.987/1995 (Lei de Concessões dos Serviços Públicos) foram disciplinadas pela Lei Federal Nº 11.079/200447, a chamada Lei de Parceiras Público-Privadas – PPPs – que segundo
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Confira a Lei das Parcerias Público-Privadas em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2004/Lei/L11079.htm.
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Costa e Ribeiro (2013, p. 481), “(…) permitem conciliar a participação privada com o controle público dos serviços, mas que, a depender da forma que venham a ser modeladas, podem transferir esse controle ao setor privado, como ocorre com as concessões plenas.” Mesmo tendo freado a política privatizante do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, este fato não se traduz em impedimento do Mercado da Água no Brasil. O advento das PPPs é na verdade uma vantagem para as empresas privadas, pois as garantias jurídicas asseguram o lucro desejado em uma espécie de “seguro investimento” dado nestas parcerias. A maior parte dos riscos serão assumidos pela parte pública da sociedade. Esta parece ser a tônica das PPPs. Não esqueçamos que concessão é ceder o que se tem para um outro. Na verdade, as PPPs são uma espécie de Cavalo de Tróia do Neoliberalismo. Nos últimos anos, o Neoliberalismo voltou a ser hegemônico a partir do governo Temer, embora nunca tenha desaparecido nos governos anteriores. Uma primeira tentativa de privatização da água no governo Temer aconteceu com a utilização do Banco Nacional de Desenvolvimento Social – BNDES- acionado para financiar grupos econômicos que queiram investir na privatização de empresas públicas de saneamento estaduais48. É o dinheiro público financiando a compra de empresas públicas por empresas privadas. Para quem prega que o Estado é incompetente, não deveria fazer sentido para os neoliberais tirar proveito do dinheiro público. Isso só prova que os neoliberais sabem a força do Estado e por isso o querem ao seu lado. A ideia de um Estado não intervencionista é apenas falácia, pois no Neoliberalismo ela faz intervenção, só que escolhe o lado das empresas privadas.
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Segundo o sítio eletrônico do BNDES , “Três projetos de concessão dos serviços de distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto, indicados pelo BNDES, foram aprovados pelo PPI para qualificação. Atualmente, os serviços estão sob a responsabilidade das seguintes empresas: Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro (CEDAE); Companhia de Águas e Esgotos do Estado de Rondônia (CAERD); Companhia de Saneamento do Pará (COSANPA). A partir da qualificação das três empresas, o BNDES iniciará o detalhamento dos estudos que levarão à modelagem das futuras concessões, em parceria com as equipes dos Estados. Acessível em https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/ondeatuamos/infraestrutura/infraestrutura/!ut/p/z1/rZLNboMwEISfJkdrLTAuHAltEzXQSv0DfIkMmOCq2A RM0vbp6-QYKUFV6ttq19_YOwMMMmCK7SGG6kV_7R1zug6DlZ3S_KE48X9s4tDL05u54S6EXHgHRiwUpnONJAXqhLDWqrBSDOWR8IMN7o VM6xtC3Ez8lYPMyxV3XMxmH40Y89P6wOyK2UFeS2wU_rCR0XgcUQKQpFPSYBqjqsioNTzXA7p 1BuZbeMzJ8T2Ppsaya3EzXkJF9KdFHt4U7pv7dZe_viD5ZTCyrlS4TIIlfiH44LvGCBzZHTJ1GysVhuGmQN15Cd2G6H5Md2y0KbKK2M-DKQ_Vekurb13WkfuaPaBEV_v61blN_CH8BICMg9Q!!/dz/d5/L2dBISEvZ0FBIS9nQSEh/
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O ex-presidente Michel Temer editou a Medida Provisória 844/2018 que abrirá ainda mais espaço para a privatização da água no Brasil. Em nota49 a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento – ASSEMAE - afirma que, “Além disso, a proposta afeta o subsídio cruzado, gera o aumento das tarifas de saneamento e interfere no poder de decisão do município sobre a regulação dos serviços.” Sem o subsídio cruzado, muitos municípios pequenos poderão ter aumento das tarifas pelos serviços de saneamento. Ademais, os pequenos municípios brasileiros “não lucrativos” podem ser preteridos no processo de licitação para os serviços de saneamento. Não há dúvida de que a MP 844/2018 intensificará o avanço do Mercado da Água no Brasil. Os últimos governos brasileiros vêm sendo algumas vezes mais, outras vezes menos alinhados com o Neoliberalismo e vêm fortalecendo um alicerce jurídico que facilita a solidificação do Mercado da Água em nosso país. Enquanto o governo brasileiro quer privatizar a nossa água, mais de duzentas cidades em diferentes partes do planeta retomaram o poder sobre as empresas de saneamento por perceberem que elas são essenciais para a saúde de suas populações e não pode ser administrada como uma mercadoria. Para os neoliberais, tudo pode ser vendido e comprado e todos somos apenas meros consumidores.
Referências Bibliográficas
COMBLIN, José. O Neoliberalismo: ideologia dominante na virada do século. Petrópolis: Vozes. 2000. COSTA, Silvano Silvério da; RIBEIRO, Wladimir Antônio. Um itinerário dos aspectos jurídicos-institucionais do saneamento básico no Brasil. In HELLER, Leo; CASTRO, José Esteban (Orgs.) Política pública e gestão de saneamento. Belo Horizonte: Editora UFMG; editora Fiocruz. 2013. pp. 179-195. PEIXOTOI, João Batista. Aspectos da gestão econômico-financeira dos serviços de saneamento básico. In HELLER, Leo; CASTRO, José Esteban (Orgs.) Política pública e gestão de saneamento. Belo Horizonte: Editora UFMG; editora Fiocruz. 2013. pp. 502524.
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Leia nota da ASSEMAE em http://www.assemae.org.br/noticias/item/3998-a-verdade-sobre-a-medidaprovisoria-844
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12 A privatização da água nas hidrelétricas brasileiras50 Estamos vivendo uma retomada radical dos anos noventa na questão das privatizações quando o governo de Fernando Henrique Cardoso promoveu a venda das estatais (a exemplo da Vale), a abertura do capital da Petrobras e tantas outros atos feitos com a promessa de melhora da situação do país. O avanço positivo alardeado pelo então presidente FHC não chegou e o país perdeu parte do seu patrimônio junto com as riquezas naturais. As nossas estatais não funcionam a contento como todos sabemos. Há muito o que aprimorar nas empresas administradas pelo governo e a corrupção e a má gestão são problemas sérios, independente do espectro político que assume o poder em Brasília. No entanto, não é vendendo o nosso patrimônio que se resolverão os seus entraves. Ao serem repassadas aos grandes grupos econômicos nacionais e às multinacionais, continuarão os mesmos problemas (os escândalos da Lava Jato mostraram que o mundo empresarial privado é também muito corrupto), acrescidos dos preços dos produtos mais altos, do desemprego maior e da perda da riqueza construída com os impostos dos brasileiros e das brasileiras ao longo das últimas décadas. Caminha-se a passos largos para a venda do que resta do setor hidrelétrico estatal com o atual governo. Privatizar este setor é o mesmo que privatizar a nossa riqueza hídrica. As hidrelétricas têm a gestão sobre a vazão dos rios onde estão localizadas, logo as suas águas estão sobre o seu comando. Se este poder estiver a cargo de uma empresa privada, isso configura influência desmedida com interesses do mercado sobre as águas brasileiras utilizadas por milhões de pessoas. Vale também refletir porque se constrói tantas hidrelétricas no Brasil. Muitas das nossas barragens foram construídas durante a ditadura civil-militar de forma impositiva51. Milhares de pessoas tiveram que ser removidas de suas casas, perderam suas propriedades e outras tantas morreram durante as suas construções. Tanto sofrimento foi consequência da união entre as multinacionais do setor e a ditadura.
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Artigo publicado originalmente no dia 29/04/2019 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 51 Leia artigo A ditadura militar criou o modelo de violação de direitos dos atingidos no link http://www.mabnacional.org.br/noticia/ditadura-militar-criou-modelo-viola-direitos-dosatingidos?fbclid=IwAR1s-AacrRo39doF6FO9XjgymUW2RBLZCy7_9R9qfKknFZZ5Cpq6hlwOclQ
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Estudiosos deste tema afirmam que grande parte da energia produzida no nosso país vai para a indústria pesada, principalmente a siderurgia. Segundo o economista Joan Martinez Alier (2007, p. 180), “A eletricidade de Tucuruí é vendida a pouco mais de um centavo de dólar por kWh para as fundições de alumínio. Em outras palavras, isso significa que o Brasil subvencionou o Japão e outros países importadores.” Essa indústria é grande consumidora de energia e impacta o meio ambiente, por isso os países ricos preferem deixar os seus passivos ambientais com as nações que ainda estão submetidas aos interesses do mercado internacional. O rio barrado paga o seu preço pela hidrelétrica nele localizada. Com o controle das comportas, o rio passa a ter uma vazão inconstante e suas margens enfrentam períodos de seca e inundação repentinas. Todos os seres vivos dependentes do rio estão sujeitos aos gestores da vazão que colocam em primeiro lugar a produção da hidroeletricidade. Privatização pode resultar na privação da água para muitas pessoas e animais que dela dependem. Outras consequências do barramento dos rios podem ser:52
-Espécies de peixes desaparecem ou diminuem; -Fuga dos animais do seu habitat natural e a consequente perda da biodiversidade; -A madeira que apodrece no fundo das barragens emite gazes que aumentarão o efeito estufa; -O alagamento de grandes áreas com a água da barragem causa a perda de ecossistemas; -A possibilidade de tremores de terras53na área das barragens; -Os sedimentos são depositados no fundo da barragem e não conseguem ir rio abaixo; -Perda na qualidade da água; -Grande perda da água pela evapotranspiração;54 -Problemas na economia local que é dependente da vazão natural do rio.
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Vários outros impactos são descritos no livro Silenced rivers: the ecology and politics of large dams (McCULLY, 2001). 53 Segundo matéria da National Geographic, “167 terremotos foram desencadeados pelo que o relatório chama de represamento de reservatórios de água ou construção de barragens. Esses são, de longe, os mais perigosos.”. Veja no link https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2017/10/estudocomprova-que-atividades-humanas-causam-terremotos-mortais. 54 Matéria da Folha de São Paulo afirma que a evaporação das águas armazenadas nas hidrelétricas brasileiras está em segundo lugar na perda de água no Brasil, atrás apenas da irrigação do agronegócio industrial. Leia a matéria completa em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/03/hidreletricasgastam-4-vezes-mais-agua-que-todo-o-consumo-humano-do pais.shtml?fbclid=IwAR3RoJZqzJJ5e5mDkSUFSQUtkMTW6Q1QkTQ_KdbFUUxirm9e5ohosWCWTj Y
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Nas últimas décadas milhares as represas foram construídas em nosso planeta, causando enormes impactos socioambientais. É tão grave o problema que existem movimentos sociais que nasceram por casa dele, a exemplo do Movimento dos Atingindo por Barragens –MAB. Grupos similares existem em várias outras partes do planeta, já que o problema se repete em outros países. Estes movimentos sociais são rotulados como grupos contrários ao “desenvolvimento” recebendo retaliação por parte do Estado. O surgimento destes grupos se dá, entre outros motivos, por causa do descolamento forçado das populações locais que gera, entre outras coisas, a perda dos laços comunitários. Outra grave consequência é a perda de monumentos históricos e da riqueza das paisagens naturais55. Além disso, lugares de grande importância histórica e/ou sagrada para as comunidades passam a não mais existir por serem tomados pelas águas das hidrelétricas. Uma das justificativas para a construção de novas barragens é a necessidade do aumento de produção de energia para a industrialização. No entanto, é necessário questioner se vale o preço pago com todas as perdas ou se há outras alternativas. Segundo o geógrafo Walter Costa Ribeiro, (2008, p. 51), “Uma queda d´água natural pode ser usada para produzir energia. Porém, a escolha de grandes projetos, que acabam causando impactos em larga escala, tem sido preferida.” Há algumas soluções para a diminuição destas grandes construções como as hidrelétricas de pequeno porte para suprir as necessidades de pequenas comunidades, a repotencialinzação das turbinas de algumas hidrelétricas mais antigas e o investimento em outras formas de produção de energia como a solar, a biomassa e a eólica. São caminhos que podem dar um outro rumo a matriz energética brasileira e não causar tantos danos a milhares de vidas que, quase sempre, só encontram o Estado brasileiro quando é para lhes causar prejuízos.567
Referências Bibliográficas ALIER, Joan Martinez. O Ecologismo dos Pobres. Rio de Janeiro: Contexto. 2007. MCCULLY, Patrick. Silenced rivers: the ecology and politics of large dams. New York. 2001. 55
A Barragem de Itaipu, por exemplo, deixou submersa o conjunto de cachoeiras conhecido como Salto de Sete Quedas, considerada a maior cachoeira em volume de água do mundo. Seu fim foi declamado nos versos do poema Adeus a Sete Quedes de Carlos Drummond de Andrade. 56 Para os interessados no assunto, o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB – disbonibiliza um bom material em seu sítio eletrônico www.mabnacional.com.br. Há também o Observatório das Barragens http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/.
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Porto-Gonçalves, Carlos Walter. O Desafio Ambiental. Rio de Janeiro: Record. 2007. RIBEIRO, Walter Costa. Geografia política da água. São Paulo: Annablume. 2008. SILVA, Flávio José Rocha da. Hidrelétricas e modelo de desenvolvimento. In Revista Cidadania e Meio Ambiente. N. 36. Ano VI. 2011. p. 18-20.
TRIERVEILER, Marco Antônio; COSTA, Gilberto Cervinski Luiz Dalla; ZEM, Eduardo. Energia a Serviço da Exploração Capitalista. In Direitos Humanos no Brasil: Relatótório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. 2004.
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13 O ainda desconhecido Semiárido brasileiro57 Para uma parte da população do Brasil, o Nordeste e o Semiárido são sinônimos. Muitos brasileiros não sabem que não há sequer um quilômetro de terra semiárida no Estado nordestino do Maranhão ou que há mais pessoas habitando o Semiárido mineiro do que o seu similar no Estado do Piauí. Minas Gerais tem quase três vezes mais o número de pessoas habitando a sua região semiárida do que o Semiárido sergipano. Outros desconhecem que parte daquela região está localizada no litoral do Ceará e do Rio Grande do Norte, ladeando praias paradisíacas, além de ter sido palco de um importante período econômico para o país devido à produção e exportação de algodão para a Europa durante a Revolução Industrial. Para muitos, é como se do Semiárido não pudesse surgir algo que não sejam galhos secos, cactos e seres magros com os rostos queimados do sol a vagar pelo país suplicando por comida e emprego ou sempre prontos a receber ajuda governamental, por menor que seja. São imagens petrificadas e resistentes a encontrar respostas que a contradigam, pois estão por demais fixadas no imaginário brasileiro. A chegada dos não nativos ao Semiárido nordestino aconteceu antes de outras regiões do interior do país e seguiu o curso dos rios (principalmente o Rio São Francisco). Foram vários os fatores que contribuíram para que esta nova população fixasse morada no interior daquela região. A doação e premiação, por parte da Coroa Portuguesa, de terras do sertão como agradecimento pelos serviços prestados àquele reino é um deles. A entrada do rebanho bovino, primeiro para o agreste, já que o gado não encontrava espaço no litoral em vista da tomada daquele espaço pelos canaviais, e depois para o Semiárido, através das margens do Rio São Francisco, foi sem dúvida a maior das causas a contribuir para a fixação de não indígenas naquela parte do Brasil. O gado solto na zona canavieira não era aceito, pois danificava as plantações de cana-deaçúcar. Além disso, era parte da dieta e meio de transporte de cargas nos engenhos e nas áreas de mineração. Com o aumento da população vinda do litoral, outros rios da região visitados pelos vaqueiros que viajavam com os rebanhos em busca de água, assim como também as serras que forneciam alimento para o gado nos meses secos do ano, começaram a ser 57
Artigo publicado originalmente no dia 30/08//2019 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais.
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tomados. Foram estes vaqueiros que difundiram as novas formas de agricultura na região, trazidas com os portugueses, até certo ponto inadequadas para aquela geografia, pois não a conheciam em profundidade como os nativos. As novas culturas por eles trazidas (milho, feijão, etc.) são totalmente dependentes do regime de chuvas, o que mantém a população em constante alerta sobre a precipitação pluviométrica anualmente. Em anos de estiagem prolongada, o fracasso da colheita é dado como certo. O Semiárido foi sendo tomado aos poucos, envolto por um processo de luta pela terra e pela água entre nativos e invasores. Um processo que culminou em muitas batalhas de resistência por parte dos povos indígenas, tendo como consequência a dizimação de milhares de nativos depois de décadas de luta, sendo, provavelmente, a mais famosa delas a Guerra dos Bárbaros58. Uma das razões era que estes não colaboravam com a cultura da acumulação de riquezas trazida com os europeus. A privatização da terra e da água sempre esteve presente na história do Semiárido. A distância das grandes cidades causada pela falta de estradas e o consequente isolamento em relação ao litoral,59 onde se encontram as capitais, culminaria com o nascimento de uma “cultura sertaneja”. A distância dos centros urbanos criou uma economia praticamente autossustentável com cultivares que eram muitas vezes proibidos na região canavieira, onde a prioridade era a produção do açúcar. Os vaqueiros e as suas famílias, por necessidade, tornaram-se também agricultores e plantavam culturas para o próprio consumo. Uma realidade que somente começaria a ser mudada na segunda metade do século XIX com a chegada da estrada de ferro para o escoamento da produção agrícola. A partir da segunda metade do século XIX sugiram as primeiras propostas de transferência da população sertaneja para a Amazônia para trabalhar na extração da borracha. O número de sertanejos que lá pereceram por causa das epidemias, da fome e devido à não adaptação ao clima amazônico nunca será conhecido. Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram nas viagens feitas nos barcos a vapor entre o litoral nordestino e a Amazônia. Muitos dos que viajavam adoeciam durante o trajeto e eram 58
Para os gregos, Bárbaro era todo aquele que não fosse parte do seu povo. Esta designação continuou a ser utilizada pelos romanos durante o período em que invadiu vários territórios na Europa e na Ásia e acabou sendo adotada pelos portugueses quando da revolta indígena no Semiárido contra a invasão dos europeus em suas terras. (ALBUQUERQUE JR., 2012). 59 Este distanciamento seria quebrado com a chegada das locomotivas movidas a vapor, que foram responsáveis por um grande desmatamento na caatinga (DUQUE, 1982). No entanto, foram elas também que salvaram muitas vidas nos períodos de grande estiagem através do transporte de alimentos para a população sertaneja e da locomoção para os que deixavam o sertão.
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abandonados próximos aos portos para que não contaminassem os outros viajantes. Há, neste fato, certa semelhança com os navios que trouxeram os africanos escravizados para os canaviais brasileiros quando os portugueses jogavam ao mar os africanos que estivessem doentes. Na primeira metade do século XX, a ideia de relocar a população do Semiárido foi transformada em política de Estado como forma de mitigar os estragos causados pelas secas. As propostas ganharam corpo e por décadas o governo federal incentivou a ida dos sertanejos para a região da Amazônia ou para assentamentos em regiões com pouca densidade populacional dentro da própria região nordestina, como em áreas do Maranhão. É como se aquelas pessoas fossem peças facilmente removíveis para centenas de quilômetros de distância dos lugares onde estavam por gerações e como se tal ato não desencadeasse problema algum. Muito sofrimento foi causado ao povo sertanejo pela concentração da posse da água por uns poucos no Semiárido. É a partir de seus limites e não de suas potencialidades e possibilidades que o Semiárido é apresentado sempre carente de políticas hídricas para o seu “desenvolvimento”. O número dos que lá habitam desmentem a ideia de uma região sem vida, pois são mais de 22 milhões de habitantes. Alguns dos Estados nordestinos chegam a ter mais de 50% de sua população total vivendo no sertão, embora esta porcentagem venha diminuindo nos últimos anos por razões diversas. O que diferencia o Semiárido brasileiro de seus similares no planeta é que a maioria das regiões semiáridas em outras partes do mundo possuem uma precipitação pluviométrica média anual de 80 a 250 mm e no sertão nordestino esta média é de 300 a 800 mm/ano, com a característica de que acontecem entre um período de três a cinco meses durante o ano, podendo variar de região para região geográfica mesmo dentro do chamado “Polígono das Secas”. Esta variação e imprevisibilidade podem, inclusive, causar enchentes em anos mais chuvosos. Seu subsolo é 70% cristalino, o que faz com que grande parte da água não seja armazenada e escoe pela superfície (REBOUÇAS, 1997). Com relação a água que é depositada em reservatórios naturais ou artificiais como os açudes, há que se levar em conta o grande índice de evapotranspiração decorrente das mais de 3.000 horas de sol a cada ano. As políticas governamentais para o Semiárido sempre foram pensadas, na sua grande maioria, para os grandes proprietários da região, promovendo a privatização da água. Prevaleceu a ideia de “combate” ao clima e uma negação do modo de viver do 55
sertanejo pensado como atrasado. A autonomia e o conhecimento dos habitantes do Semiárido sempre foram negados nos momentos de decisão sobre como lidar com aquela região. Isto pode ser facilmente comprovado com os megaprojetos hídricos vendidos como a melhor oferta de “desenvolvimento” para o sertão ao longo do último século. Embora a distribuição e o acesso à água de qualidade seja o tópico central quando o assunto é o Semiárido, e esta distribuição seja imprescindível para mudar o quadro atual como atesta o trabalho realizado por várias organizações com a construção de cisternas de placa e o seu impacto positivo na melhoria da saúde dos sertanejos , ela por si só não resolverá problemas como a concentração de renda. A ajuda governamental com sua visão tecnocrática e negadora dos conhecimentos locais nunca buscou resolver as raízes das desigualdades sociais do Semiárido e sempre culpou o clima pela sua existência. Sem confrontar estas questões, e elas não têm sido combatidas nos últimos governos, dificilmente o Semiárido poderá trazer à luz todos os seus potenciais socioeconômicos e continuará a manter a imagem de região problema do Brasil.
Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Nordestino: a invenção do “falo” – uma história do gênero masculino (1920-1940). São Paulo: Intermeios, 2013. BRANCO, Samuel Murgel. Caatinga: a paisagem e o homem sertanejo. São Paulo. Moderna. 2003. COSTA, José Jonas Duarte da. Sobre a transposição do rio São Francisco. In: MENEZES, Ana Célia Silva; ROCHA, Flávio. A Resistência à transposição do rio São Francisco na Paraíba: histórias em defesa da terra das águas e dos povos do Nordeste. João Pessoa: Sal da Terra. 2010. p. 35-43. DUQUE, José Guimarães. O Nordeste e as lavouras xerófilas. Mossoró: Esam. 1980. PÁDUA, José Augusto. Um país e seis biomas: ferramenta conceitual para o desenvolvimento sustentável e a educação e ambiental. In: PÁDUA, José Augusto (Org.). Desenvolvimento, justiça e meio ambiente. Belo Horizonte: Editora UFMG: Peirópolis. 2009. p. 117-150. SILVA, Nordeste: imagem real ou fabricada. In Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v. 49, n. 2, jul./out., 2018, p. 575–600. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Record. 1980. 56
REBOUÇAS, Aldo. Água na região Nordeste. In Revista de Estudos Avançados. Vol. 11. n. 29. Jan-Abr. 1997. p. 127-154. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8976. RIBEIRO, Manoel Bomfim Dias. A potencialidade do Semi-Árido Brasileiro. Brasília: Editora Qualidade. 2007.
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14 Água e Sínodo da Amazônia60 A Ciência tem mostrado repetidamente a importância da floresta para manter o ciclo da água em todo o planeta. O des-matamento afeta todo o ciclo ecossistêmico presentes nos rios e lagos. Com a água tornando-se um dos assuntos mais importantes do século, quem em sã consciência imagina que devastar as terras amazônicas é um bom negócio? Sem a floresta não teremos água no futuro na mesma quantidade que temos atualmente por que as duas estão intimamente interligadas para a mútua sobrevivência. Água e terra são frequentemente pensadas como coisas separadas porque muitos de nós ainda percebemos erroneamente os vários elementos da natureza desconectados entre si. Um Territó-Rio só existe por causa da harmonia entre os seus elementos naturais; entre a terra e o rio. Parte da floresta amazônica brasileira está sendo des-matada por grandes corporações do Canadá, da Europa, do Japão e dos Estados Unidos direta ou indiretamente. Algumas das companhias madeireiras terceirizam o serviço do des-mate para empresas brasileiras e assim podem escapar da fiscalização e das denúncias de desmatamento ilegal naquela área. Comunidades são afetadas já que muitos dos seus habitantes sobrevivem da extração da borracha das seringueiras ou da venda das frutas amazônicas. Sem as árvores, não há trabalho para as famílias que acabam migrando para as favelas de grandes cidades como Manaus e Belém. A exploração desequilibrada da natureza força as pessoas a deixarem não apenas o lugar onde cresceram, mas também uma maneira tradicional de viver na floresta que foi desenvolvida por gerações e que fazem delas os Povos das Florestas e das Águas. Cientistas também vêm demonstrando que a presença humana, iniciada com as migrações dos grupos originários, foi muito importante para o aumento da biodiversidade do bioma da Amazônia. Isso prova que o problema não é ter seres humanos vivendo nas matas, mas como eles interagem com o meio onde vivem. Certamente o modo de vida dos Povos das Florestas e das Águas não é o mais perfeito, mas é o menos prejudicial àquela região.
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Depois de des-matar e exportar a madeira, a terra recebe o pasto para o gado ou a plantação de soja. Ironicamente, o Brasil se tornou um dos maiores produtores de soja no planeta sem que a sua população seja uma consumidora desta leguminosa. A floresta também está sendo ameaçada pela extração de minério. Multinacionais estão explorando os mais diversos tipos de minérios na Amazônia, principalmente no Pará, causando prejuízos às comunidades locais através da poluição das suas terras e dos seus rios e igarapés. Os produtos químicos jogados nestes mananciais levariam décadas para desaparecer se o trabalho de limpeza fosse iniciado agora, o que não é, infelizmente, o que está acontecendo. Some-se aos problemas citados acima a construção das grandes barragens a exemplo de Belo Monte. Elas desviam o curso dos rios interferindo na vida aquática, causando mudanças no ecossistema local, além de deslocar milhares de pessoas causando grandes prejuízos na vida econômica, social e cultural dos moradores afetados pela obra direta e indiretamente. Não esqueçamos que 70% da água doce no Brasil está naquela região e existem muitas empresas do Mercado da Água de olho nos mananciais amazônicos. Com a onda de privatização das nossas águas, perder o controle sobre a Amazônia é uma questão de soberania. Em meio a toda esta crise, o Sínodo da Amazônia acontecerá em Roma entre os dias 6 e 27 de outubro com delegados e delegadas de várias partes da Amazônia do Brasil e de outros países da região para discutir vários destes problemas. Será uma grande oportunidade para mostrar ao mundo porque pessoas como Chico Mendes e Irmã Dorothy Stang eram tão apaixonados pela sacralidade da Amazônia com a presença milhões de espécies de animais e vegetais e pelos povos que lá habitam. Será também uma oportunidade para chamar a atenção para o fato de que muitos políticos que estão no poder tomando decisões cruciais para aquela área do planeta não têm o conhecimento necessário para tal por não entenderem a dinâmica da natureza amazônica e, por causa disso, estão promovendo desastrosos projetos de desenvolvimento. Por outro lado, há também certos ambientalistas que pregam o despovoamento naquela região como uma forma de preservá-la como se a Amazônia fosse um santuário intocável. São extremos que não respeitam a realidade dos Povos das Florestas e das Águas e suas formas tradicionais de viver. Estes Povos já dialogam com as tecnologias e sistemas modernos de produção sem desequilibrar o meio ambiente. 59
Sem dúvida, o ideal é promover cada vez mais o diálogo sem imposição do poder econômico e a interferência de “alienígenas” com os seus kits de ferramentas importadas com soluções mágicas. A autonomia daqueles Povos nas decisões sobre o lugar onde vivem é essencial para a preservação da Amazônia com as suas riquezas.
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15 Água: dessacralizando para privatizar61 Para muitos Povos Originários, tudo é sagrado. Isso não significa que deixem de tirar da natureza o que é necessário e até mesmo algum excedente para a sobrevivência. Aqui não queremos afirmar uma superioridade dos Povos Originários ou romantizar a sua relação com o mundo natural (nenhum grupo social é perfeito) frente a nossa sociedade consumista, mas apenas destacar um outro modo de vida que necessita ser respeitado. Cada cultura sacraliza a natureza de uma forma diferente e a dimensão do sagrado é muito subjetiva para merecer um julgamento de quem quer que seja. Algumas sociedades modernas também sacralizam lugares, objetos, etc. a depender de questões culturais e religiosas. Esta sacralização pode até gerar lucro como, por exemplo, com a venda da água do rio Jordão ou de pedras com o poder de energizar pessoas. Muitos querem possuir um elemento natural que para eles é sagrado e para isso se permitem por ele pagar. Novamente é preciso ressaltar que aqui não há um julgamento sobre estes fatos, mas uma constatação da realidade. O caso da sacralidade da água é único já que é um elemento sagrado para os Povos Originais e para religiões dos mundos ocidental e oriental. É parte até mesmo dos mitos de origem de muitos grupos religiosos e tem importância angular para estes nas suas cosmovisões. Talvez seja o único elemento natural que une tantas culturas e povos em diferentes ritos e rituais em todos os campos do planeta. No livro Gênesis, da Bíblia judaico-cristã a água tem função dupla: ela traz riqueza com os rios do mítico paraíso dos primeiros capítulos e é usada para castigar os humanos com o dilúvio. É, portanto, uma força poderosa capaz de mudar os cursos da vida. Há também os orixás das águas como Oxum, os santos católicos ligados aos rios como Nossa Senhora Aparecida, o banho sagrado no rio Ganges para os hindus da Índia, o batismo nas religiões cristãs de todas as vertentes e os mitos indígenas ligados ás águas como a Mãe D´água. É possível ter uma lista enorme de outros exemplos da importância da água para a formação das espiritualidades mundo afora.
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Artigo publicado originalmente no dia 04/12/2019 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais.
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Em áreas áridas e semiáridas a água adquire um valor para além do consumo e produção de bens, pois a relação entre ela e os seres humanos habitantes dessas regiões geográficas está ligada por uma realidade em que ela, a água, é um bem que deve ser obrigatoriamente partilhado, pois todas pessoas que lá habitam sabem as dificuldades para encontrá-la. Ela torna-se elo de comunhão, principalmente entre os mais necessitados socioeconomicamente, e a sua sacralidade está também conectada à percepção de sua escassez e a importância que isso adquire no cotidiano dos moradores daquelas áreas. A sacralidade da água pode ser uma forte aliada na luta contra a sua privatização. Quem tem coragem de comercializar o que é sagrado? Alguns podem argumentar que lideranças religiosas vendem água “sagrada” para os seus fiéis, mas há que se ressaltar que a quantidade é mínima se comparada com o que é comercializado pelas Transnacionais da Água ou ao que é tomado pelo agronegócio industrial. Uma das estratégias do Neoliberalismo é a dessacralização da água que passou a ser chamada de recurso hídrico e assim pode ser comercializada mais facilmente. As palavras não surgem do nada e possuem um sentido político por parte de quem as dissemina. Listada como recurso, a intenção é equipará-la ao petróleo ou outros minérios que se tornaram produtos comercializáveis. Se antes a água tinha grande valor de uso mas não de troca monetária, agora ela já está nas Bolsas de Valores mundo afora e é cada vez mais difundido que ela tem um valor econômico. Uma pergunta que se deve fazer é: como se valora economicamente a água? É inquestionável que nada se paga para “produzi-la” na natureza, mas sim pela captação, o seu transporte, tratamento, armazenamento e distribuição. Não se paga pela água que chega às nossas torneiras, mas pagamos uma taxa de serviço para que ela nos chegue em boas quantidade e qualidade (embora esta realidade esteja mudando em muitos lugares do Brasil). É bem verdade que a água sempre foi lucrativa para alguns, especialmente em tempos de seca, mas esta privatização é ação de indivíduos ou grupos que se aproveitam da situação vulnerável de populações dependentes e os governos, muitas vezes, vieram em socorro destas populações. Nas últimas décadas o que assistimos é justamente o oposto: governos promovem a privatização da água como política pública e ainda alegam que isto facilitará a sua chegada para todas as pessoas.
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O que antes mediava a relação com o transcendente, hoje dá lucro às Transnacionais da Água. Empresas públicas de saneamento que abriram o capital, a exemplo da Sabesp, priorizam o pagamento dos dividendos aos acionistas em detrimento do investimento na melhoria e expansão do serviço e do atendimento, principalmente nas áreas mais carentes. A Tarifa Social que poderia mitigar a situação dos milhões que não têm acesso a água de boa qualidade (principalmente nas periferias das grandes cidades e zona rural do Brasil) não consta da agenda da maioria dos governantes. A dessacralização da água traz um desafio para todos e todas que acreditam que a água não é mercadoria e por isso não tem preço.
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16 Rio Opará: um rio marcado para morrer?62 Está secando o velho Chico. Está mirrando, está morrendo. Já não quer saber de lanchas-ônibus nem de chatas e seus empurradores. Cansou-se de gaiolas e literatura encomiástica e mostra o leito pobre, as pedras, as areias desoladas onde nenhum minhocão ou cachorrinha-d’água, cativados a nacos de fumo forte, restam para semente de contos fabulosos e assustados. O trecho acima, retirado do poema
Águas e Mágoas do Rio São
Francisco e escrito há cerca de quarenta anos por Carlos Drummond de Andrade (o mais mineiro dos poetas) não deixa dúvidas: há décadas o Rio São Francisco sofre com ações antrópicas tais como barramento para a produção de hidroeletricidade, devastação das suas matas ciliares, a retirada exagerada de suas águas para a irrigação e a morte dos seus afluentes. Na verdade, esta história de desrespeito com aquele rio começou há séculos. Primeiro foi o seu nome, porque há que nominar o que se deseja dominar, como se o objeto apropriado passasse a existir apenas após a nova nomenclatura. Assim aconteceu quando os invasores europeus chegaram ao Rio São Francisco e este era chamado pelos povos indígenas de Opará, que significa Rio-Mar, dada a admiração que aqueles povos tinham pela sua dimensão63. Por um tempo ele chegou a ser chamado de Rio dos Currais devido ao número destes em suas margens no processo de povoamento do Semiárido pelos não indígenas no período áureo da pecuária sertaneja. Ficou conhecido como o Rio da Unidade Nacional (outro de seus batismos) por sua importância econômica e social unindo vários Estados brasileiros. É também chamado carinhosamente pelos povos que lá habitam de 62
Artigo publicado originalmente no dia 07/12/2019 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 63 Há uma outra definição para a palavra tupi Opará. Segundo Siqueira (2008, p. 193), um dicionário jesuíta de Tupi de posse do bispo católico emérito de Juazeiro/BA, dom José Rodrigues de Souza “[…] dizia que Opará é rio “sem rumo definido, de limite incerto, errático.” Sem entrarmos no mérito do real significado desta palavra, o certo é que os invasores liderados por Américo Vespúcio rebatizaram o rio com o nome do santo italiano Francisco de Assis em 4 de outubro de 1501, data de aniversário de nascimento do referido santo, marcando o primeiro desrespeito com a cultura dos povos que habitavam aquela região.
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Velho Chico. Este carinho se dá porque a grande maioria dos seus ribeirinhos é composta de pessoas menos favorecidas economicamente que encontram em suas águas alguma forma para o sustento econômico. Depois recebeu o epíteto de Rio da Integração Nacional, mesmo quando continuou sendo cenário para a expulsão de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e vazanteiros de suas ilhas e margens e foi tomado pelos projetos de “desenvolvimento” do Vale do São Francisco, causando a desintegração de povos, culturas e famílias que lá habitam. Em dias atuais, a vazão do São Francisco representa mais 60% das águas do Nordeste64 e em sua bacia habitam mais de 14 milhões de pessoas. É uma população maior do que a de muitos países como a Bolívia ou o Equador, por exemplo. Imaginar a vida de milhões de pessoas que há gerações lá vivem sem a abundância generosa daquele manancial é quase impossível. O Velho Chico é facilitador do comércio entre as regiões que formam a sua bacia hidrográfica através da navegação e é disseminador de cultura através de um diálogo alinhavado pelo comércio, pelas artes e pelas espiritualidades entre os ribeirinhos que com ele desenvolvem uma relação enraizada no sustento econômico e no respeito para com a dinâmica do seu caudaloso e constante percurso que o leva ao Oceano Atlântico. Além disso, acolheu milhares de escravizados e escravizadas que escaparam das torturas da escravidão brasileira e vivem em comunidades quilombolas. Além disso, ele é motivo de inspiração para muitos cineastas, poetas, cantores, cantadores/repentistas, cordelistas e contadores de histórias. Recentemente, tem servido como cenário para o cinema e a televisão na produção de suas expressões artísticas65. Mas mesmo com toda a sua importância para o Brasil…
Segundo Coelho (2005, p. 13), “A área de sua bacia é de quase 640 mil quilômetros quadrados, que correspondem a cerca de 7,5% do território. Atravessa mais de quinhentos municípios, em 5 Estados e sua bacia alcança também Goiás e o Distrito Federal.” 65 No campo da música, um exemplo é o CD Salve São Francisco (2011), do cantor Geraldo Azevedo. A Revista Globo Rural selecionou mais de trinta canções tendo o Velho Chico como tema que podem ser conferidas no link https://revistagloborural.globo.com/Noticias/Cultura/noticia/2016/03/33-musicas-quehomenageiam-o-rio-sao-francisco.html. No entanto, o número é certamente muito maior. No cinema, ver, por exemplo, Espelho D’água – uma viagem no Rio São Francisco com direção de Marcos Vinícius Cesar(2004) e Deus é brasileiro com direção de Cacá Diegues (2003). Na televisão, além da minissérie Amores Roubados ( 2014) há a novela Velho Chico (2016), ambas veiculadas pela Rede Globo, somente para citar alguns exemplos. 64
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“Está secando o Velho Chico”
O menino e Velho Chico viagens Mergulham em meus olhos Barrancos, carrancas, paisagens Francisco, Francisco Tantas águas corridas Lágrimas escorridas, despedidas saudades Francisco meu santo, a velha canoa Gaiolas são pássaros Flutuantes imagens deságuam os Instantes O vento e a vela Me levam distante Adeus velho Chico Diz o povo nas margens A canção Francisco, Francisco composta por Capinam e Roberto Mendes e que ganhou vida na voz da cantora Maria Bethânia bem traduz o fascínio que a população são franciscana sente por aquele rio. No entanto, apesar de todo o encanto que exerce, o Velho Chico está oferecendo mais água do que pode e sofre com o desmatamento para fornecer madeira para as carvoarias, com a poluição dos esgotos e os grandes projetos de fruticultura irrigada. As consequências de tantas intervenções humanas já são visíveis e sentidas como: 1. Queda de barreiras aterram o rio e dificultam a navegação nos trechos onde esta ainda ocorre; 2. As barragens represam a água para a produção de eletricidade modificando a vida natural do rio e prejudicando a migração dos peixes; 3. A cunha salina adentra o rio por mais de cinquenta quilômetros em certas épocas do ano, desacreditando a famosa canção O Riacho do navio composta por Luiz Gonzaga e Zé Dantas e cantada por Gonzaga que diz: “O rio São Francisco vai bater no mei do mar.” A mineração foi sempre um grande atrativo para a sua exploração, especialmente no trecho que corta os Estados de Minas Gerais e Bahia66. Suas águas também são destinadas atualmente para a irrigação de cana-de-açúcar, monocultura do eucalipto, fruticultura, indústrias, carvoaria, lazer e pesca. São inúmeros os grandes projetos de irrigação que passaram a compor a paisagem de suas margens nas últimas décadas, explorando as suas águas. Some-se a todas estas atividades o fato de que nos últimos 66
De acordo com Siqueira e Zellhuber (2007), 20% da atividade atual de exploração mineral oficial no Brasil acontecem no Rio São Francisco.
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setenta anos foram construídas barragens para a produção de energia hidroelétrica, responsáveis por um violento processo de expulsão dos moradores locais de suas terras, incluindo vários povos indígenas, e sendo esta a intervenção humana que mais impactou a bacia do Rio São Francisco (SIQUEIRA; ZELLHUBER, 2007). O Rio São Francisco sobreviverá a tantos e múltiplos usos de suas águas para fins econômicos como a navegação, indústria, irrigação, abastecimento humano, esgotos, pesca, lazer e produção de energia hidroelétrica? Não bastasse todas estas atividades de exploração socioeconômicas em sua bacia, o Velho Chico foi convocado a partilhar as suas águas para suprir necessidades distantes67. A Transposição do Velho Chico68 A água sai de Cabrobró Parnamirim, Salgueiro, Até Jati. Deixe o rio desaguar doutor. O São Francisco, com sua transposição No meu nordeste O progresso vai chegar Se é que o Brasil Agora está na mão certa Na contramão O meu sertão não vai ficar. Priorize esse projeto, seu doutor E deixe o rio desaguar. Esse projeto Centenário vai vingar E com certeza Será nossa redenção Vamos ter muitos Hectares de terra, tudo irrigados É água pra mais de um milhão. O Jaguaribe tá sequinho, seu doutor Rio Piranhas, Apodi e Castanhão.
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Em 2017 o Velho chico teve a menor vazão em 38 anos . Confira matéria do Jornal Nacional da Rede Globo em http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/07/rio-sao-francisco-tem-vazao-reduzida-aomenor-nivel-em-38-anos.html. A crise fez surgir a Sala de Crise do Rio São Francisco que atualmente foi substituída pela Agência Nacional de Águas – ANA – pela Sala de Acompanhamento da Operação do Sistema Hídrico do Rio São Francisco. Confira no link https://www.ana.gov.br/noticias/reunioes-deacompanhamento-da-operacao-do-sistema-hidrico-do-rio-sao-francisco-seraoensais?fbclid=IwAR0gHN3IHYllmd3WeuJVt74ZruYwuMK3MGBwOmU96ZWxNCJTNw194NJo02A 68 Cf. o artigo Grandes Obras no Nordeste: o caso do Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/443/pdf
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A canção Deixe o rio desaguar, de Aracílio Araújo, que ganhou a voz do cantor paraibano Flávio José, não deixa dúvidas de que existe a crença de que as águas transpostas do Velho Chico para algumas áreas dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará é certeza de progresso para o Nordeste. Uma reflexão um pouco mais aprofundada sobre o fato de que somente a chegada da água sem uma mudança nas estruturas socioeconômicas não surtirá o efeito esperado, talvez coloque sob suspeita esta confiança. Basta ver que as capitais litorâneas nordestinas com os seus rios e estuários estão cercadas pela desigualdade social. Embora esteja em curso um projeto de revitalização do Velho Chico, fruto das reivindicações dos movimentos socioambientais, NGOs e Pastorais Sociais ligados à questão da preservação do rio São Francisco, percebe-se a falta de uma política pública que concretize o que é realmente necessário para atender as reais necessidades de preservação daquele manancial. Um dos grandes benefícios da polêmica sobre a transposição foi o de alertar a população brasileira para a lenta morte dos nossos rios e, em especial, a do Velho Chico. O Brasil não tem uma política pública para a revitalização de seus rios69. Para piorar, o cerco fecha-se cada vez mais para os rios nacionais com as leis ambientais sendo desrespeitadas pelo atual governo.
Conclusão Corre um boato na beira do rio Que o velho Chico pode morrer Virar riacho e correr Pro nada Viajando por temporada Quando a chuva do meu Deus Dará chegar, dará chegar Já dizia Frei Luiz de Xiquexique Quão chique é ter Um rio pra nadar a correr Quão chique é ter Um rio pra pescar e pra beber Não deixe morrer Não deixe o rio morrer Se não que será de mim Que só tenho esse rio pra viver 69
Segundo matéria do Jornal O Estadão de 9 de outubro de 2019, o Brasil tem mais de 83 mil km de rios poluídos. Confira em https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-tem-mais-de-83-milkm-de-rios-poluidos-aponta-agencia-nacional,70003042816
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Que será Que será de mim Que será de José serafim Qual será o destino do menino Que nasceu e cresceu aprendendo a pescar surubim Não deixe morrer Não deixe o rio morrer Se não morre o ribeirinho De fome, de sede, de sei lá o quê Se não morre o ribeirinho De fome, de sede, de sei lá o quê.” Os bons artistas, visionários que são, anteveem a tragédia que se anuncia se nada for feito. A canção Boato ribeirinho, uma composição de Wilson Duarte, Wilson Freitas e Nilton Freitas, poderia ser o resumo de todo este artigo, pois a arte é a suprema professora no ensino das coisas que devem ser expressas de forma clara. Como viverão milhões de pessoas que dependem daquele rio para a sobrevivência? Muitas destas pessoas já foram afetadas pelas hidrelétricas, pela morte das lagoas sazonais e pelo desaparecimento de espécies aquáticas. A lista poderia continuar, mas os tomadores e tomadoras de decisões parecem desejar aumentá-la ainda mais. Afinal, a quem pertencem as águas do São Francisco? E o direito à vida das espécies não humanas que tem aquele manancial como seu habitat? O Rio São Francisco sobreviverá à demanda do agronegócio industrial de fruticultura irrigada? Deve o seu curso natural ser desviado e suas águas levadas para tão distante para alimentar esta indústria? São perguntas que não podem esperar para serem respondidas por muito tempo, mas é claro que por trás de todas estas ações está a privatização de suas águas. Privatizar é privar. Já não é isso que está acontecendo com algumas populações ribeirinhas privadas cada vez mais do curso natural daquele manancial? O Rio São Francisco já teve os seus problemas cantados em canções, declamados em versos, capturados em imagens fotográficas70, dissecados em teses e dissertações acadêmicas e denunciados de várias outras maneiras no Brasil e no exterior. No entanto, os sucessivos governos, independentes de suas inclinações ideológicas, insistem em
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Sua paisagem foi capturada por inúmeros fotógrafos. Confira o excelente livro de fotografias O Rio São Francisco e as águas no sertão (ZINCLAR, 2010). Há, também, uma espécie de fascínio em excursionar pelo Velho Chico. Foram muitos os registros destas excursões para o conhecimento da área. Podemos citar, por exemplo, Viagem do Rio de Janeiro ao Morro Velho (2001), escrito pelo diplomata inglês Richard Burton sobre sua viagem em 1867; e Desafio e promessa: o rio São Francisco, de autoria do famoso político brasileiro Carlos Lacerda (1964).
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continuar com a sua exploração71 de forma desordenada e colocando em risco as vidas de milhões de humanos e não humanos em nome de um modelo de desenvolvimento que até agora só causou prejuízo ao Velho chico O jogo do poder político é avassalador e passa como uma máquina demolidora pelo São Francisco. Interesses mercadológicos promovem um possível desastre com a ameaça de definhamento do Velho Chico e a consequente perda de recursos para a sobrevivência para milhões de pessoas. O São Francisco clama por atenção há décadas e tudo que recebe é mais exploração.
Referências bibliográficas ANDRADE. Carlos Drummond de. Discurso de Primavera e Algumas Sombras. Rio de Janeiro: Record, 1977. BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro ao Morro Velho. Brasília: Senado Federal. 2001. COELHO, Marco Antônio T. Os descaminhos do São Francisco. São Paulo: Paz e Terra, 2005. LACERDA, Carlos. Desafio e Promessa: o Rio São Francisco. Rio de Janeiro: Distribuidora Record. 1964. NEVES, Zanoni. Navegantes do São Francisco; os remeiros do Rio São Francisco. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. SILVA, Flávio José Rocha da. Grandes Obras no Nordeste: o caso do Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco. In Contemporânea Revista de Sociologia da UFSCar. V.8 Nº 2. 2018. p. 607-634. SIQUEIRA, Ruben; ZELLHUBER, Andrea. Rio São Francisco em descaminho; degradação e revitalização. In: Cadernos CEAS. Salvador: Loyola, 2007, p. 7-32. SIQUEIRA, Ruben. De Sobradinho à transposição: para onde corre o São Francisco. In: MOREIRA, Gilvander Luís (Org.). Dom Cappio: rio e povo: Frei Luiz, um profeta na luta em defesa da vida do rio São Francisco e do seu povo. Transposição, não! São Leopoldo, CPT/CEBI, 2008, pp. 191-202. ZINCLAR, João. O Rio São Francisco e as águas no sertão. Campinas: Silvamarts, 2010. 71
Não bastassem todas as formas econômicas de exploração vigentes na bacia do Rio São Francisco, os últimos governos vêm desenvolvendo estudos para a instalação de usinas nucleares em seu leito. Confira em https://folhape.com.br/politica/politica/usina-nuclear-emitacuruba/2019/12/01/NWS,123965,7,1592,POLITICA,2193-CONTRA-USINA-NUCLEAR-INDIOSBUSCAM-ATE-PAPA.aspx
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17 Educação Ambiental e resistência à privatização da água72 Quando falamos em Educação Ambiental, muitas pessoas acreditam que se trata de algo muito recente na história da humanidade. Na verdade, todas as vezes que um grupo humano, em qualquer época da história deste planeta criou regras para o uso dos recursos naturais em seu entorno, estava disseminando uma forma de educar a si e ao seu grupo para lidar com aquele espaço geográfico e sobreviver da melhor forma possível com o que a natureza lhes oferecia. Essa ação se dava pela observação e, em muitos casos, até mesmo com experimentos com foi o caso os Incas no nosso continente. Praticamente todas as cosmovisões dos indígenas e dos grupos religiosos antigos possuem regras para com o ambiente, buscando uma convivência onde é possível explorar de forma a manter a natureza preservada para as futuras gerações. Estes princípios foram transmitidos pela fala, pelas simbologias, rituais e experiências observados sobre as dinâmicas naturais onde habitavam. Exemplos abundam nos preceitos criados pelos povos antigos e catalogados em diferentes livros sagrados sobre a convivência com a natureza ou são descobertos hoje pelos arqueólogos. O sagrado mediado pela natureza era buscado nas relações concretas do cotidiano e na relação com o meio onde viviam. Há exemplos como as regras hindus, a cosmovisão budista e a ética taoísta na busca pela interação com as forças governantes dos processos e dinâmicas do planeta Terra. Havia uma preocupação com o equilíbrio do espaço geográfico em que viviam e uma possível perda do bem natural comunitário e a consequente desarmonia que seria gerada no grupo se algumas regras não fossem adotadas e seguidas. A Educação Ambiental é, portanto, mais antiga do que imaginamos e sempre foi necessária, mesmo que não pensada e sistematizada com tal denominação. O despertar para a crise ambiental aumentou depois da reunião do Clube de Roma, da 1ª Conferência do Meio Ambiente em Estocolmo, na Suécia, e do Relatório de Bruntland. Sua magnitude alcançou o topo com a Rio ECO-9273. Neste sentido, estes 72
Artigo publicado originalmente no dia 07/01/2020 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 73 “A Rio 92, marcada para junho de 1992, tinha por finalidade essencial decidir quais são as medidas urgentes a serem adotadas em conjunto por todas as nações do mundo (sendo uma realização da ONU) para evitar, se ainda for possível, o fim da vida na superfície da Terra. (FREIRE, 1992, p. 9)
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eventos de caráter global conseguiram chamar a atenção para os graves problemas que a população planetária está sendo submetida tendo como causa um modelo de desenvolvimento que gera destruição, poluição e consequente pobreza para milhões de pessoas. As novas configurações sociais e econômicas do planeta apontam para grandes massas de populações vítimas das injustiças socioambientais resultantes das estruturas macroeconômicas que governam e determinam a natureza como mera mercadoria. Neste sentido, a água não está isenta da mesma classificação. Portanto, a Educação Ambiental deve tomar partido no que se refere a sua privatização e mercantilização ou não estará sendo verdadeiramente uma educação que liberta, posto que não deve existir neutralidade quando assistimos à tomada de nossas águas por grandes grupos empresariais transnacionais integrantes do Mercado da Água. Se é verdadeira a afirmação que a Educação Ambiental não é a mola mestra das mudanças que a crise ambiental exige, é também verdade que ela pode contribuir com a engrenagem que reverterá a catástrofe que se anuncia ao influenciar a ruptura rumo a uma sociedade mais justa socialmente. Neste sentido ela deve lutar contra a privatização da água brasileira. São muitos os grupos envolvidos com a preocupação ambiental no Brasil, mas nem sempre estes grupos têm uma visão/ação crítica ao modelo que causa a degradação que eles condenam. Hoje, mais que nunca, quando o governo apoia a privatização da água, é necessário tomar uma posição firme ou então os educadores e educadoras ambientais estarão a pregar para um lado e agindo para o outro. A Educação Ambiental deve se fazer presente para confrontar todos os desafios que permeiam as relações de desequilíbrio em nossa sociedade a exemplo do não acesso à água através da sua privatização pelo chamado Mercado da Água e pelo agronegócio industrial. Em seu conteúdo didático deve constar o questionamento de todas as formas de apropriação deste elemento natural por grupos que privam os mais vulneráveis economicamente do seu aceso. Se assim não for, será uma forma de educar colaborando para a exploração e a alienação, fugindo de sua meta primordial que é lutar pelo usufruto dos bens naturais respeitando o seu equilíbrio.
Referências Bibliográficas FREIRE, Roberto. A Farsa Ecológica. Rio de Janeiro: Guanabara. 1992. 72
REIGOTA(a), Marcos. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Editora Cortez. 1994. _______(b), O que é Educação Ambiental? São Paulo: Editora Brasiliense. 1994. SILVA, Flávio José Rocha da; ABÍLIO, Francisco José Pegado. Por uma Educação Ambiental crítica ao atual modelo de desenvolvimento. In REDE - Revista Eletrônica do PRODEMA, Fortaleza, v. 6, n. 1, mar. 2011. ISSN 1982-5528. Disponível em: http://www.revistarede.ufc.br/rede/article/view/120.
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18 Do governo Collor ao governo Bolsonaro: os caminhos da privatização da água no Brasil74 Com a força crescente do Neoliberalismo nas últimas décadas, grupos econômicos nacionais e internacionais têm se mobilizado para tomar a distribuição da água das empresas públicas de saneamento básico administradas por Estados e municípios no Brasil. A investida pode ser pela compra das empresas, pela societarização ou ainda através das Parcerias Público-Privadas – PPPs. Estas últimas são eufemismos para a privatização disfarçada, fazendo com que o lucro seja partilhado com os grupos privados e o prejuízo seja assumido pelo Estado, como já apontado por alguns estudiosos do tema. Embora o avanço tenha se intensificado nos últimos anos, é fato que desde o governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) o discurso que defende o Estado mínimo como algo ideal é propagado pela grande mídia e vem sendo alicerçado por leis elaboradas e promulgadas para facilitar este processo. O Estado nunca tornar-se-á mínimo, pois estará inevitavelmente alinhado ou não ao mercado. A primeira alternativa, o alinhamento com o mercado, foi o caminho trilhado com afinco no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), quando privatizou várias estatais brasileiras. O segundo caminho, a opção por não se alinhar completamente ao mercado, teve prioridade nos governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e da ex-presidenta Dilma Rousseff (2011-2016). Obviamente, foram feitas concessões, como demonstram de certa forma Belo Monte e a Transposição do São Francisco. Recentemente, o mercado ganhou grandes aliados no Palácio do Planalto com o ex-presidente Michel Temer (2016-2018) e o atual governo do Presidente Bolsonaro75. Os defensores da privatização das empresas públicas de saneamento afirmam que o Estado tem sido inoperante no avanço do saneamento e que o mesmo será resolvido pelo setor privado. Uma falácia, pois países como a França e a Inglaterra estatizaram os serviços no início do século passado justamente porque as empresas privadas não
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Artigo publicado originalmente no dia 10/03/2020 no Portal EcoDebate: Site de informações, artigos e notícias socioambientais. 75 Durante o governo do presidente Itamar Franco (1992-1995) não houve um processo de privatização intenso, dado ao seu caráter de governo transitório.
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cumpriram as cláusulas contratuais de expansão da rede. O setor privado só voltou à cena após a universalização do saneamento feita naqueles países. A França concedeu as suas empresas de saneamento ao setor privado nos anos sessenta. Porém o modelo francês está em reversão neste momento por causa das denúncias de corrupção no sistema com vários municípios retomando o poder sobre a água, a exemplo de Paris. Nos anos oitenta, a Inglaterra privatizou os serviços, o que vem gerando reclamação de encarecimento nas contas de água nos últimos anos. De certa forma, este caminho do privado para o público no saneamento foi o que aconteceu também no Brasil. Como revela Siqueira (2005, p. 41), “Em São Paulo, por exemplo, criou-se em 1893 a Repartição de Águas e Esgotos (RAE) em substituição à Companhia Cantareira, firma inglesa que a antecedeu e faliu.” O setor privado voltaria a atuar nesta área décadas mais tarde e o mesmo autor (2005, p. 41) acrescenta que, “Em 1953 foi rescindido, por total ineficiência, o contrato com a City of Santos, empresa que conseguira sucatear, nos vinte anos em que operou nessa cidade litorânea, as excelentes instalações projetadas pelo engenheiro Saturnino de Brito.” Parece que não aprendemos com o passado e a história volta a se repetir atualmente. Como já comentado acima, foi no Governo Collor que a palavra privatização entrou na pauta da economia brasileira e surgiu também na área do saneamento. Segundo Siqueira (2005, p. 42), “O governo Collor foi o primeiro a pregar, no bojo do discurso da eficiência, a privatização da prestação dos serviços de saneamento.” Foi naquele governo que surgiu o Decreto Lei 8.171/199176, onde podemos ler no Capítulo VI em seu Artigo 20: “As bacias hidrográficas constituem-se em unidades básicas de planejamento do uso, da conservação e da recuperação dos recursos naturais.” Este modelo de administração a partir das bacias hidrográficas foi criado na França na década de sessenta (MARTINS, 2013) para facilitar a cobrança de multas e o pagamento de água bruta aos comitês de bacia. O governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi, certamente, o mais aplicado em concretizar as políticas econômicas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial para a água. Com o discurso de que o Brasil estava fora do processo da globalização que era inevitável no planeta, ele privatizou muitas empresas. Os investimentos na rede pública de saneamento sofreram diminuição em seus orçamentos
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Confira o Decreto Lei 8171/1991 em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8171.htm
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naquele governo. A Lei Federal 8.987/199577– Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos – que foi aprovada durante o seu governo viria facilitar a entrada de empresas privadas no setor de saneamento. Dois anos depois veio a Lei Federal Nº 9.43378, de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, trazendo a ideia da valoração econômica da água ao afirmar no Artigo 1º, Inciso II: “a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;” e no Artigo 19º no seu inciso I: “reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor;” A criação da Agência Nacional de Águas – ANA – através do Decreto Lei 9.98479, no ano 2000, veio concretizar a cobrança da água sob a responsabilidade dos comitês de bacias. A descrição das prerrogativas da ANA no Decreto de sua criação citou apenas uma vez a questão a conservação dos corpos hídricos em seus artigos. Não podemos deixar de ressaltar que o avanço na privatização do setor hidroelétrico no governo de Fernando Henrique Cardoso possibilitou ainda mais a privatização da água no Brasil, já que quando um grupo econômico tem poder sobre a vazão dos rios, passa a ter poder sobre as águas brasileiras. Os dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva frearam os ímpetos privatizante no Brasil, mas não totalmente. Houve avanços com a Lei Federal 11.445/200780, conhecida como Lei Nacional do Saneamento Básico (LNSB) que foi um progresso neste setor. No entanto, foi no governo Lula que a Lei Federal Nº 11.079/2004,81 a chamada Lei de Parcerias Público-Privadas – PPPs – foi promulgada. A PPPs podem ser uma armadilha, como alerta Swyngedouw (2004, p. 39), Parece que este tipo de parceria público-privada, no qual o setor público é responsável por investimentos de capital fixo de longo prazo (e muitos custos associados a eles) enquanto o setor privado organiza a parte lucrativa do sistema (gerenciamento da oferta), é a resultante mais provável do negócio privado da água.
Foi também neste governo que saiu do papel o Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco que promove a mercantilização da água no Nordeste brasileiro. Orçado em 4.5 Bilhões de Reais, já consumiu cerca de 11 Bilhões Reais e ainda não foi concluído. 77
Confira a Lei 8.987/1995 em http://www.planalto.gov.br/ccivIl_03/Leis/L8987compilada.htm Confira a Lei 9.433/1997 em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9433.htm 79 Confira o Decreto Lei 9.984/2000 em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9984.htm 80 Conf. a LNSB em http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11445.htm 81 Cf. a Lei 11.079/2004 em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L11079.htm. 78
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A ex-presidenta Dilma Rousseff deu continuidade ao seu antecessor no que se refere a água. Continuou a obra da Transposição do Rio São Francisco e as obras de hidroelétricas na Amazônia. Também ficou marcada pela substituição das cisternas de cimento (construídas de forma comunitária) pelas cisternas de plástico para o programa Um Milhão de Cisternas, fato muito criticado pelos movimentos sociais do Semiárido brasileiro. Com relação ao governo do ex-presidente Michel Temer (2016-2018), ele fez uma tentativa de privatização das águas brasileiras ao acionar o Banco Nacional de Desenvolvimento Social – BNDES- para ceder empréstimos aos grandes grupos econômicos que quisessem investir na compra e/ou parceria de empresas públicas de saneamento estaduais, em uma manobra onde o dinheiro público financia empresas privadas na compra das empresas públicas. Na lógica perversa do Neoliberalismo prega-se que o Estado deve ser mínimo, mas este mesmo Estado é solicitado a repassar dinheiro para grandes empresas quando solicitado. Uma outra ação do governo Temer foi a Medida Provisória 844/201882que buscava atualizar o marco legal do saneamento básico. Com a derrota no Congresso da Medida Provisória 844/18 em novembro de 2018, o ex-presidente Temer sancionou a Medida Provisória 868/1883 no dia 27 de dezembro daquele ano, poucos dias antes de deixar a Presidência da República. Esta MP caducou em junho de 2019 por falta de acordos entre os líderes dos partidos no Congresso Nacional. Obviamente o avanço do Mercado da Água não parou com a derrota da Medida Provisória 868/18. Com o governo Bolsonaro e sua agenda de privatizações, o Congresso Nacional discute o novo marco legal para o saneamento básico com o Projeto de Lei Federal Nº 4162/1984. Uma das críticas que se faz a este PL é que ele afeta o subsídio cruzado que garante o serviço de abastecimento para os municípios pequenos que poderão ter aumento das tarifas. Caso este ponto não seja revisto, os pequenos municípios poderão ser preteridos no processo de licitação para os serviços de saneamento por parte das empresas privadas ganhadoras das concorrências por não serem lucrativos. 82
Confira a MP 844/18 em https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias//mpv/133867 83 Confira a MP 868/18 em https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias//mpv/135061 84 Confira o Projeto de Lei 4162/19 que trata do novo marco legal do saneamento básico no link https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2213200
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É fato que a água sempre foi privatizada de alguma forma no Brasil, mas o que nós estamos a testemunhar neste momento é a mudança da relação entre o Estado brasileiro com a sua água, colocando em perigo a sua própria soberania, já que a transferência do controle dos reservatórios para companhias privadas trará novas configurações sobre as formas de apropriação da mesma. Posto que toda a cadeia produtiva necessita de água, ter controle sobre ela é também ter controle sobre produção econômica de alguma maneira. Nós estamos testemunhando um novo colonialismo com a entrada do capital internacional no Mercado da Água brasileiro. Um dos resultados desta transferência de poder sobre a distribuição da água é que o monopólio privado pode fixar junto aos usuários uma tarifa imposta pelas empresas, mesmo que teoricamente os preços devam ser fiscalizados pelas agências reguladoras. Como alerta Peixoto (2013, p. 504), “Ressalve-se, porém, que nos casos de monopólio e oligopólio, não havendo instrumento de defesa da concorrência ou de regulação econômica, os preços naturais (custos econômicos) podem ser distorcidos por lucros exorbitantes que os produtores se atribuem.” Não há que se condenar o mundo dos negócios privados, posto que para se manter e expandir no mercado as empresas devem aumentar os seus lucros em escala crescente. Porém, há que se ter em conta que uma empresa privada não terá o interesse coletivo como prioridade, pois não é esta a sua função. O governo Bolsonaro e os governadores Doria (PSDB-SP) e Witzel (PSL-RJ), para citar apenas dois governadores defensores da privatização da água, alinhados ao que existe de mais retrógrado no campo do Neoliberalismo, vão facilitando o Mercado da Água com a promessa de universalização do saneamento básico. De certo, podemos afirmar que uma possível aprovação do PL 4162/19 intensificará o avanço deste Mercado no Brasil com possíveis consequências desastrosas para a população brasileira.
Referências Bibliográficas BRASIL. Código da Águas e legislação correlata. Brasília: Senado Federal. Coleção Ambiental. Vol. I. 2010. MARTINS, Rodrigo Constante. De bem comum a ouro azul: a crença na gestão racional da água. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCAR. V. 2 n. 2. Jul-Dez. 2012. pp. 465-488. Este artigo está disponível no link http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/92. 78
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Sobre o autor Flávio José Rocha da Silva é paraibano. Possui mestrados em Espiritualidade da Criação pela Naropa University e em Desenvolvimento e Meio Ambiente
pela
Universidade Federal da Paraíba. É doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós-doutor pelo Programa de Pós Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da USP. É autor do livro infantil A batalha pelas folhas sagradas (Sweet Journey Publishing House, 2018) e foi um dos organizadores do livro A resistência à transposição das águas do Rio São Francisco na Paraíba: histórias em defesa da terra, das águas e dos povos do Nordeste (Sal da Terra, 2010). Pesquisa e escreve sobre a privatização da água há vários anos e defende que a água seja um bem comum acessível a todas as pessoas como um direito humano e a todas a espécies como um direito à vida.
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