UM OLHAR JURÍDICO, HISTÓRICO E CULTURAL SOBRE AS VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER

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UM OLHAR JURÍDICO, HISTÓRICO E CULTURAL SOBRE AS VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER


CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA Diretor Presidente da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diretor - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA – AREPB CNPJ 12.955.187/0001-66 Acesse: www.abarriguda.org.br

CONSELHO CIENTÍFICO Adilson Rodrigues Pires Adolpho José Ribeiro Adriana Maria Aureliano da Silva Ana Carolina Gondim de Albuquerque Oliveira André Karam Trindade Alana Ramos Araújo Bruno Cézar Cadê Carina Barbosa Gouvêa Carlos Aranguéz Sanchéz Cláudio Simão de Lucena Neto Daniel Ferreira de Lira Elionora Nazaré Cardoso Ely Jorge Trindade Ezilda Cláudia de Melo Fernanda Isabela Oliveira Freitas Gisele Padilha Cadé Glauber Salomão Leite Gustavo Rabay Guerra

Herry Charriery da Costa Santos Ignacio Berdugo Gómes de la Torre Jeremias de Cássio Carneiro de Melo José Flôr de Medeiros Júnior Karina Teresa da Silva Maciel Laryssa Mayara Alves de Almeida Ludmila Douettes Albuquerque de Aráujo Marcelo Alves Pereira Eufrásio Maria Cezilene Araújo de Morais Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva Raymundo Juliano Rego Feitosa Rodrigo Araújo Reül Rômulo Rhemo Palitot Braga Samara Cristina Oliveira Coelho Suênia Oliveira Vasconcelos Talden Queiroz Farias Valfredo de Andrade Aguiar Filho


EZILDA CLÁUDIA DE MELO COORDENADORA JOSÉ FLOR DE MEDEIROS JÚNIOR, LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO ORGANIZADORES

UM OLHAR JURÍDICO, HISTÓRICO E CULTURAL SOBRE AS VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER

1ª EDIÇÃO

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA - AREPB CAMPINA GRANDE – PB 2014


©Copyright 2014 by Editor-chefe LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA Coordenação do Livro EZILDA CLÁUDIA DE MELO Organização do Livro JOSÉ FLOR DE MEDEIROS JÚNIOR, LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Capa PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA Editoração LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diagramação LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores.

Data de fechamento da edição: 10-12-2014

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

U48

Um olhar jurídico, histórico e cultural sobre as violências contra a mulher / Ezilda Cláudio de Melo, coordenadora ; José Flor de Medeiros Júnior, Laryssa Alves de Almeida, Vinícius Leão de Castro, organizadores. – Campina Grande: AREPB, 2016. 202 p. ISBN 978-85-67494-01-2 1. Mulher. 2. Violência I. Título. CDU 316.647

Todos os direitos desta edição reservados à Associação da Revista Eletrônica A Barriguda – AREPB. Foi feito o depósito legal.


O Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED, responsável pela Revista Jurídica e Cultural ―A Barriguda‖, foi criado na cidade de Campina Grande-PB, com o objetivo de ser um locus de propagação de uma nova maneira de se enxergar a Pesquisa, o Ensino e a Extensão na área do Direito. A ideia de criar uma revista eletrônica surgiu a partir de intensos debates em torno da Ciência Jurídica, com o objetivo de resgatar o estudo do Direito enquanto Ciência, de maneira inter e transdisciplinar unido sempre à cultura. Resgatando, dessa maneira, posturas metodológicas que se voltem a postura ética dos futuros profissionais. Os idealizadores deste projeto, revestidos de ousadia, espírito acadêmico e nutridos do objetivo de criar um novo paradigma de estudo do Direito se motivaram para construir um projeto que ultrapassou as fronteiras de um informativo e se estabeleceu como uma revista eletrônica, para incentivar o resgate do ensino jurídico como interdisciplinar e transversal, sem esquecer a nossa riqueza cultural. Nosso sincero reconhecimento e agradecimento a todos que contribuíram para a consolidação da Revista A Barriguda no meio acadêmico de forma tão significativa.

Acesse a Biblioteca do site www.abarriguda.org.br e confira E-Books gratuitos.


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Ezilda Cláudia de Melo PREFÁCIO

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Alexandre Morais da Rosa GÊNERO E SUA INTERFACE COM AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: DIÁLOGOS E MUDANÇAS DE PAPÉIS

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Odete Maria de Oliveira e Andreia Rosenir da Silva A RAZÃO NASCEU DO ÚTERO E A DOR DA INTOLERÂNCIA: DIREITO HUMANO AO PARTO HUMANIZADO FRENTE A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

39

Marcelo Alves Pereira Eufrásio A PROTEÇÃO JURÍDICA À MULHER NO TRABALHO E O ASSÉDIO SEXUAL NO BRASIL

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José Ernesto Pimentel Filho e Thiago da Fonseca Rodrigues O ESTUPRO COMO UMA ARMA DE GUERRA: A VIOLÊNCIA SEXUAL À LUZ DOS PARADIGMAS DE GÊNERO E DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

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Herry Charriery da Costa Santos RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O PARADIGMA DO REALISMO POLÍTICO: A AUSÊNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNERO NO CENÁRIO DA POLÍTICA DO PODER

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Kamila Soraia Brandl e Marcia Cristina Puydinger De Fazio GÊNERO E DIREITOS HUMANOS: ENFRENTAMENTO DE TODAS AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES ATRAVÉS DO PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES 111 Juciane de Gregori A TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE FEMINICIDIO SOB A ÉGIDE DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

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Rossana Valessa Silva Freire, Mônica Thais Rodrigues Gomes e Felix Araújo Neto ABORTO NO BRASIL: AVANÇOS, RECUOS E OS DIREITOS DA MULHER Ezilda Melo

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INAPLICABILIDADE DA TRANSAÇÃO PENAL À LEI N° 11.340/2006

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Joyce Almeida de Andrade e Ana Clara Montenegro Fonseca O IMAGINÁRIO MODERNO EM RELAÇÃO A MULHER BRASILEIRA: NARRATIVAS VISUAIS DE DI CAVALCANTI E AS RELAÇÕES INTERSECCIONAIS DE PRECONCEITOS

175

Isis Dinara Francelino de Moura AS FACES DA VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA

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Ana Júlia Santos Codignole, Claudio Marcos Romero Lameirão, Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva e Raphaella Karla Martins de Lima


APRESENTAÇÃO O livro ―Um olhar jurídico, histórico e cultural sobre as violências contra a mulher‖ surgiu como produto final do evento ―I Congresso Brasileiro da Revista A Barriguda: um olhar jurídico, histórico e cultural sobre as violências contra a mulher‖, ocorrido em Campina Grande entre os dias 08 e 10 de abril de 2014. Os artigos apresentados nos Grupos de Trabalhos são dotados de grande qualidade científica e densidade jurídica, e abordam temas importantes a respeito das violências contra a mulher. As palestras, as mesas redondas foram muito produtivas e os debate sobre os artigos e ideias apresentadas foram muito ricos, proveitosos e intensos, que motivou a criação dessa obra que contempla os textos de palestrantes e comunicadores orais, acrescidos das contribuições oriundas da discussão realizadas pelos participantes. No primeiro artigo ―Gênero e sua interface com as relações internacionais: diálogos e mudanças de papeis‖, escrito por Odete Maria de Oliveira e Andreia Rosenir da Silva, percebe-se as contribuições das teóricas feministas ao campo de conhecimento da política internacional e que ajudam, portanto, na identificação de elementos que possam levar à compreensão do cenário do estudo de gênero nas Relações Internacionais. Percebeu-se também que historicamente, enquanto gênero foi ganhando destaque nas disciplinas de História, Ciência Política, Sociologia, Antropologia, o mesmo não aconteceu com as Relações Internacionais, onde foi simplesmente ignorado ao longo dos anos, integrando somente a agenda de estudos e pesquisas dessa disciplina no século 21. Encontra-se uma discussão muito interessante no artigo ―A razão nasceu do útero e a dor da intolerância: direito humano ao parto humanizado frente à violência obstetrícia‖ de Marcelo Alves Pereira Eufrásio, ao mostrar uma abordagem acerca do Direito Humano ao parto humanizado e a problemática da 9


intervenção cirúrgica através do parto cesariano. Nesta reflexão jusfilosófica acerca da violência obstétrica contra a mulher e a criança, pretende-se enfocar aspectos como o nascimento da racionalidade humana na antiguidade clássica a partir do método socrático, que fundamenta também o juízo moral clássico. Sendo este aspecto deontológico responsável pela constituição da teoria do conhecimento referente aos direitos de solidariedade, que também contemplam em seu rol de garantias, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Em ―A Proteção Jurídica à mulher no trabalho e o assédio sexual no Brasil de José Ernesto Pimentel Filho e Thiago da Fonseca Rodrigues, esclareceu-se que, a partir da redemocratização do Brasil, um dos grandes desafios impostos ao país se desdobrou na superação das várias formas de discriminação cometidas contra o gênero feminino, assim como na busca pela concretização do direito à igualdade entre homens e mulheres. O historiador e advogado paraibano Herry Charriery da Costa Santos em ―O Estupro como uma arma de guerra: a violência sexual à luz dos paradigmas de gênero e do Direito Internacional Público‖ mostrou em seu artigo que os principais estudos na área da violência de gênero já buscam problematizar as práticas históricas da violência sexual – o estupro – tentando reconceituar o seu tipo junto ao Direito Internacional Público como um Crime contra a Humanidade. Kamila Soraia Brandl e Marcia Cristina Puydinger de Fazio escreveram ―As relações internacionais e o paradigma do realismo político: a ausência da discussão sobre gênero no cenário da política do poder‖ e mostraram que pensar em relações internacionais hoje envolve considerar um amplo conjunto de mudanças que conduziram a sociedade internacional aos seus desenhos contemporâneos. Nele os organismos internacionais, as empresas transnacionais, os governos subnacionais, a mídia, os indivíduos detentores de poder e posição de comando, as organizações e coletividades sociais a exemplo das organizações não governamentais, dos movimentos sociais, das ações feministas e reivindicações de gênero, e até mesmo, 10


dos grupos terroristas e crime organizado, caracterizam-se como entidades detentoras de novas demandas que, ao influenciarem políticas e comporem agendas, retiram o Estado do centro da cena. Em ―Gênero e Direitos Humanos: enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres através do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres de Juciane de Gregori, reflete-se que a resolução da problemática da violência contra mulher ainda é uma incógnita que se configura como uma realidade presente, não somente no Brasil, como em vários países dotados de diferentes regimes econômicos e políticos. Em ―A tipificação do crime de feminicídio sob a égide do ordenamento jurídico brasileiro, de Rossana Valessa Silva Freire Mônica Thais Rodrigues Gomes e Felix Araújo Neto, mostra-se a importância da tipificação do Feminicídio no rol das nossas normas penais, foi um significante passo para nossa sociedade, porém há uma pergunta que não que calar: essa tipificação do feminicídio reduzirá os números de homicídio contra mulher? Em ―Aborto no Brasil: avanços, recuos e os direitos da mulher‖, de Ezilda Melo, observa-se que a decisão de uma mulher não dar continuidade a uma gravidez é assunto muito polêmico, pois envolve questões ético-morais, jurídicofilosóficas, existenciais aparecem de formar conflitual para a gestante, apesar de não constituir, para os homens, decisão a ser tomada. Quer-se, com isso, tirar da abrangência do Estado a vigilância e a punição sobre os corpos femininos, permitindo, assim, que o debate sobre o aborto saia do campo da legalidade e entre no campo social e dos problemas advindos pela falta de se enxergar que a proibição-punição não surte efeito, quando o assunto é aborto. Mostra que se precisa de políticas públicas, de programas de educação sexual e da defesa da autonomia reprodutiva da mulher, com base em princípios democráticos.

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Em ―Inaplicabilidade da transação penal à Lei n° 11.340/2006 de Joyce Almeida de Andrade e Ana Clara Montenegro Fonseca, analisou a importância do instrumento processual penal, qual seja a Transação Penal, previsto no artigo 76 na Lei n° 9.099/1995, abordando especificamente a sua aplicabilidade à Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Em ―O imaginário moderno em relação à mulher brasileira: narrativas visuais de Di Cavalcanti e as relações interseccionais de preconceitos‖, de Isis Dinara Francelino de Moura, mostra que os sutis preconceitos impregnados nas obras de arte brasileira provocam reflexões sobre os preconceitos que são disseminados na nossa sociedade e que perpetuam injustiças e julgamentos de gênero e etnia em seus vários segmentos. No caso da mulher negra e pobre, são preconceitos interseccionados por várias esferas, como gênero, etnia e classe social. Percebe-se também que os desdobramentos que as análises e leituras de obras de arte podem trazer para o conhecimento da história social e cultural do Brasil são promissoras, pois as obras de artes são testemunhas desse momento vivido e nos propõem investigações acerca da sua existência para a abordagem nas questões de representação de minorias na arte e na consequente formação cultural brasileira. Por fim, em ―As faces da violência na sociedade pós-moderna de Ana Júlia Santos Codignole, Claudio Marcos Romero Lameirão, Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva e Raphaella Karla Martins de Lima, percebe-se que ainda há um longo caminho a se percorrer diante da ineficácia de políticas públicas que atualmente não conseguem absorvem os principais vícios do atual sistema criminal brasileiro. Ezilda Cláudia de Melo Mestre em Direito (UFBA) Professora Universitária

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PREFÁCIO Convidado que fui por Ezilda Melo para prefaciar o livro que segue – Um olhar jurídico, histórico e cultura sobre as violências contra a mulher – lancei-me no desafio de leitura de textos sólidos, de múltiplas miradas, em que o desejo de reconhecimento da diversidade – terceira onda – permeia o discurso. Esse discurso transita em diversos campos, desde o aborto até a transação penal, sem que possa tirar o prazer do texto, como diria Roland Barthes, justamente porque o leitor de prefácio – sempre me pergunto qual o perfil de quem se dá ao trabalho de ler – certamente comparece ao texto com a dimensão da efetivação de Direitos. Certamente o leitor deve saber a dificuldade do senso comum teórico (Warat) em compreender a dimensão da questão de gênero, da gramática feminista, bem assim que a superação das confusões entre sexo e gênero - ainda - são fundamentais para o estabelecimento de um discurso democrático. Daí a importância da metodologia feminista indicada por Odete Maria de Oliveira e Andreia Rosenir da Silva. Aborto, assédio sexual e parto humanizado se vinculam à noção de liberdade e das imposições morais ou da dita ciência que impedem o pleno exercício de subjetividades e aos direitos reprodutivos, para além da submissão. A aproximação do estupro dos crimes de guerra em face da decisão do Tribunal Penal Internacional (Ruanda, Jean-Paul Akayesu), por outro lado, demonstra o impacto humano da conduta violenta em face da dignidade sexual e da responsabilidade dos dirigentes estatais, ampliando a noção de genocídio. O livro transita pelo crime, pela arte (Di Cavalcanti) e pela dominação masculina ainda presente no discurso jurídico, finalizando sobre a violência e a

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importância de o discurso feminista, tanto no ambiente internacional, como na aplicação do direito interno, pelo qual se possa fazer ver. Os desafios, portanto, se renovam, na linha do que Judith Butler (Quadros de Guerra) defende como sendo condição de possibilidade para se considerar lesada e/ou perdida, a saber, a condição de viva. A luta, portanto, diária ganha o reforço do livro que espero seja lido. Ocupar o espaço do discurso e fazer a diferença, ampliando e modificando os respectivos enquadramentos para além da dominação masculina.

Alexandre Morais da Rosa1 Doutor em Direito (UFPR) Professor da UFSC-UNIVALI Juiz de Direito (TJSC)

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GÊNERO E SUA INTERFACE COM AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: DIÁLOGOS E MUDANÇAS DE PAPÉIS2 Odete Maria de Oliveira3 Andreia Rosenir da Silva4 Sumário: 1 Introdução. 2 Gênero e Relações Internacionais: mudanças de papéis. 2.1 Aspectos Históricos. 2.2 O que Fazer? – Perguntavam então as Mulheres? 3 Aspectos Teórico-Conceituais. 3.1 Perspectivas Metodológicas. 3.2 Perspectivas Conceituais. 3.3 Categoria Relacional de Análise. 4 A Questão dos Debates e a Neutralidade de Gênero. 4.1 Surgimento e Sucessão de Debates. 4.2 Distinção entre Debates e Ondas. 4.3 Os Debates e a Neutralidade de Gênero. 5 Gênero e a Importância do Terceiro Debate. 5.1 Conotações e Concepções Paradigmáticas. 5.2 Contribuição Interparadigmática à Inserção de Gênero . 6 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO O conhecimento das Relações Internacionais, na segunda metade do século 20, passou a apresentar destacada evolução. A partir de então, gradativamente, mudanças extraordinárias foram alterando seus cenários e protagonismos estatocêntricos, como a aproximação de gênero e a posterior inserção de suas teorias e métodos no âmbito dessa disciplina no século 21, ali ocupando-se com estudos, evidências e pesquisas empíricas da realidade contemporânea e a construção epistemológica interpretativa dessa complexa realidade e sua vasta rede de interações – relações dos mais diversos tipo – conectadas por uma multiplicidade de atores estatais e não estatais, dos quais gênero constitui um desses destacados agentes. Gênero trata de conhecimento recente na esfera dessa disciplina, configurando-se por meio de vieses humanistas comuns, valores universais e na arquitetura de uma cultura global. Nessa perspectiva, constata-se indagações importantes: Quando gênero emergiu e como evoluiu no campo das Relações Internacionais? Qual o seu papel, como contribui e que influência exerce? Quais as diferenças entre gênero e feminismo? Quais os elementos de aproximação entre gênero Estudo elaborado por integrantes do Grupo de Pesquisa, do Projeto Relações Internacionais, Poder e Direito: cenários e protagonismos dos atores estatais e não estatais, da Unochapecó. 3 Professora Titular de Relações Internacionais da UFSC e atualmente Professora Titular do Núcleo de Pesquisa Stricto Sensu em Direito da Unochapecó, Líder do Grupo de Pesquisa Relações Internacionais, Poder e Direito: cenários e protagonismos dos atores estatais e não estatais. 4 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito, UFSC, 2013. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa, no Projeto de Relações Internacionais, Poder e Direito: cenários e protagonismo dos atores estatais e não estatais, do Núcleo de Pesquisa Stricto Sensu em Direito, da Unochapecó, Assistente Coordenadora pela Women in Europe for a Common Future – WECF e pela Women Major Group e acadêmica em Letras-Alemão, UFSC, 2014. 15 2


e Relações Internacionais? Nesse sentido, como se conformaram os denominados debates e ondas? Qual a importância do Terceiro Debate na concepção de gênero nesse âmbito? Estas questões e seus desdobramentos serão abordados no decorrer do presente ensaio, no qual gênero é entendido como uma categoria relacional de análise das Relações Internacionais. 2 GÊNERO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS: MUDANÇAS DE PAPÉIS 2.1 ASPECTOS HISTÓRICOS Os movimentos feministas historicamente antecederam a questão de gênero e sua difícil tentativa de inserção no âmbito do conhecimento das Relações Internacionais. Tais movimentos, com origem muito antiga (Santos Junior, 2011), adquiriram grande dinamismo na Idade Moderna, já que na Europa, na Idade Média dos mil anos (Duby, 1988; Franco Júnior, 1999), a mulher tinha direitos à propriedade e na morte de seu companheiro assumia a família. No século 15 iniciaram-se registros de sérias denúncias de opressões e violências contra as mulheres. Na continuidade desse século 15 e também no século 16, com o denominado período de caça as bruxas, o quadro de perseguição às mulheres conheceu o apogeu de seu terror. Com o apoio da Igreja e base em determinações constantes no livro, Martelo das Bruxas (Malleus Maleficarum – original em Latim), usado durante a Inquisição, por meio de aparentes e sumários reconhecimentos aos denominados hereges e feiticeiros, a eles foi usado a pena de condenação à morte. Para tal finalidade foram criados os Tribunais de Inquisição, a fim de julgar quem fosse suspeito de heresia, muitas mulheres, por serem parteiras ou terem conhecimentos sobre plantas medicinais, religião e política foram suas infelizes vítimas. Ilustrativo o exemplo de Joana d‘Arc (Twain, 2013; Robins, 2014), corajosa revolucionária, uma jovem camponesa simples, que se tornou líder militar e comandou o exército, para proteger a França do domínio britânico durante a Guerra dos Cem Anos, julgada herege e feiticeira, foi condenada então à morte em fogueira, em 1431, tornando-se reconhecida pelo seu destacado patriotismo e grande fé em Deus, imortalizou-se no imaginário coletivo. No século 18, com a Revolução Francesa, os movimentos feministas começam a consolidar forças por meio de suas lutas em favor da emancipação e igualdade das mulheres, buscando o reconhecimento do casamento civil e a legislação do divórcio.

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Nos séculos 19 e 20, os movimentos tomaram forma mais consistente e definitiva, conseguindo finalmente o direito do voto e acesso ao trabalho remunerado, principalmente em consequência das duas guerras mundiais, as mulheres tiveram que prover seus sustentos e de seus filhos, em virtude de terem ou perderem seus companheiros lutando nesses conflitos. Após a Segunda Guerra Mundial, os movimentos apresentaram significativos resultados, principalmente nos Estados Unidos e na França, ali despontando destacadas e visionárias ideias feministas na obra de Simone Beauvoir, Segundo Sexo (1965), nessa época, já observava a autora, de que a hierarquia entre o masculino e o feminino decorre de uma construção social. Ao longo de séculos de árduas lutas e sofrimentos, as mulheres e seus movimentos gradativamente

foram

positivando

resultados,

nos

dias

atuais

pode-se

observá-las

desempenhando as mais variadas funções, tanto em exercícios de cargos públicos como em gestões de setores privados. Tais lutas representam importantes conquistas, experiências e contribuições à sociedade como um todo e, em especial, às Relações Internacionais. Após esse persistente itinerário, na década de 80, a questão de gênero começou a conquistar espaço no cenário internacional, quando autoras feministas – em seus estudos e pesquisas – começaram a indagar: O que é e como é o poder no âmbito complexo e fechado das Relações Internacionais? Quem o exerce? Quem controla quem e sob que condições? Por que a mulher foi marginalizada e excluída do conhecimento das Relações Internacionais? Por que seus paradigmas omitiram em seus desenhos a questão de gênero? Onde ficaram as mulheres e por que foram tão silenciadas? Por que as relações de poder entre o feminino e o masculino são tão desiguais? Como identificar as múltiplas facetas do poder e impedir efeitos de seu abuso em um mundo unilateral? Como impedir que os silêncios femininos permanecessem mudos? 2.2 O QUE FAZER? – PERGUNTAVAM ENTÃO AS MULHERES? Na continuidade dos anos 90, com firmeza em suas investigações, as autoras perquiriam: Quais os direitos, deveres e as necessidades das mulheres? Que papel podem desempenhar no cenário internacional? Que âmbitos e possibilidades já foram abertos e onde estão hoje as mulheres nas Relações Internacionais? Como as concepções de feminino e masculino ali se expressam? Como o feminino e o masculino concebem seus conhecimentos nas Relações Internacionais? Como está vinculada a construção do social, cultural, político, econômico e de valores das mulheres e dos homens na importante esfera pública das Relações Internacionais? Enfim, como agem entre si? 17


Nesse sentido, assim ponderavam as mulheres: – Na construção de políticas de unidade e identidade das Relações Internacionais não há como poder afastar os conhecimentos, experiências, valores e contribuições do feminino, privilegiando somente o masculino. – No viés dos estudos e pesquisas das Relações Internacionais, necessário se faz abrir caminhos à transcendência de igualdade entre o feminino e o masculino. Observa-se, desse modo, que nesta trajetória, gênero – função e atuação, experiência e contribuição da mulher no campo das Relações Internacionais – foi praticamente ignorado, silenciado e emudecido ao longo dos anos, quando finalmente autoras pioneiras como J. Ann Tickner, Jean Bethke Elshain, Cynthia Enloe, entre tantas outras, ousaram romper tal espaço tão fechado e quebrar seu pesado silêncio. Tecendo críticas construtivas, estas autoras buscaram conquistar acesso à inclusão do feminino nesse âmbito, oportunidades de aproximação e diálogo, abrir instâncias de igualdade no campo desse conhecimento, até então apresentado de forma eminentemente estatocêntrica, anárquica e conflituosa, sobretudo masculina e realista. Com esses objetivos, autoras feministas passaram a examinar criticamente as Relações Internacionais, a partir de perspectivas dos indivíduos que foram excluídos do poder, observando a verdadeira história dessa exclusão, do mundo e de seu entorno, contra as concepções falsamente universalizadas sobre esse mesmo mundo e sua realidade verdadeira, no qual os valores, discursos, símbolos e conceitos são simplesmente desenvolvidos pela cultura masculina e androcêntrica. Entre outros objetivos, a preocupação de gênero nas Relações Internacionais mostra-se na incansável luta feminista, na busca de assegurar a emancipação de igualdade, a valorização e contribuição da mulher nesse espaço de conhecimento. Em suma, a partir do século 19, com os movimentos sociais em marcha, as mulheres passaram a exigir acessos na participação da vida pública e privada da sociedade. No final do século 20, anos 80 e 90, uma de suas principais tarefas foi tornar público suas exclusões no âmbito do conhecimento das Relações Internacionais, encontrando-se, finalmente no século 21, inseridas nesse âmbito. Assim e nesse dinâmico e sólido trilhar através de anos, gênero foi evoluindo com firmeza e, de tal forma, que na primeira década do atual século vem influenciando e confluindo, ensaiando protagonismos, projetando-se e se potencializando em vários cenários, sendo

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considerado um ator não estatal com destaque protagonismo, entre tantos outros emergentes. Na continuidade passa-se a abordar aportes de cunho conceitual. 3 ASPECTOS TEÓRICO-CONCEITUAIS 3.1 PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS Gênero trata de fenômeno recente no âmbito de conhecimento das Relações Internacionais (Oliveira, 2004), reunindo em torno de si rico acervo de estudos e pesquisas, tendo como finalidade tanto as investigações sobre a própria realidade fenomenológica da sociedade contemporânea quanto à construção de teorias interpretativas dessa realidade complexa e multicêntrica. Do ponto de vista fenomenológico feminista, registra-se sua preocupação em ver e denunciar as injustiças com clareza, rejeitar padrões aceitos e dogmatizados, tornar visível o que está invisível, fazer ouvir o que não está sendo ouvido, impedir que as margens permaneçam marginais, virar escadas, invertendo a ordem do topo. Nesse sentido, as autoras e suas relevantes pesquisas empíricas feministas passaram a revelar aspectos ocultos das estruturas de poder e da política, as diferenças, as violências e opressões, as lutas das mulheres em busca da garantia de seus direitos. Para atingir tais intentos e objetivos, as autoras empregam a categoria de análise relacional feminista e, em especial, usam o método denominado feminist informed, consistindo de uma série de perguntas, focalizando relacionamentos e seus limites enquanto que a teoria crítica feminista, em sua proposta desconstrutiva, utiliza desafiantes instrumentos e questionamentos empíricos, além do recurso da auto-reflexividade e de conceitos abertos e humanizantes, pretendendo assim transformar as tradicionais estruturas de poder, mudar o que deve ser mudado e tentar transformar o hierarquizado paradigma dominante. Em suas práxis, as autoras de gênero empregam suas inovadoras metodologias feministas, ocupando-se na elaboração de categorias, critérios, classificações, parâmetros e conceitos bem definidos, buscando compartilhar suas conquistas, conhecimentos e experiências, contribuir com o aprofundamento das Relações Internacionais, multicêntricas e interdisciplinares, atuando ao lodo dos atores estatais e dos agentes não estatais internacionais. Como teoria emergente das Relações Internacionais, usando o empirismo feminista e abordagens sociológicas, gênero enfatiza o poder como capacidade de atuar em conjunto – 19


feminino e masculino – buscando criar afinidades intelectuais com a visão institucionalizada desse conhecimento, por meio da empiria, reexame de conceitos tradicionais da disciplina, indagando em que condições mulheres e homens seriam capazes de atuar em conjunto, para além das fronteiras dos Estados, a fim de criar verdadeiras redes e suas ligações entre essas redes e os próprios Estados, alcançando e vinculando propósitos comuns entre ambos. Em especial, a obra, Feminist Methodologies for International Relations, de autoria de Brooke Ackerly, Maria Stern e Jacqui True (2006), reúne diversos exemplos de metodologias usadas nas fundamentações de gênero no âmbito das Relações Internacionais, a partir de reflexões feministas em contraste com outros tipos tradicionais de métodos, utilizados no campo dessa disciplina, os quais além de descrever e explicar as políticas globais, ainda almejam contribuir para a transformação destas políticas, por meios de suas teorias e práxis, iniciando com uma análise sociológica sobre as experiências das mulheres e dos homens em seus contextos sociais de gênero. O método feminista, bem diferente de outros, por sua vez implica na observação das investigações feministas, identificando as práticas comuns do exame cético minucioso, o inquérito de inclusão, o momento deliberativo da escolha explícita e a conceitualização do campo de estudo como um universo coletivo e, consequentemente, contribuindo para a formação e sustentação de novas abordagens teóricas (Ackerly, Stern, True, 2006: 245). Segundo essas autoras, tais práticas, assim reunidas nessa ordem, constitui um método teórico feminista, ou seja, outra forma distinta de estudar as Relações Internacionais, tornando as pesquisadoras autoconscientes de suas escolhas epistemológicas e ontológicas, implícitas em suas metodologias e métodos empíricos. As autoras observam que esse método valida-se em cinco requisitos práticos sequenciais: o primeiro – tem como base a observação da experiência humana nos desenvolvimentos dos assuntos centrais, como ainda nos próprios processos de mudanças históricas; o segundo – ocupa-se em avaliar as atuais práticas e políticas, desde o momento como são construídas; o terceiro – objetiva separar o potencial das emancipações sociais daqueles já existentes, os processos de aprendizagem social do qual são o resultado e suas implicações na transformação da ordem mundial; o quarto – refletir sobre o processo de teorização e o papel do pesquisador na sociedade; o quinto – estar acontecendo (Idem, 2006: 245). No uso desta metodologia feminista, segundo afirmam as mencionadas autoras, deve-se atender aos seguintes pressupostos: primeiro – o que é importante observar como informação histórica fundamental e quais as experiências humanas que merecem ser observadas; segundo – 20


que técnicas têm sido usadas, para conhecer os tipos de poder que tiveram efeitos na formação das estruturas históricas existentes e qual o significado de sua avaliação; terceiro – examinar as formas sociais emancipatórias, em especial, quem está livre e quem não está, por qualquer forma de falta de liberdade social ou de inquérito; com relação ao quarto e quinto requisitos – as autoras consideram que suas teorias estão acontecendo, são auto-reflexivas e devem ser complementadas sobre a exatidão e relevância de seus trabalhos (Idem, 2006: 256-259). 3.2 PERSPECTIVAS CONCEITUAIS Ao abordarem a concepção de gênero, alguns autores fazem a distinção entre gênero e feminismo. Nesse sentido, entende Passos (2011: 99) que enquanto gênero constitui ―uma categoria cultural, socialmente construída, sujeita à mudança histórica, que se refere inicialmente a um corpo sexuado‖, observa, entretanto, não se tratar de uma questão de biologia e tampouco de psicologia entre homens e mulheres, ou de sexo diferenciando homens e mulheres, por outro lado, o feminismo constitui fenômeno antigo, compreendendo diversos momentos históricos, com ênfase no século 19, configurando-se pela constituição de movimentos de lutas das mulheres na busca de emancipação e reconhecimento de seus direitos, logo e diferentemente de gênero, apresenta evolução em outros tempos e em outros e específicos elementos, além de referenciais teóricos próprios. Dessa forma, o universo cognitivo de gênero abrange contexto fenomenológico bem mais amplo, não sendo sinônimo de feminismo ou de movimentos de mulheres, não devendo jamais confundir-se com aspectos biológicos ou psicológicos do masculino e feminino, tampouco encontra-se ligado somente à identidade das mulheres, abrange a dos homens também, guardando uma série de implicações com diferentes variáveis. Segundo Tickner (2002), envolve-se com características de poder, racionalidade, autonomia, atividade e dimensão pública, típicas da noção de masculino constituída através dos tempos, já que o oposto como fraqueza, passionalidade, dependência e as dimensões dos âmbitos privados e domésticos, todas relacionadas às mulheres, associando-se daí o estado de subordinação do masculino sobre o feminino. Destaca ainda a citada autora, nesse sentido, ―gênero não é, como frequentemente reivindicado, sinônimo de mulher e identidades femininas, também trata de homens e identidades masculinas e, mais importante, de relações entre homens e mulheres‖ (Tickner, 2002: 336), arrematando, da mesma forma, Santos Junior (2011: 124), ―questões de gênero não envolvem 21


diferenças somente de ordem anatômica, dado que expressam, antes, construções sociais‖, uma vez que as noções de homem e mulher e de masculino e feminino, se constroem também a partir da atribuição de seus papéis, os quais definem relações de poder. A divisão binária entre feminino e masculino, para Monte (2010: 9), não está ―apenas nos corpos sexualmente diferenciados, mas em seu amplo sistema de oposições homólogas que fundamentam o pensamento ocidental‖. Salienta a autora, que gênero surge como necessidade de dar sentido social às diferenças anatômicas entre homens e mulheres, ―a partir dessa divisão amplia-se o mesmo esquema para todas as coisas do mundo, cria-se uma realidade sexuada‖ (2010: 9). Nesse sentido, a desconstrução e a reversão desses arraigados e consolidados preconceitos ao longo dos tempos, constitui verdadeira prova de fogo às autoras feministas. De forma ampla e diferentemente da noção de feminismo, a categoria de gênero configura-se pelas construções sociais, culturais políticas, econômicas, morais e de valores atribuídas tanto ao sexo feminino como igualmente ao masculino, perpassando assim as diferenças biológicas e psicológicas de homem e mulher, abrindo espaço ao importante papel da mulher no campo do conhecimento das Relações Internacionais, em especial, no âmbito das políticas públicas, diplomacia, questão militar e de segurança, espaços sempre dominados pelo viés masculino. Várias autoras buscaram desconstruir tais práticas e seus discursos masculinos. Jean Behke Elshtain, em sua notável obra Women and War (1987), analisando a questão militar, evidencia que as mulheres, pelo seu espírito ativo, de grande mobilidade e singular organização, apresentam habilidades importantes para poderem participar das táticas e mecanismos da guerra. Cynthia Enloe, autora premiada pelo seu talento e produção, mais de nove livros publicados, na sua conhecida obra, Bananas, Beaches and Bases (2000), ilustra a tese da importância do papel da mulher na economia a na política internacional global. Por sua vez, J. Ann Tickner, academicamente reconhecida, também premiada, professora na Universidade do Sul de Califórnia, em seu trabalho, Gender in International Relations: Feminist Perspectives on Achieving Global Security (1992), concentra atenção no estudo da segurança nacional, afirmando que as perspectivas feministas sobre esse tema, se estabelecem bem além de estatísticas e dos desenhos do paradigma realista das Relações Internacionais, construídos a partir de discursos masculinizados e hierarquizados, apresentando visão parcial dos problemas como se fosse universal, enquanto que na visão e conceito das mulheres, ter segurança implica na ausência de violência, seja militar, econômica ou sexual.

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Já a emérita professora inglesa, Jill Steans, em seu estudo Gender and International Relations: an Introduction (1998), discute gênero a partir das políticas de identidade, Estado, natureza do poder, política econômica global, segurança e paz, afirmando que nossa realidade é constituída pelo entendimento intersubjetivo de um mundo complexo, social e político, encontrando-se o poder profundamente implicado na construção do conhecimento, categorias e conceitos usados na construção de nossa realidade. 3.3 CATEGORIA RELACIONAL DE ANÁLISE Por outro lado, abordar gênero como categoria de análise, para Monte (2009: 8) concerne dever admití-la com uma verdadeira categoria relacional junto ao conhecimento da disciplina de Relações Internacionais, configurando-se como pressuposto social que constrói as diferenças entre homens e mulheres, ou seja, constitui ―as significações que se dá as diferenças biológicas entre os corpos humanos, a interpretação por vezes demanda diferenças sexuais‖ (2009: 1). A diferença entre o masculino e o feminino, muito mais do que binária e primária, biologicamente – macho e fêmea –, encontra-se inscrita no monopólio do exercício e manutenção do poder, evoluindo com virilidade ao longo das sociedades, um conjunto de predicados e solidariedades viris, um processo histórico que veio alicerçando raízes profundas, mantendo-se por isso bem estável através dos tempos. Nesse sentido, o poder, categoria difusa – encontrando-se assim em todos os lugares sociais e, de certa forma, podendo ser por quase todos exercido, dependendo das regras do jogo e de quem joga – conceito complexo, podendo tanto referir-se aos denominados poderes sobre ou no contraponto dos poderes para (Olsson, 2007), conformando-se ainda como poderes desde cima e aqueles desde baixo, decorrentes dos efeitos de inclusão econômica e exclusão social, provocados pelo fenômeno da globalização econômica neoliberal (Falk, 2002), observado, de outro modo, que além do macropoder, também há as conotações opoentes de um micropoder (Foucault, 1979), igualmente não olvidando-se dos meandros de um invisível poder tão sutil e sua manifestação sob forma de dominação, vale dizer, um poderoso poder simbólico (Bourdieu, 1989). Aceitar gênero como categoria de análise leva a indagar: Quem constrói o conhecimento no âmbito das Reações Internacionais? Como é ali construído e de que forma executado? Esses questionamentos ajudam a esclarecer como os estudos, pesquisas e teorias de gênero aproximaram-se, se inseriram e indiscutivelmente se tornaram parte dessa disciplina, com a qual 23


dialogam e contribuem sobre assuntos específicos desse saber, ainda sobre seus fenômenos e sua realidade, o que o identifica, sem dúvida, como categoria de análise. Enfim, entender essa interação entre gênero e Relações Internacionais, seus estreitos pontos de contatos, interesses e identidades levam a compreendê-lo, com certeza, como uma autêntica categoria de análise. Um conjunto de variáveis contribuiu nesse sentido. Mais precisamente no contexto do denominado terceiro debate, foram mudando-se os papéis e gênero conseguiu sua inserção no campo das Relações Internacionais, momento em que as feministas ocupavam-se em desenvolver metodologias diferentes daquelas utilizadas no âmbito desse conhecimento até os anos 80, que até ali entendiam o mundo configurado anarquicamente e por hierarquias, no qual apenas o masculino participava e dominava com total exclusão do feminino. A diversificação de metodologias é vista como importante contribuição desse debate às Relações Internacionais. As mudanças históricas introduzidas com o fim da Guerra Fria, culminando com o afastamento da denominada alta política (realpolitik) em favor da ascensão da baixa política, somando-se a emergência de novos paradigmas como a interdependência (Keohane e Nye, 1998) e dos atores não estatais, seus diferentes cenários e surpreendentes protagonismos (Oliveira, 2014), levaram a presença das mulheres a ocupar espaços e cargos até então destinados exclusivamente aos homens. Em consequência dessas novas variáveis, foram operando-se também mudanças no desempenho dos papeis masculinos, até ai reconhecidos únicos sujeitos de direitos nas sociedades, invertendo-se então seus papeis, o que passou a conferir possibilidades e mais espaços às mulheres, demonstrando o avanço de suas conquistas e o poder de gênero na esfera das Relações Internacionais. Finalmente isso ocorreu com a abertura proporcionada pelo denominado terceiro debate à luta e conquista de gênero, assunto abordado ao longo deste ensaio. 4 A QUESTÃO DOS DEBATES E A NEUTRALIDADE DE GÊNERO 4.1 SURGIMENTO E SUCESSÃO DE DEBATES As Relações Internacionais, como disciplina, encontra-se ocupada com reflexões sobre a complexa realidade contemporânea, cujos contornos configuram a necessidade de um novo emergir epistemológico para poder compreendê-la, levando seus estudiosos a sentirem-se 24


preocupados com esse seu consequente quadro fenomenológico, tornando-se evidente a exigência de teorias e de outros paradigmas que possam oferecer alternativas de compreensão e interpretação em busca de soluções. Neste sentido de construção de sólido arcabouço teórico à reconhecida disciplina de Relações Internacionais, na década de 20, do século 20, foram registrando-se diversos tipos de questionamentos e que culminaram em sérias discussões e distintas críticas – singulares disputas acadêmicas – que se tornaram conhecidas tradicionalmente como os grandes debates das Relações Internacionais. Em breve retrospectiva histórica, pode-se observar que esse conhecimento encontra-se marcado por uma sucessão desses debates. A disciplina de Relações Internacionais, desde seu nascimento e posterior evolução de quase um século, tentou percorrer marcante caminho em busca de amadurecimento. Nesse seu itinerário passou a reunir novos processos teóricos, o que tem acontecido com regularidade, ficando tal prática conhecida por debates, os quais foram apresentando outras teorias e diferentes conceitos. Não obstante, se tal comportamento poderá levar a uma melhor apreensão e compreensão das novas relações sociais internacionais, por outro lado, também tem gerado discussões de grande dimensão e ferrenhas disputas, ocasionado grandes confusões em seus impulsos apaixonados e de querer ampliar cada vez mais o âmbito desse conhecimento. A sucessão destes debates, por outro modo, foi sendo motivada por um conjunto de especiais circunstâncias, principalmente a própria realidade de cada novo período foi originando um desses debates, traduzindo neles os impactos dos acontecimentos marcantes dessas mesmas épocas. Igualmente a interdisciplinariedade da disciplina com outros conhecimentos, influenciou na construção de outras abordagens teóricas. Na sua configuração, o debate inicial caracterizou-se pelas discussões acadêmicas ocorridas nas décadas de 30 a 40, do século 20, sendo travadas entre os idealistas e os realistas. O segundo debate, por sua vez, teve seu registro nas décadas de 50 a 70, enfrentando disputas teóricas entre os tradicionalistas de um lado e os behavioristas, de outro. Na sequência, o terceiro debate, conhecido como interparadigmático, estendeu-se da década de 70 a 80, sendo sucedido pelo quarto debate, surgido aproximadamente nos anos 90, encontrando-se em evolução. Sem dúvida, entre outros tantos resultados decorrentes das discussões desses debates, pode-se mencionar a extraordinária transformação, que gradativamente foram proporcionando às Relações Internacionais.

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Em suma, o assunto dos debates projetou-se de forma marcante para o centro teórico da disciplina das Relações Internacionais, passando a constituir praticamente uma das motivação de sua consolidação e também de sua importância junto aos demais conhecimento das ciências humanas. Se as questões dos objetos material e formal e os estudos dos conceitos e da metodologia desta disciplina haviam ocupado os estudiosos em suas análises anteriores, os diferentes debates preocupava-se em buscar referências e valores que pudessem interpretar o mundo e sua própria e mutante realidade. Nesse sentido, os debates, além de focalizar questões importantes da realidade histórica e fática de cada época, centravam-se em outras implicações essenciais. Faziam-se necessário, por exemplo, distinguir as relações mais polêmicas, definir o seu conteúdo material e delimitar uma adequada metodologia, levando em consideração a evolução das Ciências Sociais, a emergência dos atores não estatais e o impacto de suas interações e influências junto a sociedade internacional contemporânea, o surgimento de denotados problemas e quase sempre o agravamento dos anteriores. Na continuidade, para maior entendimento do assunto aqui apresentado, serão focalizadas algumas diferenças entre debates e as denominadas ondas. 4.2 DISTINÇÃO ENTRE DEBATES E ONDAS Necessário se faz distinguir, o que são as chamadas ondas estudadas no campo das ciências humanas, dos debates ocorridos nas Relações Internacionais. Da Silva (2013: 32-36) apresenta pormenorizadamente estas diferenças. Tal distinção – como já citada previamente – ajuda o leitor a não utilizar estes dois fenômenos de conhecimento como sendo idênticos, o que seria equivocado. Além disso, há variada gama de dissertações, obras, artigos e textos que tratam das ondas feministas. Estas ondas estão intrinsicamente ligadas aos movimentos de lutas feministas, ocorridos já no final do século 19 e que, acima de tudo, tiveram extrema importância para muitas conquistas alcançadas em prol dos direitos das mulheres, por exemplo, como o trabalho remunerado, direito ao voto, etc. Joana Maria Pedro (2005: 79) afirma, que a primeira onda ―teria se desenvolvido no final do século XIX, centrando-se na reivindicação dos direitos políticos, sociais e econômicos [...]‖. Renata Guimarães Reynaldo (2012: 89) ressalta, contudo, que a primeira onda tem raiz anterior, iniciando-se no século 18 e se prolongando até o século 20.

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No que diz respeito à segunda onda, seu desenvolvimento se deu como luta contra diversas formas de opressão, principalmente com a ditadura na América Latina. Ainda conforme Joana Maria Pedro (2008: 67), ―esta onda estabeleceu novos termos, conceitos, discussões [...]‖, e uma interação entre diversos movimentos. Por último, a mais recente, data de meados dos anos 80, precisamente com as abordagens críticas pós-modernistas, provindas das Ciências Sociais. Interessante aqui é a mudança de foco nos estudos sobre as mulheres. O estudo então passou a centrar-se nas relações de gênero e nas diferenciadas categorias. Ana Nogueira (2005: 30) anota com firmeza: ―[...] as pós-feministas não querem que a mulher seja vista como vítima de um sistema patriarcal onipresente e opressor, vítimas que precisam ser protegidas‖. Agora é preciso garantir as mesmas oportunidades, e serem reconhecidas enquanto capazes de controle de suas vidas (2005: 30). Desse modo, percebe-se que os fenômenos de ondas e debates não são iguais, não esquecendo, por outro lado, que notadamente foi o terceiro debate, que levou as Relações Internacionais a abrirem espaço para a inserção do estudo de gênero em seu âmbito, usando para tanto a crítica feminista e assim desconstruindo-se a afirmação do gender-neutral em seu campo. 4.3 OS DEBATES E A NEUTRALIDADE DE GÊNERO Comumente, a via mais usada para entender-se o que foi a neutralidade de gênero, bem como sua inserção no âmbito das Relações Internacionais, encontra-se na discussão realizada, com ênfase, na perspectiva feminista, alicerçada nos debates gerados no cerne desta disciplina. Os debates constituem discussões que ocorreram ao longo de cinco décadas, tratando de buscar formas adequadas a conduzir as análises referentes à política mundial. Tais debates ocorridos no seio da disciplina de Relações Internacionais, todavia não devem ser confundidos com o fenômeno das ondas abordado nas áreas das Ciências Sociais, Antropologia e História. Devido ao fato, de que suas origens são subjacentes aos períodos e aspectos históricos dos movimentos feministas, suas reivindicações, conceitos, análises de categorias, entre outras variáveis (Da Silva, 2013: 32). As contribuições das teóricas feministas ao campo de conhecimento da política internacional ajudam, portanto, na identificação de elementos que possam levar à compreensão deste cenário, ou seja, do estudo de gênero nas Relações Internacionais.

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Assim sendo, são reconhecidos, mas nem sempre respaldados, a existência de quatro debates no âmbito desta matéria. Estes debates tiveram forte influência das abordagens teóricas das Ciências Sociais. O primeiro debate, portanto, denominado de discussões ontológicas, apresenta seu foco no uso da normatividade, sendo defendido pelos idealistas. Tickner (2001: 22) situa este debate no período compreendido entre as décadas 30 e 40, do século 20. Segundo esta autora, a forte influência do realismo político nas teorias das Relações Internacionais então girava em torno da causalidade das guerras, além da ascensão e queda dos Estados (1992: 10). Primeiramente surgiam contendas de cunho idealista, substituídas logo após pelo realismo político, considerado capaz de dar respostas às questões de poder militar, guerra, e soberania. Elementos considerados pelos teóricos realistas gender-neutral. Contudo, autoras como Cynthia Enloe (1990) e Sylvester (1994), em suas obras desconstroem o gender-neutral, demonstrando que as mulheres desempenhavam papel essencial na esfera internacional. O debate seguinte ocorreu com forte influência da teoria behaviorista. Nesse momento, o foco passou a ser a respeito de discussões metodológicas. O anterior se preocupava com o que estudar e agora a discussão era como estudar. Nogueira e Messari (2005: 4) resumem a questão, dizendo que ―os realistas científicos defendiam absoluto rigor quanto ao conhecimento e maior influência dos métodos das exatas. Criticavam também a falta de diálogo com outras áreas da ciência do saber [...]‖. Tickner (2001: 23) esclarece, ainda, que este período caracterizava-se pelo desejo e controle de predizer os futuros acontecimentos do cenário internacional, mesmo porque presenciava-se, neste período, a turbulenta Guerra Fria. Nesse debate ainda predominavam as bases do realismo político. A questão de gênero na esfera das Relações Internacionais, portanto, ganharia ênfase com o terceiro debate, conforme afirma Fred Halliday (1999: 162), de emergência tardia, já que predominava em diversas outras áreas, tais como, a História, Antropologia, as Ciência Sociais. Por último, o quarto debate destacaría-se pelas discussões científicas, surgido em meados dos anos 80, foi evoluindo com firmeza na década de 90, adentrando no século 21, substituindo rapidamente o anterior (Da Silva, 2013: 29). Steans (2006: 24) afirma que durante este período de indagações, as contribuições feministas foram ainda mais significativas, com o desenvolvimento de crítica distintiva do denominado mainstream, defendido pelos realistas. Suas análises expuseram

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vieses de gênero presentes nos conceitos chaves da disciplina de Relações Internacionais, a partir de símbolos e imagens propagadas em textos realistas e neo-realistas. 5

GÊNERO E A IMPORTÂNCIA DO TERCEIRO DEBATE

5.1 CONOTAÇÕES E CONCEPÇÕES PARADIGMÁTICAS A visão das Relações Internacionais – por meio do uso e orientação de paradigmas – passou a configurar a caraterística fundamental desse terceiro debate, adentrando e permanecendo por duas décadas nos estudos dessa disciplina, como nova concepção de imagem do mundo e forma adequada de investigação e interpretação de problemas da sociedade contemporânea. De outro modo, tal debate colocou em cheque tanto a noção como a apreensão da realidade das relações internacionais, além da delimitação e critérios relativos ao seu o objeto de conhecimento. Em consideração mais restrita e na tentativa de abarcar seu significado semântico, o termo paradigma, com derivação do Grego – parádeigma – passou, em Latim, a ter o sentido de modelo, padrão, estalão, já em outros idiomas como o inglês, veio a traduzir o sentido de exemplo (Holanda Ferreira,1989). Assim ilustrado o assunto, Gilberto Marcos Antonio Rodrigues (1994) entende que um paradigma das Relações Internacionais comporta visão ampla – compreensão e interpretação – dos fenômenos internacionais ou mundiais, com base em um método, cuja finalidade é analisar os fatos que estão acontecendo no cenário internacional. Em suma, um paradigma seria uma forma ordenada de entender a realidade internacional. No entendimento de Kal Hosti (1985) e indagando sobre a funcionalidade do conceito de paradigma, observa esse autor que sua função direciona-se a colocar coerência em um universo infinito de dados e acontecimentos, os quais por si só não revelam nenhum significado. Nesse sentido, o paradigma vem fazer o papel de mapa mental do teórico, servindo de guia à pesquisa, oferecendo uma imagem do mundo, já que os fatos não falam por si, tampouco representam uma única imagem do mundo. Para Philippe Braillard (1990), o estudo das Relações Internacionais carece de modelo interpretativo adequado e que possa ser longamente usado pelos seus pesquisadores e, por sua vez, os paradigmas existentes e disponíveis apresentam-se opostos entre si. São irredutíveis e profundamente heterogêneos. 29


Tal heterogeneidade, segundo esse autor, encontra-se ligada a elementos de natureza epistemológica em função dos processos cognitivos utilizados, ou seja, das orientações teóricas usadas nas abordagens de cunho essencialista, empírico, e dialético-histórico, concebidas mais como teorias de oposição do que de complementariedade, contempladas no campo das Ciências Sociais. As Relações Internacionais, ratificando as afirmações de Braillard, não dispõem de uma ampla teoria geral sobre sua complexa especificidade e significativa natureza, tampouco de um paradigma de desenhos assim tão abrangentes, sequer de um quadro teórico adequadamente explicativo e que permita circundar e interpretar seu objeto de conhecimento, o que vem provocando no âmbito de sua disciplina muitos desacordos e disputas teóricas – ensejando o surgimento do terceiro debate – em torno da questão paradigmática, também conhecido como debate interparadigmático. Mais precisamente nas décadas 70 e 80, foi sendo desenvolvida ampla bibliografia sobre essa discussão, observando Esther Barbé (1995), que a maior parte da produção acadêmica das Relações Internacionais elaborada nos anos 80, girou em torno dessa temática (1995: 56), já que a mesma constitui um marco de relevância fundamental nesse sentido, concentrando-se em torno de desenhos e valores de interpretação, uma vez que a disciplina necessita de parâmetros consistentes à apreensão e explicação de seus fenômenos. Para o terceiro debate, tratava-se de indagar qual o modelo mais adequado à compreensão da realidade dos fenômenos das Relações Internacionais. Tal razão interpretativa deveria mostrarse de forma clara e objetiva. A mobilidade dinâmica das relações sociais internacionais, porém encontrava-se perpassada por rápidas e radicais mutações, destacadas principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, o que tornava tarefa complexa e difícil a eleição de competentes modelos paradigmáticos. Como fazer para compreender e interpretar a realidade das relações internacionais dia a dia mais complexa, multiforme e heterogênica? Os enunciados teóricos que tentavam fazê-lo, deveriam levar em consideração que a seleção dos fatos – que vão descrever e explicar – são relativos à realidade da sociedade internacional, porém devendo observar de que a teoria e a realidade são inseparáveis. Os paradigmas são interpretações literalmente abstratas, que se ajustam a conceitos e esses a uma teoria, por sua vez, essa teoria reflete a imagem subjacente do mundo, cada imagem da teoria das Relações Internacionais forma parte de uma teoria mais geral, um mostrar assinalando como está estruturada a sociedade internacional e quais os seus problemas mais 30


significativos, entre eles, avulta a questão de gênero. À construção dos mapas mentais são apontados três critérios fundamentais: a unidade de análise ou de ator internacional, o problema de estudo, e a imagem do mundo (Braillard, 1990: 18). Nessa mesma direção, observa Michael Banks (1984), ser ingênuo e superficial procurar entender as Relações Internacionais analisando apenas e unicamente acontecimentos, para isso necessita-se da base dos postulados teóricos, já que a teoria não se presenta como algo oposto à realidade, devendo ajustar-se a conceitos abstratos e estes a uma teoria, com a qual se poderá obter uma imagem do mundo, mostrando, por exemplo, como está hoje estruturada a sociedade mundial. Ainda e com relação ao citado sentido de confusão e séria disputa teórica vivenciadas no campo das Relações Internacionais, ocorridas no período compreendido da vigência do terceiro debate interparadigmático, alguns autores passaram a identificar o marxismo e o behaviorismo como verdadeiros paradigmas da disciplina, enquanto outros argumentavam que o modelo idealista não se diferenciava daquele denominado de realismo político, já outros simplesmente negavam até a existência desse modelo idealista ou conhecido como utópico e ainda uns firmavam posição fechada, reconhecendo somente dois parâmetros, o estruturalista e o pluralista, também outros advogavam a possibilidade de conformação de um único e amplo paradigma, com diversificadas variedades, desmembramentos e características. Por outro lado, juntava-se mais uma questão bem polêmica ao âmbito do terceiro debate, argumentada durante praticamente duas décadas, configurada no difícil consenso entorno da possibilidade de juntar-se todos os paradigmas das Relações Internacionais em um só modelo – uma unidade – para e dessa forma obter visão conjunta e complementar da dimensão da sociedade internacional. Concretização complexa e impossível de ser materializada, em virtude dos limites dos próprios desenhos e opções ideológicas subjacentes de cada um dos diferentes paradigmas, além de suas abrangências históricas e filosóficas e principalmente pelas diferenciadas relações sociais ocorridas em de cada período histórico desses modelos, situações que mais afastavam os paradigmas do que os aproximavam e que não os poderiam integrar. As Relações Internacionais – voltadas presentemente à realidade da sociedade contemporânea global – poderão encontrar adequação paradigmática na tendência do chamado pluralismo teórico5, com seu predomínio humanista no homem como o verdadeiro ator das Relações Internacionais e sujeito do Direito Internacional, ao lado dos demais atores e sujeitos, Nas Relações Internacionais usa-se o termo pluralismo no sentido amplo, designado pluralidade de teorias, métodos e paradigmas (Barbé, 1995: 182). 31 5


apesar da grande dificuldade encontrada para a sua consolidação no campo de sua práxis (Oliveira, 2004: 69-128). 5.2 CONTRIBUIÇÃO INTERPARADIGMÁTICA À INSERÇÃO DE GÊNERO Por que o terceiro debate centrou suas atenções exatamente na questão interparadigmática, possibilitando, desta forma, abertura à inserção de gênero no campo da disciplina de Relações Internacionais? Razões fundamentais estão implicadas nessa indagação. Pretendendo apresentar-se como uma verdadeira imagem do mundo, para tanto deveria identificar-se na própria realidade desse universo e ali deparou-se exatamente com a questão de gênero, entre outras variáveis, necessitando para isso de um fio condutor, inspirando-se e se conduzindo por meio de modelos – desenhos consistentes – para apreender e interpretar essa mesma realidade e a conformação de sua constante evolução, observando e atendendo as rápidas mudanças de ordem social, política, econômica, cultural, religiosa, técnica, científica e principalmente humana, em especial, a luta feminista em torno do conhecimento de seus direitos. De outro modo, o surgimento de diferenciados e importantes atores não estatais, como o caso de gênero, suas complexas interações, novos e impactantes cenários, agendas e fortes protagonismos, passaram a motivar alterações fundamentais junto a sociedade internacional e, como não poderia ser de outra forma, tal contexto passou a exigir concepções próprias para a compreensão desta desconhecida realidade internacional, fazendo emergir outros paradigmas, os quais foram sendo confrontados com o modelo tradicional, além de contestar a realidade mesma das Relações Internacionais frente às profundas mudanças contemporâneas e suas características tão relevantes, o que motivou o reconhecimento por parte de quase todos os autores da existência de três paradigmas e suas variantes: tradicionalista, estruturalista e transnacionalista. Essas denominações apresentam variações, dependendo da formação e entendimento dos autores. Por exemplo, o modelo tradicionalista6, tornou-se também conhecido como clássico, do realismo político, estatocêntrico, realpolitik e do poder político, enquanto que o estruturalista 7

Esse paradigma apresenta-se no contexto histórico da Guerra Fria, tendo como unidade de análise o Estado e como problema de estudo a segurança nacional de base militar, configurando como imagem do mundo – uma mesa de bolas de bilhar, ou seja, o próprio conflito (Barbé, 1995: 62). 7 Esse paradigma apresenta-se no contexto da pós-descolonização, tendo como unidade de análise o sistema capitalista mundial e como problema de estudo as relações centro-periferia, configurando como imagem de mundo – um polvo de várias cabeças (Estados centrais), alimentado por tentáculos (Estados periféricos) (Idem, 1995: 69). 32 6


abarca o paradigma da dependência ou do neomarxismo, por sua vez o transnacionalista8 conforma o modelo da sociedade global ou mundial, do globalismo, pluralismo ou da interdependência (Oliveira, 2003). Autores brasileiros (Bedin et al, 2011), na obra Os Paradigmas das Relações Internacionais, abraçam a tese da existência de quatro modelos distintos, como o idealismo, realismo político, dependência e a interdependência, enquanto que a análise paradigmática, junto a obra Relações Internacionais, Interdependência e Sociedade Global, apresenta visão binária:

configurações

tradicionalistas e pluralistas (Oliveira, 2003: 33-114). Os citados

paradigmas, destinados à interpretação da realidade fenomenológica do

objeto de conhecimento das relações Internacionais, apresentam-se, contudo, limitados para essa finalidade, em consequência de suas insuficiências implícitas, decorrentes da própria natureza mutante dessa disciplina e pelas diferenças constantes de cada período histórico, que os envolvem e os caracterizam ao concentrarem ênfase a determinados vieses importantes das Relações Internacionais, todavia poderão não abranger todas e outras partes igualmente importantes do âmbito de uma realidade sempre e extremamente cambiante (Ekkhard e Krippendorff, 1993). A utilização das ideias paradigmáticas de Thomas Kuhn (2003) no campo das Relações Internacionais, serviu tanto para interpretar a sua própria historia como disciplina quanto para conformar um quadro teórico mais sólido nos anos 70 e 80, cuja expressão – debate interparadigmático – foi atribuída a Michael Bansks (1984), mais especificamente nos idos de 1985, enquanto que as propostas teóricas de Kuhn, no início, não produziram resultados tão satisfatórios, sendo ainda notadamente criticadas, todavia, não há como negar seu significativo valor histórico e sua evidente abertura para os demais conhecimentos como um todo. Nesse sentido, sua clássica e polêmica obra, lançada inicialmente em 1962, na cidade de Chicago e, em 1971, no México, A Estrutura das Revoluções Científicas, tornou-se um dos constantes motivos de discussões no âmbito do terceiro debate. Por que o terceiro debate tornou-se conhecido como interparadigmático? Entre outras variáveis, cita-se como uma das razões, o motivo configurando-se em um leque de aberturas direcionadas às novas abordagens teóricas, as quais aconteciam no âmbito das Ciências Sociais, no final dos anos 70 e durante os anos 80, também direcionando-se às Relações Internacionais.

Esse paradigma apresenta-se no contexto da distensão, tendo como unidade de análise a pluralidade de atores internacionais (estatais e não estatais) e como problema de estudo as relações derivadas da atividades humanas em um mundo altamente desenvolvido (meio ambiente, relações comerciais, etc.), configurando como imagem do mundo – uma rede ou uma teia (interdependência) (Idem, 1995: 67). 33 8


Entre as variadas abordagens, estavam o pós-positivismo, o construtivismo, o pós-modernismo ou pós-estruturalismo. A abordagem pós-positivista abriu espaço para a inserção dos pensamentos feministas no campo das Relações Internacionais. Segundo Peterson (1992: 186), o terceiro debate permitiu a desconstrução da lógica binária dos pensamentos e teorias realistas. Afirma ainda esta autora, citada por Da Silva (2013: 28), que os pós-positivistas não estavam preocupados em questionar, se ―armas ou Estados-nações realmente existem, mas como e porque sistemas sócio-linguísticos constituem estes objetos, em particular, formas contingentes‖. Steans (2006), em sua obra Gender and International Relations: issues, debates and future directions, reconhece, ainda, a importância da abordagem do pluralismo liberal, representando desafio às bases hierarquizantes das Relações Internacionais, divididas em ―altas‖ e ―baixas‖ políticas, questionamento bem relevante para desconstruir a defesa de que as temáticas de gênero atrelamse às esferas privadas. Outros autores (Sylvester, 1994; Halliday, 1999) ainda chamam a atenção, para o fato de que este terceiro debate veio romper com o processo de indexação da produção literária das Relações Internacionais, onde apenas temas do realismo e neo-realismo ganhavam espaço nas publicações. Assim sendo, foram esses elementos, entre outros, que promoveram, mesmo que tardiamente, a inserção de gênero, no inicio dos anos 80, no estudo da política internacional. Hoje, amplamente divulgado, estudado e pesquisado ao redor do mundo, promovendo uma interdisciplinaridade capaz de transformar os cenários políticos de muitos países. Exemplos são as novas presidentas eleitas, chefes de Estados, ministras, presidentas em organizações internacionais, além de mudanças nas leis, observando-se os papéis e as relações de gêneros. 6 CONCLUSÃO Historicamente, enquanto gênero foi ganhando destaque nas disciplinas de História, Ciência Política, Sociologia, Antropologia, o mesmo não aconteceu com as Relações Internacionais, onde foi simplesmente ignorado ao longo dos anos, integrando somente a agenda de estudos e pesquisas dessa disciplina no século 21. Mais precisamente nos anos 80 e também 90, na vigência e contribuição do denominado terceiro debate e inicio do quarto, autoras pioneiras como Cynthia Enloe, J. Ann Tickner, Jean 34


Bethke Elshtain, em suas obras e por meio da aproximação de seus diálogos e críticas construtivas, buscaram positivar o acesso de gênero no âmbito de conhecimento das Relações Internacionais. No século 21, gênero vem sendo considerado emergente ator internacional, influenciando e confluindo cenários, potencializando possibilidades, ensaiando forças e conformando impactos de seus protagonismos. A inserção de gênero no âmbito das Relações Internacionais necessitou, para ser ali aceito como nova categoria de análise, comprovar requisitos, notadamente identificar suas bases, apresentar abordagens teóricas próprias do pensamento feminista, construir conceitos e metodologias especificamente adequadas. Entender e demonstrar como gênero, consolidado como categoria relacional de análise, ocorre nas Relações Internacionais, não constitui tarefa fácil. Existem hoje várias referências teóricas para fortalecer e embasar suas premissas e assim dia após dia vai amadurecendo suas ricas contribuições de experiências práticas e reflexões teóricas. Na atualidade, o estudo de gênero encontra-se já institucionalizado em várias universidades estrangeiras, como área de concentração da disciplina das Relações Internacionais. No Brasil, o tema vem tornando-se lentamente conhecido e adotado. Neste ensaio, considera-se gênero uma noção cultural e social historicamente construída. Não tratando somente de determinantes biológicas e psicológicas diferenciais entre homem e mulher, ou de relações de subordinação de mando e desmando do masculino sobre o feminino. O entendimento de gênero, ao contrário, envolve-se com uma dimensão plural bem mais ampla, tendo como marco o antecedente de destaque do século 19 e seus movimentos de lutas das mulheres, pelos seus direitos e emancipação de suas liberdades. Os conhecimentos e as experiências das mulheres, nesse sentido, constituem contribuições e reflexões notadamente válidas, para apreender, compreender e interpretar as Relações Internacionais contemporâneas, conformando-se gênero, desse modo, como forma feminista de ver e analisar a realidade complexa da sociedade em que se vive. Na evolução deste século 21, entretanto, tal sociedade e seu avançado desenvolvimento encontra-se lamentavelmente – ainda tão marcada por valores e conceitos prioritariamente hierarquizados e assim estruturados, em vez de primar por resultados positivos de uma necessária atuação conjunta – masculino e feminino – no âmbito do importante e fundamental conhecimento

das Relações Internacionais, nesses tempos de riscos, turbulências e

complexidades globais. 35


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A RAZÃO NASCEU DO ÚTERO E A DOR DA INTOLERÂNCIA: DIREITO HUMANO AO PARTO HUMANIZADO FRENTE A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Marcelo Alves Pereira Eufrásio9 Sumário: 1 Introdução. 2 A razão nasceu do útero e a dor da intolerância. 3 A violência de gênero em face do estigma da submissão feminina. 4 Do útero à alteridade: direito humano ao parto humanizado. 5 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO Este estudo apresenta uma abordagem acerca do Direito Humano ao parto humanizado e a problemática da intervenção cirúrgica através do parto cesariano. Nesta reflexão jusfilosófica acerca da violência obstétrica contra a mulher e a criança, pretende-se enfocar aspectos como o nascimento da racionalidade humana na antiguidade clássica a partir do método socrático, que fundamenta também o juízo moral clássico. Sendo este aspecto deontológico responsável pela constituição da teoria do conhecimento referente aos direitos de solidariedade, que também contemplam em seu rol de garantias, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Mediante este estudo categórico sobre a dinâmica de construção do útero feminino como espaço do saber e do cuidado, se instaurou uma preocupação contemporânea acerca da violência obstétrica, representado cada vez mais na atualidade pelo procedimento cirúrgico denominado de "parto cesariano". Para pensar a questão da valorização do parto humanizado diante da recusa de parte dos profissionais da saúde pela humanização do parto em decorrência da crescente influência nas sociedades tecnocracias e mercantilistas da desumanização do corpo da mulher no momento de dar à luz, foi utilizada a categoria filosófica da alteridade em Lévinas, para entender a relação metafórica entre o Eu e o Outro, representado pela ligação materna entre a mãe o filho. Neste ponto, o texto segue discutindo e apresentando as conclusões sobre a necessidade de respeito e alteridade no parto, como fenômeno natural que se confunde com os direitos personalíssimos da mulher, tendo como objetivo protegê-la contra a violência no parto. 2 A RAZÃO NASCEU DO ÚTERO E A DOR DA INTOLERÂNCIA A violência se constitui numa manifestação de poder expresso em diferentes relações sociais, pelo qual, agressor, agredido ou meio empregado para a consecução de tal ação estão Doutor em Ciências Sociais - UFCG. Professor do curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas - FACISA e Pesquisador Bolsista do CNPq - Nível C. 39 9


intimamente associados por poderes sobrepostos. Em sede de casos de agressão que ocorrem em diferentes situações cotidianas, o silêncio por parte da vítima ou de testemunhas, significa dizer que se estabeleceu o poder da intolerância e do medo, sendo o exercício da linguagem uma forma de expressar a humanidade das pessoas a partir do diálogo e do discurso, em razão das violências, o diálogo deixa de existir, o que torna as pessoas desumanizadas. Essa constatação epistemológica referente à ausência de comunicação e de construção de uma conjuntura propicia ao desenvolvimento das essências do gênero humano, decorre da ausência de espaços de diálogo, de interações intersubjetivas, que deveriam expressar a construção do conhecimento. Na sua ausência da liberdade de atuação do feminino nas sociedades contemporâneas tem se alimentado reiteradas situações de violência. Em decorrência da desumanização da figura da mulher, em razão da sobreposição do poder masculino, conseqüentemente da investidura da liberdade de expressar a palavra, verbalização do seu pensamento e de sua vontade, o silêncio significou a imposição do duro monólogo que se inscreve na trajetória das mulheres, reprodutoras e legitimadoras de diferentes expressões da violência: simbólica, moralizadora, religiosa, jurídica, economicista, tecnicista e totalitária, em que o temor frente ao aumento e intensificação do contrapoder ou da criminalidade é geralmente o elemento reprodutivo dos problemas sociais. A origem e a transformação de tudo o que existe na natureza já eram questões discutidas pelos primeiros filósofos, há mais de 2,5 mil anos, na Grécia Antiga. Heráclito de Éfeso 10 (GHIRALDELLI Jr., 2006), um desses primeiros filósofos, dizia que tudo o que percebemos como imutável é uma ilusão, pois a vida é uma constante transformação. Tudo muda o tempo inteiro. Não existe nada estático. Para ele, entre o fogo, o ar, a terra e a água, efetua-se um ciclo de transformações, porque a terra torna-se água, a água nuvem, e depois ar, o ar se inflama e torna a se converter em fogo. Assim sendo, o que predomina no processo de construção da temporalidade e da espacialidade, na verdade, é a mobilidade, inclusive do gênero humano. Neste diapasão, na ótica de Heráclito de Éfeso nada permanece, pois comparando as coisas com um rio que corre "ninguém se banha duas vezes nas águas do mesmo rio". Uma grande constatação clássica que remete a coabitação da mulher com a filosofia, isto é, do sexo feminino com o pensar racional é que o grande fundador da filosofia é o útero. A filosofia (do grego Φιλοσοφία: philos - que ama + sophia - sabedoria, que ama a sabedoria), nasceu

Heráclito nasceu em Éfeso, cidade da Jônia, de família que ainda conservava prerrogativas reais (descendentes do fundador da cidade). Floresceu em 504-500 a.C. - Heráclito é por muitos considerados o mais eminente pensador présocrático, por formular com vigor o problema da unidade permanente do ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias. Heráclito diz: "Tudo flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo". 40 10


do útero em virtude da constatação de que um dos grande ícones da filosofia clássica, o ateniense Sócrates inaugurou no século V a. C. o método da maiêutica (obstetra - parteira), como sendo ele o conjunto de regras metódicas baseadas na ironização e no diálogo, deduzindo que este seria uma forma de exercício do conhecimento racional e que ao homenagear sua mãe Fenareta, que era parteira, estaria metaforicamente propondo o nascimento do conhecimento filosófico. Como Sócrates não poderia ser parteiro dando a luz à crianças, sendo este um ofício nobre do universo feminino, como sua mãe, ele constatou que poderia dar a luz ao conhecimento. Então, a maiêutica é uma espécie de parto, partejar de idéias. Então, o filósofo ajudaria o outro dar a luz as idéias, algo que saí de dentro para fora, como se fossem um filho. Sendo assim, a filosofia funciona dentro do universo da metáfora da maternidade, recriando o pensamento socrático o ofício da parteira no universo materno. Como a racionalidade apareceu no Ocidente como tábua de salvação para humanidade corrompida pela ignorância e injustiças praticadas na cidade antiga, a dimensão do feminino simbolicamente representado na maternidade que gera as idéias a partir do método socrático encena o nascimento do conhecimento filosófico, que historicamente foi cobiçado como propriedade masculina, já que o parto natural é virtude do universo feminino. Desde os pré-socráticos até a contemporaneidade o exercício do dia-logo esteve presente com muita propriedade na formação do conhecimento humano, pois o gênero humano precisa da criação intersubjetiva para criar conhecimentos empíricos e intelectuais. O filósofo grego propôs que ali estaria reproduzindo uma das maiores virtudes humanas, imitando uma mulher, estaria dando a luz uma vida, não uma vida uterina e gestacional, mas a razão humana que deveria sair das entranhas da humanidade. O útero, naturalmente um órgão feminino, simbolicamente passou a representar a geração do conhecimento humano. Pelo exercício do método socrático, se tinha por habilidade discutir a partir de perguntas e respostas para descobrir a(s) verdade(s). Os antigos gregos com a idéia de oposições e contradições presentes na assimilação do conhecimento tiveram o diálogo (dialégomoi; dialetiké – arte de dialogar), como elemento nascedouro das oposições que agem na temporalidade, de fato, como uma categoria colocada em termos extremamente significativos. Quando aparece no cenário grego uma possível filósofa, as estruturas sociais cuidaram de marginalizá-la como figura subalterna para evitar a democratização do acesso ao pensamento racional. Em tempos de muitas inquietações acerca do espaço do feminino nas diferentes esferas da sociedade e diante da marginalização da figura das mulheres nas sociedades baseadas no sistema escravista da Antiguidade Clássica, além da ausência da expressão do verbo feminino, sua 41


trajetória é representada por uma figura icônica do Ocidente, de uma "filósofa marginal" (resistente) numa época predominantemente patriarcal e escravista. Saída das cenas dos escritos de Plutarco, revela-se a figura de Aspásia, uma linda e sedutora ―filósofa‖ que pintada em telas renascentistas, aparece encantando Alcebíades, que arrancado dos braços da moça por Sócrates, o filósofo grego parece demonstrar ciúmes diante dos encantamentos da jovem. São encontramos alguns registros que lembram que Aspásia era da classe dos metecos e filósofa sofista. Nos relatos históricos da Antiguidade, Aspásia estava na casta dos metecos (estrangeiros) e teve a oportunidade de dedicar-se a Academia (do grego Akademus), que se tornou por volta do séc. III a.C. o lugar por excelência criado por Platão, para que os demais pensadores pudessem discutir questões referentes à filosofia no lugar chamado jardim de Akademus como formar de educar os participantes. Por tamanhos encantamentos e beleza, os testemunhos e registros históricos contam que Péricles, governador de Atenas no século V a.C., teria se divorciado para casar-se com Aspásia devido a sua refinada inspiração cultural e encantamentos sexuais. Este fato teria marcado Aspásia como cortesã na sociedade ateniense, ou seja, uma ―prostituta‖ requintada e cheio de gracejos. Nestes termos denota que a filosofia embora se tratando de um conhecimento nascente do útero feminino metaforicamente representado pela maiêutica socrática, caiu na marginalidade em decorrência do poderio do macho. Cenas de dor pelo silêncio da razão e pela mordaça nos lábios femininos são reproduzidas em cenas da historicidade da humanidade, em termos que o conhecimento se coloca a serviço da vontade dos que envernizam os interesses patrimoniais em detrimento da essência da condição humana, a vida. 3 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM FACE DO ESTIGMA DA SUBMISSÃO FEMININA A história da humanidade compreende, numa perspectiva antropológica, as relações que os homens exercem entre si, para construir as sociedades habitáveis. Entretanto, essas relações humanas muitas vezes são acompanhadas de fenômenos de competição, rixa, disputa e violência. Como salienta Costa (1997) para pensadores como Marx, Engels e Hobbes a origem da violência remonta às organizações humanas mais primitivas. Tudo indica que foi a revolução agrícola que, transformando radicalmente as relações humanas e o meio, introduziu aspectos 42


novos de organização social. Assim, o desenvolvimento da agricultura exigiu novas relações sociais que acabaram gerando a violência como instrumento de regulação social. Nesse sentido, ―os homens passaram a utilizar a violência como meio de coibir e punir formas de comportamentos desviantes‖ (Op. cit., 1997, p. 283). Observa ainda Costa (1997, p.283) quanto ao fenômeno da origem da violência:

Manutenção de direitos e privilégios, conquista de bens epunição a atitudes consideradas nocivas pela sociedade representam a origem de uma atitude permanente de agressão e defesa que marcará todas as sociedades humanas. Cada uma delas vai procurar, por antecipação, armar-se e desenvolver estratégias guerreiras contra seus inimigos potenciais.

A violência, como lembra Santana (2003), é uma manifestação que se expressa didaticamente de acordo com o agressor, o agredido ou o meio empregado para a consecução de tal ação. Diferentemente dos outros animais que usam da violência apenas para conquistar o alimento, a fêmea ou defender-se, os seres humanos têm na agressão o caráter particular, individual ou de premeditação, sistemática e por vezes mortal de um indivíduo ou grupo contra outro. Nesse sentido, a violência enquanto fenômeno humano compreende relações de poder, em que o homem estaria armado da possibilidade de subjugar o outro pela força, pela dissimulação ou pela coação. Porém, em diversas épocas históricas, significou uma representação de poder ou de organização social, mas nem sempre condicionada necessariamente à força ou à coação, pois que, as estratégias arrojadas e dissimuladas de manipulação do outro remetem à própria sobreposição de poderes, do pai para com o filho, do esposo em relação à esposa, do rico ao pobre, do patrão quanto ao empregado, do policial ao criminoso, da nação desenvolvida frente à nação pobre etc. Com efeito, a violência enquanto fenômeno humano tem na representação das relações culturais e antropológicas, pela sujeição ou mesmo pela necessidade, sua maior expressividade. Assim, a condição com o meio, ou seja, a conjuntura social representa um grande suporte para alimentar a violência ou até agravá-la. Entende Diniz (1998, p. 781) no seu Dicionário Jurídico o termo violência como sendo: Violência. 1. Intervenção física voluntária de um indivíduo ou grupo contra outro, com o escopo de torturar, ofender ou destruir [...]. 2. Ato de constranger, física ou moralmente, uma pessoa para obrigá-la a efetuar algo contra sua vontade. 3. Força; emprego ilegal da força. 4. Opressão. 5. Qualidade de violento. 6. Tirania. 7. 43


Ação violenta. 8. Alteração danosa do estado físico da pessoa ou do grupo. 9. Irascibilidade. 10. Coação física ou moral.

Assim como Vigarello (1998, p. 678) esclarece a expressão nestas palavras: ―violência é todo ato de força praticado contra pessoas ou coisas, com intenção de violentar, destruir ou se apossar delas, pressupõe um ato de força, que não precisa necessariamente ser física, [...]‖. Enquanto Ferreira (1998, p. 1779) emprega uma leitura mais expressiva e polissêmica do termo ao destacar no verbo violentar o ―[...] exercer a violência sobre; forçar; coagir; constranger. 3. Forçar, arrombar[...]. 4. Torcer o sentido de; alterar, inverter [...]‖. Com isso, o exercer violência por meio da alteração do sentido das coisas ou da inversão de valores reflete a agressão sem a presença da força física. Conforme lembra Chauí (apud SANTANA, 2003) com muita propriedade, a violência é a conversão dos diferentes valores em desiguais e a desigualdade em relação ao superior e o inferior, como a ação que trata o ser humano não como um sujeito, mas como coisa em relação ao seu oponente. Então, essa condição avilta o sujeito humano porque retira dele sua dignidade e seu respeito de pessoa humana. Diuturnamente, a violência acaba sendo classificada em diversas terminologias conforme a situação, física, moral, sexual, policial, contra crianças e adolescentes, contra a mulher, doméstica, urbana, rural, no trânsito, entre tantos outros, exemplos que moldam a história da violência. Na verdade, a violência, através da força, da coação ou da dissimulação (sem força física, mas pelo uso de outros meios ardilosos), cria uma relação de subordinação e sujeição entre os indivíduos, pois essas relações de violência estão arraigadas em cada época da vivência humana. Para Odalia (1986, p. 12-13) ―o viver em sociedade foi sempre um viver violento. Por mais que recuemos no tempo, a violência está sempre presente, ela [...] aparece em suas várias faces‖. Desde o momento em que um antigo ancestral do homem (hominídeo) fez de um osso a primeira arma, a violência encontrou seu espaço nas mais diversas civilizações, nas comunidades caçadoras e coletoras, a violência foi processada como uma das condições básicas para sobrevivência do homem num mundo naturalmente hostil. Por isso, o homem teve a capacidade de produzir violência desconhecida pelos outros animais. Então, constitui a violência um acontecimento que institui a subjugação de um homem a outro homem, mesmo sendo naturalmente iguais, nessa relação desajustada, nasce a relação do superior e do inferior, por meio da força física ou moral, da coação, da dissimulação, do medo, da força da palavra, da desarticulação e manipulação dos sentimentos (entre parentes próximos, namorados, vizinhos, amigos, pais e filhos etc.) entre outros, tudo em nome da feição de uma 44


relação de poder e de conquista, não constituindo necessariamente numa relação positiva para o ser humano, mas numa relação de poder e de desumanização. A violência de gênero, particularmente quanto ao feminino, foi se constituindo historicamente a partir das necessidades materiais, principalmente em grupos humanos onde a figura masculina exercia a administração de bens. O que é constatado historicamente nas sociedades antigas que se desenvolveram a partir do modo de produção escravista, além de outras experiências que combinaram as sociedades servis e o patriarcado. Reforça o cenário de dor e submissão feminina, o estigma da ideologia transcendente medieval que perdurou em grande medida através dos séculos com fortes resquícios até hoje. A polêmica sobre a relação entre sofrimento físico e tortura remete as distinções mais pormenorizadas no sentido de chegar a um entendimento sobre a questão cultural e social. Entretanto, a cultura de castigar o corpo ou mediante vontade própria representa o contexto de várias concepções culturais em diferentes sociedades. Ora, a dor alheia tem sua história, ou seja, uma diversidade de razões e interpretações que só recentemente alguns historiadores e psicólogos vem se interessando sobre a temática do sofrimento físico e as diversas razões para sua aplicação. Para Duby (1990, p. 161) ―a maneira pela qual ela é percebida, a posição que lhe é dada no seio de um sistema de valores não é dadas imutáveis. Vemos bem que elas não são semelhantes nas diversas culturas que coexistem sob os nossos olhos. Elas variam no espaço. Elas também variam no tempo‖. Na época feudal, aproximadamente no ano 1.000 e o início do século XIII surgem evidências dessa referência à dor, muito embora a cultura do medievo não esteja tão preocupada com os sofrimentos do corpo. Com isso, os costumes empregados na sociedade medieval remetem diretamente aos suplícios, no que podemos identificar como cultura de castigar o corpo. A sociedade patriarcal da época tinha na figura do homem (masculino e militar), a identidade predominante, relegando em segundo plano a mulher confiando-lhe a posição de subordinação, ela que exaltava as virtudes viris da agressão e da resistência aos diversos problemas, mascarando as fraquezas e em todo caso, não fraquejar diante das provações físicas. Decorre daí, que o termo dolor [dor] e a palavra labor [trabalho], estavam intimamente relacionados ao sofrimento físico, cuja fundamentação ideológica poderia ser encontrada nos livros bíblicos e nos tratados de moral da antiguidade clássica. A tradição judaico-cristã reforçava a idéia de dolor e labor quando colocava esses dois conceitos como castigo e provação de Deus, respectivamente. Essa é a leitura encontrada na

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Bíblia, por desobediência Adão e Eva foram expulsos do paraíso e a partir desse momento estariam condenados, homem e mulher a morrer, mas também a sofrer. Para o homem, Deus confirmou que este ganhará o pão com o suor de seu rosto. Sendo que, a punição seria merecida já que os homens são pecadores. Portanto, é normal que sofram. Formalizada a condição do homem, o desprezo pela dor é inevitável, antes de tudo, a dor é problema de mulher. O homem para ser digno não pode sofrer e nem sentir dor, pois seria um retrocesso ser rebaixado à condição feminina. Afirma Duby (1990, p.163) a respeito: A tradição greco-romana vinha reforçar isso, já que ela identificava a liberdade com ociosidade, já que ela considerava toda tarefa manual como servil. Assim como o trabalho manual, a dor foi, portanto, considerada na época feudal como uma degradação. Julgava-se que ela escravizava. [...] Tal concepção se reflete nitidamente no sistema de repressão dos crimes: só os inferiores, as mulheres, as crianças, os camponeses dependentes, eram passíveis de castigos corporais: aos membros da classe dominante impunham-se multas em dinheiro e não sofrimento físico, que ofendia sua dignidade.

Para tanto, a razão da isenção de penas dolorosas para os membros das classes dominantes também justifica a idéia do purgatório das almas em meio caminho entre o céu e o inferno. Porém, é na iconografia dos séculos XII e XIII, que se manifesta a intencionalidade da ―cultura‖ feudal, os mártires como São Sebastião cravado de flechas ignorando as dores do martírio. A ideologia medieval já confirmava, não é que a dor não fosse percebida, ela era desprezada. Ela seria confessada apenas pelos pecadores, daí a estratégia da tortura aplicada aos acusados por crimes ou heresias. 4 DO ÚTERO À ALTERIDADE: DIREITO HUMANO AO PARTO HUMANIZADO A construção teórica e conceitual dos Direitos Humanos é uma tarefa por demais árdua, principalmente quando o objeto de estudos está relacionado ao rol dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, para pensar a questão da valorização do parto humanizado nas sociedades instruídas pelo foco na tecnocracia e na mercantilização da condição humana. Entretanto, algumas observações são extremamente necessárias para uma abordagem conceitual, particularmente quando o tema estudado é os Direitos Humanos, na medida em que o trabalho de determinação conceitual pode sugerir, de antemão, um posicionamento etnocêntrico com relação às outras tradições históricas ou culturais.

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Essa preocupação é de grande relevância porque acabam elegendo um novo paradigma em termos conceituais, que é a preocupação em problematizar 11 os conceitos em relação às questões referentes ao contexto histórico e a culturologia jurídica. Nos estudos de formação em Direitos Humanos, é perceptível uma preocupação com as diferenças12. Ao pesquisar nos compêndios e manuais de Direito, Sociologia e Filosofia, sobre os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, foram encontrados muitos entendimentos conceituais que remetiam à noção de respeito à pessoa humana, sua integridade física e sua dignidade, além da garantia de certos direitos convencionalmente consagrados em lei (princípios jusnaturalistas), como à vida, à liberdade e a igualdade. Estão no conjunto das garantias dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, os seguintes dispositivos constitucionais: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição Art. 196º A saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 2012, grifo nosso).

Desse modo, assim como o conjunto de valores jusnaturalísticos eleitos pelo pensamento moderno, nos séculos XVII e XVIII, enquadram-se aqueles direitos personalíssimos, que inscreve sua trajetória como garantias intransferíveis e inalienáveis que só podem ser exercidas pelo seu titular. Esses direitos passaram por diferentes etapas históricas até serem universalmente reconhecidos, mas sua trajetória marca também a preocupação em abordá-los como conteúdo cosmopolita, que seja garantido a todos indistintamente. Conforme dispõe a Declaração Universal dos Direitos Humanos, outorgada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, no seu art. 1º ―Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras

Cf. Karl Popper apud JAPIASSU (1975) sugere em seus estudos do método hipotético-dedutivo que o trabalho de definição remete necessariamente a problematização, ou seja, desenvolver os termos com vistas a elaboração de soluções para os possíveis conflitos que surjam no trabalho de definição, diferentemente da conceituação, sendo esta uma etapa mais simplista para determinar uma idéia. 12 Cf. BOFF (1995) tem nas suas ultimas obras referentes aos direitos humanos, ética e ecologia elaborado o paradigma do “cuidado” com relação a proteção da Gaia (terra mãe) que representa o habitat da vida terrena (biosfera) e de valoração da dignidade humana que podem refletir diretamente para as gerações futuras. 47 11


com espírito de fraternidade‖, e, continua nestes termos a norma internacional, quanto à garantia dos direitos e valores fundamentais no art. 2º: Toda pessoa tem a capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição (HERKENHOFF, 1997, p. 27).

Os direitos universais são no âmbito das legislações de boa parte das nações contemporâneas, convencionalmente admitidos como Direitos Humanos. Sendo que a salvaguarda destes é condição necessária para valorização daqueles, principalmente no tocante ao tema da dignidade do homem, respeitada as tradições e os valores culturais de cada nação. Em países de tradição islâmica, a proteção das garantias humanitárias é salvaguardada pela legislação, que não deixou de revestir os aspectos culturais e religiosos, como confirma o Preâmbulo da Declaração Islâmica Universal dos Direitos do Homem, em alguns de seus pontos: [...] b) que os direitos do homem, ordenados pela Lei Divina, têm por objeto eliminar a opressão e a injustiça, conferir dignidade e honra à Humanidade; [...] f) que, em decorrência de todos esses princípios, os firmatários da Declaração, como muçulmanos, crentes de que toda a Humanidade é convidada a partilhar a mensagem do Islamismo, afirmam seu engajamento na promoção dos direitos invioláveis do homem (HERKENHOFF, 1997, p.23).

Diante do exposto, por se constituir dentre as inúmeras garantias que o sujeito humano dispõe, entende-se como Direitos Humanos o conjunto de valores e normas que visam assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana, representado por um conjunto de elementos essenciais como a vida, a liberdade, a igualdade dentre outros, além das garantias que o tornem reconhecido enquanto cidadão portador de direitos e deveres. Dornelles (1989, p.10) apresenta a seguinte reflexão quanto ao problema da essencialidade e da definição dos direitos humanos: O que se deve perguntar é se os direitos enunciados em tais declarações são os verdadeiros ou os únicos direitos do homem. E se esses direitos são ou não verdades eternas, naturais. E no caso de não o serem, como e por que se escolheu apenas esses direitos como fundamentais para o ser humano (DORNELLES, 1989, p.10).

Aquilo que é posto como direitos fundamentais, construído histórica e normativamente, representa a afirmação das normas de um país quanto aos interesses e necessidades de uma determinação população que é posto pelos princípios que norteiam os Direitos Humanos, remete 48


necessariamente a algumas garantias fundamentais. A construção deste conjunto de valores que fundamentam a dignidade humana é formada ao longo de um processo histórico que demanda tempo

e

longas

transformações

estruturais,

sendo

assim,

estes

são

consagrados

convencionalmente por intermédio das normas. Nesta perspectiva, os direitos sexuais e reprodutivos se enquadram nas garantias vitais do ser humano, assim denominados de direitos de solidariedade, principalmente no tocante a reprodução e concepção, se destacando os seguintes direitos: Direito das pessoas de decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas. Direito a informações, meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos. Direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, imposição e violência (BRASIL, 2009, p. 6).

Os direitos sexuais e reprodutivos se enquadram no raio de atuação das políticas referentes a sexualidade, a jurisdição dos corpos, as práticas sexuais e o controle das experiências afetivo-sexuais. A concepção, contracepção e reprodução humana, que incluí a geração e nascimento de uma criança, que incluí o parto também é tutelado pelos direitos de solidariedade. A partir da tradição humanitária que se instaurou nas sociedades contemporâneas fruto da influência judaico-cristã, bem como da moral socrático-platônica, a idéia de humanização do corpo tem sido fervorosamente concebido como espaço do sagrado. O corpo expressa a vida, o cuidado com ele remete a transcendência com a natureza. A sociologia do corpo expressa sua compreensão deste espaço endógeno do gênero humano, particularmente com o mistério da fisis do feminino com o seguinte entendimento: [...] o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é constituída: atividades perceptivas, mas também expressão dos sentimentos, cerimoniais dos ritos de interação, conjunto de gestos e mímicas, produção da aparência, jogos sutis da sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a dor, com o sofrimento, etc. Antes de qualquer coisa, a existência é corporal (BRETON, 2007, p.7).

O cuidado com o corporal, principalmente com a expressão do corpo da mulher começa no útero, como o conhecimento racional metaforicamente se inicia nele. Trazer no ventre uma criança transcende o valor supremo da natureza humana, afinal com este ritual se exercita a perpetuação da vida. De que a vida é gerada, nasce e se transforma no corpo da mulher e se projeta no mundo. 49


O filósofo Emmanuel Lévinas (1906-1996), defensor da questão da alteridade, bem como da ética que se institui por trás da axiologia do termo em questão, não propõe uma epistemologia do transcendente, mas propõe uma redescoberta da filosofia cujo elemento central passa a ser a questão ética e não a ontologia, desse modo, destaca a importância real da relação do homem com o outro. Neste aspecto, Lévinas ressalta a importância do eu, que possui identidade como conteúdo, assim seu existir consiste em identificar-se neste mundo, conceituando sua trajetória a partir do seu existir. A filosofia da alteridade a partir do filósofo franco-lituano parte da subjetividade, neste aspecto analogamente é possível entender sua conceituação para essência da maternidade. A maternidade é uma metáfora para o feminino, uma expressão para relação do sujeito com o outro. Assim, "a maternidade representa esta substituição, em que o Eu gera em sim um Outro" (MENESES, 2008, p. 157). A mulher que gera um filho no seu frente, constrói a aproximação mais intima entre seu Eu e a sua cria, uma relação natural ao mesmo tempo convencional do Eu em relação ao Outro. Meneses (2008) afirma a partir do pensamento de Lévinas que "a subjetividade maternal fala de uma proximidade que é independente do saber, da consciência, mas que nasce na vulnerabilidade e na substituição. A maternidade precede a própria consciência (MENESES, 2008, p. 159). Ao constatar que na contemporaneidade as mulheres têm optado pelo procedimento cirúrgico, com parto cesariano, para dar à luz, se percebe que a sociedade tecnocrática e mercadológica tem influenciado decididamente as práticas médicas, ao ponto de nos hospitais privados a taxa de partos pela modalidade cesariana ser representado por mais de 80% dos procedimentos. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) o total de partos cesáreos em relação ao número total de partos é bastante significativo. Tem-se verificado um acentuado crescimento de intervenções cirúrgicas para o parto, discrepando com as orientações oficiais que afirmam por evidências científicas que apenas 15% dos partos necessitam de procedimentos cirúrgico, sendo aconselhável que os demais 85% que se constituem de gestações de baixo risco sejam realizadas pelo parto vaginal, popularmente denominado de "parto normal".

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Taxa de cesárea por 100 partos (Brasil e regiões – 1998/2002)

Região Região Norte

1998 1999 2000 2001 27,90 27,00 27,40

2002

27,30

28,10 26,90

Região Nordeste 24,30

24,30 25,50

26,30

Região Sudeste

46,70

45,30 46,30

46,90 47,50

Região Sul

42,20

40,50 42,10

43,20 44,10

Centro-Oeste Total

45,70 38,10

42,70 43,40 44,10

44,20

36,90 37,80 38,10 38,60 Fonte: SINASC/DATASUS (2004).

Constata-se que a média da taxa de partos cesáreas, no Brasil, no período de 1998 a 2003, representar 37,9 partos cesáreos por 100 partos. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde - OMS, por falta de conscientização e por interesses mercadológicos, a realidade dos partos no Brasil representa: Com 52% dos partos feitos por cesarianas, enquanto o índice recomendado pela OMS é de 15%, o Brasil é o país recordista desse tipo de parto no mundo. Na rede privada, o índice sobe para 83%, chegando a mais de 90% em algumas maternidades. A intervenção deixou de ser um recurso para salvar vidas e passou, na prática, a ser regra (Disponível em: http://camacaridiario.com/noticias/educacao-e-saude/falta-deinformacao-torna-brasil-lider-mundial-de-cesareas/ Acesso em: abr. 2014).

Os dados oficias são preocupantes, principalmente porque este procedimento cirúrgico oferece sérios riscos à mulher, uma vez que podem ocorrer infecções, hemorragias, hérnias, lesões em alguns órgãos etc. Para o filho, podem ocorrem cortes acidentais, problemas respiratórios, maior probabilidade de internação em UTI neonatal, dificuldades na amamentação. Naquele procedimento a mulher deixa de liberar naturalmente o hormônio do amor, a oxitocina é liberada pelo cérebro, sua composição é importante para garantir confiança, amor e compromisso social entre mãe-bebê. Uma estreita relação natural de alteridade entre mãe e filho, que se inicia na gestação e se concretiza com o parto natural. Em casos de procedimento cirúrgico, o hormônio não é liberado pelo organismo da mãe, o que além de gerar desconforto, ansiedade e depressão, não alivia a dor após o parto. Para o filósofo Foucault, o corpo não se desvencilha da história, e nem se constitui apenas em decorrência de uma norma fisiológica, propõe recriar resistências em relação reações biológicas, culturais e políticas que definem padrões de conduta, como caso do parto cesariano. Em sua materialização há sinais que demonstram as alterações da vida cotidianas e os sinais 51


corporais que apontam para uma disputa entre o espaço do corpo e o lugar da intolerância (FOUCAULT, 1989; 2005). Nestes procedimentos cirúrgicos ocorre a violência obstétrica. De acordo a pesquisa intitulada "Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado" (2010, p. 173-174), produzido pela Fundação Perseu Abramo, constatou que em cada quatro mulheres uma sofre algum tipo de violência durante o parto. A indicação médica pela intervenção cirúrgica no parto repousa influencia dos avanços tecnológicos, mas acima de tudo pelo incremento mercadológico e pelo ritmo frenético dos profissionais da saúde para ocupar cada vez mais horários de plantões e atendimentos. Neste aspecto, propõe o discurso dos Direitos Humanos, sob uma perspectiva dos direitos de solidariedade, um conjunto de ações de valorização do parto normal, humanizado, inscreve-se entre as reflexões em favor do respeito e valorização da dignidade humana, quando se trata da questão de reprodução humana e direitos de sexualidade, o respeito e cuidado pelo corpo feminino. A alteridade na maternidade corresponde numa abordagem levinasiana à construção da subjetividade, quanto a proteção do Outro pelo Eu, em que está em jogo também a questão do parto. Nenhuma direito humano pode incorre no erro de deixar de salvaguardar a liberdade de escolha da mulher, no exercício de sua liberdade, quando se trata de dar à luz a um filho. Assim como na antiguidade a razão nasce simbolicamente do útero, na contemporaneidade o útero também expressa a linguagem da ética, ao expressar o desejo da vida humanizada, que se expressa na humanização do parto (natural). 5 CONCLUSÃO Diante dos aspectos levantados se constata que o corpo feminino é o lugar da expressão do outro, sendo ele preso no espelho da essência do Outro. Uma vez concebido o útero da mulher como metáfora do nascimento da razão e do lugar simbólico e corporal da extensão do Outro, este deve ser tutelado como lugar sagrado, personalíssimo da mulher. O corpo fala a expressão da alma, da sexualidade e integralidade do gênero humano, sua maior motivação quando se trata da natureza feminina é o momento de gestação e concepção. Ao tornar este momento sublime numa intervenção externa, mecânica e tecnocrática, o corpo se desumaniza, tornando-se mercadoria a serviço do mercado e da cronologia da industria médica. Neste sentido, o lugar do feminino, expresso na linguagem corporal é violado, maculado, a partir do processo de adequação às normas que prometem a sofisticação e a felicidade, impondo 52


padrões de embelezamento e obediência aos valores dominantes. "Aqueles que não consomem vorazmente as sofisticadas biotecnologias, os cosméticos, as cirurgias e as próteses que favorecem a modelação corporal passam a experimentar um constante de sentimento de desajuste e descrédito, e estigmas perante a sociedade" (MAGALHÃES; SABATINE, 2011, p. 135). Como resposta ao tratamento desumano oferecido pela sociedade mercantilizada e esquematizada no protótipo de maternidade, a mãe e o filho devem ser a expressão da integralidade natural da vida. Naturalmente essa transmutação do Eu que cuida e do Outro que deseja ser cuidado, respectivamente, é retratado organicamente pela liberação do hormônio do amor. O Direito Humano à vida, empresta sua face desde o momento do parto, que deve ser natural como a quer ser a vida.

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A PROTEÇÃO JURÍDICA À MULHER NO TRABALHO E O ASSÉDIO SEXUAL NO BRASIL José Ernesto Pimentel Filho13 Thiago da Fonseca Rodrigues14 Sumário: 1 Introdução. 2 Objetivos. 3 Metodologia. 4 Resultados e discussões. 5 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO Inicialmente, é imperioso esclarecer que, a partir da redemocratização do Brasil, um dos grandes desafios impostos ao país se desdobrou na superação das várias formas de discriminação cometidas contra o gênero feminino, assim como na busca pela concretização do direito à igualdade entre homens e mulheres. Registre-se que a Carta Magna consagrou a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF/88), assim como estabeleceu que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos estipulados em seu texto (art. 5º, inciso I, CF/88). Além disso, considerando a maternidade como característica intrínseca do segmento feminino, a Constituição garantiu às mulheres o direito à licença-maternidade durante 120 (cento e vinte) dias, sem prejuízo do emprego e do salário (inciso XVIII), a proteção ao mercado de trabalho, mediante incentivos específicos (inciso XX), assim como a assistência gratuita aos filhos e dependentes, desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade, em creches e pré-escolas (inciso XXV) e a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (inciso XXX). Nesse sentido, com o advento da Constituição Federal de 1988, a atividade legislativa de proteção à mulher se intensificou no país, tendo em vista os inúmeros instrumentos internacionais elaborados em defesa do gênero feminino e a busca pela concretização da igualdade entre os gêneros, já proclamada pelo legislador constituinte. Por essa razão, a presente pesquisa pretendeu, a partir de uma perspectiva histórica e analítica, operar uma hermenêutica do processo legislativo das Leis n° 9.029/95, 9.799/99 e 10.224/2001, procurando associar as proteções legais destinadas ao mercado de trabalho da Historiador, Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, vinculado ao Departamento de História da mesma instituição. 14 Graduando do curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Foi estagiário da Paraíba Previdência (PBprev), em 2013, estando, atualmente, exercendo a mesma função na Procuradoria da República na Paraíba (MPF/PB). Foi pesquisador de iniciação científica no projeto de pesquisa ―O processo legislativo federal em leis de proteção à mulher: interpretação histórica e analítica na Iniciação Científica da UFPB‖. 56 13


mulher à questão do assédio sexual, com o objetivo final de delimitar de forma global a eficácia das normas de proteção à mulher no Brasil, a partir da edição dessas normativas legais. Destarte, o estudo do processo do processo legislativo dessas normas apresentou papel indispensável para compreensão do seu sentido e alcance, na medida em que a lei não pode ser compreendida como algo frio e imparcial, já que é resultante dos interesses e ideologias representadas por cada parlamentar no Congresso Nacional. Por essa razão, o processo de criação de uma lei apresenta nítido caráter histórico, diante do número incontável de elementos econômicos, sociais, políticos e culturais, que interagem para produzir o seu resultado final. Contudo, é imperioso esclarecer que a pesquisa não pretendeu descrever de forma detalhada todos os trâmites do processamento legislativo, na medida em que estes já se encontram inseridos nos Regimentos de cada uma das Casas Legislativas e na própria Constituição Federal. Na realidade, o que se buscou descobrir foram as motivações que embasaram a proposição, discussão e aprovação dessas normas, no âmbito de cada uma das Casas do Congresso Nacional. Por fim, registre-se que as Leis n° 9.029, de 13 de abril de 1995 e 9.799, de 26 de maio de 1999 vieram estabelecer proibições de discriminações contra as mulheres no âmbito do mercado de trabalho e a Lei n° 10.224, de 15 de maio de 2001, tipificou a conduta do assédio sexual na seara penal. 2 OBJETIVOS

Teve-se por objetivo com o presente trabalho analisar, sob uma perspectiva histórica e analítica, o processo legislativo federal das Leis n° 9.029/95, 9.799/99 e 10.224/2001, as quais vieram estabelecer proteções ao trabalho feminino, através da proibição de cometimento de práticas discriminatórias e abusivas, pelo empregador, no âmbito da relação laboral. 3 METODOLOGIA Dentro da perspectiva histórica, deve-se esclarecer que não há um sentido único, principalmente quando se refere ao processo de formação de uma lei, a qual é resultante de uma série de debates jurídicos e políticos. 57


Nesse sentido, o estudo do processo legislativo de uma norma não deve se restringir apenas aos argumentos considerados como vencedores, na medida em que as teses jurídicas vencidas também exerceram influência sobre as redações finais das legislações produzidas, assim como podem ser utilizados como parâmetro de avaliação de suas eficiências, após entrarem em vigência. Por essa razão, o presente trabalho se baseou nas diversas discussões travadas no âmbito do Congresso Nacional, durante o processo de formação das legislações mencionadas, como forma de se alcançar os seus sentidos históricos e jurídicos. Para tanto, foram utilizadas como fontes de investigação peças do processo legislativo de cada das normas, assim como textos e artigos científicos de periódicos relativos ao tema da mulher no trabalho, vinculado à temática do assédio sexual no Brasil. Por fim, é necessário esclarecer que, antes da análise das referidas fontes, foi realizado um estudo prévio a respeito dos procedimentos que compõem o processo legislativo de leis, aprovadas no âmbito do Congresso Nacional, a partir do que se encontra estipulado na Constituição Federal e nos Regimentos da Câmara e do Senado Federal. 4 RESULTADOS E DISCUSSÕES No início da presente pesquisa, foram coletados arquivos históricos, referentes ao processo legislativo federal das supracitadas legislações, os quais foram encontrados de forma célere e acessível nos sites eletrônicos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Dessa forma, priorizou-se, nesse primeiro momento, pela estrita análise das peças dos processos legislativos encontrados e fornecidos pelas Casas legislativas federais, havendo, apenas, no segundo momento da pesquisa, a utilização de referenciais teóricos, como artigos científicos de periódicos, como instrumentos de interpretação dos textos legais. Assim, do ponto de vista global, os resultados preliminares da pesquisa se desdobraram na constatação de que as três legislações decorreram de uma necessidade de a legislação infraconstitucional regulamentar as proteções constitucionais destinadas à mulher, que ainda não estavam sendo concretizadas no plano fático, assim como na observação de que os projetos de lei que deram origem às citadas legislações, de uma forma geral, foram bem recepcionados pelo Congresso Nacional, na medida em que, apenas um deles sofreu alteração por parte da Casa revisora (projeto de lei n° 382/91 - Lei n° 9.799/99). Além disso, verificou-se que todos os projetos de lei que deram origem às referidas legislações foram propostos por parlamentares mulheres, quais sejam, a deputada federal 58


Benedita da Silva (PT/RJ), em relação ao Projeto de Lei n° 229/91 (Lei n° 9.029/95), a deputada federal Iara Bernardi (PT/SP), no que se refere ao Projeto de Lei n° 61/1999 (Lei n° 10.224/2001) e a deputada federal Rita Camata (PMDB/ES), em relação ao projeto de lei 382/1991 (Lei nº 9.799/99). Especificamente em relação a cada uma das legislações, percebeu-se, no caso da Lei n° 10.224/2001 (assédio sexual), uma correlação com as Leis n° 9.029/95 e 9.799/99 (discriminação da mulher no mercado de trabalho), diante da constatação de que a maioria dos casos de assédio sexual envolvia mulheres e ocorriam no ambiente de trabalho, através da utilização de relações de autoridade e ascendência, por parte dos empregadores. Por sua vez, em relação à Lei n° 9.029/95, observou-se que a mesma objetivou não apenas proibir a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, conforme inicialmente previsto no seu projeto inicial, mas também impor uma sanção penal aos empregadores que descumprissem o disposto em lei. De forma diversa, no caso da Lei n° 9.799/99 comprovou-se que, apesar de não imputar nenhuma sanção penal aos empregadores, fez inserir no âmbito da Consolidação das Leis Trabalhistas uma série de dispositivos que estabeleciam, de uma forma mais ampla, regras sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho. Com o avanço da pesquisa, o estudo foi realizado de forma segmentada para cada legislação, razão pela qual as principais as discussões e resultados obtidos serão analisados de forma individualizada, no presente relatório. Analisando-se as peças do Processo Legislativo Federal da Lei n° 9.029/95 observou-se que a mesma teve início através da propositura 15 do Projeto de Lei n° 229/91, de autoria da então deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ), na Câmara dos Deputados, em 06 de março de 1991, o qual, após ter sofrido alterações nas comissões de Trabalho e Constituição e Justiça dessa Casa legislativa, foi remetido ao Senado Federal, que o aprovou sem alterações16, havendo a posterior sanção presidencial, em 13 de abril de 199517.

BRASIL. Projeto de Lei n° 229, de 06 de março de 1991. Proíbe a exigência de atestado que comprove esterilidade ou gravidez de candidatos a emprego. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1143844&filename=Avulso+PL+229 /1991.pdf>. Acesso em: 28 de Setembro de 2014. 16 BRASIL. Projeto de Lei n° 229, de 06 de março de 1991. Op. cit., p. 75. 17 BRASIL. Projeto de Lei n° 229, de 06 de março de 1991. Op. cit., p.78. 59 15


De acordo com a justificativa18 apresentada pela aquela deputada no Plenário da Câmara, o projeto de lei objetivava essencialmente coibir a prática de atos discriminatórios contra as trabalhadoras, os quais se desdobravam na exigência, por parte do empregador, de laudos médicos que comprovassem a esterilidade ou a ausência de gravidez das candidatas a determinada vaga de emprego, enquanto requisito para recrutamento. A referida exigência possibilitava que o empregador não contratasse trabalhadoras em período de gestação, evitando, assim, o cumprimento de eventuais encargos trabalhistas, decorrentes do estado gravídico, razão pela qual, segundo a parlamentar, se torna ―... inadmissível essa discriminação contra a mulher, especialmente num momento em que a própria Constituição reconhece a função social da maternidade, a ser amparada e protegida.‖ 19, havendo a proposição do projeto, nos seguintes termos: PROJETO DE LEI N° 229, DE 1991 (Da Srª Deputada Benedita da Silva) Proíbe a exigência de atestado que comprove esterilidade ou gravidez de candidatos a emprego. O CONGRESSO NACIONAL decreta: Art. 1 - É vedado ao empregador exigir da candidata a emprego atestado ou exame de qualquer natureza que vise à comprovação de esterilidade ou gravidez. Art. 2 - Os infratores do disposto no art. 10, II, "b" do Ato das Disposiç6es Constitucionais Transitórias ficam obrigados ao pagamento em dobro dos salários relativos ao período compreendido entre a confirmação da gravidez até 5 meses após o parto. Art. 3 - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Durante o desenrolar da pesquisa, observou-se que houve uma significativa ampliação do conteúdo do projeto, na medida em que a ideia era não apenas proibir a práticas dos atos discriminatórios, mas também punir veementemente o empregador e facultar às empregadas a escolha da melhor maneira de ver reparado os danos oriundos dos referidos atos. Nesse sentido, estipulou-se, por exemplo, através a influência do projeto de lei n° 677/199120, que a vedação de exigência de laudos médicos de trabalhadoras não deveria se restringir apenas ao momento da contratação, mas também como requisito para a permanência da trabalhadora no emprego. BRASIL. Projeto de Lei n° 229, de 06 de março de 1991. Op. cit., p.04. BRASIL. Projeto de Lei n° 229, de 06 de março de 1991. Op. cit., p.05. 20 BRASIL. Projeto de Lei n° 677, de 17 de abril de 1991. Dispõe sobre a proibição da exigência de atestado de esterilização ou teste de gravidez para efeito de admissão ou permanência no emprego. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1144205&filename=Avulso+PL+677 /1991>. Acesso em: 27 de Setembro de 2014. 60 18 19


Registre-se que o referido projeto foi proposto pela deputada Jandiha Feghali (PC do B/RJ), pouco mais de um mês após a propositura do projeto de lei n° 229/1991, tendo sido apensado a este último, e abordou, inclusive, questões mais amplas do que o projeto da deputada Benedita da Silva, como a questão da proibição de revistas íntimas, por parte dos empregadores ou prepostos, tendo, contudo, exercido forte influência sob a redação final da Lei n° 9.029/95. Além disso, as referidas práticas discriminatórias passaram a ser consideradas como crime, punido com pena de detenção de 01 a 02 anos e multa, fato este não encontrado na dicção do projeto original da deputada Benedita da Silva. Da mesma forma, além de responsabilizar o empregador no âmbito penal, as discussões do projeto no Congresso Nacional permitiram que fosse facultado à empregada optar entre a readmissão no serviço, com o ressarcimento integral do período de afastamento com as devidas correções monetárias e acréscimos de juros, ou simplesmente perceber, em dobro, a remuneração do período de afastamento, também com as devidas correções monetárias e acréscimos de juros legais. Ademais, com a edição da Lei n° 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), foi facultado à trabalhadora pleitear o recebimento de uma indenização por dano moral, nos casos de cometimento das práticas discriminatórias referidas na legislação em apreço, para além das ações acima transcritas, assim como, foi ampliada a responsabilização penal do empregado, com a abrangência dos dispositivos legais que tipificam os crimes resultantes de preconceito de

etnia, raça ou cor. Por fim, é necessário esclarecer que a legislação em comento, em seu artigo 1º, vedou a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa21 por motivos relacionados não apenas ao sexo, mas também em relação à origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade do trabalhador (a), para fins de acesso ou manutenção da relação de emprego, ressalvando, contudo, as hipóteses constitucionais de proteção ao trabalho dos menores. Depreende-se, assim, que, em que pese a motivação da Lei n° 9.029/95 ter sido a tutela do trabalho feminino, deve-se esclarecer, a sua redação final, objetivou coibir todas as formas de discriminação no âmbito das relações laborais, seja durante a admissão ou manutenção do contrato de trabalho, ao impor sanções administrativas, penais e cíveis aos empregadores, que

Conforme se percebe da análise do seu artigo 1º, [...] ―não só é vedada a discriminação, como também o será a limitação esclarecendo que o primeiro pressupõe situação de desvantagem de um trabalhador em relação ao outro, já o segundo considera o obreiro individualmente. É de se entender que as práticas discriminatórias já contêm as limitativas, dado que o que discrimina está, na verdade, impondo certa limitação ao discriminado‖. (MELO, Karine Carvalho dos Santos. A concretização das proteções constitucionais antidiscriminatórias no trabalho da mulher. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, v. 44, n.74, jul./dez. 2006, p. 37). 61 21


descumprirem o disposto em seu texto legal, não se restringindo, contudo, apenas às relações laborais femininas. No que se refere ao Processo Legislativo Federal da Lei nº 9.799/99, deve-se esclarecer que a mesma também surgiu através da propositura22 de um projeto de lei (PL 382/1991), em 19 de março de 1991, oriundo de uma deputada federal – Rita Camata (PMDB/ES) -, objetivando estabelecer regras de acesso da mulher ao mercado de trabalho. Analisando-se as peças do processo legislativo, observou-se que, até sua aprovação no Congresso Nacional, o projeto de lei tramitou durante 08 anos, tendo passado, inicialmente, pelas Comissões de Seguridade Social, Trabalho e Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e, posteriormente, pelas Comissões de Assuntos Sociais e Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal. Na justificativa23 do projeto, a deputada argumentou que, durante muito tempo, o trabalho feminino apresentou um “caráter complementar e secundário‖, em decorrência do papel social da mulher, construído em torno da função reprodutiva e do cumprimento das atividades domésticas, razão pela qual a participação feminina no mercado de trabalho ainda apresentava índices baixos comparados ao público masculino, assim como ainda existiam grandes diferenças salariais entre homens e mulheres. Além disso, as mulheres já se encontravam em posição de desvantagem, em relação aos homens, quando ingressavam no mercado de trabalho, na medida em que não havia uma infraestrutura, como creches e escolas em tempo integral, que lhes desse apoio na resolução dos problemas domésticos, razão pela qual deveria haver a concretização do disposto na Constituição Federal de 1988 (artigo 7º, inciso XX), através do reconhecimento da maternidade, enquanto característica intrínseca do segmento feminino, a ser considerada quando da elaboração de políticas públicas igualitárias. Dessa forma, ao longo da pesquisa, observou-se que o objetivo do projeto foi facilitar ainda mais o acesso da mulher ao mercado de trabalho e evitar o cometimento de práticas discriminatórias, por parte dos empregadores, razão pela qual foram inseridos dispositivos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), os quais concederam garantias às empregadas em estado gravídico (art. 392, §4º, CLT), ampliaram as proibições enunciadas na Lei n° 9.029/95 (art.

BRASIL. Projeto de Lei n° 382, de 19 de Março de 1991. Dispõe sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho e determina outras providências. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=7292EB5CE0C1803641CC83AF65 D7B13E.proposicoesWeb1?codteor=1143967&filename=Avulso+-PL+382/1991.pdf>. Acesso em: 13 de Outubro de 2014. 23 BRASIL. Projeto de Lei n° 382, de 19 de Março de 1991. Op. cit., p.07. 62 22


373-A, CLT) e incentivaram a tutela do trabalho feminino, por parte das empresas (arts.390-B, 390-C e 390-E,CLT). Registre-se que, foi constatada a forte influência da Lei n° 9.029/95 sob a Lei n° 9.799/99, na medida em que vários dos seus dispositivos foram novamente inseridos na legislação de 1999, razão pela qual os arts. 390-D, 401-A e 401-B, que seriam incluídos na CLT, sofreram veto presidencial, ao repetirem o disposto nos arts. 4º, 2º e 3°, respectivamente, da Lei 9.029/95, em afronta aos incisos II e IV do art. 7º da Lei Complementar n° 95/98, que proíbe o tratamento de uma mesma matéria em mais de uma lei. Contudo, além das hipóteses contidas na legislação de 1995, houve o acréscimo de outras vedações, como é o caso da publicação de anúncio de emprego, que faz referência ao sexo, assim como a realização de revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias, por parte dos empregadores ou seus prepostos. Nesse último caso, inclusive, comprovou-se que a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) já consolidou o entendimento de que é abusiva a revista que atinge a intimidade do trabalhador, sendo cabível, portanto, indenização por danos morais, conforme demonstram os seguintes julgados: RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. REVISTA ÍNTIMA. A jurisprudência desta Corte, nos casos de revistas íntimas habituais em que os empregados expõem parte de seu corpo e revista de bolsas com a manipulação dos pertences ali guardados entende configurado o exercício abusivo do poder diretivo do empregador (art. 187 do Código Civil) e a ofensa à intimidade do empregado, sendo devida a indenização por dano moral, nos termos do inciso X do art. 5º da Constituição Federal. No caso, ficou demonstrada a existência do fato danoso, qual seja: a revista íntima habitual dos empregados mediante exposição parcial de seus corpos ao levantarem a camisa e o contato físico entre o empregado vistoriado e o vigilante que encostava o detector de metais no corpo do empregado. E, ainda, a revista mediante a retirada de objetos de dentro das bolsas dos empregados pelo vigilante responsável pela revista. Recurso de revista não conhecido. QUANTUM INDENIZATÓRIO . O valor arbitrado a título de reparação por dano moral somente pode ser revisado na instância extraordinária nos casos em que vulnera os preceitos de lei ou Constituição que emprestam caráter normativo ao princípio da proporcionalidade. E, considerando a moldura factual definida pelo Regional e insusceptível de revisão (Súmula 126 do TST), o valor atribuído não se mostra irrisório ou excessivamente elevado a ponto de se o conceber desproporcional. Recurso de revista não conhecido. Grifou-se24 RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. REVISTA ÍNTIMA. CONTATO FÍSICO. 1. O entendimento da relatora é no sentido de que bolsas, sacolas e mochilas dos empregados constituem extensão de sua intimidade, sendo que a sua revista, em si, ainda que apenas visual, é abusiva, pois o expõe, de forma habitual, a uma situação

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR 9843920115190003. 6ª Turma. Relator: Augusto César Leite de Carvalho. Julgamento: 09/04/2014. Publicação: DEJT 25/04/2014. 63 24


constrangedora, configurando prática passível de reparação civil (arts. 1.º, III, e 5.º, V e X, da Constituição Federal). 2. Entretanto, o entendimento prevalecente nesta Corte é de que a revista visual de bolsas e demais pertences, de forma impessoal e indiscriminada, não constitui ato ilícito do empregador . Precedentes da SBDI-1. 3. No caso concreto, o acórdão do Tribunal Regional consignou que além da revista visual em bolsa e sacolas, houve também contato corporal por meio de toques na cintura do empregado, o que torna devida a indenização. Recurso de revista não conhecido. Grifou-se25

Dessa forma, os estudos comprovaram que a grande contribuição da Lei n° 9.799/99 para o direito do trabalho da mulher se desdobrou na ampliação das vedações relativas ao acesso e manutenção da relação de emprego, assim como pela consideração da maternidade enquanto característica inerente ao público feminino, na medida em que: [...] Não é suficiente estancar diferenças de tratamento entre homens e mulheres, punir severamente a discriminação nas relações contratuais do trabalho, enfim, fazendo valer o princípio da igualdade nas relações de trabalho subordinado. Antes de tudo é necessário materializar o próprio posto de trabalho para, posteriormente, assegurar o direito ao trabalho pertinente à mulher, compatível com sua especial condição feminina26.

Eis acima a principal contribuição dada pela referida lei. Por fim, em relação a Lei n° 10.224/2001, se faz necessário esclarecer que a mesma foi responsável por tipificar a conduta do assédio sexual no campo penal, após a aprovação do Projeto de Lei n° 61/1999, no Congresso Nacional, de autoria da deputada federal27 Iara Bernardi - PT/SP. De acordo com a deputada, a regulamentação da matéria era uma antiga reivindicação do movimento feminista, na medida em que a prática atingia milhares de mulheres, no contexto laboral28, e não havia, entretanto, a punição penal dos responsáveis pelo seu cometimento. Contudo, ao longo da pesquisa, constatou-se que, durante a sua aprovação no Congresso Nacional, a matéria sofreu resistências contundentes de parlamentares contrários a sua regulamentação na esfera penal, dentre eles, o então Deputado federal Marcos Rolim (PT/RS). Segundo o referido parlamentar, a crescente corrente do denominado ―Direito Penal Mínimo‖ vinha direcionando o Direito Penal para um processo de despenalização de condutas, diante das dificuldades existentes no sistema carcerário brasileiro, razão pela qual o tratamento do BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR 969007120125130023. 2ª Turma. Relatora: Delaíde Miranda Arantes. Julgamento: 18/05/2015. Publicação: DEJT 22/05/2015. 26 GRASSELLI, Odete. Mulher. Op. cit, p.17. 27 BRASIL. Projeto de Lei n° 61/99. Dispõe sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1127839&filename=Dossie+PL+61/1999>. Acesso em: 04 de Outubro de 2014. 28 BRASIL. Diário do Congresso Nacional. Brasília, DF, 16/mar./2001. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD16MAR2001.pdf#page=151>. Acesso em: 04 de Outubro de 2014. 64 25


assédio sexual deveria se restringir apenas ao âmbito da legislação civil, desdobrando-se a proposta em “uma iniciativa reacionária travestida de „feminismo‟” 29. Na busca pela atualização das referidas críticas, constatou-se que, atualmente, alguns criminalistas ainda criticam veementemente a tipificação da conduta na seara penal, como é o caso do autor Cleber Masson30, segundo o qual a: [...] Incriminação era desnecessária, pois as situações de assédio sexual sempre foram satisfatoriamente solucionadas pelo Direito Civil, pelo Direito do Trabalho e pelo Direito Administrativo. Daí a constatação de que existem poucas ações penais imputando a alguém o delito em apreço. Condenações, então, são raríssimas, nada obstante a freqüência com o que o assédio sexual se verifica nos mais diversos ambientes de trabalho. As condutas dessa estirpe, covardes e repugnantes, indiscutivelmente merecem rígida punição, mas fora da órbita penal. Se o legislador esqueceu-se do caráter fragmentário do Direito Penal, criando um crime quando a ilicitude era resolvida por outros ramos do ordenamento jurídico, na prática o tipo penal quase não é usado, em obediência ao princípio da subsidiaridade (ultima ratio). No mundo todo, e no Brasil não é diferente, diversas pessoas buscam a vitimização a qualquer custo, com o escopo de alcançar alguma vantagem ou, principalmente, prejudicar um desafeto. O art. 216-A do Código Penal reforça o arsenal desses indivíduos. Alguém dirá: mas, se a imputação for falsa, com a movimentação da máquina estatal, o mentiroso se sujeitará às penas da denunciação caluniosa. É verdade, porém o prejudicado já terá suportado enormes danos, de ordem patrimonial e moral, inclusive com reflexos negativos em sua unidade familiar.

Contudo, diante da prevalência do entendimento exposto pela parlamentar, a matéria foi aprovada no Congresso Nacional, através da edição da Lei n° 10.224/2001, que inseriu, na redação do Código Penal, o artigo 216-A, responsável por delimitar a prática, nos seguintes termos: Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

Dessa forma, durante a análise do dispositivo legal, pôde-se constatar que a matéria se encontra intrinsecamente ligada com a questão do trabalho, na medida em que o crime somente poderá ser cometido “... quando o agente for hierarquicamente superior à vítima ou quando houver ascendência da sua posição em seu emprego, cargo ou função é que poderá ocorrer o delito” 31. Contudo, constatou-se que, apesar de no âmbito penal a jurisprudência pátria considerar não consumado o crime, quando o agente ocupa uma posição inferior ou mesmo idêntica a da vítima, no âmbito trabalhista, a questão ainda é controversa, na medida em que parte da doutrina BRASIL. Projeto de Lei n° 61, de 23 de Fevereiro de 1999. Op. cit., p. 62. MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado. 4ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014, pp. 45 e 46. 31 GRECO, Rogério. Código Penal comentado. 5ª ed. Niterói, RJ: Impetus,2011, p.651. 65 29 30


exige como requisito fundamental para a configuração do assédio a hierarquia do assediador em relação ao assediado e, outra parte, entende ser desnecessária a hierarquia. Além disso, ao longo da pesquisa, observou-se que, na proposta inicial da deputada Iara Bernardi, a pena poderia sofrer um aumento de um a dois terços (art. 2º), nos seguintes casos: a) quando o crime fosse cometido com o concurso de duas ou mais pessoas (inciso I); b) quando o agente fosse descendente, padrasto, madrasta, irmão, tutor, curador ou preceptor da vítima (inciso II); c) se o crime fosse cometido por pessoa que se prevalecesse de relações domésticas, religiosas ou de confiança da vítima (inciso III); d) quando o crime fosse cometido por quem se aproveitasse do fato de a vítima estar presa ou internada em estabelecimento hospitalar ou sob guarda ou custódia (inciso IV); ou, e) se a vítima fosse considerada juridicamente incapaz (inciso V). Infelizmente, antes de seguir para o Senado Federal, a Câmara dos Deputados alterou o projeto, impondo, diferente da versão inicial, a mesma pena do caput para quem cometesse o crime em apenas duas dessas situações, quais sejam, (i) com a prevalência de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade e, (ii) com o abuso ou violação de dever inerente a ofício ou ministério. Por essa razão, após a aprovação do projeto, sem alterações, pelo Senado Federal, em 25 de abril de 200132, as duas hipóteses sofreram veto presidencial, responsável por apresentar “... justificativa de ordem técnica, alegando que a mesma pena para o caput do artigo e para seu parágrafo único implicaria numa „inegável quebra do sistema punitivo adotado pelo Código Penal, e indevido benefício que se institui a favor do agente ativo do delito” 33, tendo em vista a inaplicabilidade das causas de aumento de pena, previstas no art. 226 do dispositivo, ao infrator da norma penal, caso o dispositivo entrasse em vigor. Nesse sentido, com a modificação do projeto e vigência do texto final da Lei, vários doutrinadores consideraram o texto legal como sendo: [...] Defeituoso e incompleto por deixar determinados ―vazios‖ para regular situações comuns, como a questão do assédio entre professor e aluno ou pastor ou padre e seus súditos. O texto só se refere à superioridade hierárquica ou ascendência em razão de exercício de emprego, cargo ou função. O sujeito ativo do crime deverá necessariamente ser superior hierárquico, excluindo aqueles que estejam no mesmo patamar, de maneira diferente da lei espanhola, que contempla a hipótese do assédio entre colegas do mesmo nível, no que se chama e assédio sexual ambiental (alguns autores, mesmo no

BRASIL. Projeto de Lei n° 61, de 23 de Fevereiro de 1999. Op. cit, p.50. TERRUEL, Suelen Chirieleison; BERTANI, Iris Fenner. Assédio sexual laboral e suas implicações. Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/pdf/sst/n7/a05.pdf>. Acesso em: 29 de dezembro de 2014. 66 32 33


Brasil entendem que existe o assédio ambiental, que é aquele que o assediador quer prejudicar a reputação e ambiente de trabalho da vítima). 34

Conforme assevera a autora portuguesa Isabel Dias35: Embora o assédio sexual exista desde sempre em diversos contextos organizacionais, só nos anos mais recentes se passou a designar esta experiência como uma forma particular de violência sexual. Até meados do último século, para muitas mulheres, a tolerância do assédio e, em particular, do assédio sexual fazia parte da premissa de ter ou manter um emprego fora de casa. Somente no início dos anos 70 é que a expressão ―assédio sexual‖ começou a ser usada (Farley, 1978). Só daí em diante é que a sociedade passou a atribuir sentido, inclusive legal, a uma experiência sofrida em silêncio por inúmeras mulheres. No início dos anos 80, o assédio sexual passou a constar da longa lista de comportamentos discriminatórios praticados sobre as mulheres e a ser encarado quer como uma forma específica de violência contra o género feminino, quer como uma questão de direitos civis.

A partir dos estudos realizados, pôde-se concluir que a criminalização da conduta representou um grande passo dado pelo país, no sentido de reconhecer a prática não mais enquanto mera conduta costumeira, existente no seio da sociedade, mas como uma verdadeira violência sexual cometida contra as mulheres. 5 CONCLUSÃO Extrai-se do presente relatório que as normas de proteção ao trabalho da mulher, aqui analisadas, vieram concretizar as proteções constitucionais destinadas ao gênero feminino e garantir, assim, uma melhor inserção das mulheres no mercado de trabalho, a partir da consideração de suas limitações e aptidões. Dessa forma, o objetivo principal dessas normas foi permitir a concretização da igualdade entre os gêneros, princípio consagrado pela Constituição Federal, no âmbito das relações laborais, através da facilitação do acesso da mulher ao mercado de trabalho e do combate às práticas discriminatórias e abusivas, cometidas pelos empregadores e/ou seus representantes legais, no contexto da relação laboral. Registre-se, contudo, que, ainda se torna necessária a realização de políticas públicas destinadas ao público feminino, na medida em que, conforme pesquisa realizada pelo Dieese nas Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo e

AREF ABDUL LATIF, Omar. Assédio sexual nas relações de trabalho. Âmbito Jurídico, Rio Grande, ano X, n. 41, maio 2007. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1826>. Acesso em: 29 de dezembro de 2014. 35 DIAS, Isabel. Violência contra as mulheres no trabalho: o caso do assédio sexual. Sociologia, problemas e práticas, Lisboa, n° 57, 2008, p. 12. 34

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Distrito Federal, no período de 2011-2012, o rendimento feminino evolui, mas, ainda assim, mulheres recebem menos que homens, conforme se observa no gráfico que segue:

Além disso, no que se refere à prática do assédio sexual, conforme exposto por comentários contrários a sua tipificação na seara penal, poucas são as condenações existentes no âmbito do Poder Judiciário, em função, principalmente, das dificuldades encontradas pela vítima em formar um conjunto probatório, que comprove a realização da prática pelo empregador, na medida em que, como é cediço, normalmente o ato ocorre entre quatro paredes. REFERÊNCIAS AREF ABDUL LATIF, Omar. Assédio sexual nas relações de trabalho. Âmbito Jurídico, Rio Grande, ano X, n. 41, maio 2007. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1826>. Acesso em: 29 de dezembro de 2014. BRASIL. Diário do Congresso Nacional. Brasília, DF, 16/mar./2001. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD16MAR2001.pdf#page=151>. Acesso em: 04 de Outubro de 2014. BRASIL. Projeto de Lei n° 61/99. Dispõe sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências. Câmara dos Deputados. Disponível em: 68


<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1127839&filenam e=Dossie+-PL+61/1999>. Acesso em: 04 de Outubro de 2014. BRASIL. Projeto de Lei n° 229, de 06 de março de 1991. Proíbe a exigência de atestado que comprove esterilidade ou gravidez de candidatos a emprego. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1143844&filenam e=Avulso+PL+229/1991.pdf>. Acesso em: 28 de Setembro de 2014. BRASIL. Projeto de Lei n° 382, de 19 de Março de 1991. Dispõe sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho e determina outras providências. Câmara dos Deputados. Disponível em: http:// www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/prop_mostrarintegra; jsessionid =7292EB5CE0C1803641CC83AF65D7B13E. proposicoesWeb1? codteor =1143967 &filename = Avulso+- PL+382/ 1991.pdf . Acesso em: 13 de Outubro de 2014. BRASIL. Projeto de Lei n° 677, de 17 de abril de 1991. Dispõe sobre a proibição da exigência de atestado de esterilização ou teste de gravidez para efeito de admissão ou permanência no emprego. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1144205&filenam e=Avulso+PL+677/1991>. Acesso em: 27 de Setembro de 2014. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR 969007120125130023. 2ª Turma. Relatora: Delaíde Miranda Arantes. Julgamento: 18/05/2015. Publicação: DEJT 22/05/2015. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR 9843920115190003. 6ª Turma. Relator: Augusto César Leite de Carvalho. Julgamento: 09/04/2014. Publicação: DEJT 25/04/2014. DIAS, Isabel. Violência contra as mulheres no trabalho: o caso do assédio sexual. Sociologia, problemas e práticas, Lisboa, n° 57, 2008. GRECO, Rogério. Código Penal comentado. 5ª ed. Niterói, RJ: Impetus, 2011. MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado. 4ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014. MELO, Karine Carvalho dos Santos. A concretização das proteções constitucionais antidiscriminatórias no trabalho da mulher. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, v. 44, n.74, jul./dez. 2006. TERRUEL, Suelen Chirieleison; BERTANI, Iris Fenner. Assédio sexual laboral e suas implicações. Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/pdf/sst/n7/a05.pdf>. Acesso em: 29 de dezembro de 2014.

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O ESTUPRO COMO UMA ARMA DE GUERRA: A VIOLÊNCIA SEXUAL À LUZ DOS PARADIGMAS DE GÊNERO E DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO Herry Charriery da Costa Santos36

Sumário: 1 Introdução. 2 Gênero: um novo paradigma para se compreender a violência sexual. 2.1 Os estudos de gênero sobre o estupro. 2.2 O estupro sob o ângulo dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade. 2.3 Aspectos do genocídio no Direito Internacional Público. 3 O crime de estupro e o direito humanitário. 3.1 A abrangência dos direitos humanos do direito internacional público. 4 A abrangência do conceito de genocídio para os crimes de violência sexual e estupro. 5 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO Ao longo do tempo o crime de estupro vem sendo tratado por estudiosos do mundo inteiro. Os principais estudos na área da violência de gênero vêm buscando problematizar as práticas históricas da violência sexual – o estupro – tentando reconceituar o seu tipo junto ao Direito Internacional Público como um Crime contra a Humanidade. Alguns estudos já produzidos enfatizam a questão do estupro apenas no contexto da proteção individual das mulheres e não no cenário coletivo da ampla criminalização da violência, provocando um retrocesso no seu entendimento junto à Comunidade Internacional no aspecto punitivo do crime. Essa ênfase, portanto, na proteção exclusiva à mulher, obscureceu a gravidade do estupro, desviando o foco da criminalização para uma seara muita mais sociológica do que criminal. Pensando assim, a Comunidade Internacional tem buscado esforços para a construção de um conceito que padronize o crime de estupro dentro dos órgãos de Direitos Humanos Regionais e da Organização das Nações Unidas (ONU), possibilitando apontar uma tipificação ampla e contemporânea de estupro e que possa ser compreendida à luz do Direito Internacional Humanitário. Em 1998, a Seção de Julgamento do Tribunal Penal Internacional para o Estado de Ruanda incluiu em seu julgamento do caso de Jean-Paul Akayesu, que pode ser representado com uma Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas - FACISA (2009) e Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG (2003). Possui Mestrado em História pela Universidade Federal de Campina Grande (2009) com pesquisa na área de Violência de Gênero, feminismo e Crimes Passionais. Possui Pós-graduação Lato Sensu em História do Brasil pela Universidade Estadual da Paraíba (2005) e Pós-graduação em Direito Público pelo Instituto Universitário Brasileiro e Centro de Gestão Empreendedora (2014). 70 36


possibilidade de conceituação do estupro na Comunidade Internacional. Esse julgamento foi considerado moderno e inovador, pois, considerando que era a primeira vez, que um Tribunal Penal Internacional formulava uma definição de estupro. Essa definição foi usada como ponto de partida para reflexões subsequentes do Tribunal Penal Internacional, emergindo novas abordagens teóricas e jurídicas sobre as práticas de violência sexual, especialmente o estupro no âmbito dos Estados. O estupro era interpretado como uma das inúmeras modalidades de crimes de tortura no âmbito internacional. Porém, apesar do crime de estupro ser incluído na tipificação de certos delitos internacionais, tais como tortura, genocídio, violação de túmulos, todos definidos pela Carta de Genebra (1949), ou Crimes contra a Humanidade, o estupro, ainda não se classificava como crime internacional listado nos Tratados Internacionais. Segundo o Jurista Francisco Rezek, em seu clássico Direito Internacional Público (2010), o estupro precisava ser identificado como um crime internacional para poder ser processado pelos atuais tribunais penais internacionais. Portanto, este trabalho acadêmico/científico busca problematizar as discussões teóricas sobre o estupro a partir da tese que o inclui como Crime de Genocídio internacional. Pensando dessa forma, apresentaremos uma análise segundo o paradigma de gênero, sustentando a problemática de que a violência sexual é uma modalidade de poder exercida e legitimada em tempo de guerra. Só assim, poderemos discutir a classificação do estupro como crime de genocídio para a nova interpretação dos Tribunais Internacionais sob os fundamentos dos Direitos Humanos. É importante lembrar que recentemente alguns estudos já apontaram a possibilidade do estupro ser classificado como genocídio no âmbito do Direito Público Internacional. O genocídio é definido como uma violação cometida contra grupos específicos. É de se supor, também, que o estupro definido como uma violação da autonomia sexual de um indivíduo seja compatível com sua subsunção na categoria de uma violação de um determinado grupo, como o genocídio é classificado. Ao abordar essa problemática faz-se necessário tanto um estudo sobre os Crimes contra a Humanidade, quanto o próprio conceito de Direitos Humanos, focalizando tanto o aspecto da proteção internacional ao indivíduo, bem como a proteção internacional ao grupo social. Porém, percebe-se que se trata de uma discussão que merece cautela, pois o estupro quanto um crime de genocídio e abrigando os termos ―indivíduo‖ e/ou ―grupo‖, jamais foi concebido na mesma classificação. 71


Se o estupro for compreendido como uma modalidade de genocídio, no âmbito do Direito Público Internacional, o seu conceito invariavelmente precisará ser alterado. Ele passará a ser, não apenas uma violação de um indivíduo, mas um crime de violação a determinado grupo. Para isso, buscaremos analisar, brevemente, o conceito de gênero e suas contribuições para a polêmica sobre a violência contra a mulher e os crimes contra a humanidade para, em seguida discorrer sobre a problemática que envolve o estupro no cenário internacional. 2 GÊNERO: UM NOVO PARADIGMA PARA SE COMPREENDER A VIOLÊNCIA SEXUAL Os estudos sobre violência contra a mulher têm suas origens no início dos anos 80 do século XX, constituindo uma das principais áreas temáticas dos estudos dos movimentos feministas no Brasil e na América Latina. Esses estudos são fruto das mudanças sociais e políticas que o mundo enfrentava no final da década de 70, acompanhando o desenvolvimento do movimento de mulheres e o processo de redemocratização de muitos países latino-americano. Nesse contexto, umas das importantes finalidades do movimento de mulheres eram dar visibilidade à violência contra as mulheres e combatê-la mediante intervenções sociais, psicológicas e jurídicas. Uma de suas conquistas mais importantes foi a criação dos órgãos de apoio às mulheres vítimas das várias modalidades de violência, entre elas o estupro. Essas novas discussões sobre a temática da violência de gênero compartilham também as referências teóricas adotadas para compreender e definir o fenômeno social da violência contra as mulheres e a posição das mulheres em relação à violência. Nas palavras de Joan Scott, a palavra gênero indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como ―sexo‖ ou ―diferença sexual‖. Assevera Scott: O gênero é uma primeira maneira de dar significado às relações de poder. Seria melhor dizer gênero é um primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual o poder é articulado. A ênfase colocada sobre o gênero, não é explicita, mas constitui, no entanto, um dimensão decisiva da organização, da igualdade e da desigualdade. As estruturas hierárquicas baseiam-se em compreensões generalizadas da relação pretensamente natural entre o masculino e o feminino. (SCOTT, 1990, p. 26)

Entre os estudos que vieram a se constituir como referências a esses temas, podemos identificar três matrizes teóricas: a primeira, que denominamos de ―dominação masculina‖, define violência contra as mulheres como expressão de dominação da mulher pelo homem, resultando

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na anulação da autonomia da mulher, concebida tanto como ―vítima‖ quanto ―cúmplice‖ da dominação masculina. A segunda perspectiva, que chamamos de ―dominação patriarcal‖, é influenciada pela perspectiva feminista de corrente marxista, compreendendo violência como expressão do patriarcado, em que a mulher é vista como sujeito social autônomo, porém historicamente vitimada pelo controle social masculino. E a terceira corrente, é nomeada de ―relacional‖, na qual relativiza as noções de dominação masculina e vitimização feminina, concebendo violência como uma forma de comunicação e um jogo do qual a mulher não é ―vítima‖ senão ―cúmplice‖. Nos anos 90, incentivados pela observação empírica e pelas discussões teóricas que introduzem a categoria gênero nos estudos feministas no Brasil, novos estudos sobre violência contra as mulheres retomam e aprofundam o debate sobre o conceito de gênero, entendido como construção social do masculino e do feminino e como categoria de análise das relações entre homens e mulheres, passando a ser utilizado para se compreender as complexidades da violência sexual. Segundo a pesquisadora Vera Regina Pereira de Andrade, em seu livro A Soberania Patriarcal (2004), as assimetrias de gênero acarretam uma divisão estigmatizante entre homens e mulheres, a estas restando uma posição sempre inferior e subsidiária, cujo corpo feminino tornase uma disposição masculina de controle e de poder de um discurso dicotômico. A construção social do gênero se processa pela atribuição dicotômica e hierárquica de predicados aos sexos, em cuja bipolarização não apenas são opostas qualidades masculinas às femininas, mas essas são inferiorizadas: racional/emocional, objetivo/subjetivo, concreto/abstrato, ativo/passivo, força/fragilidade, virilidade/recato, trabalho na rua/no lar, publico/privado. (ANDRADE, 2004, p.336)

Assim, o uso da categoria gênero introduz nos estudos sobre violência contra as mulheres uma nova terminologia para se discutir tal fenômeno social, qual seja, a expressão ―violência de gênero‖. Pesando dessa forma, novos estudos sobre violência contra as mulheres passam a enfatizar o exercício da cidadania das mulheres e as possibilidades de acesso à Justiça, rompendo com os estigmas e as hierarquias construídas culturalmente, política e socialmente. Entretanto, encontram-se ainda diversas dificuldades de ampliar ou centralizar o conceito de violência contra as mulheres e violência de gênero, bem como as dificuldades práticas na busca de soluções para o estupro como violência de gênero, ou violência contra a mulher. A primeira corrente teórica que identificamos como uma das principais referências orientando as análises sobre violência contra as mulheres, nos anos 80, corresponde aos estudos da socióloga Marilena Chauí, em seu compêndio intitulado Participando do Debate sobre Mulher 73


e Violência (1999). Nesse estudo, Chauí interpreta a violência contra as mulheres como resultado de um produto de dominação masculina que é elaborada e reproduzida tanto por homens como por mulheres ao longo da história. A socióloga define violência como uma ação que transforma diferenças em desigualdades hierárquicas com a finalidade de dominar, explorar e oprimir. A ação violenta trata o ser dominado como ―objeto‖ e não como ―sujeito‖, o qual é silenciado e se torna dependente e passivo. Nesse sentido, o ser dominado perde sua autonomia, ou seja, sua liberdade, entendida como ―capacidade de autodeterminação para pensar, querer, sentir e agir‖ e, sobretudo, perde a liberdade de dispor do seu sexo e de sua própria sexualidade. Segundo Marilena Chauí, a violência contra as mulheres resulta de uma construção ideológica que define a condição ―feminina‖ como inferior à condição ―masculina‖. As diferenças entre o feminino e o masculino são transformadas em desigualdades hierárquicas através de discursos masculinos sobre a mulher, os quais incidem especificamente sobre o corpo da mulher. Ao considerá-los discursos masculinos, o que queremos simplesmente notar é que se trata de um discurso que não só fala de ―fora‖ sobre as mulheres, mas, sobretudo que se trata de uma fala cuja condição de possibilidade é o silêncio das mulheres. (CHAUÌ, 1999, p.25)

As falas masculinas não se contrapõem aos discursos ―femininos‖, já que são produzidos e proferidos tanto por homens quanto por mulheres. O discurso masculino, segundo Chauí, sobre o corpo feminino define a feminilidade a partir da capacidade da mulher reproduzir, ou seja, de ser mãe. Naturaliza, assim, a condição ―feminina‖ que se expressa na maternidade, base para a diferenciação social entre os papéis femininos e masculinos, papéis esses que se convertem em desigualdades hierárquicas entre homens e mulheres. Dessa forma, ao contrário do sujeito masculino, o sujeito feminino é um ser ―dependente‖, destituído de liberdade para pensar, querer, sentir e agir autonomamente. O corpo da mulher, segundo a socióloga passa a ser um campo de atuações, ao tempo que se torna um corpo violentável. Contudo, isso não significa que as mulheres não possam cometer violência. A hipótese com a qual trabalha Marilena Chauí é a de que as mulheres, tendo sido convertidas heteronomamente em sujeitos/objetos, farão de sua ―subjetividade‖ um instrumento de violência sobre outras mulheres. As mulheres são ―cúmplices‖ da violência que recebem e que praticam, mas sua cumplicidade não se baseia em uma escolha ou vontade, já que a subjetividade feminina é destituída de autonomia. As mulheres são ―cúmplices‖ da violência e contribuem para a reprodução de sua ―dependência‖ porque são ―instrumentos‖ da dominação masculina. (CHAUÌ, 1999, p. 28) 74


A segunda corrente teórica que orienta os estudos sobre violência contra as mulheres é apresentado pela pesquisadora Maria Betânia Ávila, com o seu trabalho Direitos Sexuais e Reprodutivos (2003). Diferentemente da abordagem da dominação adotada por Marilena Chauí, essa perspectiva de Ávila vincula a dominação masculina aos sistemas capitalista que muitos países ocidentais experimentaram. Nas palavras de Ávila: O patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela ideologia machista. Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração. Enquanto a dominação pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos político e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno econômico. (ÁVILA, 2003, p 17)

Segundo a autora, o principal beneficiado do patriarcado-capitalismo-racismo é o homem rico, branco e adulto. A constituição da ideologia machista, na qual se sustenta esse sistema, socializa o homem para dominar a mulher e esta para se submeter ao ―poder do macho‖. A violência contra as mulheres resulta da socialização machista. De acordo com Ávila, ―dada sua formação de macho”, o homem julga-se no direito de espancar sua mulher. Esta, educada que foi para submeter-se aos desejos masculinos, toma este ―destino‖ como natural. Ao contrário de Chauí, Maria Betânia Ávila rejeita a ideia de que as mulheres sejam ―cúmplices‖ da violência por instrumentalização do discurso masculino. Por outro lado, embora as concebendo como ―vítimas‖, a autora as define como ―sujeito‖ dentro de uma relação desigual de poder com os homens. Para Ávila, as mulheres se submetem à violência não porque ―consintam‖, mas porque elas são forçadas a ―ceder‖ e porque não têm poder suficiente para consentir. Portanto, as pesquisas sobre violência contra as mulheres, realizadas na década de 80, utilizam o conceito de violência de Chauí, mas não incorporam sua reflexão sobre a ―cumplicidade‖ das mulheres na produção e reprodução da violência no seu sentido amplo. No pensamento de Ávila, o termo violência contra as mulheres é usado como expressão do patriarcado e acaba assumindo uma posição de vítima em relação à mulher. Verificamos que, embora esses trabalhos desenvolvam conceitos sobre violência contra as mulheres, pecam por uma imprecisão terminológica, não fazendo nítida distinção entre os termos ―violência contra as mulheres‖, ―violência doméstica‖ e ―violência familiar‖, os quais acabam sendo utilizados como sinônimos.

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Em produção acadêmica inédita sobre as denúncias de violência contra a mulher, registradas no Brasil, no início dos anos 90, a antropóloga Maria Amélia Azevedo, em Violência Psicológica (2001) parte da concepção de violência de Marilena Chauí para analisar o perfil social e econômico das vítimas e dos agressores, bem como o contexto social das ocorrências. Na mesma linha de Chauí, Maria Amélia Azevedo concebe violência como expressão de ―relações sociais hierárquicas de dominância e subalternidade‖. Vale-se, porém, da perspectiva feminista e marxista sobre o patriarcado, defendida por Ávila, para desenvolver seu conceito de violência contra a mulher enquanto ―violência física, praticada contra ela por marido ou companheiro e, nessa medida, violência familiar‖. Além disso, Amélia Azevedo denomina de ―fatores condicionantes‖, os quais são associados às ―contradições da sociedade patriarcal capitalista‖. Tais fatores compreendem, por exemplo, à estrutura social e econômica, a discriminação contra a mulher, a ideologia machista e a educação diferenciada. E os ―fatores precipitantes‖ da violência, os quais, segundo a antropóloga, são gerados por situações do cotidiano familiar, como, por exemplo, o uso de álcool e drogas. 2.1 OS ESTUDOS DE GÊNERO SOBRE O ESTUPRO Vimos, portanto, que o pensamento sobre a violência contra a mulher partir de estudos que buscavam entender não apenas o lugar ―naturalizado‖ da mulher em sofrer violências, mas as condições sociais, culturais e políticas as quais estavam inseridos os indivíduos. A tese defendida pelo movimento feminista sobre estupro desenvolveu-se a partir da posição que o considera um ato motivado pela necessidade de dominar os outros e tem pouco ou nada a ver com o desejo sexual. A perspectiva teórica de que ―todo estupro é um exercício de poder‖ ainda é aceita hoje por muitas estudiosas feministas que sustentam que o estupro é um mecanismo de controle historicamente difundido, mas amplamente ignorado, mantido por instituições patriarcais e relações sociais que reforçam a dominação masculina e a subjugação feminina. Essa tese, segundo os juristas José Henrique Pierangeli e Carmo Antônio de Souza, no seu trabalho intitulado Crimes Sexuais (2010), argumenta que a história da violência sexual e as várias funções do estupro na guerra e os atos de dominação e subjugação refletem e reproduzem instrumentos patriarcais, sociais e de gênero mais complexos. Essa perspectiva é, sem sombra de dúvidas, uma referencial para as análises sociais, culturais, jurídicas e psicológicas sobre o tema estupro. Segundo os autores acima citados: 76


As feministas socioculturais analisaram as conexões entre processos de socialização e formas de violência contra a mulher e concluíram que o estupro é um subproduto da cultura patriarcal e da socialização que predispõem os homens à violência, ao mesmo tempo que os estimulam a ver as mulheres como objetos sexuais. (PIERANGELI & SOUZA, 2010, p. 39-40)

Porém, notadamente percebemos a crítica que os autores acima fazem com relação a posição feminista radical que define estupro como um ato executado individualmente, o que negligencia o estupro coletivo e ignora os objetivos sociopolíticos de todas as formas de violência sexual contra as mulheres, inclusive o estupro na guerra. Os pesquisadores levaram em conta o papel do poder no que diz respeito ao fenômeno do estupro na guerra e sustentaram que esse crime: (...) Afirma que as mulheres são ―objetos‖ dos homens; emascula os inimigos masculinos conquistados; é uma forma de laço masculino misógino que fortalece a solidariedade necessária para a batalha; é um componente da socialização militar que precondiciona os soldados a desumanizar o inimigo; é uma arma de guerra estratégica usada para realizar limpeza étnica e genocídio . (PIERANGELI & SOUZA, 2010, p. 52)

Mesmo sendo, contudo, uma abordagem teórica aceita entre os sociólogos, juristas e estudiosos em Direitos Humanos, é uma tese muito criticada por teóricos de linhas positivistas. Porém, para a análise deste tema, enfocaremos a perspectiva de gênero, defendida pelo pensamento feminista que, a nosso ver, continua a ser a mais relevante na compreensão do estupro na guerra quanto instrumento e mecanismo de dominação e poder nas relações sociais. 2.2 O ESTUPRO SOB O ÂNGULO DOS CRIMES DE GUERRA E DOS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE Os Crimes de Guerra acontecem quando há violação dos Direitos Humanos em tempos de guerra. Atitudes exageradas em épocas de conflitos eram consideradas normais até o século XX. Acreditava-se que condutas marcadas por estupros, assassinatos de civis e de prisioneiros, torturas ou outros tipos de ações fizessem parte naturalmente dos momentos de conflito armado. Foi somente após a Segunda Guerra Mundial que as autoridades internacionais atentaram para exageros cometidos contra a humanidade em momentos de guerra. A Segunda Guerra Mundial revelou para o mundo as piores ações realizadas em conflitos entre exércitos de países rivais. Como dito, anteriormente havia também atitudes exageradas, mas 77


foi tal conflito que reuniu Estados do mundo inteiro para a apresentar para o mundo as situações de guerra com maior profundidade. Lembra a pesquisadora Martha Huggins, em Polícia e Política (1998) que o grupo dos países Aliados, que reunia as ditaduras fascistas como Alemanha, Itália e Japão, foi os grandes promotores de violação dos direitos humanos. O líder alemão Adolf Hitler promoveu uma série de ações que desrespeitaram assustadoramente os direitos humanos. Ele foi o responsável pelo genocídio de judeus promovido nos campos de concentração, do qual resultaram aproximadamente seis milhões de mortes. O seu exército nazista se encarregou ainda de matar civis e prisioneiros. Tais condutas chocaram o mundo, após a guerra. (HUGGINS, 1998, p.32)

O conceito de Crimes de Guerra só surgiu após o conflito mundial e depois das revelação das ações exageradas durante a guerra. A partir de então, surgiram leis internacionais que se destinavam a condenar tais ações. Já nos anos de 1945 e 1946, o Tribunal de Nuremberg julgou e condenou os nazistas por seus crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial. Na ocasião, foram executados doze líderes nazistas. Da mesma forma, um tribunal julgou e condenou sete comandantes japoneses à morte em Tóquio, em 1948. (HUGGINS, 1998) A Convenção de Genebra, que foi criada em 1948, inseriu os Crimes de Guerra nas leis internacionais após a Segunda Guerra Mundial. Sua legislação é quem define Crimes de Guerra como ataques voluntários contra civis, prisioneiros e feridos, em tempos de guerra. Mas sua contínua modificação acrescentou genocídios e crimes contra a humanidade na lista dos Crimes de Guerra. De acordo com os ensinamentos do Jurista brasileiro Francisco Rezek: De acordo com o grupo de leis, um indivíduo pode ser condenado pelas ações tomadas por um país ou por integrantes de seu exército. Os acordos internacionais que inseriram Crimes de Guerra na Convenção de Genebra são geridos pela Corte Penal Internacional, a qual tem competência para julgar os Crimes de Guerra. Recentemente, o Tribunal de Haia passou a julgar os Crimes de Guerra e considerar também estupros em massa e escravização sexual como integrantes dos crimes contra a humanidade. Desrespeitar a Convenção de Genebra é também um Crime de Guerra . (REZEK, 2010, p. 201)

Os estudos sobre o estupro durante os conflitos armados estabeleceram que, apesar da sua presença ao longo dos séculos, as proibições e punições efetivas só surgiram recentemente e que os processos judiciais contra o estupro nessas circunstâncias ainda são raros. O conceito de ―estupro como crime de guerra‖ entrou em discussão no cenário do Direito Internacional Público no início dos anos 90, do século XX, depois dos episódios da guerra na Bósnia, quando

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foram relatadas violações aos Direitos Humanos, inclusive o uso de campos de concentração sérvios, limpeza étnica e o estupro sistemático de mulheres muçulmanas. Frente a esses relatos de violações aos Direitos Humanos, a comunidade internacional reagiu exigindo que o Conselho de Segurança criasse um tribunal ad hoc para processar crimes de guerra, com o argumento de que as atrocidades incessantes constituíam uma ameaça à paz internacional. O Conselho de Segurança adotou a Resolução 808/827 que levou à criação do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. (REZEK, 2010) Ficou na incumbência do Secretário-Geral da ONU, solicitar a vários governos e organizações internacionais de Direitos Humanos para que apresentassem propostas de redação de um estatuto que compreendesse estupro como um crime de guerra. Isso abriu uma chance para que autoridades jurídicas internacionais construíssem os argumentos essenciais do Direito Internacional Público condenando os tipos de estupro que estavam ocorrendo na Bósnia, o que, por sua vez, deu ao tribunal a justificação legal para processar o estupro como crime de guerra. Segundo os estudos de Sergio Resende de Barros, em Direitos Humanos: Paradoxo da Civilização (2003), o Tribunal Penal Internacional naquela ocasião também decidiu que o estupro podia ser constituído em crime contra a humanidade se fosse cometido de maneira disseminada ou sistemática, ou seja: Baseado em motivos políticos, sociais ou religiosos e voltado contra uma população civil. Além disso, essas discussões judiciais no âmbito internacional consolidou o entendimento de que o estupro cometido durante um conflito armado compreende crimes contra a humanidade, tornando sua definição como uma problemática a ser enfrentada pela comunidade internacional. (BARROS, 2003, p. 74)

Já no final da década de 90, foi constituído o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, possibilitando um julgamento tido como inovador e polêmico sobre o caso de Jean-Paul Akayesu. Akayesu era uma autoridade local quando começou o genocídio contra o grupo tutsi em Ruanda. Akayesu foi processado e condenado por ser o principal instigador dos massacres em sua área e foi a primeira pessoa na história a ser processada e condenada por um Tribunal Internacional por ajudar e incitar atos de estupro como método de genocídio. Em sua decisão, a Seção de Julgamento em Ruanda, argumentou que as mulheres foram estupradas porque eram membros do grupo étnico tutsi. Uma vez que o tribunal considerou que ocorreu genocídio em Ruanda em 1994, o estupro nesse caso passou a ser compreendido como crime de genocídio, conceito inédito e polêmico entre muitos Estados. (BARROS, 2003, p. 78)

2.3 ASPECTOS DO GENOCÍDIO NO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

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Conceituando e definindo o termo genocídio no Direito Internacional Público, podemos contextualizar as influências do pós Segunda Guerra Mundial que contribuíram para o surgimento da Convenção da ONU para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (1948). Essa Convenção define genocídio da seguinte forma: Artigo II - Na presente Convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: (a) assassinato de membros do grupo; (b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; (c) sujeição intencional do grupo a condições de vida pensadas para provocar sua destruição física total ou parcial; (d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; (e) transferência à força de crianças do grupo para outro grupo .

Vários estudos do Direito Internacional Público passaram a desenvolver teses sobre o genocídio, podemos destacar o pensamento de Carlos Augusto Canêdo, em seu título Genocídio: Crime Internacional (1999), assevera que o genocídio poderia ser entendido como: O Genocídio é a intenção criminosa de destruir ou prejudicar gravemente um grupo humano. Os atos são direcionados contra grupos, enquanto tais, e os indivíduos são selecionados para destruição somente porque pertencem a esses grupos. O genocídio envolve tanto grupos quanto indivíduos (porque grupos não podem existir sem membros individuais). Porém, os indivíduos são visados por pertencer a um determinado grupo. (SILVA, 1998, p. 65)

No ano de 1946, a criação da Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução (96-I) que estabelecia que o genocídio é uma negação do direito de existência de grupos humanos inteiros, assim como o homicídio é a negação do direito de viver de seres humanos individuais. Nesse contexto, se uniram três áreas do Direito internacional para produzir o conceito de genocídio: Direito Penal Internacional (para a responsabilidade criminal individual), Direitos Humanos e Direito Humanitário. O Direito Internacional dos Direitos Humanos destaca que o direito à vida, definido na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos é um direito humano concedido aos indivíduos. Porém, embora o direito à vida esteja impresso na Convenção sobre Genocídio (1948), é o direito à vida de grupos humanos que é, de fato, protegido. Em particular, é o direito desses grupos humanos de existir que deveria ser protegido. Ademais, a proibição do genocídio é crucial, pois não é um crime ―dirigido contra o indivíduo, mas contra toda a comunidade internacional‖. Entretanto, o genocídio também foi descrito por Samantha Power, na sua doutrina conhecida como Genocídio e a Retórica Americana (2004), essa obra discute o genocídio como 80


um crime violento contra a pessoa. É um crime de duas vertentes – violação contra o grupo e violação contra o indivíduo – que torna o genocídio e o estupro como genocídio conceitos tão complexos, polêmicos e amplos. A elaboração conceitual de grupos, elaborado na Convenção sobre Genocídio, nacionais, étnicos, raciais ou religiosos, não constituem necessariamente minorias. Esses grupos podem estar em minoria ou podem constituir a maioria num Estado, ou podem carecer de poder no interior do Estado. Segundo Carlos Augusto Canêdo Silva: Não há dispositivos que tratem especificamente de minorias na Convenção. O genocídio é um crime internacional que cobre ações contra grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos. Os indivíduos são as vítimas específicas do genocídio em virtude de pertencerem ao grupo em questão. (SILVA, 1998, p. 81)

A classificação do estupro como crime de genocídio é subjetiva. O trabalho de Carlos Augusto Canêdo Silva (1998) é bastante esclarecedor para compreender que constitui genocídio é característico da literatura mais recente que enfatiza o grupo. O autor em foco argumenta que o genocídio ―é um crime contra uma coletividade‖, ele implica um grupo identificável como vítima. Porém, como sustentaremos adiante, qualquer definição de genocídio deve deixar em aberto a possibilidade de examinar não somente o que acontece ao grupo como um todo, mas também aos indivíduos vítimas de genocídio dentro do grupo. 3

O CRIME DE ESTUPRO E O DIREITO HUMANITÁRIO O crime de estupro é considerado uma das armas mais destrutivas de um conflito armado.

Isso se deve a sua capacidade de desmoralizar um grupo conquistado. O estupro, ou a ameaça de estupro, pode levar ao deslocamento da população, fazer com que as pessoas fujam de seus países para evitar a violência sexual que a invasão militar pode trazer. Na lógica do estudioso Gessé Marques Júnior, em seu título Estupro – Uma Interpretação sociológica e jurídica da Violência (2009), o estupro também gera vergonha e trauma, o que pode impedir casamentos, provocar divórcios, dividir famílias, obrigar mulheres a abandonar ou matar crianças que são fruto de violação e destruir os próprios alicerces sobre os quais a cultura humana se baseia e se mantém. Diz Marques Júnior que: A violência sexual durante o conflito armado serve também como uma forma de controle social que pode suprimir os esforços para mobilizar a resistência de um grupo conquistado. Em casos assim, a violência do estupro é cometido muitas vezes diante de parentes e membros da família; as vítimas são violadas, mortas e expostas ao público 81


como lembrete para que os outros se submetam a obedeçam às ordens do invasor. É evidente que as mulheres são visadas na guerra em virtude de seu gênero, porque fazem parte de um determinado grupo étnico ou racial ou porque são percebidas pelo inimigo como conspiradoras políticas ou combatentes. (MARQUES JÙNIOR, 2009, p. 67)

Assim, podemos compreender o quanto o estupro na guerra funciona como um veículo para os sentimentos anti-humanitários: racismo, preconceito de classe, homofobia e xenofobia que se expressam em relação ao grupo inimigo e são atualizados mediante a violação em massa de suas mulheres. Na guerra, o corpo feminino torna-se o campo de batalha simbólico no qual diferenças culturais e geopolíticas antiquíssimas são exteriorizadas e onde novas formas de ódio são implantadas e alimentam o desejo de vingança no futuro. As consequências psicológicas, sociais, culturais, éticas e médicas do estupro na guerra são devastadoras. Não obstante, sua prática continua sem qualquer forma séria de reparação pelo Direito Humanitário Internacional (MARQUES JÚNIOR, 2009, p 88).

Portanto, foi depois das violações devastadoras cometidas na antiga Iugoslávia que se fizeram conexões efetivas entre genocídio, estupro e limpeza étnica. Marques Júnior (2009) observa, no entanto, que durante a Segunda Guerra Mundial, alemães e japoneses cometeram estupros para obter a ―humilhação e destruição total de povos inferiores e o estabelecimento de sua raça superior‖. Os soldados nazistas empregaram também formas adicionais de violência sexual e de gênero, como a esterilização médica, o feticídio, o feminicídio, com a intenção de destruir os assim chamados ―grupos inferiores‖ mediante o controle ou a manipulação da capacidade reprodutiva da mulher. Sem dúvida, tendo em vista essa intenção de destruir o poder social de um grupo, o termo derivado ―feminicídio‖ define-se, em última análise, como a dimensão de gênero do genocídio. Porém, o estupro como crime, ou como violação de Direitos Humanos, é conceituado como um ato cometido contra o indivíduo. O genocídio, conforme a Convenção para Prevenção e Punição do Crime de Genocídio inclui uma série de atos ―cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso‖. O genocídio é, em última análise, uma negação do direito à vida de certos grupos humanos. Tipo subjetivo do genocídio, entendido como um crime internacional, é a proteção de grupos humanos inteiros. Chamado com frequência de o mais grave dos crimes internacionais, o genocídio é a negação do ―direito de viver‖ dos indivíduos. Contudo, a preocupação é com o direito à existência de grupos humanos e não de indivíduos. Essa formulação do genocídio é diferente do conceito corrente de Direitos Humanos com sua ênfase no indivíduo. A Convenção 82


de 1948 lista os seguintes grupos que poderiam ser alvo de genocídio: nacionais, étnicos, raciais e religiosos. Apesar desse mecanismo embutido para a proteção de certos grupos humanos em relação ao genocídio, surge um interessante questionamento. Ou seja: O genocídio é definitivamente uma violação contra o grupo como um todo ou é um crime contra um indivíduo pertencente a um determinado grupo social? Os atos de genocídio são, por sua vez, cometidos contra indivíduos pertencentes a esses grupos. São membros deles que são mortos, feridos, estuprados etc. São essas histórias individuais, junto com o que aconteceu ao grupo como um todo, que são contadas, por exemplo, diante de tribunais penais internacionais. Essa interação entre espaço para grupos e espaço para o indivíduo no genocídio é o que será ressaltado e avaliado nos casos da vida real nos tribunais internacionais. Em contraste, e tal como foi desenvolvido a partir do período iluminista com o advento dos direitos naturais e o estabelecimento no pós-guerra dos direitos humanos, certas características desses tipos de ―direitos‖ continuam a afetar o modo como eles são concebidos e, até certo ponto, implementados. (MARQUES JÚNIOR, 2009, p. 98)

Um aspecto importante como o atual conceito de Direitos Humanos surgiu diz respeito à ênfase posta nos direitos e na importância do indivíduo. O conceito atual de Direitos Dumanos reflete uma relação em andamento e, na realidade, imperfeita: como o Estado trata os indivíduos dentro e, às vezes, fora de suas fronteiras. Um aspecto que influenciou essa ascensão no status do indivíduo foi a teoria política do liberalismo. O papel crescente do indivíduo e o desenvolvimento dos direitos ligados ao indivíduo, junto com um exame do papel que ele deveria ter dentro do Estado (ou na esfera pública) e até em assuntos privados como na família, foram questões abordadas por uma miríade de pensadores formal ou informalmente associados ao liberalismo. Na obra de Flávio Piovesan, Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional (2004), a autora discute sobre os limitados direitos naturais para o indivíduo aos atuais instrumentos de direitos humanos regionais, nacionais e da ONU. Contudo, os ecos das influências do pensamento liberal são evidentes. Argumenta Piovesan: A DUDH (1948) enfatiza o indivíduo e seus direitos. Os artigos que se referem ao direito de todos à vida, a não ser submetido à escravidão, ao voto etc. são formulados conforme as necessidades e a importância do indivíduo, independentemente – na teoria, é claro – da posição ou do papel do indivíduo no Estado. Porém, tal como acontece na teoria política liberal, o conceito atual de direitos humanos deixa um espaço limitado para ―o grupo‖. (PIOVESAN, 2004, p. 52)

Segundo Flávia Piovesan (2004), vários instrumentos internacionais de Direitos Humanos reconhecem o direito dos povos à autodeterminação. Não são os indivíduos dentro de um grupo 83


de "povos" que têm esse direito, mas os povos como um todo. Embora os mecanismos desse direito ainda estejam em processo de desenvolvimento pelo Direito Internacional Público e sua aplicação tenha sido até agora limitada a situações em que os povos viviam em condições de colonialismo, esse direito demonstra alguma acomodação para o grupo dentro do conceito atual de Direitos Humanos. Os direitos das minorias, que serão discutidos em seguida, atravessam a ruptura entre direitos do grupo como um todo e com muito mais frequência (especialmente no Direito Internacional dos Direitos Humanos) os direitos dos indivíduos no interior do grupo. Essa tensão, encontrada no liberalismo e no conceito atual de Direitos Humanos, de determinar se a ênfase deve recair somente no direito dos indivíduos ou se o conceito de Direitos Humanos também tem espaço para o grupo formará a base para compreender as implicações de quando o estupro é considerado em si mesmo (uma violação contra o indivíduo) e quando é tipificado como genocídio (uma violação contra o grupo). Uma maneira de abordar a questão colocada na introdução é considerar que em algumas situações é mais benéfico incluir o estupro no crime internacional de genocídio. Com frequência, o genocídio é classificado como a mais hedionda de todas as violações dos Direitos Humanos. Sua longa história (anterior à década de 1940 e em eventos mais recentes como em Ruanda), seu impacto devastador sobre grupos e sociedades contribuem para essa conclusão. Poder-se-ia argumentar que o resultado de incluir o estupro na categoria de genocídio é elevá-lo acima de outros crimes internacionais e violações de direitos humanos. Essa abordagem talvez seja útil para contrabalançar a posição problemática que o estupro ocupa, no sentido de que não está previsto por boa parte do Direito Internacional dos Direitos Humanos e, como observamos acima, é distorcido dentro do Direito Humanitário Internacional. Além disso, algumas mulheres que foram estupradas durante eventos genocidas podem considerar que uma associação entre estupro e genocídio tem maiores consequências do que enfocar somente o estupro como violação da autonomia sexual de uma pessoa. Talvez a necessidade de assegurar um registro dessa associação, por exemplo, de que as mulheres tutsis foram estupradas porque faziam parte do grupo étnico tutsi, seja mais importante do que tratar as violações como atos cometidos apenas contra indivíduos. A mudança da definição de crime sexual para genocídio ajuda a reparar os laços sociais que o estupro, especialmente o estupro público, destrói. Essa definição aproxima de volta os homens e membros da família que são forçados a testemunhar o estupro às mulheres, uma vez que todos

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são vítimas. Também retira o estigma da honra perdida que está ligado ao estupro em muitas culturas. Por fim, o ―estupro genocida‖ ajuda a remover a vergonha das vítimas e concentra a responsabilidade nos perpetradores. Um motivo pelo qual a vítima individual de estupro e de estupro como genocídio precisa de voz quando se determinar se o estupro deve ou não ser associado ao genocídio, em vez de somente a uma violação contra a autonomia sexual, está relacionado com o dano causado pelo estupro e, especificamente, o estupro cometido em público. Os estupros que acontecem em público resultam num dano duplo. Como diz Pierangeli & Souza (2010): ―Em outras palavras, o estupro em público não causa dano somente à vítima individual, mas também à família ou à comunidade mais ampla que é testemunha‖. Para a vítima individual de estupro em público, os seguintes danos podem ser amplificados: vergonha, exclusão social, dano físico e psicológico. Desse modo, a pessoa que é estuprada em público sofre danos ligados ao(s) estupro(s). Elas também são prejudicadas no sentido de que o aspecto público dos estupros pode exacerbar as expectativas colocadas sobre as mulheres nas respectivas sociedades e alterar negativamente o modo como a vítima individual é percebida. Em contraste, alguns criticaram a ênfase na importância de classificar o estupro como crime de genocídio com o argumento de que isso pode diminuir a importância de outros tipos de estupro. Ao tratar o estupro genocida de modo diferente, estamos, na verdade, dizendo que todas essas terríveis violações de mulheres podem ir adiante sem sanção comparável. Embora essa advertência seja importante, dependendo das circunstâncias, é crucial que o estupro seja considerado genocídio em atenção às vítimas e/ou para refletir com mais precisão o contexto de um determinado genocídio. Em outras palavras, reconhecer que um genocídio aconteceu e que o estupro foi usado como um mecanismo para perpetrá-lo é importante não somente no contexto do Direito Internacional Público, mas também em termos de apresentar uma compreensão mais completa de determinados eventos. A ligação entre estupro e genocídio nem sempre pode ocorrer, mas pode ser necessária quando relevante. É essencial examinar a dicotomia entre Direitos Humanos individuais e a sugestão de direitos de grupo. Se o estupro enquanto genocídio é conceituado como uma violação contra uma pessoa que faz parte de um grupo, e não como uma violação exclusivamente cometida contra o grupo como um todo e sem considerar o indivíduo, então as implicações para formular esse crime dentro do entendimento aceito do conceito atual de Direitos Humanos precisa ser avaliada. 85


Isso exige uma breve visão geral do conceito atual de Direitos Humanos, com sua ênfase no indivíduo e seu reconhecimento do grupo, e uma introdução ao debate sobre se os direitos humanos são aplicáveis a grupos como um todo, em vez de somente aos membros individuais de um grupo. Assim, no próximo tópico, trataremos dos direitos de minorias e grupos para obter uma compreensão mais clara dos conceitos atual de Direitos Humanos no que diz respeito ao indivíduo e ao grupo. O objetivo será entender como o indivíduo em si e o indivíduo como parte de um grupo são atualmente conceituados e tratados no contexto do Direito Internacional, e determinar se a compatibilidade entre o indivíduo e o grupo existe em violações diferentemente construídas, como estupro e estupro caracterizado como genocídio. (MARQUES JÚNIOR, 2009, p. 102)

3.1 A ABRANGÊNCIA DOS DIREIOS HUMANOS DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO O conceito de Direitos Humanos remonta o período do pós Segunda Guerra Mundial. Antes disso, nos séculos XVII e XVIII, foi proposta a noção de direitos naturais na Europa ocidental. Pensadores iluministas escreveram sobre direitos naturais limitados para os indivíduos, tais como o direito de autopreservação e o direito à vida, à liberdade e à propriedade. A ideia de direitos foi depois invocada por movimentos de abolição da escravidão, de apoio a sindicatos e de defesa dos direitos das minorias. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a então criada Organização das Nações Unidas começou a articular a ideia de Direitos Humanos. Esse processo pode ser encontrado na Carta da ONU e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O conceito atual de Direitos Humanos trata dos direitos e liberdades do indivíduo. Como diz Flávia Piovesan (2004), teoricamente, os Direitos Humanos existem fora do Estado moderno porque não são conferidos aos seres humanos pelo Estado. Os indivíduos, pelo mero fato de que são seres humanos, já existem com certos direitos. Trata-se de um processo separado que consolida esses direitos na lei. Contudo, o indivíduo pode, em graus variados, ter também um lugar, um papel e deveres, e receber benefícios dentro de sua comunidade. Com efeito, o indivíduo tem um papel em estruturas sociais e políticas maiores, como a comunidade ou o Estado.

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O Direito Internacional Público e a teoria liberal em geral encontram dificuldades para aceitar que os Direitos Humanos possam ser aplicados a grupos. A teoria liberal centrou-se tradicionalmente na relação entre o indivíduo e o Estado. Assevera Flávia Piovensan: Os pensadores liberais preocuparam-se em examinar a relação indivíduo-Estado e seus problemas inerentes. É possível dizer que as premissas mais cruciais do pensamento liberal são, em primeiro lugar, que o indivíduo é considerado o agente moral mais fundamental e, em segundo, que todos os indivíduos são moralmente iguais. (PIOVESAN, 2004, p. 33)

Os direitos individuais e o governo da maioria são a base dos Estados-nações democráticos liberais. Contudo, o governo da maioria implica a existência de minorias subordinadas, que a teoria democrática liberal considera conjuntos de ―indivíduos vencidos pelo voto‖. A legitimação de sua situação baseia-se na garantia de seus direitos individuais, que lhes propiciam a oportunidade de se tornar eventualmente membro da maioria. Aparentemente, esse sistema de governo da maioria não conduz obviamente a um problema de minoria. Não obstante, seria errado afirmar que a democracia liberal favoreceu as preocupações individuais em detrimento das questões coletivas, pois ela apenas atribuiu ao indivíduo uma posição normativa distinta dentro da coletividade que é o Estado-nação. A irregularidade explícita na teoria liberal são os coletivos que são persistentemente não-representados, ou, deslegitimados por seus Estados liberal-democráticos. Quanto a isso, parece haver agora um amplo acordo entre os teóricos liberais de direitos de que o indivíduo provavelmente sofrerá se sua cultura ou grupo étnico for abandonado, menosprezado, discriminado ou marginalizados pela sociedade mais ampla. A defesa do reconhecimento e da proteção de uma minoria via direitos coletivos ou assim chamados direitos de grupo, afirma Flávia Piovesan (2004), deriva do fracasso da doutrina liberal predominante ao tratar do problema dos indivíduos persistentemente em desvantagem enquanto membros de um coletivo. No tratamento das fontes dominantes de discriminação como gênero ou grupo étnico, o individualismo liberal é deficiente. Porém, embora possa haver bons argumentos em defesa dos direitos coletivos, eles não devem ser considerados Direitos Humanos coletivos para todos que pesquisas na área. A noção de direitos humanos coletivos está enraizada numa concepção individualista de direitos humanos, que ele sugere que foram desenvolvidos somente para proteger os indivíduos. A dimensão coletiva é que existem alguns direitos humanos individuais que podem ser exercidos coletivamente. Essa posição reflete a abordagem dominante no Direito Internacional. (PIOVESAN, 2004, p. 46-45)

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O Direito Internacional dos Direitos Humanos deve avançar em relação a essa interpretação estreita, bem como deveria reconhecer os direitos de grupos e minorias enquanto tais. Com efeito, a questão é se o regime existente pode se expandir para incluir direitos de grupos, ou se é preciso acrescentar um novo conjunto de obrigações. Uma maneira é desenvolver os direitos de grupos como um ramo dos direitos humanos. Outra possibilidade é manter os Direitos Humanos com seu foco no indivíduo como portador de direitos, mas criar ao seu lado uma categoria nova de direitos grupais que estejam à parte, mas sejam influenciados pelo atual regime de Direitos Humanos. A chave para o desenvolvimento dessas questões talvez seja o reconhecimento de que há uma justificativa individualista para os direitos grupais. Com efeito, é provável que um indivíduo sofra se sua cultura é persistentemente prejudicada ou excluída. A contribuição fundamental que o pensamento de Carlos Augusto Canêdo pode oferecer para a compreensão das implicações do genocídio e do estupro como genocídio é a conexão entre os direitos individuais e grupais, um tema que é insinuado na legislação internacional sobre genocídio. 4

A ABRANGÊNCIA DO CONCEITO DE GENOCÍDIO PARA OS CRIMES DE VIOLÊNCIA SEXUAL E ESTUPRO Com base no que foi discutido anteriormente, podemos unir a noção de estupro como

crime contra a pessoa e a noção de genocídio como crime contra o grupo. No Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, a Seção de Julgamento determinou que estupro podia ser entendido como ―uma violação grave da autonomia sexual‖. Em seu sumário de várias jurisdições dos costumeiros em relação às definições de estupro, o Tribunal concluiu que o princípio mais importante que liga esses sistemas ―é que as violações graves da autonomia sexual devem ser penalizadas‖. Por sua vez, a autonomia sexual é violada sempre que a pessoa submetida ao ato não concordou livremente com ele ou não é uma participante voluntária. Tal como no caso do crime internacional de tortura, essa conclusão enfatiza que o estupro deve ser conceituado como crime cometido contra o indivíduo. Nessa qualidade, o estupro é um ato perpetrado contra o indivíduo e viola especificamente os componentes sexuais da pessoa. Como Pirangeli & Souza observa no contexto das definições de estupro, ―esse crime ocorre basicamente no espaço psíquico da pessoa‖, consistindo em três componentes: 88


Os dois primeiros são mentais – uma capacidade interna de fazer escolhas razoavelmente maduras e racionais, e uma liberdade externa de pressões e restrições não permitidas. A terceira dimensão é igualmente importante. O conceito central da pessoa [...] a integridade corporal do indivíduo . (PIERANGELI & SOUZA, 2010, p. 125)

Embora essa definição de autonomia sexual inclua aspectos mentais e físicos, a menção a fazer escolhas é problemática. Uma ligação semelhante pode ser feita com teorias dos Direitos Humanos, segundo as quais, para que tenham direitos humanos, os indivíduos devem ter a capacidade de reivindicá-los. Em contraste, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda em seu julgamento crucial de Jean-Paul Akayesu, em 1998, define estupro sob certas condições como genocídio pela primeira vez no Direito Internacional Público. De acordo com a Seção de Julgamento, as mulheres estupradas durante o genocídio de 1994 foram escolhidas para a violação porque eram membros do grupo étnico tutsi. Os estupros foram, portanto, considerados genocídio nesse contexto, pois, nas palavras do Tribunal: A Seção está convencida de que os atos de estupro e violência sexual descritos acima foram cometidos somente contra mulheres tutsi [...] e contribuíram especificamente para a destruição delas e a destruição do grupo tutsi como um todo". Esses estupros resultaram em destruição física e psicológica das mulheres tutsi, de suas famílias e de suas comunidades. (PIERANGELI & SOUZA, 2010, p. 128)

Uma maneira pela qual os estupros contribuíram para a destruição do grupo tutsi foi que muitas das meninas e mulheres estupradas foram mortas depois, ou morreram em consequência dos ferimentos. Outro ponto crucial no que diz respeito à classificação dos estupros como genocídio relaciona-se com o fato de que as mulheres tutsis foram consideradas ―objetos sexuais‖ e, como observou o Tribunal no caso Akayesu: A violência sexual foi um passo no processo de destruição do grupo tutsi – destruição do espírito, da vontade de viver e da própria vida. Nesse contexto, os estupros das mulheres tutsi poderiam ser colocados sob a definição legal de genocídio porque representam a intenção do inimigo de destruir. O estupro nesse casso pode ser classificado como genocídio, o estupro pode ser compreendido como um instrumento particularmente eficaz de genocídio e uma maneira de infligir grave dano corporal ou mental a um grupo. (PIERANGELI & SOUZA, 2010, p. 152)

Entre os efeitos posteriores dos estupros que ocorreram no contexto do genocídio em Ruanda estava o fato de sobreviventes se tornarem socialmente párias e excluídas. Desse modo, surge uma camada adicional de complexidade, ligada às opiniões e sensibilidades culturais. Como observamos na introdução, este artigo identificou e analisou implicações teóricas que emanam de 89


decisões judiciais que associam o estupro como violação cometida contra uma pessoa e o estupro no contexto de um crime grupal respectivamente. Observando os discursos sobre o julgamento de tribunais penais internacionais selecionados, não para afirmar a compatibilidade entre as duas concepções de estupro, mas para entender o que pode ocorrer ao estupro quando é subsumido a um crime internacional já estabelecido. São as implicações teóricas dessas decisões judiciais que influenciaram este artigo, e não as afirmações legais. Depois de um exame mais atento dos comentários da Seção de Julgamento desse caso, parece que eles abrem a possibilidade de compatibilidade dentro do genocídio entre o individual e o grupal. Sim, é verdade que ela se concentra no fato de que as vítimas individuais foram escolhidas por fazerem parte do grupo étnico tutsi. Porém, O Tribunal também reconhece que ambos – o grupo tutsi e as vítimas individuais de estupro – foram alvo de genocídio. Relembrando suas palavras: ―e especificamente contribuindo para a destruição delas e para a destruição do grupo tutsi como um todo". Portanto, nesse caso em particular, o crime de estupro classificado como genocídio é concebido como um ato cometido contra um indivíduo (as mulheres tutsi) e um ato cometido contra o grupo (os tutsis). Desse modo, o estupro caracterizado como genocídio manteve seu estatuto de violação contra a autonomia de um indivíduo, mas também de violação contra o grupo como um todo. Utilizando essa decisão específica da Seção de Julgamento do TPIR como um exemplo, é nosso entendimento que pode existir uma área de acomodação na qual o grupo (os tutsis) e o indivíduo são reconhecidos, com o objetivo esperançoso de proteger ambos no futuro. Porém, embora o julgamento desses casos projete o grupo e o indivíduo como compatíveis no que diz respeito ao genocídio, deve-se enfatizar que o Tribunal insistiu que as mulheres estupradas eram vítimas porque eram tutsi. A conexão com o grupo não é totalmente removida, apesar do fato de o Tribunal ter também reconhecido espaço para o individual. Essa abordagem pode negar ainda mais a individualidade das vítimas, uma vez que foram colocadas na categoria de mulheres tutsi e não na categoria geral de "mulheres". É possível argumentar que a noção de "mulheres" também nega a individualidade das vítimas porque poderia ser considerada outra categoria de grupo. Como dissemos, a acomodação criada para o indivíduo dentro do crime internacional de genocídio centrado no grupo não é perfeita e pode ser desconfortável. O constructo da Convenção sobre Genocídio (1948) que a

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Seção de Julgamento do TPIR deve seguir explicaria a restrição em concentrar o foco somente no grupo étnico tutsi. Os estudiosos jurídicos consideram, portanto, o caso Akayesu monumental por quatro motivos: primeiro, forneceu uma definição clara e progressista de estupro onde nenhuma existia antes nos instrumentos do Direito Internacional; segundo, foi o primeiro caso que envolveu um processo de estupro como componente de genocídio; terceiro, contribuiu para um crescente diálogo sobre violência sexual na guerra e para o discurso sobre seu papel na prevenção de violações futuras de mulheres em zonas de conflito; quarto e o que é mais importante, deslocou certos casos de estupro no sentido da inclusão numa categoria de crimes (genocídio, tortura, crimes de guerra, crimes contra a humanidade) que têm estatuto de jus cogens e são processáveis com base na jurisdição internacional. 5 CONCLUSÃO Este trabalho buscou discutir as recentes decisões inovadoras de jurisprudência internacional em relação ao estupro e suas implicações teóricas para o modo como o estupro é conceituado e tratado pelo Direito Internacional Público. O texto centrou-se no caso de JeanPaul Akayesu, 1998, no qual o estupro foi entendido convencionalmente como uma violação cometida contra um indivíduo foi subsumido ao crime internacional já estabelecido de genocídio. Neste trabalho, identificamos e tratamos dos problemas em potencial e das inconsistências que surgem quando um ato definido tradicionalmente como uma violação dos direitos individuais é redefinido como crime contra um grupo. Essas implicações são tanto teóricas quanto práticas, na medida em que a definição de estupro como violação sexual de uma mulher, ou como crime de guerra, por exemplo, um instrumento de "limpeza étnica", ou como genocídio tem efeitos substanciais sobre o modo como o crime é vivido por suas vítimas e como seus perpetradores são punidos. O artigo deixou claro que quando o estupro é incluído no crime grupal de genocídio, sua dinâmica muda, uma vez que ele não funciona mais somente como uma violação cometida contra um indivíduo. Sustentamos que a concepção de estupro como violação da autonomia sexual de uma pessoa e de estupro como um crime de genocídio podem existir dentro dos mesmos parâmetros. Tal como no conceito de direitos humanos, tendo em vista sua origem na teoria política liberal individualista, a relação entre o indivíduo e o grupo é problemática – com frequência desigual e desconfortável – mas em última análise, não é incompatível. 91


REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Soberania Patriarcal: O Sistema de Justiça Criminal no Tratamento da Violência Sexual contra a Mulher. IBCCRIM. São Paulo. 2004. ARAÚJO, Letícia Franco. Violência Contra a Mulher. Campinas/SP: Editora CS Lex, 2003. ÁVILA, Maria Betânia. Direitos Sexuais e Reprodutivos. Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro: 19, 2003. BARROS, Sérgio Resende de. Direitos Humanos: Paradoxo da Civilização. Belo Horizonte, Del Rey, 2003. CHAUI, M. S. Repressão sexual, essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1982. HUGGINS, Martha K. Polícia e Política. São Paulo: Cortez, 1998. MARQUES JÚNIOR, Gessé. Estrupro: Uma Interpretação Sociológica e Jurídica da violência. São Paulo: Editora Juruá, 2009. PIERANGELI, José Henrique. Crimes Sexuais. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2004. POWER, Samantha. Genocídio e a retórica Americana. Companhia das Letras: São Paulo, 2004. REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2010. SCOTT, Joan W. Gênero: Uma abordagem útil de análise histórica. Vol. 16. Porto Alegre, 1990. SILVA, Carlos Antônio Canêdo Gonçalves. O Genocídio como Crime Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

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RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O PARADIGMA DO REALISMO POLÍTICO: A AUSÊNCIA DA DISCUSSÃO SOBRE GÊNERO NO CENÁRIO DA POLÍTICA DO PODER37 Kamila Soraia Brandl38 Marcia Cristina Puydinger De Fazio39 Sumário: 1 Introdução. 2 Relações internacionais e o paradigma do realismo político. 3 O realismo político e a questão de gênero. 4 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A disciplina de Relações Internacionais surgiu como saber autônomo após a Primeira Guerra Mundial, com o objetivo de analisar, interpretar e compreender as interações estabelecidas no âmbito da sociedade internacional, voltando-se, portanto, este campo do conhecimento, a apreender e explicar um conjunto de fenômenos muito específicos, quais sejam, as relações sociais internacionais. Dinâmico e complexo, referido campo sempre se renovou em teorias e modelos de análise que procuraram, e ainda procuram, explicar o aspecto de confrontação de poder que lhe é intrínseco. É importante ter em mente, contudo, que dita renovação teórico-analítica não implica a exclusão de abordagens anteriores, no sentido de que a emergência do novo ocupa o lugar reservado ao antigo, levando o predomínio daquele ao afastamento deste. Mas, ao contrário, juntos compõem um corpo teórico responsável por oferecer ao estudioso diferentes imagens do mundo, as quais, longe de se excluírem, integram um todo explicativo das múltiplas facetas das relações internacionais. Do mesmo modo, e em consonância com as observações acima, a exposição do tema a partir de uma linha cronológico-evolutiva é feita, neste estudo, tão somente para fins didáticos e de transmissão de noções fundamentais, já que o debate entre distintas Estudo elaborado por integrantes do grupo de pesquisa vinculado ao Projeto Relações Internacionais, Poder e Direito: cenários e protagonismos dos atores estatais e não estatais, desenvolvido no âmbito do Núcleo Strictu Sensu do Programa de Direito da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), Santa Catarina. 38 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Relações Internacionais. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa no Projeto Relações Internacionais, Poder e Direito: cenários e protagonismos doas atores estatais e não estatais, do Núcleo Strictu Sensu em Direito, da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), Santa Catarina. 39 Mestre e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Relações Internacionais. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa no Projeto Relações Internacionais, Poder e Direito: cenários e protagonismos dos atores estatais e não estatais, do Núcleo Strictu Sensu em Direito, da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), Santa Catarina. Professora de Direito do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano, Campus Rio Verde. 93 37


correntes de pensamento permanece até os dias atuais, e o predomínio de uma sobre as demais está diretamente relacionado com a conformação dos diferentes contextos históricos. Feitas estas observações pode-se observar que em um primeiro momento, nos anos seguintes ao término da Primeira Guerra Mundial, uma corrente liberal concebeu as relações internacionais dentro de uma perspectiva legalista, com o intuito de conter o caráter belicoso das relações entre Estados e evitar novas agressões armadas, concretizando-se, referido intento, com a criação da Liga das Nações. Nesse sentido, a ordem internacional do pós-guerra seria construída sobre princípios jurídicos que atuariam como padrão regulador das ações estatais, orientando-a segundo um perfil pacifista e cooperativo. Todavia, a intenção de conduzir as relações interestatais com base em princípios inspirados em regras éticas mostrou, naquele contexto, não corresponder à realidade de sua natureza conflituosa, passando a ser conhecida, esta corrente de pensamento, como idealista. Posteriormente, durante o período que se estende desde a Segunda Guerra até o final dos anos 60, uma concepção realista predominou nos estudos da disciplina. Fundada numa visão estatocêntrica, ela pressupõe que as relações orientam-se tão somente pelo poder, ou seja, sempre e em qualquer situação os Estados procuram mantê-lo, reafirmando-o quando necessário e aumentando-o quando possível. Desse modo, no âmbito da política internacional busca-se a realização dos próprios interesses utilizando a força se necessário, o que faz da guerra mero meio de ação para a conquista de objetivos definidos. O realismo dominou o campo teórico das Relações Internacionais durante longo tempo e marcou a disciplina de maneira específica, prevalecendo a preocupação com questões diplomático-estratégicas e militares (alta política), enquanto outros temas como economia, sociedade, cultura e tecnologia (baixa política) não compunham de modo significativo o campo de estudo, análise e compreensão das relações interestatais. É no contexto de vigência desse marco teórico-analítico que as questões de gênero foram ignoradas pelo debate predominante, permanecendo como invisíveis, no péríodo inicial de nascimento e consolidação da disciplina das Relações Internacionais enquanto saber autônomo. A questão de gênero ganhou relevância somente a partir da década de 80, com o chamado terceiro debate. Essa inserção tardia, como será visto no decorrer do ensaio, deve-se predominantemente à posição ocupada pela abordagem do realismo político, que centrado nas relações de poder e em outras diversas categorias masculinas, ─ guerra, soldado, força, anarquia, defesa, segurança ─ relegou ao segundo plano os temas relacionados à esfera feminina, concebidos como low politics (baixa política). 94


Entretanto, apesar de solidamente construído e influente até os dias atuais, já que o pensamento realista, em suas distintas vertentes, possui capacidade de adaptação constante, não foi capaz de explicar as transformações desencadeadas na sociedade internacional no final da década de 60, e a principal delas consistiu na realocação do lugar até então ocupado pela alta política ─ defesa, segurança, diplomacia, estratégia – diante da crescente importância de outros temas antes tidos como secundários ou irrelevantes. Atividades econômicas, científicas, culturais e sociais passaram a representar papel de destaque, transformando as relações internacionais em algo mais do que estritas relações de força. Os acontecimentos dos anos 70 e seguintes inauguraram novo momento teórico-analítico, quando se vislumbra, com base em novas visões da política internacional, que o aspecto da confrontação de poder conforma-se de modo mais complexo. E, neste cenário, conformado como um mosaico de peças ajustadas, porém absolutamente distintas, as discussões de gênero ocupam na sociedade internacional, juntamente com outros e novos atores não estatais, um espaço que já não pode ser desconsiderado. Ante estas considerações, cabe especificar que o tema, no presente estudo, será abordado com base em dois tópicos: o primeiro dedica-se a contextualizar o leitor a respeito do lugar ocupado pelo realismo no campo das Relações Internacionais, tecendo considerações referentes às suas premissas centrais; e o segundo traz elementos explicativos sobre as questões de gênero e como as mesmas deixaram de ser inseridas na política internacional ante o predomínio realista. 2 RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O PARADÍGMA DO REALISMO POLÍTICO

Questão merecedora de continuados estudos e análises no campo das Relações Internacionais é aquela relacionada aos seus paradigmas.40 Entendidos como modelos de compreensão das relações que se dão no cenário internacional, os paradigmas percorreram, desde o início do século XX até os dias atuais, um trajeto teórico que procurou acompanhar e explicar as transformações relacionais nele manifestadas. 41

Pode-se compreender melhor a questão conceitual envolvendo os paradigmas em geral a partir da obra de Thomas Kuhn: A Estrutura das revoluções científicas. Lisboa: Guerra & Paz, 2009. Contudo, faz-se a ressalva de que a particularidade da natureza e do comportamento dos paradigmas no campo das Relações Internacionais não permite a pronta remissão à concepção kuhniana. 41 Sobre o tema, consultar os seguintes estudos: BARBÉ, Esther. Relaciones Internacionales. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2007.; BEDIN, Gilmar Antônio [et al]. Paradigmas das Relações Internacionais: realismo, idealismo, dependência, interdependência. 3.ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011.; OLIVEIRA, Odete Maria de. Relações Internacionais: estudos de introdução. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. 95 40


Segundo Odete Maria de Oliveira (2004, p. 37), noção de paradigma refere-se ao modo de apreender, compreender e interpretar a realidade do objeto de conhecimento, ou seja, dos fatos, fenômenos e relações internacionais. Nesse mesmo sentido Esther Barbé (1993, p. 56 e ss) enfatiza que o paradigma constitui o mapa mental do teórico, apresentando uma imagem do mundo e servindo, portanto, como um guia para a investigação. Nestes termos, o papel do paradigma é essencial, pois desempenha a função de ser um caminho orientador da análise, dinamizando o trabalho do estudioso, conduzindo sua investigação e procurando respostas para suas indagações. Trazendo um novo elemento para o entendimento conceitual, Gustavo Lerma (1989) indica que o paradigma, enquanto marco e guia, condicionará a análise do objeto, do método e de todo o processo investigativo da pesquisa. Assim, o paradigma adotado reflete-se na concepção global do objeto estudado. Diferentes paradigmas poderão, então, produzir análises distintas e, em certos pontos, complementares, da dinâmica global. Sobre essa questão, Giovanni Olsson (2009, p. 149) indica que ―a adoção de uma ou outra matriz paradigmática implica respostas diferentes aos questionamentos sobre os atores42, os cenários e papéis da sociedade internacional.‖ E essa potencialidade permite que se analisem os mesmos fenômenos com diferentes interpretações, necessárias à ampla compreensão das múltiplas facetas do objeto de conhecimento. (BARBÉ, 1989). Neste sentido, o paradigma realista, também conhecido como modelo da política do poder, caracterizou-se como a própria teoria das Relações Internacionais durante o período que se estende desde a Segunda Guerra Mundial até os fins dos anos 60.43 Constitui-se como marco de referência tradicional, clássico e imponente da disciplina, mantendo-se vivo até os dias de hoje. Como tal, o nascimento das Relações Internacionais enquanto saber autônomo se dá praticamente em consonância com a elaboração da visão paradigmática realista, no período entre as duas guerras mundiais e momento de vigência do modelo liberal, de tal maneira que, muitas vezes, se confundem. Ver mais sobre as aproximações conceituais de ator internacional no seguinte estudo: BRANDL, Kamila Soraia. O fenômeno dos atores internacionais emergentes e a fragmentação estatal: a tendência paradigmática pósinternacional e o protagonismo dos governos não centrais. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Direito. Dissertação de Mestrado, 2013. 43 ―Teoricamente, o paradigma tradicional centrou-se sobre algumas linhas de indagação, como as causas das guerras e as condições de paz, a natureza do poder, a segurança nacional, reconhecendo como atores principais, únicos e exclusivos das relações internacionais, apenas as unidades estatais, membros da sociedade internacional e do Sistema Europeu de Estados.‖ In: OLIVEIRA, Odete Maria de. Relações Internacionais e o dilema de seus paradigmas: configurações tradicionalistas e pluralistas. In: OLIVEIRA, Odete Maria de; DAL RI JÚNIOR, Arno (Orgs.). Relações Internacionais, interdependência e sociedade global. Ijuí: Ed. Unijuí, 2004. p. 55-56. Ver também a obra de Philippe Braillard: BRAILLARD, Philippe. Teoria das Relações Internacionais. Tradução J. J. Pereira Gomes e A. Silva Dias. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990. 96 42


Os desenhos e arranjos do realismo político tornaram-se elementos centrais na narrativa sobre o que a disciplina das Relações Internacionais relata de si mesma, sua história, e seus conceitos fundacionais. As asserções sobre a política realista funcionam como maneiras de legitimação, confirmando a validade continuada dos princípios realistas ao longo da história, apropriando-se da autoridade de figuras clássicas da teoria política em seu suporte. (WILLIAMS, 2005, p. 3)

Surgindo em um cenário internacional conflituoso, marcado por agressões bélicas e devastado pelos resultados catastróficos da guerra, o realismo, ao mesmo tempo, retratou e refletiu fortemente em suas percepções da realidade tais características. [...] Profundamente influenciado pelos eventos na Europa nos anos de 1930 e 1940, de onde muitos de seus estudiosos vieram, o realismo político tem estado primariamente preocupado em explicar as causas das guerras internacionais e a ascensão e queda dos Estados. (TICKNER, 1992, p. 10).

Tornou-se o pensamento hegemônico depois da Segunda Guerra, reagindo ao que considerava uma visão idealista por parte da corrente liberal, e interessado em explicar de maneira mais efetiva a realidade do conflito. Manteve sua influência no decorrer da Guerra Fria e posteriormente, na década de 80, foi reformulado pelo neo-realismo, também chamado realismo estrutural.44 Apesar de ter se solidificado somente depois do segundo grande conflito, tem antecedentes no âmbito da teoria política, na experiência da afirmação do Estado como forma de organização política e social e da constituição de um sistema de Estados europeu no século XVII. Segundo Hans Morgenthau45, autor precursor na articulação da teoria realista, o estudo da política exige que, num primeiro momento e antes de tudo, se extraia a sua essência ou fundamento. Com isso, procurou desenvolver uma teoria geral que pudesse ser aplicada indistintamente a toda relação política, interna ou internacional. Marcado pela experiência de duas guerras mundiais e uma Guerra Fria, além de outras agressões armadas como a guerra da Coréia, a guerra do Vietnã e a invasão do Afeganistão pela União Soviética, o autor conclui que o fundamento da política é o poder. Desse modo desenhou o realismo, partindo das únicas referências que lhe eram possíveis.

Kenneth Waltz é o autor precursor do que se denomina realismo estrutural. Ver as seguintes obras do autor: WALTZ, Kenneth. Theory of International Politics. New York: McGraw-Hill, 1977.; WALTZ, Kenneth. Teoria das Relações Internacionais: o homem, o Estado e a guerra. Tradução Maria Luísa Felgueiras Gayo. Lisboa: Gradiva, 2002. 45 MORGENTHAU, Hans. A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. Tradução Oswaldo Biato. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003. 97 44


O desenho desse paradigma pode ser definido como estatocêntrico, e a leitura que o mesmo faz da realidade se traduz em termos de poder, quer dizer, a busca, a manutenção ou o aumento do poder por parte dos Estados. Disputando o poder num meio anárquico, e sendo os únicos capazes de efetivamente exercê-lo por meio da força das armas e da ameaça da guerra, os Estados se conformam como os atores por excelência, aqueles cujas relações devem ser estudadas e compreendidas. Em síntese, cinco asserções fundadas na centralidade do Estado enquanto principal unidade do sistema internacional e os desdobramentos que surgem a partir disso criam a estrutura realista (KAUPPI; VIOTTI, 1993): − os Estados são os atores principais ou mais importantes, e representam as unidades de análise centrais, identificando o estudo das Relações Internacionais com aquele das relações entre os Estados; − as corporações internacionais, grupos terroristas e organizações internacionais são reconhecidos pelos realistas, mas a posição desses atores não-estatais é menos importante, pois os Estados são atores dominantes; − o Estado é um ator unitário, uma unidade integrada; − o Estado é um ator racional, estendendo essa concepção para a existência de um processo racional de política externa; − existência de hierarquia dos temas internacionais, com a segurança nacional como tema prioritário, assim como a questão militar e o poder político. Dessa maneira, o modo de compreensão e análise da realidade segundo pressupostos realistas concebe que a figura estatal detém precipuamente duas funções: a primeira consiste em manter a estabilidade doméstica; e a segunda, em garantir a segurança de seus cidadãos de agressões externas. Seu papel interno funda-se em manter a ordem e a paz na sociedade, e seu papel externo em relacionar-se racionalmente, de modo a defender sua existência e conservar sua independência. Dessa concepção minimalista e fechada, deduz-se a percepção do Estado como ator unitário e racional, o qual atua isoladamente e em busca dos próprios interesses. (MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p. 24-25) Anarquia é a condição em que vivem estes atores, e mais do que isso, é o próprio conceito definidor de como são estabelecidas as relações interestatais, remetendo à ausência de uma autoridade superior e legítima capaz de ditar regras e impor sanções. Neste cenário, já definido por Hobbes como um estado de guerra de todos contra todos, os Estados encontram-se em permanente luta pela sobrevivência e conformam suas relações como um jogo de soma

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zero.46 (MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p. 26-27) A sociedade internacional é concebida, então, como um espaço sempre conflitivo dentro do qual os Estados são obrigados a proverem recursos para sua sobrevivência. Essa condição é natural e imutável, logo, na visão realista, não há possibilidade de alteração do status quo, ou de transformação da ordem internacional.47 (BEDIN, 2011b, p. 60-64) O aporte histórico-teórico do realismo político evidencia como outros temas, que não a condição de anarquia internacional, a sobrevivência estatal e o poder, deixaram de ser observados e estudados pelos autores dessa corrente de pensamento, fundamentalmente por serem vistos como irrelevantes à compreensão do objeto de estudo da jovem disciplina, que estão se conformava como saber autônomo. No campo dos temas, fatos e fenômenos de pouca importância estão os debates envolvendo o gênero no âmbito das Relações Internacionais, e é dentro desta temática que o tópico seguinte se desenvolve, procurando apresentar elementos que contribuíram para formar a concepção de gender neutral.48 3 O REALISMO POLÍTICO E A QUESTÃO DE GÊNERO A questão de gênero tem ganhado força no espaço acadêmico, juntamente com o crescente número de pesquisas sobre o referido tema, bem como na vida social e política, pois relacionada diretamente com os avanços conquistados pela mulher enquanto ator influente e protagonista.49 É importante registrar, de início, que o conceito de gênero não está diretamente

No tocante à condição de anarquia internacional, ―os liberais tendem a concordar com os realistas‖, quer dizer, ―uma sociedade sem governo dá lugar a discórdias incessantes entre interesses divergentes‖. No entanto, uma das grandes e centrais diferenças entre liberais e realistas ―é a não aceitação dessa condição como imutável‖, sendo possível, então, para os liberais, que essa condição de anarquia seja substituída por uma ―ordem mais cooperativa e harmoniosa‖. (MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p. 61) Sobre a corrente liberal e seus pressupostos, ver também: MIYAMOTO, Shiguenoli. O ideário da paz em um mundo conflituoso. In: BEDIN, Gilmar Antônio [et al]. Paradigmas das Relações Internacionais: realismo, idealismo, dependência, interdependência. 3. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011. p. 15-56. 47 Ver também os seguintes estudos acerca da sociedade internacional: BEDIN, Gilmar Antonio. A sociedade internacional clássica: aspectos históricos e teóricos. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011a.; BEDIN, Gilmar Antônio. A sociedade internacional e o século XX: em busca da construção de uma ordem mundial justa e solidária. Ijuí: Ed. Unijuí, 2001. 48 É pertinente a ressalva de que a concepção gender neutral não é hegemônica entre os pesquisadores que investigam a inserção de gênero nas Relações Internacionais. Sobre o tema, ver pertinente pesquisa sobre a questão de gênero nas Relações Internacionais: DA SILVA, Andréia Rosenir. A construção de gênero no âmbito das Relações Internacionais: direitos humanos das mulheres e a necessidade de instrumentos eficazes à sua consolidação. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Direito. Dissertação de Mestrado, 2013. 49 Ver importante estudo sobre o papel dos movimentos feministas no âmbito das Relações Internacionais: REYNALDO, Renata Guimarães. O fenômeno global e o papel dos movimentos feministas na efetivação de uma globalização contra-hegemônica. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de PósGraduação em Direito. Dissertação de Mestrado, 2012. 99 46


relacionado com o aspecto sexual masculino e feminino, mas, antes, compreende-se como construção social envolvendo um conjunto de relações, conforme apontamentos de Andréia Rosenir da Silva: relações entre homens e mulheres, construídas socialmente, atribuindo-lhes fatores sociais, econômicos, culturais, religiosos e políticos, não aceitando a determinação imposta pela diferenciação de seus órgãos sexuais, ─ qualidades masculinas e femininas ─, a partir deles produzindo, de um lado, a força, a coragem e o poder, de outro, a fragilidade e a vulnerabilidade. (DA SILVA, 2013, p. 9)

Se a disciplina das Relações Internacionais nasceu em contexto belicoso e catastrófico, interessado inicialmente em contribuir com elementos que pudessem explicar tal realidade singular (por um lado, o liberalismo, focado em princípios normativos e, por outro, o realismo, fundamentado na natureza do poder), como haveria espaço para incorporar a questão de gênero naquele conflituoso momento histórico, no qual os Estados estavam interessados em sua própria sobrevivência? Além de considerar a influência do contexto histórico-político e social de nascimento da disciplina, motivada em explicar as causas da guerra, pode-se identificar que a questão de gênero não foi incorporada como preocupação nos estudos e pesquisas iniciais, analisando dois aspectos principais: − Quem escrevia sobre Relações Internacionais? Os primeiros autores eram homens e, como tal, preocupados unicamente com questões masculinas. − O que escreviam? Basicamente, estavam preocupados com a manutenção do poder dos Estados e, portanto, as figuras que aparecem nos seus escritos remetem aos seguintes símbolos: poder, força, guerra, soldado, Estados, segurança nacional, defesa nacional. A respeito destas duas assertivas mencionadas, é necessário abordá-las com maior aprofundamento. O realismo político é geralmente identificado com as contribuições imponentes de Raymond Aron (1986), Hans Morgenthau (2003), Eduard Hallet Carr (1981) e Kenneth Waltz (2002). Entre todos os nomes mencionados, nenhuma mulher aparece. Onde estariam as mulheres naquele momento? Com o que se ocupavam? Certamente estavam relegadas ao âmbito doméstico, ao que o realismo denomina baixa política. 100


A partir disso, quais os temas e comportamentos importantes na agenda da política internacional para os autores realistas? As temáticas do poder e da guerra se apresentam como principais no âmbito da atividade externa dos Estados, justamente porque as relações estatais implicam necessariamente na guerra e na manutenção da situação de anarquia. Para Morgenthau, Aron e Carr as Relações Internacionais representam relações de conflito e poder, sendo analisadas a partir da referência ao estudo do comportamento estatal. O caráter estatocêntrico do realismo político é abordado por Barbé, tendo como foco o pensamento de Morgenthau e sua significativa obra A Política entre as Nações: a luta pelo poder e pela paz. A autora afirma que, na teoria de Morgenthau, o Estado é ator por excelência no sistema internacional contemporâneo. As duas premissas básicas do estatocentrismo, segundo Barbé, são o Estado como ator privilegiado do sistema internacional e como forma histórica de organização do exercício do poder nas Relações Internacionais. A concepção estatocêntrica de Morgenthau situa-se em duas categorias principais de análise: interesse nacional e equilíbrio do poder, ambos os fundamentos nucleares para o estudo do fenômeno estatal. (BARBÉ, 1987). Ao desenvolver a obra Paz e Guerra entre as Nações, utilizando o tema da guerra como ponto de partida, Aron fundamenta a construção de sua investigação nas categorias de poder, política de poder, força, estratégia e diplomacia, entre outras. Interessado em uma possível teoria das Relações Internacionais, afirma que o objetivo dessa teoria é apreender a multiplicidade das causas que agem sobre as relações entre Estados. No início dessa obra, esclarece que as relações interestatais constituem o campo por excelência das Relações Internacionais. Os tratados são um exemplo emblemático dessas relações, manifestando-se por meio dos personagens chamados, simbolicamente, de diplomatas e de soldados, representando as relações interestatais, conduzindo à diplomacia e à guerra. (ARON, 1986). A partir do protagonismo do Estado como ator internacional, Aron desenvolve sua definição de sistema internacional: ―é o conjunto constituído pelas unidades políticas que mantêm relações regulares entre si e que são suscetíveis de entrar numa guerra geral.‖ (ARON, 1986, p. 155). Esse conjunto é formado por atores principais que determinam como deve ser o sistema em cada época, comporta um número limitado de atores, sendo que por volta de 1950, poucas potências faziam parte. (ARON, 1986). Os autores realistas apresentados anteriormente fornecem elementos iniciais de discussão, demonstrando que em um primeiro momento, de nascimento e concepção da disciplina, seu aporte paradigmático e elementos representativos não contemplaram a questão de gênero em sua análise. O espaço das mulheres, tanto no âmbito acadêmico de estudo e pesquisa 101


quanto no contexto social e político, não foi preenchido e, portanto, o universo feminino não conseguiu se inserir, o que aconteceria somente a partir da década de 80, quando o cenário internacional já havia passado por profundas transformações. Embora o estudo de gênero seja diversificadamente amplo nas ciências humanas, sua investigação no âmbito das Relações Internacionais apenas obteve destaque no final da década de 1980 em diante. Até então, a escola predominante de pensamento desta disciplina (realismo político) considerava tal temática questão de caráter neutro ― gender neutral. Pensava-se, em outras palavras, que não havia a necessidade de ser introduzido nos estudos das relações entre os Estados, assunto pertinente à esfera pública e à alta política. (DA SILVA, 2013, p. 8)

A abordagem gender neutral representa, então, a concepção sobre a neutralidade do gênero nas Relações Internacionais. Para compreender o que seria gender neutral, Sylvester elucida essa questão, procurando esclarecer seu significado. Ao examinar a raiz teórica da disciplina a partir dos seus autores clássicos, que até hoje representam valiosa contribuição no campo da teoria política e base para diversas outras áreas do conhecimento (Tucídides, Maquiavel e Hobbes, por exemplo), a construção da categoria gênero acontece mediante a separação das esferas pública e privada, influenciando fortemente nos escritos de teóricos como Hans Morgenthau. Dessa forma, Sylvester visualiza a ausência da discussão de gênero enquanto categoria de análise. (SYLVESTER, 1994) Apesar da concepção anterior, há autores que discordam dessa ideia, imbuídos da verificação da participação da mulher na própria história, no seu empenho em atos de defesa territorial, casamentos dinásticos ou arranjados de modo a manter a paz entre duas nações. (SYLVESTER, 1994). Cynthia Enloe é uma dessas autoras que denunciou a não neutralidade de gênero dentro das Relações Internacionais. As experiências das mulheres [...] sejam elas vivenciadas por meio da prostituição, como resultados de acordos e barganhas entre governos para promover as inter-relações entre soldados e a comunidade no entorno de bases militares e assim garantir o bem-estar ―masculino‖, ou mediante papel paralelo de mulheres casadas com fazedores de políticas — policy makers ―, representantes da alta política governamental, contribuindo para a boa imagem do país, ou ainda, o uso de imagens locais em âmbito internacional, com a finalidade de promover relações econômicas e políticas — Carmen Miranda —, são em si mesmas experiências importantes para denunciar a não neutralidade de gênero dentro das Relações Internacionais. (OLIVEIRA; DA SILVA, 2013, p. 73)

Desde a década de 70, e acentuadamente na década de 80, a disciplina vem passando por transformações surpreendentes, protagonizadas pela emergência de outros atores além dos 102


Estados-nação.50 As empresas transnacionais e as organizações internacionais passaram a desempenhar papel significativo em razão do predomínio de questões econômicas e financeiras, bem como em decorrência da necessidade de cooperação multilateral em torno de temáticas envolvendo o meio-ambiente, os direitos humanos, direitos das crianças, das mulheres e tantas outras que despontavam com tamanha força e mobilização internacional. Não poderia deixar de ser diferente: o realismo enfrentou uma crise acentuada, visto que os Estados passaram a compartilhar a cena internacional com outros atores.51 No tocante a essa questão, Fred Halliday (2007, p. 41) tece interessante crítica sobre a constituição do sistema internacional, concebido pelos autores clássicos como fundamentalmente estatal e baseado em relações de poder, cujos temas da segurança e defesa são centrais. Defini-lo em termos das relações interestatais, destaca o autor, é parcialmente limitador, pois localiza a história internacional no âmbito da diplomacia e dos Estados, e possibilita pensar que a arena internacional é composta exclusivamente por eles. Halliday não desconsidera os âmbitos político e militar, mas acrescenta que ―as histórias alternativas e os conceitos do ‗internacional‘ podem ser escritas considerando outros pontos de partida, como o econômico e o social.‖ Além dos temas econômicos e sociais, questões culturais, ecológicas e tecnológicas também poderiam fazer parte das discussões internacionais. E por que não a categoria de gênero, mais especialmente o papel desempenhado pelas mulheres? Neste cenário de profundas mudanças, emergência de novos atores e introdução de temas inéditos na agenda internacional, as contribuições correspondentes ao gênero ganham significado. Para Da Silva (2013, p. 26) ―é neste momento, com o surgimento do debate pós-positivista, ou chamado terceiro debate, que a questão do estudo de gênero emerge tardiamente nas Relações Internacionais.‖ Consultar a obra de Robert Keohane e Joseph Nye, os quais podem ser apontados como autores fundamentais para o início de um novo marco analítico no campo das Relações Internacionais, por desenvolverem, enquanto vertente liberal, a teoria da interdependência. Ver: KEOHANE, Robert O; NYE, Joseph S. Poder e interdependência: la política mundial en transición. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1988. Ver também sobre a teoria da interdependência: SANTOS JÚNIOR. Raimundo Batista. Diversificação das Relações Internacionais e teoria da interdependência. In: BEDIN, Gilmar Antônio [et al]. Paradigmas das Relações Internacionais: realismo, idealismo, dependência, interdependência. 3.ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011. p. 207-254.; Ver ainda, para uma compreensão ampliada das teorias que vêm captando tais transformações, a seguinte obra: MESSARI, Nizar; NOGUEIRA, João Pontes. Teoria das Relações Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. 51 Ver, sobre esta temática, importante obra recém-lançada, organizada pela professora Odete Maria de Oliveira e de autoria dos pesquisadores do Grupo de Estudos do Projeto Relações Internacionais, Poder e Direito: cenários e protagonismos dos atores estatais e não estatais, do Núcleo Strictu Sensu do Programa de Direito da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ): OLIVEIRA, Odete Maria de (Org.). Relações Internacionais, Direito e Poder. Ijuí: Ed. Unijuí, 2014. v. 1. Consultar, ainda, sobre o assunto dos atores não estatais: GARCÍA SEGURA, Caterina. La evolución del concepto de actor en la teoría de las relaciones internacionales. In: Revista de Sociologia, n. 41, 1993, p. 13-31. Disponível em: http://ddd.uab.cat/record/52080. Acesso em: 12 nov. 2011.; TAYLOR, Phillip. Non state actors in international politics: from transregional to substate organizations. Boulder: Westiew Press, 1984. 103 50


O chamado Terceiro Debate (discussões interparadigmáticas) é demarcado, a partir da década de 80, pela afirmação do feminismo e crescimento das pesquisas em torno de gênero. A relevância desse debate é justificada por Sylvester (1994, p.167): ―[...] nosso debate, nosso lugar no tempo, espaço, momento, nosso obstáculo para escalar, fila para formar.‖ Segundo Da Silva (2013, p. 28): ―este debate permite que o estudo feminista rompa com a questão também da indexação das revistas, publicações em periódicos das Relações Internacionais, que até então tratavam apenas das questões apontadas, enquanto principais, pelos realistas e neo-realistas. Assim sendo, Sylvester (1994, p. 167) complementa: ―[...] estivemos fora dos escritos dos primeiros e segundo debates nas Relações Internacionais, e estamos dentro e a frente do terceiro debate, já que está estruturado nas páginas de vários jornais das Relações Internacionais.‖ Sobre esta questão Halliday acrescenta que: Superar a invisibilidade das mulheres requer análise de porque ocorre este ocultamento e das várias razões que se combinam para fortalecê-lo. Uma explicação é a inércia institucional dentro da disciplina das RI. À medida que existe um silêncio virtualmente completo sobre a questão, aqueles preocupados com ela são desencorajados de trabalhar ou escolhe fazê-lo em outras disciplinas acadêmicas mais receptivas (ou em contextos extra-acadêmicos). Em seu venerável papel de protetoras, as revistas ―indexadas‖ frequentemente desempenham o equivalente acadêmico do século XX da Inquisição, excluindo tal material. (HALLIDAY, 1999, p. 162)

A partir desse ponto pode-se pensar em mudanças mais contundentes relacionadas à incorporação da questão de gênero nas Relações Internacionais, mais especificamente a formulação de uma nova epistemologia para a citada disciplina. O quarto debate, caracterizado pelas discussões científicas, estará direcionado para a formulação de uma epistemologia feminista das Relações Internacionais. Conforme expõe Rodrigo Duarte dos Passos (2011, p. 104), Ann Tickner reformulou os seis princípios do realismo propostos por Morgenthau ―sob uma perspectiva feminista, de modo a buscar o que poderia ser uma visão de mundo a partir de uma perspectiva feminista e formular uma epistemologia feminista das Relações Internacionais.‖ Esta nova reformulação pode ser verificada a partir do seguinte resumo, proposto por Molina Hurtado: 1) A objetividade está culturalmente definida em termos da masculinidade. Ou seja, a natureza humana é tanto masculina como feminina e contem elementos de reprodução e desenvolvimento social, ademais da dominação política. 2) O interesse nacional é multidimensional e contextualmente contingente. Em outras palavras, não pode ser definido exclusivamente em termos de poder, já que no mundo contemporâneo a satisfação do interesse nacional demanda cooperação mais que soluções de soma-zero.

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3) O poder não pode ser usado como um conceito universalmente válido. O poder é dominação e controle, privilegia a masculinidade e ignora as possibilidades da construção coletiva, um aspecto do poder associado à feminilidade. 4) Rejeitar a possibilidade de separar as aspirações morais da ação política, já que todas as ações políticas têm significado moral. 5) Busca de elementos de uma moralidade comum nas aspirações humanas, que poderiam chegar a ser a base para desencadear o conflito internacional e construir uma comunidade internacional. 6) Não existe autonomia na esfera política. A autonomia está associada com a masculinidade da cultura ocidental, o esforço disciplinar de se construir uma visão de mundo que não se apóie numa concepção pluralista da natureza humana é parcial e masculina. (HURTADO, 2010, p. 65)

A reformulação dos seis princípios do realismo propõe, então, repensar algumas categorias tão intensamente discutidas pelos realistas, como natureza humana, interesse nacional, poder, moral, autonomia na esfera política. E, mais do que isso: contextualizá-las e problematizálas a partir das facetas e nuances do século XXI. Se é possível repensá-las e construí-las sob novas bases, é inteiramente viável construir uma nova teoria para as Relações Internacionais. Neste sentido, Tickner ―ressalta a necessidade de iniciar a construção de uma ciência humana da política internacional, que não seja enviesada pelas questões de gênero. [...]‖. (PASSOS, 2011, p. 109) 4 CONCLUSÃO Pensar em relações internacionais hoje envolve considerar um amplo conjunto de mudanças que conduziram a sociedade internacional aos seus desenhos contemporâneos. Nele os organismos internacionais, as empresas transnacionais, os governos subnacionais, a mídia, os indivíduos detentores de poder e posição de comando, as organizações e coletividades sociais a exemplo das organizações não governamentais, dos movimentos sociais, das ações feministas e reivindicações de gênero, e até mesmo, dos grupos terroristas e crime organizado, caracterizam-se como entidades detentoras de novas demandas que, ao influenciarem políticas e comporem agendas, retiram o Estado do centro da cena. Em sua manifestação, estes entes não somente dissolvem o protagonismo estatal e a antiga hierarquia entre temas, como geram distintas formas de distribuição e exercício do poder. A disciplina recebe, assim, outras marcas. A percepção e apreensão de fatos, fenômenos, características, tipos de relações e métodos de abordagem, antes negligenciados ou tidos como de menor importância, motivou profunda ampliação conceitual ante a revisão do objeto de conhecimento das Relações Internacionais. Dito de outro modo, forçou a expansão do campo de visão do estudioso, mudando a forma como se compreende a realidade: se antes analisada apenas em seu viés conflitivo, passou a ser também percebida pelo seu caráter 105


multicêntrico e global, reconhecendo a existência de outros atores, intervenientes e relevantes. A concepção de que o Estado ocupa um lugar central, comportando-se como único ator cujas interações são passíveis de estudo, perde força ante a grama de relações entendidas como significantes para o campo das Relações Internacionais. O realismo político, enquanto importante paradigma, transformou-se já na primeira metade do século XX, em fundamento teórico central da jovem disciplina das Relações Internacionais, preocupado em fornecer elementos iniciais de análise da realidade conflituosa e anárquica que se seguiu às duas grandes guerras mundiais. De tal forma, que os primeiros autores das relações internacionais são figuras masculinas, interessadas em apresentar e explicar os componentes do comportamento estatal. Enquanto isso, as mulheres demarcaram um espaço de ausência. Sua falta era verificada tanto em âmbito acadêmico quanto social e político. Na esfera dos primeiros escritos do século XX, não apareceram na elaboração das obras iniciais sobre Relações Internacionais. Com o fim das duas grandes guerras, entretanto, o realismo político não mais apresentou-se como teoria que se encaixava na realidade em transformação. Era necessário repensar o mundo e suas intrincadas relações. Não mais poderia se pensar unicamente em relações entre Estados, pois o número de atores já havia se expandido. E, conforme o mundo tornava-se mais e mais complexo e interdependente, assim os relacionamentos ampliavam-se e alcançavam temas inéditos, como os direitos humanos, as questões ambientais, econômicas, tecnológicas e demográficas, entre outros. Apesar de ter chegado tardiamente nas Relações Internacionais, a questão de gênero ganha força a partir da década de 80, inserida em um debate mais amplo sobre o feminismo. Nestes termos, as discussões de gênero encontram, na sociedade internacional contemporânea, um espaço promissor para o seu aprofundamento. É neste momento que as mulheres começam a despontar com sua influência e protagonismo, atuando em defesa dos seus próprios interesses, formando e consolidando sua agenda, inserindo-se e ocupando espaços. Neste período, o estudo feminista rompe com a questão da indexação de revistas e publicação em periódicos das Relações Internacionais. Grande avanço é alcançado, pois agora as mulheres passavam a participar como formadoras de conhecimento no âmbito internacional, mantendo-se dentro e à frente do terceiro debate. É com o quarto debate, caracterizado pelas discussões científicas, contudo, que o feminismo chega ao seu ponto alto, sendo central para a elaboração de uma epistemologia feminista das Relações Internacionais. Neste contexto, há a reformulação dos Seis Princípios do 106


Realismo Político de Hans Morgenthau, propondo-se a repensar categorias tão profundamente arraigadas nos escritos dos teóricos da política do poder – natureza humana, interesse nacional, poder, moral, autonomia na esfera política –, e inserir elementos femininos na discussão, procurando oferecer uma nova possibilidade de pensar as relações humanas e políticas.

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GÊNERO E DIREITOS HUMANOS: ENFRENTAMENTO DE TODAS AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES ATRAVÉS DO PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES Juciane de Gregori52

Sumário: 1 Introdução. 2 Considerações sobre gênero e direitos humanos. 3 Trajetórias do Plano Nacional de políticas para as mulheres. 4 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO O presente trabalho, considerando a intersecção entre gênero e direitos humanos, pretende abordar a temática das políticas públicas tomando como base a linha de atuação voltada para o enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres, existente junto ao Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres (PNPM) (BRASIL, 2006b, 2008a, 2013). A questão dos direitos humanos se apresenta como um fenômeno multifacetado (VIOLA, 2007). Modernamente são interpretados mediante a configuração jurídica, remetendo à ideia de norma (MAUÉS e WEYL, 2007) e sendo frequentemente reduzidos aos meios legais. Outrossim, é comumente que sejam associados somente as necessidades básicas, minimizando os direitos humanos aos direitos de cidadania e desconsiderando outras demandas sociais que são comuns entre os humanos. Entretanto, como corrobora Carbonari (2007, p. 177) ―os sujeitos e os direitos são bem mais amplos do que o Direito‖. Pode-se dizer que há um amplo leque de fatores que compõe o conjunto de direitos humanos, onde as diversidades socioculturais carregadas de desigualdade são pioneiras na história do Brasil (SILVEIRA et al., 2007). Contudo, atrelado a essa bagagem de injustiças, ressaltam-se as lutas sociais para a aplicação de direitos humanos de forma igualitária, que dentre tantas reivindicações, resultaram significativas conquistas em diferentes espaços, a exemplo do campo da legalidade e das práticas normativas do Direito, no qual se destacam diferentes iniciativas entrelaçadas ao gênero e incorporadas das discussões acerca dessa problemática, que continua oprimindo os direitos humanos. Como reflexo dessa conjuntura, emergem paulatinamente experiências inéditas voltadas à inserção dos direitos humanos através de Políticas Públicas (PP), o que vem contribuindo para

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: juciane.psicologia@gmail.com 52

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um crescente debate que atenta para as lacunas existentes entre os direitos humanos e a sua efetivação, bem como para os déficits do Estado em variados setores da sociedade. Nessa perspectiva, especificamente sobre a situação das mulheres, imersas em uma sociedade patriarcal, de modelo econômico capitalista e em processo de ―globalização sistêmica‖ (SILVEIRA, 2007, p. 256), ainda é possível vislumbrar um cenário de discriminação, preconceito e dominação masculina, cujos processos se dão através de relações de poder que envolvem a formação e (re)produção do gênero binário. Tal dinâmica traz à tona a difícil realidade de que muitas mulheres, independentemente das circunstâncias, podem vir a encontrar-se em situação de vulnerabilidade e violência simplesmente pelo fato de serem mulheres. Nesse caso, pode-se pensar que mesmo com a Constituição Federal (BRASIL, 1988) e com o Brasil sendo ―parte de quase todas as convenções e tratados de direitos humanos celebrados no âmbito das Nações Unidas‖ (MAIA, 2007, p. 88), se por um lado representaram avanços, por outro evidenciam um somatório de falhas no que se refere a sua efetivação. De modo semelhante, essa análise pode ser estendida a articulação das PP que, embora recentes, também sugerem mudanças inegáveis, não obstante ainda insuficientes para exaurir por completo a violência machista sofrida pela condição de ser mulher. Os desafios vindouros são enormes, o que tem refletido na emergente adesão dos direitos humanos a esta pauta e a esse conjunto de fatores que indicam a necessidade de ultrapassar as fronteiras que hoje estão impostas, especialmente nos âmbito das legislações. Nesse sentindo, através de uma perspectiva feminista e considerando o enlace entre a temática do gênero com a dos direitos humanos, o presente trabalho se ancora nas três versões do Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres (BRASIL, 2006b, 2008a, 2013), tendo por objetivo estabelecer um olhar acerca das políticas públicas e suas trajetórias através da linha de ação denominada enfrentamento a todas as formas de violência contra as mulheres, disponível nas documentações supracitadas. Estruturalmente, o tema será apresentado dividido nos seguintes subtítulos: Considerações Sobre Gênero e Direitos Humanos; Trajetórias do Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres. 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNERO E DIREITOS HUMANOS Sobre gênero há um campo, ainda que delimitado, de consenso: gênero é a construção social do masculino e do feminino (SAFFIOTI, 2004). Na perspectiva de Scott (1989) o termo é utilizado para designar relações sociais entre os sexos, cuja segregação é uma construção social 112


sobreposta a um corpo sexuado, uma forma primeira de significar as relações de poder que delimita campos de atuação para cada sexo, dá suporte à elaboração de leis e suas formas de aplicação. Como reitera Louro (1997, p. 21) ―para que se compreenda o lugar das relações entre homens e mulheres em uma sociedade, importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos‖. Desta maneira, pensar sobre gênero, implica considerar a questão da identidade. Woodward (2000) explica que a identidade é relacional, sendo marcada pela diferença e vinculada a questões sociais, simbólicas, materiais e psíquicas, que embora sejam processos diferentes, estão imbricados para construção e manutenção de identidades. A autora esclarece que ―a forma como vivemos nossas identidades sexuais é mediada pelos significados culturais sobre a sexualidade, que são produzidos por meio de sistemas dominantes de representação e que formam posições-de-sujeito‖ (WOODWARD, 2000, p. 32). Ou seja, identidades envolvem relações de poder. De acordo com a teorização de Foucault (1997), o poder se constrói relacionalmente, sendo apreendido como constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente constituídas em campos sociais que se articulam a partir das correlações de forças internas. Além da divisão entre feminino e masculino, também operam outros eixos de poder, pois essas construções hierarquizadas são carregadas de interesses ideológicos. Há um adestramento para erotizar esse jogo perverso de dominação masculina, onde ―o homem é o sujeito, o absoluto; ela é o outro‖ (BEAUVOIR, 1949, p. 10). Silva (2000) explana que essas diferenças entre homens e mulheres são naturalizadas através de diversos processos sociais que nos educam como sujeitos de gênero, por meio do que denomina ―pedagogias culturais‖. Posto isso, pode-se pensar que os sujeitos aprendem e se reconhecem como homens e mulheres em uma sociedade, por meio de processos que são produzidos e reproduzidos através de instrumentos hegemônicos e contra-hegemônicos, onde atuam diferentes correntes de força, nos quais se pode destacar o atual sistema econômico vigente (capitalismo), as instituições em que o sujeito está inserido (família, ensino, sindicatos, religião), os mecanismos midiáticos, os espaços públicos e privados e, inclusive, os aparatos que compõe o campo da legalidade jurídica. Envolto a esse debate, emergem tendências feministas que oscilam em diferentes vieses. De um lado há a ideia de que ―sem a superação do capitalismo, os direitos econômicos e sociais não chegarão a se afirmar e se consolidar‖ (BENEVIDES, 2007, p. 343). De outro, se contempla que o sexismo é a forma de opressão mais antiga que existe, portanto não só antecede o capitalismo 113


como também há evidências de que ele tenha precedido outras formas antigas da sociedade de classes, dessa forma, o sexismo poderia continuar mesmo depois de ter sido abolido o capital (HOGAN, 2009). ―Nenhum fator pode ser considerado, por si só, como decisivo do conjunto dos comportamentos individuais e sociais‖ (GOLDMAN, 2010, p. 17), assim como a economia, por si só, por mais importante que seja não é suficiente para determinar o destino da humanidade. De todo modo, é fato que ―a globalização produz diferentes significados em torno da identidade‖ (WOODWARD, 2000, p. 21) e que a soma desses fatores, que estão relacionados umbilicalmente, provocam mudanças inclusive no que compete aos padrões de identidades. Igualmente, são coerentes e necessárias críticas a qualquer análise feminista em que falte uma análise de classe (HOGAN, 2009). Nesse viés, ―o conceito de gênero exige investigar como algumas das dimensões constitutivas de sua produção se articulam com, ou modificam, o que se entende e o que se diz sobre violência de gênero em nossa cultura‖ (GIACOMINI e ROMANINI, 2012, p. 132). Da mesma forma, a centralidade dessa problemática reporta-se a dimensão dos direitos humanos, pois a violência contra a mulher é uma forma de violação desses direitos, na qual o Estado se apresenta como hegemônico e contraditório, já que a violência e a violação de direitos continuam acontecendo. Na atualidade os direitos humanos refletem um quadro plural (SILVEIRA et al., 2007) que após muitos desdobramentos, assume variadas leituras, passando a englobar inclusive a proposta de buscar desnaturalizar o fenômeno do gênero, que foi forjado na história e nas condições materiais e simbólicas da ordem social. Como consequência das reivindicações desencadeadas pelo movimento feminista, que há décadas vem oferecendo instrumentos práticos e teóricos com subsídios reais para um melhor entendimento da presente questão (PINTO, 2010), foram traçados diferentes caminhos no intuito de combater a indústria dessa cultura totalizadora e homogeneizante, inclusive no âmbito das legislações jurídicas. Nesse paradigma, se dá o encontro entre a vertente do gênero e dos direitos humanos com a das políticas públicas para as mulheres, temática que será descortinada posteriormente, tomando como base o PNPM (BRASIL, 2006b, 2008a, 2013) e abordando a linha de ação que trata do enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres.

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3 TRAJETÓRIAS DO PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES Por meio de um intenso empenho visando transformar toda teoria, prática ou política que não considerasse a condição transversal das pautas voltadas a temática do gênero, o movimento feminista deu início a geração de um pensamento crítico que não somente problematizou como também fundamentou ações para enfrentar essas relações desiguais que são produzidas e legitimadas pela sociedade capitalista e patriarcal. Em uma breve digressão histórica desse caminho onde foram traçadas diferentes trajetórias, pode-se elucidar que os primeiros passos do movimento feminista contra o Estado na luta pela efetivação de políticas públicas destinadas ao enfrentamento à violência contra as mulheres, ocorreram em meados de 1985, com a inauguração da primeira Delegacia de Defesa da Mulher e com a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), cuja ênfase estava na segurança pública e na assistência social (BRASIL, 2011a). Com a criação da Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (SEDIM) em 2002, que foi posteriormente, em 2003, transformada em Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), consagrava-se uma nova instância governamental junto com o CNDM, para a promoção de programas e políticas públicas visando à erradicação da violência contra as mulheres (CFEMEA, 2009). A Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) integra a estrutura da Presidência da República como órgão essencial, com status de ministério e, dentre outros fatores, possui a missão de formular, coordenar e articular políticas públicas para as mulheres. Além disso, objetiva implementar campanhas educativas e antidiscriminatórias de esfera nacional e promover o acompanhamento da implementação da legislação de ação afirmativa das ações públicas que visem ao cumprimento dos acordos, convenções e planos de ação assinados pelo Brasil, nos aspectos relativos à igualdade entre mulheres e homens e enfrentamento à discriminação. Então em julho de 2004, fomentada pela SPM e pela CNDM, realizou-se a 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (1ª CNPM), processo no qual culminou na estruturação da primeira versão do PNPM (BRASIL, 2006b, 2008a, 2013). A partir dos debates estabelecidos no evento supracitado, inicialmente o PNPM foi construído com 199 ações, distribuídas em 26 prioridades, ao longo de 26 páginas (BRASIL, 2006b). Tendo como pontos fundamentais a igualdade, o respeito, a equidade, a autonomia, a laicidade, a universalidade, a justiça social, a transparência, a participação e o controle social, tal 115


documento possui 16 objetivos gerais, destinados a ações traçadas a partir de 4 linhas de atuação, que foram consideradas como as mais importantes e urgentes naquele momento, sendo elas: autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista; saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; enfrentamento à violência contra as mulheres. Para cada um desses pontos foram apresentados objetivos, primeiros passos para alcançar esses objetivos e prioridades. O eixo temático, naquela época intitulado como enfrentamento à violência contra as mulheres, trata do foco desta pesquisa e aborda 4 objetivos, dentre os quais incluem: implantar uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher; garantir atendimento de qualidade às mulheres em situação de violência; reduzir os índices de violência contra as mulheres; cumprir com os acordos internacionais e revisar a legislação brasileira de enfrentamento à violência contra as mulheres (BRASIL, 2006b). Dentre os passos prioritários para alcançar tais objetivos, foram elencadas: a necessidade de ampliar e aperfeiçoar tanto as ações preventivas quanto o atendimento às mulheres em situação de violência; atenção à saúde das mulheres em situação de violência; produção e sistematização das informações referentes à violência contra as mulheres; capacitação de profissionais na temática da violência de gênero; ampliar o acesso à justiça e a gratuidade da assistência jurídica (BRASIL, 2006b). Nessa época, a legislação brasileira não respondia de forma satisfatória a este cenário, que evidenciava urgência na criação de uma lei integral de enfrentamento à violência contra as mulheres, o que resultou na promulgação da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006a). Como resposta para essa demanda, passando a considerar a violência contra a mulher uma violação dos direitos humanos, a Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir as agressões machistas e ainda estabelece ao Estado a adoção de políticas públicas desenvolvidas por meio da articulação entre todas as esferas do governo e da sociedade civil, tendo em vista a prevenção, assistência e repressão à violência, como estratégias capazes de promover mudanças e superar a desigualdade entre homens e mulheres (CFEMEA, 2009). No ano subsequente, em 2007, na 2ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (2ª CNPM), é lançado e coordenado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), o Pacto Nacional Pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (BRASIL, 2008a), estabelecendo um acordo entre os governos federal, estaduais e municipais, visando implementar políticas públicas integradas em todo território nacional e articular ações

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para consolidação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (conforme objetivo previsto no I PNPM). A partir da 2ª CNPM, é tecido o II Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres (II PNPM), composto por 94 metas, 56 prioridades e 388 ações distribuídas em 11 grandes áreas de atuação, no decorrer de 3 partes, 12 capítulos e 236 páginas (BRASIL, 2008a). Este, amplia e aprofunda o escopo do PNPM e das políticas públicas para as mulheres, propondo maior detalhamento dos eixos já existentes e introduzindo seis novas áreas estratégicas, das quais pode ser destacada a participação das mulheres nos espaços de poder. Ressaltando segmentos de mulheres em situação de vulnerabilidade e com vistas em qualificar os procedimentos e meios para obter melhores resultados, o II PNPM (BRASIL, 2008a) mantém os mesmos pontos fundamentais da sua primeira versão, além de 14 diretrizes gerais. Em cada capítulo são elencados objetivos, metas, prioridades e plano de ação. O capítulo 4 discorre a respeito do enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres, propondo uma intervenção pública de caráter multisetorial que busque desenvolver ações para desconstruir as desigualdades e combater as discriminações de gênero, interferindo nos padrões sexistas e machistas que a sociedade brasileira ainda perpetua, promovendo o empoderamento das mulheres e garantindo atendimento humano e com qualidade àquelas em situação de violência (BRASIL, 2008a). Além de enfatizar os avanços alcançados nessa trajetória, tais como a implementação da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006a), a elaboração do Pacto Nacional Pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (BRASIL, 2008b) e a ampliação da Ouvidoria da Mulher, que iniciou seu trabalho em 2003 e se fortificou em 2005 através da Central de Atendimento a Mulher - Ligue 180, tal documento também reconhece que a violência contra a mulher ainda é uma problemática sem resolução definitiva, sendo ―um fenômeno que atinge mulheres de diferentes classes sociais, origens, regiões, estados civis, escolaridade ou raças/etnias‖ (BRASIL, 2008a, p.99). Para tanto, no que tange ao enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres, o II PNPM apresenta 3 objetivos gerais, sendo todos voltados a ideia de ―reduzir os índices de violência contra as mulheres‖ (BRASIL, 2008a, p.104). Totalizando 7, seus objetivos específicos versam sobre a constituição de uma rede humanizada, especializada e com qualidade para atendimento às mulheres em situação de violência, buscando garantir a promoção e consolidação dos direitos humanos das mulheres, bem como a desconstrução dos estereótipos, representações, mitos e preconceitos relacionados ao gênero. Com base nesses objetivos são 117


estruturadas 12 metas quantitativas e qualitativas, das quais se edificam 6 prioridades voltadas, de modo geral, para a prevenção, promoção e garantia dos direitos humanos das mulheres, cada qual com um plano de ação específico. Como o enfrentamento à violência contra a mulher através do PNPM define como um dos seus objetivos a criação de uma Política Nacional, outro marco legal a ser evocado é a implantação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Aprovada a partir de 2004, referendada em 2007 por meio do Pacto Nacional Pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (BRASIL, 2008b) e estabelecida em 2011, tem como ―finalidade estabelecer conceitos, princípios, diretrizes e ações de prevenção e combate à violência contra as mulheres, assim como de assistência e garantia de direitos às mulheres em situação de violência‖ (BRASIL, 2011a, p. 10). Posteriormente, com essas mudanças no cenário político e nos instrumentos jurídicos, em dezembro de 2011 realizou-se a 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (3ª CNPM), que resultou no III Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres (BRASIL, 2013). Com vigência prevista de 2013 a 2015, reafirma os mesmos pontos fundamentais como princípios orientadores e ―para a transformação dos espaços cristalizados de opressão e invisibilidade das mulheres dentro do aparato estatal, considera necessário um novo jeito de fazer política pública: a transversalidade‖ (BRASIL, 2013, p.10). Desse modo, promover a igualdade de gênero não cabe somente ao organismo de políticas para as mulheres, mas aos órgãos dos três níveis federativos (BRASIL, 2013). O plano se distribui em 114 páginas, através de dez capítulos. Cada capítulo tem seus objetivos gerais e específicos, linhas de ação, ações e metas, das quais algumas estão quantificadas e outras não. Nesse movimento, conta com membros de 32 órgãos governamentais e com convidados integrados pela Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres, Organização Internacional do Trabalho (OIT) e representações dos Organismos de Políticas para as mulheres dos estados, Distrito Federal e municípios. Embora o enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres esteja em foco no decorrer de todo o texto do plano, é o quarto capítulo que se debruça especificamente sobre a questão, dando a ela um caráter multidimensional, ao qual cabe ao Estado coibir, punir e erradica-la. Revelando que ―o Brasil está entre os dez países com maior número de homicídios femininos‖ (BRASIL, 2013, p.42), é dado ênfase aos resultados alcançados pelas políticas públicas, tais como o aumento da Rede Especializada de Atendimento à Mulher, a inovação através das Unidades Móveis de Atendimento à Mulher, a consolidação da Central de 118


Atendimento à Mulher (Ligue 180) e também a diminuição da impunidade nos casos de violência doméstica. Como corroboram Vázquez e Delaplace (2004, p.1) ―a PP tem o objetivo de encarar e resolver um problema público de forma racional através de um processo de ações governamentais‖, de modo que a próxima Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que resultará no IV Plano de Nacional de Políticas para as Mulheres, irá ocorrer de 15 a 18 de março de 2016, em Brasília. Desta forma, a estruturação e fortalecimento de suas ações, estão em constante construção e aprimoramento, em uma trajetória que ainda não chegou ao fim. 4 CONCLUSÃO A resolução da problemática da violência contra mulher ainda é uma incógnita que se configura como uma realidade presente, não somente no Brasil, como em vários países dotados de diferentes regimes econômicos e políticos. As políticas públicas do PNPM se somam as políticas elaboradas pela Lei Maria da Penha e ao plano plurianual. Além disso, elas estão estruturadas de acordo com diferentes normas e instrumentos nacionais e internacionais de direitos humanos, que embora estejam em consonância, cada um adota diferentes linhas de pensamento, o que torna muito complicada a tarefa de avaliar e quantificar concretamente os seus resultados. No próprio texto do plano há o reconhecimento de que ―é preciso considerar o caráter transversal e complexo na implementação do PNPM‖ (BRASIL, 2013, p.11). De qualquer modo, é cabível enfatizar que as políticas públicas são estratégias legais. Observando a trajetória do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que iniciou em meados de 2002 e perdura até os dias atuais, pode-se analisar que o primeiro plano, não tem ações objetivas propriamente ditas. Já o segundo além de ter objetivos específicos, apresenta metas concretas, o que dá um caráter diferente ao documento, que foi ficando mais encorpado, tomando forma e solidificando novas roupagens. Também é importante sublinhar que houve uma mudança no título do eixo, que antes era denominado como ―enfrentamento à violência contra as mulheres‖ (BRASIL, 2006b) e passou a ser chamado de ―enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres‖ (BRASIL, 2008a), o que sugere a tentativa do plano em dilatar seu alcance e estender suas ações a todo e qualquer tipo de violência contra as mulheres.

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No terceiro plano é perceptível avanços nessa mesma lógica de ampliação, mas sem maiores modificações teóricas ou práticas. Na verdade, de um plano para o outro, não é possível verificar avanços concretos pra além da existência documental de um ―plano‖. Tanto é assim que mesmo alargando a capacidade de atendimento e a prevenção da violência machista, em nenhum momento são citados índices que comprovem uma diminuição das violências, ao contrário, em cada documento é perceptível que as estatísticas só aumentam. Assumindo uma configuração de medida paliativa que não traz mudanças substanciais, atuando somente no intuito de reduzir as violências e não de acabar de modo pleno com elas, parece que tais políticas não preveem medidas para mudança total de uma cultura propriamente dita. Outro fator importante é que em um processo de democracia representativa, há uma hierarquia para constituição do plano, na qual a sociedade acaba não sendo amplamente consultada e a população evidencia um peso muito inferior para a tomada de decisão, se comparado aquele exercido pelo governo, órgãos e ministérios. Diante de tamanha complexidade, como a legislação brasileira pode responder de modo satisfatório a essas demandas? Mesmo percebendo-se no decorrer dos anos um número crescente de participantes na aprovação de cada legislação e tendo aumentado o espaço para participação popular, essas iniciativas precisam ser pensadas coletivamente. ―O maior acesso e a participação das mulheres nos espaços de poder são instrumentos essenciais para democratizar o estado e a sociedade‖ (BRASIL, 2006b). Ademais, ―a noção de enfrentamento não se restringe apenas à questão do combate, mas compreende também as dimensões da prevenção, da assistência e da garantia de direitos das mulheres‖ (BRASIL, 2008a, p.99). Mesmo com toda a preocupação voltada para implementar, acompanhar e monitorar de modo satisfatório o PNPM, não há garantias de que tudo vai se efetivar, até mesmo porque ―como subproduto do patriarcalismo, a cultura do machismo, é disseminada muitas vezes de forma implícita ou sub-reptícia‖ (CERQUEIRA e COELHO, 2014, p.2). É imperativo reconhecer que ―as práticas patriarcais seculares enraizadas nas relações sociais e nas diversas institucionalidades do Estado devem ser combatidas no cotidiano de maneira permanente‖ (BRASIL, 2013, p.10). Sendo assim, pode-se concluir que a coerção da lei contribui para reprimir e inibir um comportamento, contudo não tem uma capacidade de mudança propriamente cultural. Ao mesmo tempo, é indispensável e seria incongruente não considerar que o PNPM é fruto de um trabalho desenvolvido por mulheres e para mulheres, se configurando como resultado de incansáveis lutas dos movimentos sociais feministas e LGBT, que desde o século XIX vêm se 120


mobilizando contra todas as situações de opressão e de discriminação, exigindo a ampliação de seus direitos civis e políticos. Igualmente, é inegável a influencia direta do PNPM para a conquista da instauração da Lei Maria da Penha, que hoje se afigura como um importantíssimo instrumento de defesa e garantia de direitos das mulheres. Pode-se dizer que as políticas públicas na perspectiva dos direitos humanos estão em um campo que ainda está em construção (VÁZQUEZ e DELAPLACE, 2004). Inclusive é válido salientar que o Programa Nacional de Direitos Humanos (BRASIL, 2009), prima pela garantia do respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero, buscando a redução da violência motivada por diferenças de gênero, raça ou etnia, idade, orientação sexual e situação de vulnerabilidade. Ao mesmo passo, também está em desconstrução à ideia que ainda assola muitas vertentes feministas conservadoras e ultrapassadas que incorporam apenas pautas voltadas para mulheres biologicamente definidas enquanto tal, assumindo posturas essencialistas e reduzidas dentro de uma lógica binária entre masculino e feminino. O reflexo desse paradigma pode ser visualizado no fato de que no primeiro plano, que não é o documento atualmente vigente, mas é recente, haja vista que foi publicado em 2005, as travestis e as transexuais se quer são mencionadas. O termo transgênero, aparece somente no segundo PNPM. Já no terceiro plano, embora se considere as mulheres em todas suas especificidades (em especial negras, indígenas, quilombolas, lésbicas, bissexuais, transexuais, em situação de prisão, do campo e da floresta, com deficiência, em situação de rua, com sofrimento psíquico, e os diferentes ciclos da vida da mulher, com ênfase nos processos de climatério e envelhecimento), ainda há muito que avançar nesse entendimento. Embora também estejam acontecendo conferências nacionais dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (BRASIL, 2008b, 2011b), é preciso romper urgentemente com a sororidade seletiva que acarreta na dicotomia entre os movimentos que pautam as causas de gênero, afinal tanto o machismo quanto a homofobia, a lesbofobia e a transfobia são fenômenos originados em uma mesma fonte: da mesma cultura capitalista segregativa, heteronormativa, patriarcal e burguesa, que não aceita nada que não esteja dentro dos seus padrões impostos. Alcançar essa compreensão, encontrando o que os une e não o que os separa, é algo fundamental. Mesmo com alguns evidentes avanços ao longo destes últimos dez anos, com base em Cerqueira e Coelho (2014), é possível afirmar que o próprio Sistema de Justiça Criminal (SJC) vitimiza duplamente a mulher e reproduz a estrutura e simbolismo de gênero. Para lidar com os 121


problemas da cultura machista é emergente adotar uma postura crítica e olhar para além dos limites das estratégias legais que ainda não respondem de forma satisfatória a este cenário que vem se arrastando durante tanto tempo na sociedade.

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A TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE FEMINICIDIO SOB A ÉGIDE DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Rossana Valessa Silva Freire 53 Mônica Thais Rodrigues Gomes 54 Felix Araújo Neto 55 Sumário: 1 Introdução. 2 Aspectos sociológicos. 2.1 A violência de gênero. 2.2 Antecedentes históricos. 3 Aspectos jurídicos. 3.1 A mulher objeto da criminologia. 3.2 O feminicídio. 3.2.1 Características do crime de feminicídio. 3.2.2 Estatísticas. 3.3 A lei 13.104/2015 e a tipificação do feminicidio. 3.4 Tipificar X solucionar. 4 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO A violência contras as mulheres teve e tem distintas manifestações segundo assenhoras e os contextos nos quais se realiza e se reproduz. diante dela, os sistemas de justiça tem respondido de forma diversa por diversos fatores: desde a incompreensão da magnitude dos feitos como consequência dos padrões patriarcais e misóginos prevalecentes na sociedade, a insuficiência dos tipos penais efetivos, as dificuldades de investigar as complexas e cruéis modalidades desta violência até a impossibilidade de caracterizar e punir os responsáveis que, são e estão, no entorno familiar da vítima ou mesmo por pertencerem a estruturas sociais e/ou criminais poderosas. As formas de violência contra mulheres, sobretudo a intrafamiliar tem se expandido para todas as classes sociais e inclusive tem se modernizando. Surge a cada dia novas expressões de violência feminina como o tráfico de mulheres para fins de escravidão e exploração sexual, a feminização da pobreza e mesmo o feminicídio vinculado, assim como o aumento sem precedentes enquanto ao número e a brutalidade com que nossas mulheres são covardemente Graduada em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Ex-Gerente institucional de políticas públicas para as mulheres do município de Campina Grande-PB. E-mail: rossana.freire@hotmail.com 54 Graduanda em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). 55 Doutor em Direito Penal e Política Criminal (cum laude) pela Universidade de Granada, Espanha (2009). Título de Doutor revalidado pela UERJ (em 2011). Professor do Máster en Derecho Penal Económico da Universidade de Granada (UGR/ESPANHA) e do Instituto de Altos Estudios Universitários (IAEU). Professor Efetivo da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Coordenador Operacional do Doutorado Interinstitucional em Direito (DINTER - UERJ/UEPB), em convênio firmado entre a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado Criminalista. Possui Diploma de Estudios Avançados em Direito Penal e Política Criminal (correspondente ao mestrado) e título de Experto em Direito do Consumidor (Especialização) pela Universidade de Granada - Espanha. É professor de Direito Penal e Processual Penal em Cursos de Graduação e Pós-Graduação. Professor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (Facisa/PB). Professor da ATAME (Curso de PÓS-GRADUAÇÃO, na unidade de Brasília). Professor da Escola Superior da Magistratura da Paraíba (ESMA/PB). Autor do livro Introducción al Derecho Penal (em parceria com o Catedrático da Universidade de Granada Miguel Olmedo Cardenete). Participante do livro "Coleção OAB - Provas OAB/FGV" - da Editora Juspodium. 126 53


violentadas em prejuízo a sua integridade física, moral, psíquica, a sua dignidade e diversos outros termos resguardados pela nossa carta magna. É ultrajante e escandaloso o número e a forma que, diariamente, morrem nossas mulheres. É igualmente indignante a impunidade que ocorre em torno de tais fatos. Em resposta a essas situações de violência e diante do clamor e das demandas das organizações de mulheres em diferentes foros, o congresso aprova e tão logo passa a vigorar a Lei do Feminicídio, objeto deste estudo, tipificando essas praticas criminais e propiciando instrumentos legais no combate a violência contra a Mulher. Assim, o Estado/Justiça assumem seu dever ético-politico e jurídico de previnir e erradicar qualquer forma de ameaça e violência a dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos das mulheres. 2 ASPECTOS SOCIOLÓGICOS 2.1 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO Medir a violência é trabalho intenso assim como entendê-la, sobretudo quando esta violência tem como alvo a mulher. A celeuma acerca da violência no que condiz à mulher está presente tanto no meio acadêmico quanto nos mais diversificados ambientes sociais. Inúmeros são os estudos sobre o assunto, tanto nacionais quanto internacionais, que ininterruptamente enraízam e expandem a temática, mostrando tratar-se de um problema que perpassa as noções de territorialidade e poder aquisitivo. Entretanto, é impossível falar de diversidade sexual sem evocar o debate sobre relações de gênero, conceito este que nos pressupõe o entendimento de outros dois: sexo e gênero. Neste contexto, a terminologia sexo refere-se à dicotomia definida pelo aparelho sexual com o qual o indivíduo nasceu. Logo, sexo é visto como uma característica biológica. Desta forma, o sexo não determina por si só, a identidade de gênero, e muito menos, a orientação sexual de uma pessoa. Por sua vez, a expressão gênero fazer referência, usualmente, à classificação binária de homem-mulher, e não está relacionado ao sexo ou atração sexual, mas sim a uma identificação individual e cultural. Nesse sentido, não se pode abordar o conceito de gênero sem lembrar de Butler (2008, p.24), que basilarmente, nos aponta o gênero como culturalmente construído: Supondo por um momento a estabilidade do sexo binário, não decorre daí que a construção de ―homens‖ aplique-se exclusivamente a corpos femininos ou que o termo ―mulheres‖ interprete somente corpos femininos.

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O gênero para Butler é uma composição de significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, diferenciando de sexo biológico, essa compreensão é que abre as possibilidades de reflexão com vistas à superação do preconceito de gênero, da visão do ser feminino como frágil e submisso. Para a ciência biológica, o que determina o sexo de uma pessoa é tão e somente o tamanho das suas células reprodutivas (de forma simplificada, as pequenas: espermatozóides, logo, macho; grandes: óvulos, logo, fêmea). Biologicamente, isso não define o comportamento masculino ou feminino das pessoas: o que faz isso é a cultura, a qual define alguém como masculino ou feminino, e isso muda de acordo com a cultura de que falamos. Num contexto prático, mulheres de países nórdicos têm características que, para nossa cultura, são tidas como masculinas. Ser masculino no Brasil é diferente do que é ser masculino no Japão ou mesmo na Argentina. Há culturas para as quais não é o órgão genital que define o sexo. Ser masculino ou feminino, homem ou mulher, é uma questão de gênero. Logo, o conceito básico para entendermos homens e mulheres é o de gênero. Neste diapasão: Nomeação do sexo é um ato performativo de dominação e correção que institui uma realidade social [...] O gênero é uma realidade tenuante construída através do tempo por meio de uma repetição incorporada através de gestos, movimentos e estilos. (ARÁN/PEIXOTO, 2007, p. 134)

Deste modo, a forma como vivemos e compreendemos nossa sexualidade é estabelecida historicamente, por meio de um processo contínuo, através do qual construímos nossa identidade pessoal e sexual, que advém dos desdobramentos históricos e culturais. Surge, então, a necessidade de uma abordagem acerca da problemática sobre a violência de gênero, que se distingue das demais formas pela incidência dos atos violentos em função do gênero ao qual pertencem as pessoas envolvidas, ou seja, há a violência porque alguém é homem ou mulher, incidindo principalmente no que condiz à mulher. Esta modalidade é produto de um sistema social que subordina o sexo feminino, é, portanto, uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres. Em meados de 1990, com o a expansão dos estudos que versavam sobre o tema gênero, alguns autores passaram a empregar o termo ―violência de gênero‖ como um conceito mais abrangente do que ―violência contra a mulher‖ (Saffioti & Almeida, 1995). A terminologia ―violência de gênero‖, desta forma, envolve não somente as mulheres, mas também crianças e adolescentes, objeto da violência masculina, que no Brasil é constitutiva das relações de gênero. O termo também é usado em demasia como sinônimo de violência conjugal, por abarcar diferentes formas de violência envolvendo relações de gênero e poder, como a violência praticada pelo homem contra a mulher, a violência praticada pela mulher contra o homem, a violência entre mulheres e a violência entre homens (Araújo, 2004) e engloba a violência no seio familiar, a violência doméstica, estendendo-se à violência psicológica, violência física, agressões 128


verbais, violência sexual, assédio sexual, discriminação e rechaço. Nesse sentido pode-se dizer que a violência contra a mulher é uma das principais formas de violência de gênero. 2.2 ANTECEDENTES HSTÓRICOS No período pré-histórico, as sociedades foram organizadas de forma igualitária, conforme preleciona Regina Lins (2011, ps. 21-26), (...) desconhecia-se o vínculo entre sexo e procriação. Os homens não imaginavam que tivessem alguma participação no nascimento de uma criança, o que continuou sendo ignorado por milênios. A fertilidade era característica exclusivamente feminina (...). A ideia de casal era desconhecida. (...) Apesar da linhagem ter sido traçada por parte da mãe e as mulheres representarem papeis predominantes na religião e em todos os aspectos da vida, não há sinais de que a posição do homem fosse de subordinação.

Com manifesta renúncia à vida nômade, e a fixação das tribos em determinadas localidades, as colônias agrícolas foram se ampliando, e criou-se uma demanda por mais pessoas para trabalharem. Partindo deste entendimento, quanto maior fosse a quantidade de filhos que o casal tivesse, mais lucrativo seria, e as mulheres, genitoras da futura mão-de-obra, passaram a ser vistas como objetos preciosos (Lins, 2011, p. 28). A família monogâmica, neste sentido, sofreu grandes influências da domesticação, o homem tornou-se proprietário da fonte de alimento e trabalho, assim, a valorização da acumulação de mantimentos, animais e, em seguida, do capital, no qual a propriedade privada é estabelecida como um dos alicerces da sociedade, se faz

necessário controlar a liberdade

feminina, para que se garanta a linhagem familiar paterna, isto é, que seus filhos sejam também os herdeiros do seu companheiro, para quem este deixará seus bens. Sobre a condição da mulher nesse novo arranjo social, Engels (1997, p. 75) assevera que: A mulher foi degradada, convertida em servidora, em escrava do prazer do homem e em mero instrumento de reprodução. Esse rebaixamento da condição da mulher, (...) tem sido gradualmente retocado, dissumulado e, em alguns lugares, até revestido de formas mais suaves, mas de modo algum eliminado.

Partiremos, portanto, da ideia basilar de que o casamento é uma construção histórica e cultural, que exerceu desde seus primórdios duas funções principais: a garantia dos direitos de propriedade e o controle da sexualidade feminina. Desta forma, a ―objetificação‖ da mulher fez com que esta fosse útil apenas como ferramenta de promoção social ao homem, por meio do 129


casamento, como objeto de cobiça ou distração, ou como um ventre do qual seu marido tomava posse com a função principal de produzir-lhe filhos legítimos. Neste diapasão, a teoria do patriarcado tem servido para a análise das relações de dominação que antecederam à emergência do sistema capitalista, visto que o modelo patriarcal de família, além de pressupor a supremacia masculina, centra-se num arranjo familiar composto por homem, mulher e seus filhos, conforme Lins (2011, p. 42-43): O patriarcado é um sistema autoritário tão bem-sucedido que se sustenta porque as pessoas subordinadas ajudam a estimular a subordinação. Ideias novas são geralmente desqualificadas e tentativas de modificação dos costumes são rejeitadas explicitamente, inclusive pelas próprias mulheres, que, mesmo oprimidas, clamam pela manutenção de valores conservadores. A abrangência da ideologia de dominação é ampla. Partindo da opressão do homem sobre a mulher, a mentalidade patriarcal se estende a outras esferas da dominação. Assim, a violência contra as mulheres não é só uma manifestação da desigualdade sexual, mas também serve para manter este balanço desigual do poder. Em alguns casos, os agressores conscientemente usam a violência como um mecanismo de subordinação. Saliente-se que a mulher esteve presente no discurso penal e criminológico desde os primórdios, de início pela verificação pelo movimento Inquisitorial da Igreja Católica realizado entre os séculos XIII e XVIII, no qual, por serem consideradas psicologicamente mais fragilizadas, esperava-se que tivessem maior propensão em desviar-se da fé cristã, entregando-se às obras de bruxaria. Entre os séculos XVIII e XIX, os crimes versavam principalmente sobre a vagabundagem, a homossexualidade e a prostituição (MARTINS, 2009). De forma geral, às mulheres foram conferidos os motivos de uma grande parcela dos males que afligiam a coletividade. No contexto brasileiro, enquanto se construía a figura do homem médio, paralelamente se esboçava a figura da mulher honesta, como exemplo da perpetuação desse discurso foi a presença da figura da mulher honesta como única vítima dos crimes sexuais no Código Penal Brasileiro, o que veio a ser suprimido apenas em 2005. A mulher honesta, neste sentido, corresponderia àquela predisposta a dedicar-se única e exclusivamente à família, à maternidade, à fidelidade, dona de um recato e de uma sexualidade condizentes com sua idade e seu estado civil.

O movimento feminista caracteriza-se não apenas por constituir um movimento social, mas também por produzir um pensamento teórico que nos últimos anos atingiu diversas áreas do conhecimento, inclusive a Criminologia, onde seu alcance produziu um impacto considerável, avançando os debates abrangidos pela Criminologia. No Brasil e no mundo, entende-se que o movimento feminista começa seu ativismo de forma mais emblemática durante o movimento sufragista, que defendeu a inclusão das mulheres na possibilidade de participação da história política da sociedade sem, entretanto, indagar sobre a opressão feminina por vertentes mais abrangentes (PINTO, 2004). 130


Foi a partir da década de 1960, contudo, que as feministas adentraram a Academia com os estudos sobre a questão da mulher (PINTO, 2004), de maneira intensa e em diversas perspectivas teóricas, construindo elucidações próprias para a notória desigualdade de gênero. A história dos movimentos feministas no Brasil foi assim marcada por conquistas significativas no que diz respeito a seus objetivos legais, tais como nas mais recentes Lei ―Maria da Penha‖ (nº 11.340, de 7 de agosto de 2006) e Lei ―do Feminicídio‖ (nº 13.104, de 9 de março de 2015), esta última, objeto de nosso estudo. 3 ASPECTOS JURIDICOS 3.1 A MULHER OBJETO DA CRIMINOLOGIA A violência praticada contra mulheres representa uma violação aos direitos humanos e constitui, sobretudo, um dos principais obstáculos para a concretização de uma sociedade igualitária e plenamente democrática, as críticas feministas dirigidas a esse recorte social, denunciam o esquecimento das violências sofridas pelas mulheres tanto por parte do próprio autor da agressão interpessoal quanto por parte do sistema de justiça criminal que, ao manter-se inativo diante dessa situação, permite a legitimação e a expansão da violência contra a mulher (CAMPOS, 2006). Sobre a análise específica acerca das infrações penais praticadas no interior dos lares, Gerardo Landrove Díaz (1998, p.45) nos esclarece que: Dentro das tipologias que levam em conta a relação prévia entre vítima e autor do delito (vítima conhecida ou desconhecida) temos que ressaltar a especial condição das vítimas pertencentes ao mesmo grupo familiar do infrator; tratam-se de hipóteses de vulnerabilidade convivencial ou doméstica. Os maus tratos e as agressões sexuais produzidos nesse âmbito têm, fundamentalmente, como vítimas seus membros mais débeis: as mulheres e as crianças. A impossibilidade de defesa dessas vítimas – que chegam a sofrer, ademais, graves danos psicológicos – aparece ressaltada pela existência a respeito de uma elevada cifra negra. Entretanto, isso não quer dizer que as agressões contra mulheres aconteça somente no interior dos lares. Principalmente, pela sua simples condição de pertencerem ao sexo feminino, as mulheres têm sido vítimas dentro e fora dele, o que levou o legislador a despertar para uma maior proteção.

Com o advento da lei 9.099/95 que, qualificando a violência doméstica como infração de menor potencial ofensivo, o debate da violência acabou centralizado no rito processual. Exceto os delitos de homicídio, lesão corporal grave e abuso sexual, todos os demais comportamentos tipificados que caracterizam o cotidiano de lesões contra a mulher foram atingidos pelo novo procedimento. 131


Com o advento da Lei nº 10.866/2004, introduziu-se uma nova modalidade autônoma de lesão corporal: a violência doméstica. O projeto de lei foi aprovado e se transformou na Lei nº 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Esse recorte social recuperou a discussão sobre a forma de lidar com os crimes praticados contra as mulheres.

Neste sentido, Suzana de Toledo Barros (1996, p. 187-188) pondera que: É necessário interpretar a fórmula 'os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente' não formalmente, mas substancialmente. E aí há de ser considerado que a desigualdade é sempre valorativa e relativa, isto é, refere-se a um juízo de valor sobre certas características. A igualdade material conduz, pois, necessariamente, à questão da valoração correta, razoável ou justa. O núcleo do problema da igualdade passa a ser o de fundamentar racionalmente os juízos de valor tomados em consideração na formulação de uma norma sob o aspecto da igualdade.

Apesar da relevância dos avanços trazidos pela Lei Maria da Penha os indicadores de violência contra as mulheres não conseguiram ser reduzidos de maneira considerável, neste sentido, assevera Andrade (1999, p. 114) que: Em um sentido fraco, o sistema de penal é ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência porque, entre outros argumentos, não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e a gestão do conflito, muito menos para a transformação das relações de gênero.

Tal verificação torna-se mais notória quando avaliamos a o nível máximo dessa violência sofrida pelas mulheres, que é a morte. Ultimamente as mortes de mulheres em função da violência de gênero começaram a ser nomeadas por algumas autoras e criminólogas feministas de ―feminicídio‖. 3.2 O FEMINICÍDIO Os feminicídios são objetos de estudos e atenção em todo o mundo como uma das mais importantes questões da condição de gênero das mulheres e por suas vinculações com as desigualdades. O termo ―femicídio‖ ou ―feminicídio‖ é atribuído a Diana Russel, quem o teria utilizado pela primeira vez durante depoimento no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas, no ano de 1976, sobre a nomenclatura: O Femicídio está no ponto mais extremo do contínuo de terror anti-feminino, que inclui uma ampla variedade de abusos verbais e físicos, como o estupro, a tortura, a escravidão sexual (particularmente na prostituição), abuso sexual incestuoso ou extrafamiliar; agressões físicas e emocionais, assédio sexual (no telefone, na rua, no escritório e na sala de aula), mutilação genital (clitoridectomia, excisão, infibulação), operações ginecológicas desnecessárias, heterossexualidade forçada, esterilização forçada, 132


maternidade forçada (através da criminalização da contracepção e do aborto), psicocirurgia, privação de comidas para mulheres em algumas culturas, cirurgias cosméticas e outras mutilações em nome do embelezamento. Em qualquer lugar que essas formas de terrorismo resultem em morte, elas se tornam femicídios.‖ (RUSSEL; CAPUTTI, 1992 apud PASINATO, 2011, p. 199-142.)

Esse tipo de crime pode ocorrer em diversas situações, incluindo mortes perpetradas por parceiros íntimos com ou sem violência sexual, crimes seriais, violência sexual seguida de morte, feminicídios relacionados à morte ou extermínio de outra pessoa. Desta forma, o Feminicídio pode ser subdividido em Feminicídio íntimo, cometido pelo marido, companheiro, namorado, parceiros sexuais, em relações atuais ou passadas, ou por qualquer outro homem com quem vítima tem ou teve uma relação familiar, de convivência ou afim, é conhecido como feminicídio íntimo. Feminicídio não-íntimo, por sua vez, é a modalidade cometida por alguém que não possua relação íntima, familiar ou de convivência com a vítima. Podem ter sido cometidos por homens com os quais a vítima possuía uma relação de confiança, hierarquia ou amizade, tais como colegas de trabalho, trabalhadores da saúde, empregadores, ou por desconhecidos. Já o Feminicídio por conexão é aquele em que as mulheres foram assassinadas porque se encontravam na ―linha de fogo‖ de um homem que tentava matar outra mulher, ou seja, são casos em que as mulheres adultas ou meninas tentam intervir para impedir a prática de um crime contra outra mulher e acabam morrendo. Dentro do ramo do Direito Internacional, se produziu uma evolução substancial, desde mecanismos adotados e interpretados a partir de uma mera igualdade formal entre homens e mulheres. A ONU reconheceu a violência contra as mulheres como uma forma de discriminação e violação notória de direitos humanos. Na Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (DEVAW), de 1979, os Estados signatários, entre eles o Brasil, se obrigaram a adotar uma série de medidas e ações que propendem a alcançar a efetiva igualdade entre homens e mulheres.

A Plataforma de Ação de Pequim, adotada na 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres, em 1995, conheceu a violência contra as mulheres como uma das doze áreas críticas de preocupação e que demandavam ações urgentes. Quanto à tipificação do feminicídio, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Nicarágua, Chile, México, Peru o fizeram expressamente. A Colômbia não criou um tipo penal específico para definir e sancionar o feminicídio, mas reformou seu Código Penal e incorporou, por meio de circunstância agravante. 3.2.1 Características do crime de feminicídio 133


Na prática do crime de feminicídio evidenciam-se como pressupostos importantes a premeditação e a intencionalidade de sua consumação. Assim, podemos destacar algumas características próprias desse tipo de crime: •

é praticado com vistas à destruição do corpo feminino, utilizando-se de excessiva

crueldade e chegando a causar a desfiguração do mesmo; •

é perpetrado com meios sexuais, ainda que sem manifestar o intento sexual;

é cometido no contexto de relações interpessoais e íntimas ou por alguma razão

pessoal por parte do agressor, podendo estar associado à violência doméstica; •

seu caráter violento evidencia a predominância de relações de gênero hierárquicas

e desiguais; •

pode haver sobreposição de delitos, geradores de situações de barbárie e terror:

mulheres são estupradas, mortas, queimadas, mutiladas, torturadas, asfixiadas, mordidas, baleadas, decapitadas etc.; e esses diversos crimes podem ocorrer concomitantemente, sobre um mesmo corpo; •

é um crime de apropriação do corpo feminino pelo marido-proprietário como

sendo um território para uso e/ou comercialização em tudo o que esse corpo pode oferecer, isto é, desde a prostituição até mesmo o tráfico de órgãos; •

ocorre como o ápice de um processo de terror, que inclui abusos verbais,

sexuais, humilhações e uma extensa gama de privações a que a mulher é submetida: mamilos arrancados, seios mutilados, genitália retalhada. 3.2.2 Estatísticas Estudo preliminar do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - Ipea - estima que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios, ou seja, ―mortes de mulheres por conflito de gênero‖, especialmente em casos de agressão perpetrada por parceiros íntimos. Esse número indica uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. A pesquisa Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil, coordenada pela técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto Leila Posenato Garcia, apontou o Espirito Santo como o estado brasileiro com a maior taxa de feminicídios, 11,24 a cada 100 mil, seguido por Bahia (9,08)

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e Alagoas (8,84). A região com as piores taxas é o Nordeste, que apresentou 6,9 casos a cada 100 mil mulheres, no período analisado. Realizada com dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, a pesquisa inova em relação a estudos anteriores por incorporar duas etapas de correção, visando minimizar a subestimação dos feminicídios. De acordo com o Instituto 56Avante Brasil uma mulher morre a cada hora no Brasil. Quase metade desses homicídios são dolosos praticados em violência doméstica ou familiar através do uso de armas de fogo. 34% são por instrumentos perfuro-cortantes (facas, por exemplo), 7% por asfixia decorrente de estrangulamento, representando os meios mais comuns nesse tipo ocorrência. Além dos números e taxas de feminicídios nos estados e regiões do Brasil, foi realizada uma avaliação do impacto da Lei Maria da Penha. Constatou-se que não houve influência capaz de reduzir o número de mortes, pois as taxas permaneceram estáveis antes e depois da vigência da Lei. 3.3 A LEI 13.104/2015 E A TIPIFICAÇÃO DO FEMINICIDIO Em 9 de março de 2015, indo mais além, fruto do Projeto de Lei do Senado

nº 8.305/2014, foi

publicada a Lei nº 13.104, que criou, como modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio, que ocorre quando uma mulher vem a ser vítima de homicídio simplesmente por razões de sua condição de sexo feminino. O projeto de lei no 292/2013 foi aprovado a seguinte redação: Art. 121. Matar alguém: [...] Homicídio qualificado [...] Feminicídio VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino Pena - reclusão, de doze a trinta anos. § 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. [...] Devemos observar, entretanto, que não é pelo fato de uma mulher figurar como sujeito passivo do delito tipificado no art. 121 do Código Penal que já estará caracterizado o delito qualificado, ou seja, o feminicídio. Para que se faça configurada a qualificadora, nos termos do §2-A, do art. 121 do diploma repressivo, o crime deverá ser perpetrado por razões de condição de sexo feminino, que efetivamente ocorrerá quando abarcar violência doméstica e familiar ou desprezo ou discriminação à condição de mulher. 56

Cf. www.institutoavantebrasil.com.br

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A nova Lei alterou o código penal para incluir mais essa de homicídio qualificado: o feminicídio; quando crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.

O § 2º-A foi acrescentado como norma explicativa do termo "razões da condição de sexo feminino", esclarecendo que ocorrerá em duas hipóteses: a) violência doméstica e familiar; b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher; A lei acrescentou ainda o § 7º ao art. 121 do CP estabelecendo causas de aumento de pena para o crime de feminicídio. A pena será aumentada de 1/3 até a metade se for praticado: a) durante a gravidez ou nos 3 meses posteriores ao parto; b) contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência; c) na presença de ascendente ou descendente da vítima. Por fim, a lei alterou o art. 1º da Lei 8072/90 (Lei de crimes hediondos) para incluir a alteração, deixando claro que o feminicídio é nova modalidade de homicídio qualificado, entrando, portanto, no rol dos crimes hediondos. Ao contrário do que poderia parecer, o feminicídio não é, totalmente, uma nova figura de qualificação do homicídio. O artigo 121 do Código Penal, já anteriormente, trazia como situação de qualificação o crime de morte por ―motivo fútil‖ ou por ―motivo torpe‖, situações abrangentes do ―menosprezo ou discriminação à condição de mulher‖, vejamos: Art. 121. Matar alguem: [...] Homicídio qualificado § 2° Se o homicídio é cometido: I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; II - por motivo futil; [...] Matar por aversão às mulheres, com efeito, é torpe e, quando menos, fútil. Nesse trecho, o que fez a nova lei foi delimitar o que, em termos genéricos, já constava do Código Penal. Desta forma, a especificação retira a subjetividade interpretativa daquilo que se pode compreender por fútil ou torpe, que poderia, como já ocorreu historicamente no contexto brasileiro, permitir interpretações preconceituosas ou sexistas. Para fins de reconhecimento das hipóteses de violência doméstica e familiar deverá ser utilizado como referência o art. 5º, da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, que diz: Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. 136


Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. Em sobrevindo uma das hipóteses previstas nos incisos acima transcritos, já será possível o reconhecimento da qualificadora referente ao feminicídio. O diploma legal assegura a todas as mulheres, independente de

classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura e nível educacional, idade e religião, o gozo de seus direitos, e cria mecanismos para coibir essa violência específica.

3.4. TIPIFICAR X SOLUCIONAR De acordo com a jurista chilena Carmen Antony, o Direito Penal desacompanhado de políticas públicas não é capaz de prevenir nenhum tipo de conduta, porém muitas são as razões para a tipificação do feminicídio. Segundo a jurista, podem ser destacadas:

• a tipificação pretende que as sanções se qualifiquem como homicídios agravados; • pretende-se eliminar o termo ―crime passional‖ que oculta um sistema de dominação patriarcal;

• contribuirá para modificar a mentalidade patriarcal de juízas e juízes, uma vez que estas/es têm que fundamentar suas argumentações e sentenças de acordo com a descrição do delito; e

• permitirá reconhecer a real magnitude dessa conduta criminosa e masculina. Para Carmen, o enfrentamento ao feminicídio pressupõe, além da elaboração de sua tipificação penal, a construção e implementação de políticas públicas transversais sob a perspectiva de gênero, ou seja: as questões e experiências das mulheres devem estar presentes na elaboração de todas as políticas públicas, levando-se em conta as realidades econômicas, culturais, geracionais, de orientação sexual etc. Ademais, o acesso das mulheres à Justiça e a mudança ideológica das/dos operadores de Direito são imprescindíveis para a adequada aplicação da lei. A tipificação penal do feminicídio deverá contribuir também para uma mudança nas dimensões simbólica e cultural, na medida em que confronta o Direito Penal androcêntrico, tributário da dominação masculina, com a garantia dos direitos humanos das mulheres. Raras são as mulheres assassinadas sem que antes tivessem sofrido ameaças, perseguições, lesões corporais, assédio sexual, variados tipos de chantagens, entre outros tipos de violência. Logo, depreende-se que existe uma grande falha na atuação do poder público. Muitos dos assassinatos poderiam ter sido evitados com a devida aplicação das medidas protetivas, com maior atenção por parte dos agentes públicos dos sistemas de Segurança e da Justiça. Entretanto, 137


o que se tem verificado é que, ao invés disso, as vítimas tiveram suas vidas banalizadas e não receberam proteção do Estado quando este foi acionado por meio do Poder Judiciário. Persistem, infelizmente, aqueles/as que observam restritivamente a maneira de se vestir, as atividades laborais e as relações pessoais para desqualificar as vítimas, descaracterizar os atos como fatos isolados, desviar a atenção sobre o que realmente é importante: a segurança, o direito à vida e à dignidade das mulheres e jovens que são assassinadas. Ainda há muito trabalho a ser realizado no que tange à mudança de paradigmas em relação à tipificação do crime de feminicídio e ao combate à violência institucional. Cabe a urgência na tipificação e na implementação de políticas sociais que melhorem as condições de vida das mulheres concorrendo para uma mudança dos valores culturais hegemônicos que têm justificado a violência contra as mulheres. 4 CONCLUSÃO O grau de violência que sofrem as mulheres país afora, a preocupante cifra de impunidade que acompanha esses delitos (o que põe em evidência os graus de inércia e ineficiência do aparato da justiça), o clamor popular e a visibilidade que o fenômeno tem alcançado nos meios de comunicação, obrigou ao Estado a tomar medidas especializadas de política criminal com o objetivo de que esses crimes sejam devidamente prevenidos e castigados. E nesse contexto se iniciou discussões que culminaram na aprovação da Lei 13.104/15 especialmente visando à incorporação do crime de Feminicídio na norma penal nacional. Até então, a morte de mulheres por razoes de gênero eram disciplinadas pela norma penal comum, sem a tipificação apropriada para o referido Crime, gerando obscuridade na Lei Penal e a sociedade, e ainda, danos ao Direito e a Justiça, seu fim maior. Nosso ordenamento conta com mais uma arma no combate a violência contra a mulher, e, logo, na tutela da sua dignidade como pessoa humana resguardada pela nossa Constituição. Sem dúvida a tipificação do Feminicídio no rol das nossas normas penais, foi um significante passo para nossa sociedade, porém há uma pergunta que não que calar: essa tipificação do feminicídio reduzirá os números de homicídio contra mulher? Ou estamos diante de mais uma lei simbólica e populista? Em conclusão, espera-se que esta substancial legislação aprovada, e recentemente vigorante, bem como as instituições de investigação especializada e a justiça pertinente para processar e julgar os casos de Feminicídio, não busque só eliminar a impunidades para com esse 138


crime - o que ja seria um avanço imensurável - mas, outrossim, a contenção e prevenção dessas condutas criminosas, operando na base de princípios da verdadeira igualdade, da não discriminação, da almejada dignidade da pessoa humana e buscando a máxima eficiência do sistema da justiça em atingir seu principal objetivo: a paz social.

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ABORTO NO BRASIL: AVANÇOS, RECUOS E OS DIREITOS DA MULHER Ezilda Melo57 Sumário: 1 O aborto no Código Penal Brasileiro e em decisão do STF. 2 Aborto e Autonomia Feminina. 3 O Estatuto do Nascituro. 4 Conclusão. Referências.

1 O ABORTO NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO E EM DECISÃO DO STF “Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher”. Pitágoras

A decisão de uma mulher não dar continuidade a uma gravidez é assunto muito polêmico, pois envolve questões ético-morais, jurídico-filosóficas, existenciais aparecem de formar conflitual para a gestante, apesar de não constituir, para os homens, decisão a ser tomada. Para a mulher é um dilema-problema que pode surgir em algum momento de sua vida. De acordo com SINGER (2002, p. 145), poucas questões éticas são, hoje, objeto de uma discussão tão acirrada quanto a do aborto, e, enquanto os pêndulos oscilam para lá e para cá, nenhum dos lados tem sido muito bem sucedido em modificar as opiniões de seus adversários. Não é possível colocar a questão do aborto no Brasil dentro de um contexto moral particular, onde prevaleça a ordem baseada em cânones religiosos, concretista de uma certeza matemática, hermeticamente fechada. Para discutir a questão do aborto no Brasil, observar-se-á o viés dogmático legal, e também as possibilidades discursivas, que se apresentam ora na doutrina sobre o tema, ora nas decisões judiciais. DINIZ (2004, p. 30) diz que o debate sobre o aborto no Brasil é ainda marcadamente um tema perigoso e delicado do ponto de vista político e jurídico, haja vista a influência e permanência de algumas premissas religiosas. Para iniciar as colocações sobre a temática, pergunta-se: o que é o aborto? Trata-se da interrupção

de

uma

gravidez,

com

a

consequente

morte

do

feto.

PESSINI

e

BARCHIFONTAINE (2002, pág.226), apresentam as causas que estão na origem da provocação do aborto: indicação eugênica, se o aborto é provocado para livrar-se de um feto com taras; indicação médica ou terapêutica, se o intuito é salvaguardar a vida ou a saúde da mãe; indicação social, se se interrompe a gravidez para não arcar com a carga social e econômica que comporta; Mestra em Direito Público pelo Programação de Pós-Graduação em Direito da UFBA. Especialista em Direito Público pelo JusPodivm. Graduada em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (2002) e Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba (2002). Tem experiência no Magistério Superior desde o ano de 2003 e em Coordenações de Curso de Direito. Professora de Graduação e Pós-Graduações. Palestrante. Autora de diversos artigos. Pesquisadora vinculada ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. 57

142


indicação ética, se com a interrupção da gravidez se pretende pôr um paliativo no erro moral ou eliminar uma desonra social. A perspectiva da multiplicidade de interpretação sobre a possibilidade da prática do aborto, a tolerância, a liberdade de escolha e a alteridade são fios condutores para uma análise bioética-jurídico. E, neste sentido, pergunta-se: abortar é um direito da mulher? De acordo com SINGER (2002, p.145) Até 1967, o aborto era ilegal em quase todas as democracias ocidentais, com exceção da Suécia e da Dinamarca. Em seguida, a Inglaterra passou a permitir que o aborto fosse legalmente praticado, uma mudança operada com base em premissas sociais abrangentes e, no caso Roe versus Wade, de 1973, a Corte Suprema dos Estados Unidos admitiu que as mulheres têm o direito constitucional de abortar nos primeiros seis meses de gravidez. Os países da Europa Ocidental, inclusive os católicos, como a Itália, a Espanha e a França, liberalizaram as suas leis relativas ao aborto. A Irlanda foi o único país a não seguir a tendência.

O aborto é mais perigoso para a mulher, quanto mais avançada é a gravidez. As legislações que permitem o aborto, como no caso da brasileira, nas hipóteses previstas no artigo 128 do Código Penal, risco de vida à gestante e gestação advinda de estupro, impõem prazos. Portanto, a legislação brasileira taxativamente explicita quais as hipóteses de aborto autorizadas. Ou seja, no Brasil, abortar não é direito da mulher. Salvo, excepcionalmente, nos casos permitidos em lei. Jurisprudencialmente, em 2012, o STF julgou a ADPF 54, dispondo sobre a interrupção da gravidez em razão da anencefalia, uma situação não prevista pelo Código Penal como exceção à regra da proibição ao aborto. De acordo com REIS e AGUIAR (2009, pág. 112), o aborto para interromper a gravidez de feto anencéfalo ―é aquele praticado para evitar o nascimento de criança portadora de anomalia física ou psíquica; tendo como significado etimológico o ´bom nascimento´‖. De acordo com DINIZ (2004, p. 46): ―o aborto por anomalia fetal ocorre em casos de diagnóstico de má-formação fetal e é autorizado em grande parte dos países do mundo, mesmo em locais onde as legislações são ainda mais restritivas que no Brasil‖. A deformação irreversível do feto é diagnosticada graças aos modernos meios tecnológicos, contextualmente inexistentes quando da feitura do Código Penal Brasileiro, datado da década de 40 do século XX. A pergunta é: deve-se ou não manter a gravidez, onde a sobrevida do nascituro é diminuta? Manter a gestação é impor á mulher e ao seu seio familiar uma dor moral e psicológica desnecessária? A mulher tem a liberdade de escolher se vai ou não continuar com a gestação? De acordo com BARROSO (2007, p.185): À luz da Constituição, as mulheres portadoras de fetos anencefálicos devem ter o direito subjetivo de interromperem a gestação, se assim desejarem. Esta hipótese não configura crime de aborto. Obrigar a mulher a levar a termo uma gravidez inviável, 143


submetendo-a em vão a todas as consequências físicas e emocionais de uma gestação, viola o princípio da dignidade humana e equipara-se à tortura psicológica.

O STF decidiu que na falta da norma a autorização em antecipar o parto do feto com anencefalia era a decisão mais legítima. Neste sentido, VIEIRA (2002, pág. 46) destaca: Os defensores do direito de opção da mulher alegam que a sua vontade deve ser respeitada como um agente autônomo e independente, não permitindo intromissão alheia em sua liberdade de escolha. Do mesmo modo, o homem não pode impor que a mulher carregue um filho que não deseja. (...) Ao aceitarmos que todos têm o direito de procriar teremos que reconhecer também que o Estado tem o dever de proporcionar os meios. E o direito de não procriar.

Então, juridicamente tem-se o aborto como crime, com previsões de excepcionalidade, nas situações descritas legalmente como risco de vida à gestante e em caso de estupro e, em recente decisão do STF, permite-se, ainda, o aborto em razão da anencefalia do feto. 2 ABORTO E AUTONOMIA FEMININA “Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte”. Poulain de La Barre

Aborto é um tema complexo e envolve multi-reflexões. Diferentemente do que acontece na sociedade pós-moderna, dita líquida por BAUMAN, em razão dos laços afetivos serem frágeis, ou do espetáculo para DEBORD, em razão de sermos sujeitos históricos, culturalmente imbuídos numa lógica de mostrar o que se tem e não o que se é, o tema não é visto na perspectiva da alteridade, e neste sentido, não há compreensão do ponto de vista de uma posição diferente da legitimidada pelo Estado. O argumento conservador, formal e básico contra o aborto é colocado da seguinte maneira por SINGER (2002, p.148): ―Primeira premissa: é errado matar um ser humano inocente. Segunda premissa: um feto humano é um ser vivo inocente. Conclusão: logo, é errado matar um feto humano‖. De acordo com DINIZ (2004, p. 66-70) são três premissas que são consideradas indiscutíveis por aqueles que se opõem à moralidade do aborto em geral: A premissa da santidade da vida humana, que defende a ideia de que a vida é um dom ou bem divino e não deve ser objeto de intervenção humana; (...) a premissa da ladeira escorregadia, é uma metáfora utilizada por aqueles que sugerem haver um risco moral na mudança de comportamentos e valores e a (...) premissa da potencialidade, que defende que entre um feto, uma criança e um adulto há uma relação de continuidade.

144


Não discutir essas premissas ou colocá-las em dúvida equivale a abortar o tema que, nesta perspectiva, é um tabu, um dogma inquestionável sob a ótica da religião. Nosso Estado laico necessita da perspectiva da bioética no Direito para tratar sobre o aborto, ou melhor, precisa de uma discussão transdisciplinar e não somente religiosa. Existem argumentos favoráveis ao aborto. Utiliza-se, enquanto argumentos favoráveis ao aborto, os trazidos por SINGER (2002, p. 153-159): primeiro que as leis que proíbem o aborto não acabam com ele, mas levam-no, apenas, a ser feito clandestinamente. Portanto, o resultado da proibição do aborto não é tanto a redução do número de abortos realizados, mas, sim, o aumento das dificuldades e dos perigos para as mulheres com uma gravidez indesejada. O segundo argumento é também um argumento sobre as leis que regem o aborto, e não sobre a ética do aborto. O último dos três argumentos que procuram justificar o aborto sem negar que o feto é um ser humano inocente é o de que uma mulher tem o direito de escolher o que fazer com o seu próprio corpo. Numa perspectiva feminista, a discussão que BEAUVOIR (2009, p.23), apresenta ao demonstrar que os homens, ao fazerem as leis sobre aborto, não pensaram na perspectiva da mulher. São leis de homens sobre um assunto, eminentemente, feminino: Legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios empenharam-se em demonstrar que a condição subordinada da mulher era despejada no céu e proveitosa à Terra. As religiões forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio: buscaram argumentos nas lendas de Eva, de Pandora, puseram a filosofia e a teologia a serviço de seus desígnios. Desde a Antiguidade, moralistas e satíricos deleitaram-se com pintar o quadro das fraquezas femininas.

Sobre a construção historicista dos direitos humanos, pode-se perceber que estes são construídos na discussão anunciada por HUNT (2009, p.215), e podem ser utilizados para defender o direito da mulher em abortar: A cascata de direitos continua, embora sempre com um grande conflito sobre como ela deve fluir: o direito de uma mulher a escolher versus o direito de um feto a viver, o direito de morrer com dignidade versus o direito absoluto à vida, os direitos dos inválidos, os direitos dos homossexuais, os direitos das crianças, os direitos dos animais — os argumentos não terminaram, nem vão terminar.

Em que a bioética pode ajudar nos esclarecimentos sobre o aborto? Primeiro há de se dizer que o conhecimento em bioética não constitui por si só um qualquer valor absoluto. Para ASCHER (2001), a bioética é um dos novos saberes da contemporaneidade que mais rápida e avassaladoramente tem evoluído. Nesta perspectiva, pergunta-se: quais as fronteira entre a 145


bioética e o direito? Interessante metáfora foi utilizada por BERNARD (1998, pág. 89) para responder a esse questionamento: Fronteiras que separam as nações são muitas vezes claras – um rio, uma cadeia de montanhas. Algumas vezes são imprecisas – águas territoriais cujos limites são contestados, ou um deserto ainda inexplorado. As fronteiras entre a bioética e o direito pertencem a essa segunda categoria. Não se sabia nem onde traçá-las nem como organizar as trocas entre os dois territórios.

O que é a bioética? Encontra-se em REIS e AGUIAR (2009, pág. 11), uma definição pertinente: ―A bioética, que etimologicamente significa ´ética da vida´, é formada por dois vocábulos gregos: ´bios´ – vida e ´ética´- costumes, tendo por objetivo a busca de benefícios, da garantia da integridade do ser humano. Em outras palavras, é um campo disciplinar que busca conferir às ciências biomédias limites éticos, como por exemplo nas práticas médicas, ou nas experimentações científicas, que utilizem animais ou seres humanos‖. Para LEGARDA (2007, pág.338) a bioética se concebe como um discurso antidogmático, como um discurso essencialmente crítico que se caracteriza por uma atitude dialógica que permite a pluralidade e o dissenso. A bioética a partir dessa perspectiva desenvolveria uma metanarrativa que poderia ´horizontalizar´ os argumentos e, portanto, desvelar a arquitetura axiológica daqueles que participam do diálogo. Diz ainda que (2007, pág.340): ―estritamente falando, a bioética examina problemas que contêm tanto elementos valorativos como elementos empíricos, linguagem descritiva bem como linguagem prescritiva. Quem porventura de início batiza de dilemas todos os problemas bioéticos corre o risco de se encontrar num beco sem saída‖. ENGELHARDT JR. (1998, pág. 34), tratando sobre moralidade, fala sobre o fracasso do moderno projeto filosófico em descobrir uma moralidade, construída em bases canônicas, constitui a catástrofe fundamental da cultura contemporânea e enquadra o debate que se trava entre direito e bioética. Reflete que o indivíduo encontra estranhos morais com os quais não comunga, e quando o indivíduo procura resolver racionalmente essas controvérsias, as discussões se prolongam sem conclusão final. ―O argumento racional não silencia as controvérsias morais quando o indivíduo encontra estranhos morais, pessoas de diferentes visões morais‖. A dissonância do debate sobre o aborto assinala a força desses paradoxos argumentativos. BELLINO (1997, p. 14), nos diz que ―mesmo criando dilemas morais, sobretudo entre velhas e novas morais derivadas, entre os valores da vida e da liberdade, as ciências biomédicas enquanto tais não negam nossos valores fundamentais, nem os alteram ou criam novos‖. Alguns consideram o aborto um mal moral e profundo, equivalente, inclusive, ao assassinato. Outros o analisam, no máximo, como um mal físico. Para ENGELHARDT JR (1998, pág. 34-35), ―o debate 146


em torno do aborto é apenas uma de muitas questões em que as controvérsias são, ao mesmo tempo, apaixonadas e refletem visões morais conflitantes e arraigadas‖.

De acordo com BERLINGUER: ―a Bioética não pode, portanto, fincar-se nem na intolerância, nem na moral do ´não´; ela deve, pelo contrário, apontar para o ´fazer´, mais do que para o ´proibir´: deve discutir o que fazer, com quem, a quem, com quais meios, com que objetivos, de forma que as relações entre a ética e as ciências biomédicas sejam marcadas, ao mesmo tempo, pela liberdade do homem e pelo respeito a todos os seres humanos‖. Os princípios da bioética, na denominação de principialismo, nascem com BEAUCHAMP e CHILDRESS (2002). Trata-se de uma procura de erigir normas que sejam norte para as tendências discursivas em Bioética. A postura ética surge de uma valoração intrínseca a cada ser humano. Neste sentido, a importância da análise bioética abalizada na autonomia, na beneficência, na não-maleficência e na justiça. Com SEGRE e COHEN (2002), percebe-se a importância de se criar uma bioética fincada no desenvolvimento da personalidade, que passa pela autonomia do indivíduo, que se responsabilizará em ajustar consequentemente suas necessidade às de seus parceiros na comunidade em que vive. É, nesta perspectiva, que se traz ao debate o princípio da autonomia, como princípio da bioética que permite o direito da mulher em abortar, qualquer que seja a hipótese. SEGRE e COHEN (2002, págs. 37-39) nos dizem que: A autonomia é uma abstração. Partimos do pressuposto de que ela exista. Esse pressuposto é uma crença, transitando pelo terreno da afetividade, não apenas do pensamento racional. (...) A partir do momento em que procuro centrar o conceito de autonomia na subjetividade de cada pessoa, torna-se impossível – de fora para dentro – estabelecer um conceito próprio e específico. (...) Logo, sem a percepção da alternativa, em qualquer tipo de situação, visando à superação do conflito que a possibilidade de escolha provoca, não existiria busca de autonomia.

Neste sentido, importante passagem de SEGRE e COHEN (2002, pág.87), ao afirmar que historicamente tem-se definido a ideia de que uma pessoa possui um valor que independe de circunstâncias particulares. É uma junção do que se entende por dignidade de um ser, juntamente ao que se entende como autonomia de vontade. Ainda SEGRE e COHEM (2002, pág. 89), dizem que o princípio da autonomia não dá liberdade absoluta, ele determina o quanto uma pessoa pode estar livre. Aplica-se esse ensinamento sobre o questionamento, geralmente feminino, de se praticar o aborto. Mais do que uma disciplina, a bioética é um território. BELLINO (1997, p.15) nos diz que ―esta complexidade cultural e científica confere ao estatuto epistemológico da bioética uma 147


conotação multidisciplinar, que envolve numerosos problemas filosóficos, biológicos, médicos, jurídicos, sociológicos, genéticos, ecológicos, zoológicos, teológicos, psicológicos‖. Reflete-se mais ainda: o legislador tem que prever quais hipóteses não são criminosas? E o que não é lícito no terreno do aborto, não é lícito por que? Ou seja, pode abortar nas hipóteses definidas pelo legislador. Essas hipóteses, na realidade brasileira, são as claramente públicas. A vítima foi violentada sexualmente e, portanto, o feto foi concebido a partir de uma prática de violência; e a mãe corre risco de vida, nestas situações a comunidade na qual a gestante faz parte, o grupo social compartilha da decisão, fala abertamente sobre o problema. E nas demais situações sobre o aborto? Há uma proibição e criminalização. O Estado, portanto, criminaliza as situações que hipocritamente são afastadas do debate público e acontecem em surdina. Para DINIZ (2004, p.42): Para muitos pesquisadores de bioética, o argumento do conflito de interesses entre a mulher e o feto é absolutamente nulo, indiferente ao fato de o embrião poder ser, em outras situações, detentor de alguma moralidade. O que se pretende garantir é a autonomia das pessoas para deliberar sobre suas próprias vidas e, no caso do aborto, a garantia de que as mulheres que consideram o aborto amoral devam ter condições sociais e sanitárias de realizá-lo se assim o desejarem, ao que as mulheres que consideram o aborto imoral devam ser livres para jamais o realizarem. O argumento fundamental é, então, o da defesa e promoção de uma sociedade suficientemente plural que proporcione as condições sociais, sanitárias e políticas para que diferentes mulheres expressem suas crenças frente ao aborto.

O aborto é velado, silenciado, quando devia ser uma preocupação das autoridades públicas em campanhas de assistência social e de melhoria da qualidade de atendimento médico às mulheres, especialmente as mais pobres e que têm menos chance de ir a um ginecologista, utilizar métodos anticonceptivos e preocupar-se com taxas de natalidade e aumento populacional desordenado. O Ministério da Saúde estima que a cada ano, ocorra um milhão de abortos no Brasil e que o abortamento é a quinta causa de mortalidade materna no país 58. 3 O ESTATUTO DO NASCITURO “Assim também o mais medíocre dos homens julga-se um semideus diante das mulheres”. Simone de Beauvoir

A diversidade de visões sobre a ética no aborto marca um debate que não se muda de posição. Já se tem opiniões pré-definidas, já se tem pré-conceitos. A questão deve ser costurada no debate da alteridade e das múltiplas formas de convívio humano, e de entender o outro (ou

58Cf.http://www.istoe.com.br/reportagens/285170_ABORTO+ESTA+NA+HORA+DE+O+BRASIL+ENCAR

AR+ESSE+TEMA. Acesso em: 06/09/2013

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melhor, entender a outra). Não se pode esquecer que o aborto é feito por mulheres, e são estas que decidirão se vão ou não fazer. O debate ganhou mais polêmica, em razão da discussão do Projeto de Lei 478/07, conhecido como Estatuto do Nascituro. Nasce contrariamente ao que prescreve o Código Penal Brasileiro, em matéria de aborto, assim como à decisão do STF a respeito do abortamento do feto do anencéfalo. DINIZ (2004, p.31) esclarece: ―se, por um lado, há uma crescente discussão sobre o anacronismo ético e sociológico desta regulamentação, uma vez que ela data de 1940, por outro lado, há também um movimento que visa o retrocesso legislativo, com projetos de lei que propõem a proibição total do aborto, isto é, propondo, inclusive o fim das exceções hoje previstas‖. Analisar o estatuto do nascituro impõe uma decodificação dos temas apresentados. A palavra estatuto advém do conceito latino ―status‖, que significa posição, bom estado. Já nascituro é o ser humano desde o momento da fecundação até ao nascimento, que tem expectativa de direito desde a concepção. No Estatuto do Nascituro justifica-se sua necessidade no sistema jurídico brasileiro para tornar integral a proteção ao nascituro, sobretudo no que se refere aos direitos de personalidade. De acordo com a justificativa, realça-se o direito à vida, à saúde, à honra, à integridade física, à alimentação, à convivência familiar, e proíbe-se qualquer forma de discriminação que venha a privá-lo de algum direito em razão do sexo, da idade, da etnia, da aparência, da origem, da deficiência física ou mental, da expectativa de sobrevida ou de delitos cometidos por seus genitores. Um artigo que merece destaque é o artigo Art. 13, popularmente conhecido como Bolsa Estupro, que trata da gestação advinda do estupro: O nascituro concebido em um ato de violência sexual não sofrerá qualquer discriminação ou restrição de direitos, assegurando- lhe, ainda, os seguintes: I – direito prioritário à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da gestante; II – direito a pensão alimentícia equivalente a 1 (um) salário mínimo, até que complete dezoito anos; III – direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança após o nascimento. Parágrafo único. Se for identificado o genitor, será ele o responsável pela pensão alimentícia a que se refere o inciso II deste artigo; se não for identificado, ou se for insolvente, a obrigação recairá sobre o Estado. Outra mudança, proposta pelo Estatuto como ―inovação‖,

refere-se à parte penal,

tratando dos crimes em espécie, do artigo 22 a 29. Cria-se a modalidade culposa do aborto, o

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crime de anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto, elencam-se vários outros crimes contra a pessoa do nascituro e enquadra-se o aborto entre os crimes hediondos. O valor do feto está no valor que a gestante dá a ele ou na concepção que o Estado quer impor? O Estado pode intervir numa escolha inerentemente privdaa em nome de uma moralidade comum? Deve-se legislar mais e punir mais as práticas abortivas ou o debate pode ser permeado a partir de outras fontes do Direito, ao buscar respostas em outros campos, como a deontologia e bioética? A legislação punitiva pode ser vista como enquadramento normativo dos progressos biomédicos em geral. BERNARD (1998, pág. 90-91) tratando do debate sobre essa questão, preceitua que: Afrontando essas dificuldades, os juristas, os biólogos e os moralistas se dividiram. Duas grandes orientações foram propostas. A primeira orientação é legalista, rigorosa. Novas questões surgem, suscitadas pelos progressos da biologia e da medicina. Novas leis são necessárias. Leis precisas, que levem em conta cada caso particular, prevendo a cada vez novas soluções, eventualmente renovadas ou modificadas de acordo com o surgimento de novos fatos científicos. (...) A segunda orientação recusa leis rigorosas, estima que se deve preferir a jurisprudências às leis. Três argumentos são dados: a diversidade das situações criadas pelos progressos da pesquisa não permite ao legislador prever todas as eventualidades possíveis; a rapidez desses progressos faz correr o risco de que muito rapidamente uma lei se torne vetusta pouco tempo depois de votada.

No entanto, a tendência em nosso país é de intervenção legislativa, com a criação de estruturas jurídicas que nos dizem o que é lícito fazer. Os argumentos favoráveis à intervenção legislativa são a necessidade da intervenção do legislador em todas as áreas de nossas vidas e o medo de que pela falta da intervenção da lei, esteja-se entregue às concepções e ao arbítrio de cada um. Perde-se de vista o real problema que é a questão de saúde pública, pois a realidade é que 173.960 curetagens foram registradas no SUS até novembro de 2012, sendo considerado o terceiro procedimento médico mais praticado; 936.291 mulheres foram internadas no SUS por aborto e suas complicações entre 2007 a 20012 e o custo estimado entre R$ 180 milhões. As condições amparadas pela lei foram somente de 1.058 mulheres atendidas pelo SUS para o abortamento permitido por lei.59 Pergunta-se: a proibição legal tem conseguindo dificultar o aborto? Se a mulher quiser fazer o aborto não é por temor à lei que ela não o fará. Portanto, está na hora de um debate mais sério, menos hipócrita e demagógico. De acordo com DINIZ (2004, p. 24): O tema do aborto tem sido um exercício de pensamento para a bioética brasileira e não uma situação que reivindica urgência na reflexão e intervenção bioética. Em um 59http://www.istoe.com.br/reportagens/285170_ABORTO+ESTA+NA+HORA+DE+O+BRASIL+ENCARAR

+ESSE+TEMA – Acesso em: 06/09/2013. Em anexo.

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contexto de apatia política e intelectual, o tema se converte em um dos maiores desafios para os praticantes da bioética brasileira, em especial pela ausência de reflexões internacionais em bioética que possibilitem o diálogo ou a fundamentação das ações de intervenção.

ARONNE (2010, pág.110-111) ao tratar de nosso atual código penal, nomeia-o como burguês e diz que os crimes nele previstos não analisam seus sentidos antropológicos, pois se dá preferência ao utilitarismo econômico e político. ―Na raiz de cada discurso repousa uma eleição de valores (...). Os Códigos não nasceram com ou para penas. `Apenas` se apropriaram delas‖. O problema do aborto, portanto, não está na Lei, e sim nas políticas sociais. De acordo com DINIZ (2004, p. 14-15): A diferença entre mim e os indivíduos que se autodenominam defensores morais da vida e, por suas respectivas tortuosas linhas de raciocínio, consequentemente contrários ao aborto, é o fato de que, enquanto eles partem do pressuposto de que a solução para essa realidade perversa é proibir e condenar a mulher que aborta e aqueles que lhe dão ajuda, eu e muitos outros consideramos o aborto um problema social, passível de tornar-se objeto de políticas públicas, tal como ocorre com outros temas socialmente chocantes, como as crianças de rua e a violência urbana. Não é simplesmente com a adoção de práticas proibitivas e condenatórias que se soluciona problema dessa natureza.

A questão do aborto não pode ser visto sobre o prisma do dogmatismo e da intolerância. Tem que ser visto dentro de uma perspectiva histórica, da luta dos direitos femininos. 4 CONCLUSÃO Não existe solução fácil para um assunto multi-facetado, onde os interesses se alteram a depender da situação que enunciamos. Não se deve utilizar o aborto como método de planejamento familiar, sendo assim a prevenção da gravidez indesejada deve receber alta prioridade nas questões de políticas públicas governamentais. Defende-se a transmissão à gestante do poder de decisão sobre o futuro de sua gestação. Inúmeras são as questões inconclusivas no debate bioético. O aborto está dentre elas. Uma questão persistente, que envolve cunho ético relacionado à vida, pois se relaciona a um tema cheio de conflitos. Este artigo pretende estimular o debate e a reflexão do leitor-questionador. E coloca a perspectiva da autonomia feminina em decidir se deve ou não continuar a gestação. Portanto, a perspectiva é defender o aborto enquanto direito e não como permissão dada pelo Estado. Quer-se, com isso, tirar da abrangência do Estado a vigilância e a punição sobre os corpos femininos, permitindo, assim, que o debate sobre o aborto saia do campo da legalidade e 151


entre no campo social e dos problemas advindos pela falta de se enxergar que a proibiçãopunição não surte efeito, quando o assunto é aborto. O que se precisa é de políticas públicas, de programas de educação sexual e da defesa da autonomia reprodutiva da mulher, com base em princípios democráticos.

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REFERÊNCIAS ATLAN, Henri. O Útero Artificial. Rio de janeiro: Editora Fiocruz. 2006 ARONNE, Ricardo. Razão e Caos no Discurso Jurídico e outros ensaios de Direito CivilConstitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. ASCHER, BISCAIA, OSSWALD, RENAUD (Coords). Novos desafios à bioética. Porto Editora: Portugal.2001. BARROSO, Luís Roberto. Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas em com célulastronco: dois temas a cerca da vida e da dignidade na Constituição. In: Leituras Complementares de Constitucional – Direitos Fundamentais. Organizador: Marcelo Novelino. 2ª Ed. Revista e amplidada. Salvador: Editora JusPodiv, 2007. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: JZE, 1998. BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James. Princípios da ética médica. São Paulo: Loyola. 2002. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução: Sérgio Milliet. – 2ª Ed. – Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2009. BELLINO, Francesco. Fundamentos da Bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais; tradução: Nelson Souza Canabarro – Bauru, SP: EDUSC, 1997 BERNARD, Jean. A Bioética. Editora Ática. São Paulo. 1998 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DINIZ, Débora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por animália fetal. Brasília: Letras Livres, 2003 ENGELHARDT JR., H. TRISTAM. Fundamentos da Bioética. Edições Loyola: São Paulo. 1998. HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução: Rosaura Eichenberg.— São Paulo: Companhia das Letras, 2009. PESSINI, Léo & BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas Atuais de Bioética. São Paulo: Edições Loyola 2002. REIS, Sérgio e AGUIAR, Mônica. Bioética no Cinema. Edições Ciência Jurídica. Belo Horizonte. 2009. SEGRE, Marco; COHEN, Claudio. Bioética. 3ª ed. Revisada e Ampliada. São Paulo: EDUSP, 2002.

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SINGER, Peter. Ética Prática. 3ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2002. – (Coleção biblioteca universal) VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética – Temas atuais e seus aspectos jurídicos. Brasília: Editora Consulex, 2006.

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INAPLICABILIDADE DA TRANSAÇÃO PENAL À LEI N° 11.340/2006 Joyce Almeida de Andrade60 Ana Clara Montenegro Fonseca61 SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Simbolismo da Lei n° 11.340/2006. 3 Inconstitucionalidade Material da Vedação da transação penal à Lei. 4 Transação Penal e Suspensão Condicional do Processo como institutos processuais despenalizadores. 5 Breve análise critica. 6 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO Este trabalho analisará a importância do instrumento processual penal, qual seja a Transação Penal, previsto no artigo 76 na Lei n° 9.099/1995, abordando especificamente a sua aplicabilidade à Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. A lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, acima mencionada, trouxe em seu arcabouço a possibilidade de aplicação da transação penal, instituto processual penal, em casos de cometimento de crimes de menor potencial ofensivo. Neste caso, menor potencial ofensivo, são as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. A problemática deste tema consiste neste viés, pois hoje embora tenha o Supremo Tribunal Federal julgado no HC 106.212 / MS, pela constitucionalidade do artigo 41 da Lei n°11.340/2006, que proíbe a transação penal nos casos de violência doméstica contra a mulher, ainda existem proposituras, por exemplo, de suspensão condicional do processo pelo Ministério Público e nenhuma objeção do magistrado. Logo, mesmo diante da vedação legal, ainda assim é possível aplicar a transação penal ou qualquer outro instituto despenalizador, tendo em vista que há casos diferenciados que não há a necessidade de um processo crime. Abordaremos também o direito penal simbólico a desnecessidade da positivação simbólica da Lei 11.340/2006 como meio garantidor da tutela perante os conflitos da sociedade contemporânea e a banalização que tal lei tem sofrido vez que tem sido deixada de lado as Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Advogada, Mestra em Ciências Penais pela Universidade Federal de Pernambuco, UFPE (2009), Especialista em Direito Público e Direito Privado pela Universidade Gama Filho (UGF) (2007), Bacharela em Direito pelo Instituto Paraibano de Educacão, UNIPE (2006). Atualmente, é professora assistente na UFPB, lecionando nas disciplinas de Direito Penal I e IV. Foi professora assistente da UFRN e exerceu função de Vice-Coordenação do Curso de Direito do CERES (2010-2011). Lecionou na Pós Graduação em Perícia Criminal da Faculdade Integrada do Recife - FIR; na Pós-Graduação em Ciências Penais Escola Superior da Advocacia de Pernambuco (ESA) em convênio com a Faculdade Joaquim Nabuco, atuando na área de ensino e pesquisa jurídica, em Relações Internacionais (Fundamentos do Direito), Ciências Penais (Dogmática Penal, Criminologia, Segurança Pública e Política Criminal) e Metodologia do Estudo Científico; e na Faculdade AESO Barros Melo e na Faculdade Damas, atuando nas mesmas áreas de conhecimento supra. 155 60 61


análises dos casos em concreto. Para tanto, discutiremos as razões da possível inconstitucionalidade material da vedação à transação Penal por violação ao principio da Presunção de inocência. Apontaremos os institutos processuais penais da Transação Penal e Suspensão Condicional do processo como meios de realização da Justiça Restaurativa, delineando os aspectos homologatórios da sentença que as aplica. 2 O SIMBOLISMO DA LEI N° 11.340/2006 Os conflitos que permeiam a nossa sociedade, tem intensificado o anseio da necessidade de positivar normativamente previsões sancionatórias em combate as mais variadas formas de violência. Pois bem, a midialização que aflora o ímpeto social, faz com que o legislador seja pressionado a criação de uma lei que ―tutele‖ determinada situação. Mas não compreendamos que tais leis penais espaças foram criadas como forma de tutelar determinado bem jurídico, mas sim com intuito de responder ao clamor social, tendo efeito mais simbólico, buscando a ―autoafirmación de grupos‖. (ROXIN, 2008, p. 59, grifo nosso). Nesta senda, por exemplo, a criação de crimes hediondos, que fora criada como meio de mostrar a sociedade que os poderes estavam atentos aos seis anseios, trabalhando de uma forma a confortar, desamedrontar o indivíduo, mostrando que o Estado tem a tutela destes bens jurídicos passiveis de violação e que estamos ―seguros‖ quando a sua efetividade. Ocorre o mesmo com a Lei n° 11.340/2006. A partir do momento que a Maria da Penha, agredida, procura a tutela estatal e esta sendo altamente negligente para com o que ocorrera, frente as mais variadas formas de violência vivida, ela procura os organismos internacionais, sabedora de que o Brasil era signatário de convenções interamericanas onde se obrigava a resguardar os direitos e garantias inerentes ao individuo. Diante disto, o Brasil foi responsabilizado internacionalmente pela negligencia em tratar do caso em tela. Observemos que, não estamos partindo de estudos criminológicos nacionais acerca deste tipo de violência, que é notório, mas sim de um caso especifico que ganhou repercussão nacional estimulando o ímpeto da sociedade aguçada pela mídia. A partir deste momento, onde o legislador viu-se obrigado a demonstrar que possuía o controle, fora proposta a criação da lei denominada hoje como Maria da Penha, como já discutimos preliminarmente. Segundo essa concepção o professor Luiz Flávio Gomes (2007, n.p.) aponta: 156


[...] o discurso midiático é atemorizador, porque ele não só apresenta como espetaculariza e dramatiza a violência. Não existe imagem neutra. Tudo que ela apresenta tem que chocar, tem que gerar impacto, vibração, emoção. Toda informação tem seu aspecto emocional: nisso é que reside a dramatização da violência. Não se trata de uma mera narração, isenta.

É notório simbolismo nesta lei, vez que a sua criação derivou de um clamor social onde se questionava a necessidade de criação de uma lei penal especifica que protegesse o bem jurídico inerentes às mulheres. Isso ocorre, e agora parto de uma concepção pessoal, a contemporaneidade trouxe, para os seus, uma legitima impressão que as situações apenas são resolvidas através de uma lei que as preveja e que sem esta há incontroversa impunidade. Ao desenrolar dos conflitos, temos tendido a tentar solucioná-los através de sanções cada vez mais penosas, sem nos preocupar com as garantias constitucionais onde aponta em uma delas, o caráter fragmentário do direito penal em tutelar tais litígios. É inconveniente pensar que tudo que fira um determinado bem jurídico é passível da tutela penal, vez que é basilar a analise dos casos concretos para que não sejam negadas tais garantias. A função simbólica deve ser afastada, pois, em curto prazo, cumpre funções educativas e promocionais dos programas de governo, tarefa que não pode ser atribuída ao Direito Penal. Além disso, em longo prazo resulta na perda de credibilidade do ordenamento jurídico, bloqueando as suas funções instrumentais. (MASSAN, 2011, p. 11).

Conforme este entendimento, temos a derivação de um clamor social midiaticamente construído , vez que os meios de comunicação , por assim dizer, são formadores de opinião tendo um caráter muito mais manipulador que meramente de veicular informações. Essa formação de opinião midializada em sua maioria gera sentimento de medo e revolta o que impulsiona o legislador a manifestar-se através de leis penais criadas para todo tipo de gosto, o que produz uma sensação de segurança para o administrado, porém seu teor é meramente. Contudo nas palavras de Ney Moura Teles (2004, 46): "[...] querer combater a criminalidade com o Direito Penal é querer eliminar a infecção com analgésico". O Direito Penal simbólico - ou de emergência – parte do pressuposto de uma sociedade totalmente emergencialista, onde se vive num estado de crise, no nosso caso, um estado de violência recorrente e abertamente praticada sem uma atuação efetiva e conscientizadora por parte do Estado. Segundo Winfried Hassemer (1993, p. 86, o legislador sabe que a política criminal moderna está falida e que ―os instrumentos utilizados não são aptos para lutar efetiva e eficientemente contra a criminalidade real‖, e mesmo sabedor que a nossa política criminal 157


encontra-se em um estado inoperantemente ineficaz demonstra estar atento e assume uma postura meramente simbólica, a fim de dar uma resposta imediata aos seus. É sabido por nós que a violência doméstica e familiar contra a mulher é uma realidade arraigada em nosso meio há tempos. A mulher, digo em termos de gênero, sempre fora considerada , segundo o jargão , o ―sexo frágil‖, ou simplesmente a parte mais vulnerável da relação social e familiar. Se partíssemos de uma análise remota, obviamente encontraríamos momentos históricos em que a mulher era apontada como posse do patriarca, na concepção do homem em sendo o varão do lar. Nestes tempos, e até muito recentemente as mulheres eram impedidas de se expressarem como bem entendessem, de trabalharem, de votarem e até mesmo de estudarem por apenas ser mulher. Para termos uma ideia, apenas em 3 de maio de 1933,temos os primeiros registros da mulher brasileira podendo votar e ser votada, vez que a constituição regida pela época não explicitava o direito de votar deste gênero, então apenas com o código eleitoral de 1932, que fora previsto no art. 2° que ―É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código‖ (IBCCRIM, 1999, n.p.). A Lei Maria da Penha, muito embora tenha surgido com o intuito simbólico de proteção às mulheres vitimas de violência, traz em seu corpo um tratamento jurídico-penal mais coercitivo, onde aponta atos que o juiz deverá seguir inquestionavelmente. Porém, mesmo diante deste quadro fático, não compreendo como uma lei penal mais severa pode assegurar a resolução de um conflito. Na verdade, a maioria dos casos, porém não todos, partem da imposição da autoridade masculina, numa tentativa de assegurar o domínio, resquícios de nossa historia sociocultural patriarcal. Deste modo, uma lei mais severa não educa nem mesmo conscientiza supostos agressores quanto ao conflito que lhes envolve. Seria o caso de investimento maior em saúde pública e políticas assistenciais, para que tais agressores possam ser assistidos, tratados e consequentemente conscientizados, vez que o cárcere não tem o caráter pedagógico, tendo o condão apenas de devolver a sociedade um indivíduo ainda mais conflituoso. Ocorre é que desde a criação da lei não temos dados significativos que demonstrem uma redução aceitável dos casos de violência contra a mulher. É como já discutimos, esta lei fora criada apenas com o ímpeto de acalmar os ânimos sociais e de certa forma, limpar a imagem do Brasil internacionalmente.

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Como discutimos no tópico da vedação da aplicação da transação penal ou da suspensão condicional do processo nos casos de violência doméstica, institutos processuais inovados pela lei dos juizados especiais criminais e cíveis, temos que o texto da Lei n° 11.340/06 veda terminantemente a possibilidade de aplicação destes institutos sem ao menos ponderar a necessidade de analise caso a caso, o que implica em mais conflitos familiares e deslindes de litígios desnecessários. Embora a nossa legislação tenha tornado-se brutalmente criminalizadora, sem um mínimo de intuito de resolução dos conflitos, mas apenas o de punir, trouxe a nossa sociedade a falsa impressão que tal lei é a solução para a violência que vivemos dia a dia. Na verdade nada tem impedido que a violência no âmbito familiar, ou não, cresça, porque a política criminal de punir com o encarceramento não conscientiza nem mesmo promove uma reflexão sobre os problemas basilares ocidentais. Isso apenas demonstra o que desde o inicio se discute, que a prisão, ou a política criminal penalizadora está definitivamente falida. Uma vez que a mencionada lei trás a previsão de medidas protetivas, que ao meu ver em alguns casos são totalmente descabidas e precipitadas , deixa normas em aberto, eleva ao máximo a pena prevista para o crime de lesão, elastece qualificadoras e agravantes, estamos tapando o sol com a peneira, pois poderá até servir momentaneamente porém nunca solucionara definitivamente. A aplicação irrestrita das medidas cautelares protetivas prevista na Lei Maria da penha, desencadeiam uma serie de consequências no convivo intrafamiliar, desdobrando-se o que era uma conflito, em outros mais, dependendo da analise caso a caso, por isso defende-se a possibilidade de aplicação dos institutos processuais penais em casos passíveis do estudo psicossocial e jurídico apontando meios de promoção da dignidade da pessoa humana. Se houvesse efetiva conscientização sobre a necessidade de proteção e tutela de bens jurídicos independentemente de lei especial que a regulamente, não seria necessária a criação de leis especificas ou mais severas, vez que a própria Constituição Federal aponta diretrizes e a maior delas, além do principio da dignidade da pessoa humana, é a da isonomia, visto que: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. (BRASIL, 1988, n.p.).

Acredita-se assim, que este não seria o caso de desigualarmos as posições sociais que ambos comportam, mas sim dar maior efetividade as normativas de nossa Constituição Federal, 159


para que possa ser prestada uma tutela jurisdicional plena para ambos os gêneros, conscientizando a sociedade da necessidade de se viver harmonicamente sem imposições ideológicas ou de gênero. Desta feita, a criação de normas e mais normas dia após dia, não resolvem os conflitos, não mediam relações, não proporcionam uma reflexão pedagógica sobre o que se pratica, apenas atua de modo coercitivo, punindo severamente. A falsa sensação de segurança passada pelas leis aos administrados, não passam de meros remendos que sempre desencadeiam em situações muito mais delicadas que a primeira. Melhor seriam que os poderes trabalhassem de forma uníssona buscando a realização da efetividade assistencial arguida pela nossa Carta Magna. 3 INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA VEDAÇÃO À TRANSAÇÃO PENAL À LEI A lei Maria da Penha é uma lei materialmente penal, ela trás requisitos a serem seguidos, conceitos e vedações expressas quanto como deverá ocorrer o seu cumprimento nos casos práticos, como bem observou o autor Pedro Rui da Fontoura Porto (2007, p. 23, grifo nosso): Como já se salientou alhures, a Lei 11.340/06 não é exclusivamente uma lei penal; em seu bojo também se podem contemplar disposições administrativas, processuais, princípios gerais; é forçoso convir, entretanto, tratar-se de uma lei predominantemente penal, restando indiscutível que seu grande impacto se dará nesta esfera jurisdicional. Além disso, vale repetir, cuida-se, notoriamente, de norma que incrementa o poder punitivo do Estado e, conseqüentemente, diminui o status libertatis do indivíduo, gerando protestos de setores minimalistas e/ou garantistas que a apontaram como uma lei alinhada ao movimento de ‗Lei e Ordem.

Uma das vedações, como já bem comentamos é a de propositura dos institutos processuais penais trazidos pela Lei n° 9.099/95, quais sejam a transação penal e a suspensão condicional do processo, porém entendo ser plenamente possível propor ambos institutos a depender da situação. O que é inaceitável é a decretação de prisão do suposto agressor por delito que nem mesmo pode-se comprovar que ocorreu, e mais absurdo ainda é estar preso, cumprindo antecipadamente uma medida restritiva de liberdade sem ao menos ser amparado pelo principio constitucional, penal e processual da presunção de inocência, onde se aponta que apenas após sentença condenatória transitada em julgado é que o indivíduo pode ser considerado culpado pelos fatos que lhe atribuem. 160


Para o jurista Luigi Ferrajoli (2002, p. 443): A história da detenção cautelar do imputado no transcurso do processo está estritamente conectado com a do princípio da presunção de inocência: na medida e nos limites em que a primeira foi sendo cada vez mais admitida e praticada, seguiram-se de perto os desenvolvimentos teóricos e normativos do segundo.

Ora, a prisão é a ultima rátio, a ultima saída, então por que a exceção tem passado a ser regra nos casos de violência doméstica? Existem casos e casos e cada um deles deve ser analisado separadamente. A violência doméstica comprovadamente demonstrada nos autos através da instrução processual, alimentada pelo inquérito que coleta informações ou através estudo psicossocial, diligencias policiais ou qualquer outro meio, até testemunhal que seja, é plausível a aplicação da prisão cautelar, até mesmo para resguardar a instrução processual e a integridade física, moral, psicológica da agredida. Compreendamos que não discutimos como ilegítima a prisão cautelar do suposto agressor, cabendo aqui relembrar que foi um ato de total descaso a situação que a Maria da Penha foi submetida estando a mercê do agressor sem direito de proteção ou defesa. O que se discute é que antes que seja decretada prisão sejam analisados previamente os fatos já constituídos para que não exista um esvaecimento das garantias penais e processuais. Como já apontamos a Lei Maria da Penha trás alguns métodos que o Juiz e autoridade policial devem seguir quando deparados com uma suposta violência doméstica contra a mulher, e uma delas é proceder com as medidas protetivas de urgência, prevista a partir do art. 18 desta lei. Porém, a partir do art. 20, já nos deparamos com o procedimento de encarceramento do suposto agressor ―[...] em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.‖ (BRASIL, 2006, n.p.). Observe que, pelo teor do dispositivo, compreende-se que até mesmo no ato da ocorrência policia o suposto agressor poderá ser conduzido e autuado, devendo permanecer recolhido até a apreciação do juízo competente. Tomemos por hipotética a situação em que dois irmãos, João e Maria, discutem ferrenhamente em sua residência, pois a casa teria sido deixada por herança dos pais. Maria em meio aos berros parte para agredir seu irmão que para se defender a empurra, momento este que ela se desequilibre e cai ao solo. Em prantos Maria chama a guarnição próxima dizendo que foi agredida pelo irmão, a policia no ato verifica lesões em Maria devido a queda, conduz coercitivamente João à delegacia da Mulher, onde lá , pela autoridade é lhe dada voz de prisão. A 161


liberdade de João foi restringida frente a uma meia verdade contada por sua irmã. De pronto ele já foi pré-julgado como culpado pelo que aconteceu independentemente do que ele diga em sua defesa. Diante do fato, seria justo encarcerar o individuo vez que não possui maus antecedentes ou reincidência apenas porque houve um desentendimento com a irmã? Não, suponho. Então, antes de aplicar uma pena restritiva de liberdade ou até mesmo de direitos, não seria interessante aplicar um instituto processual que ao mesmo tempo que lhe impõe obrigações lhe concede benefícios a fim de evitar novos conflitos? Pois bem. Segundo Eugênio Raill Zaffaroni (2011, p. 19): Faz-se, no Brasil dos tempos presentes, o discurso do Direito Penal de intervenção mínima, mas não há nenhuma correspondência entre esse discurso e a realidade legislativa. Ao invés da renúncia formal ao controle penal para a solução de alguns conflitos sociais ou da adoção de um processo mitigador de penas, com a criação de alternativas à pena privativa de liberdade, ou mesmo da busca, no campo processual, de expedientes idôneos a sustar o processo de forma a equacionar o conflito de maneira não punitiva, parte-se para um destemperado processo de criminalização no qual a primeira e única resposta estatal, em face do surgimento de um conflito social, é o emprego da via penal. Descriminalização, despenalização e diversificação são conceitos fora da moda, em desuso. A palavra de ordem, agora, é criminalizar, ainda que a feição punitiva tenha uma finalidade puramente simbólica.

A legislação pátria proíbe que se aplique a suspensão processual ou a transação, nessas situações, porém se a situação fosse entre irmãos do gênero masculino, o promotor estaria livre para a propositura de um dos institutos, onde o máximo que ocorreria seria a paralisação do processo por dois ou três anos, ou a conversão em multa em favor do agredido a depender do caso. Quando falamos em verdade real, no processo penal, sempre nos remetemos ao principio constitucional processual penal que preza pela busca da verdade dos fatos na instrução criminal, aquela verdade produzida nos autos. Como bem disse Foucault (1998 apud MENDES, 2010, p. 321), ―[...] a verdade processual é uma verdade construída, de maneira muito precária‖, afinal, como apontar como sendo verdade o relato de alguém sem que coexistam meios probatórios de o que se fala realmente é verdade? Partindo deste ponto, torna-se completamente dúbio o entendimento que a parte A fala a verdade e a parte B não, por assim considerar que ambos estão garantidos pelo direito do contraditório e ampla defesa. No caso da violência doméstica há de considerar sim o relato da suposta agredida por não existirem outros elementos possíveis de provar o que se alega, claro, que posterior as alegações uma serie de medidas são tomadas pelo juízo a fim de instruir o convencimento do juiz. 162


Contudo, podemos falar com propriedade que quando as supostas agressões não ocorrem fisicamente e a agredida relatar tê-las sofrido, comprová-las torna-se atividade praticamente impossível. Há então uma necessidade latente das comarcas possuírem um aparato assistencial, um corpo psicossocial que atue durante o processo onde se possa analisar caso a caso, um estudo aprofundado sobre os conflitos possivelmente existentes e o comportamento das partes perante este. Mas é uma realidade muitíssimo distante do que temos hoje em dia, visto que as demandas nas varas mistas ou de violência doméstica são tamanhas que a prioridade tende a ser a de baixar a maior quantidade de processos ativos, bater metas estabelecidas pelos tribunais ou Conselho Nacional de Justiça e assim, como se por um passo de mágica, a lide fosse definitivamente resolvida através de uma sentença condenatória. Tomando esses argumentos como base, entendo ser viável a aplicação da transação ou suspensão processual em certos casos ditos de ―violência doméstica‖ a fim de proporcionar a buscar pela verdade real, não condenando objetivamente o suposto agressor ou limitando suas garantias fundamentais. Depois de tudo isso que relatamos, onde que fica a busca pela verdade real ou a tutela pela presunção de inocência do suposto acusado (a)? Essa difícil indagação está claramente descrita na chamada Teoria dos Jogos, onde o juiz e professor Alexandra Morais Rosa, expõe em sua obra ―A Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal‖, qual tende a aplicá-la ao processo penal de forma análoga para melhor compreensão do que apontamos ser o ―dilema do prisioneiro‖. 4 TRANSAÇÃO PENAL E SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO COMO INSITUTOS PROCESSUAIS DESPENALIZADORES A transação penal, assim como os princípios norteadores processuais penais, surgiu como um meio de garantia ao processado. É um instituto processual penal, inovado pela Lei Juizados Especiais Criminais e Cíveis, n° 9.099/1995. Tal instituto é um benefício a ser proposto antes do oferecimento da denuncia, ou seja, antes da instauração da ação penal, sendo aplicável a todas as infrações de menor potencial ofensivo, conforme preconiza o artigo 61 da lei supracitada, e os crimes com pena máxima não superiores a dois anos. Este instituto foi inicialmente previsto na Constituição Federal de 1988, no art. 98, caput e inciso I, que prevê a competência da União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados 163


de criarem os juizados especiais, competentes para julgar infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau. Crimes de menor potencial ofensivo, são as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. Para fins de sanar possíveis dúvidas, são classificadas como contravenções penais, as infrações, sim as infrações, que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente, artigo 1° do CP. Esse benefício é um acordo firmado entre o representante do Ministério Público que atua no caso, para com o acusado, para tanto é necessário o preenchimento de alguns requisitos, quais sejam: não ter sido condenado por pena privativa de liberdade, por cometimento de crime; não ter sido beneficiário da transação penal nos últimos cinco anos e que as circunstâncias que tenham levado à propositura da transação sejam leves. Cumprido tais requisitos, será concedida uma ―pena‖ mais branda. Logo, transação penal tem como premissa ―[...] evitar o desgaste do processo criminal, mitigando a obrigatoriedade da ação penal - mormente no contexto da ação pública incondicionada - sem a discussão da culpa‖ (NUCCI, 2009, p. 776). Bitencourt, brilhantemente resume (1997, p. 116), afirmando que o objetivo central é ―[...] evitar o encarceramento com seus consequentes e nefastos efeitos criminógenos‖. Tal instituto tem o caráter despenalizador e não descriminalizador, uma vez que haverá sentença condenatória, contudo mais branda, caso contrário haveria sentença absolutória, extinguindo a punibilidade do agressor. ―Já que o Direito Penal não teve a ousadia de descriminalizar, o Direito Processual Penal, por vias indiretas, para essas infrações de pequena monta, através de determinados institutos, visa à despenalização‖¹. (GRINOVER et al., 2005, p. 48). Recentemente tivemos um entendimento na Corte Suprema de nosso país, no Recurso Extraordinário 795.567 Paraná, que reafirmou que a transação penal não tem efeitos típicos de sentença condenatória nem mesmo absolutória, esta seria apenas um ato sentencial de natureza declaratória, ou seja, uma homologação do acordo firmado entre ministério público e agente beneficiário, fundado assim em uma consensualidade, digamos, tratada entre as partes, o que não gera uma condenação. De acordo com o relator deste RE, Teori Zavaski, e o entendimento quase que pacificado na Corte, compreende-se que a dispensa da persecução penal nos crimes de menor potencial 164


ofensivo, com o aceite do agente beneficiário, relativiza bastante o principio da obrigatoriedade da instauração da ação penal, permitindo mais garantias alternativas ao agente. É peculiar que na proposta de transação penal, seja prevista no instrumento todas as consequências geradas. Assim, entende o STF que a sentença advinda desse acordo tem apenas efeito acessório, sendo meramente homologatória do acordo entre ministério público e parte, previsto ao final do § 4º do art. 76 da Lei 9.099/95, segundo o qual ela será ―[...] registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos‖ (BRASIL. 1995, n.p.) como apontamos anteriormente. Detalhe este que difere a contravenção e crime de menor potencial ofensivo, de crime. Nesse sentido, explicita o MM. Relator: Realmente, a sanção imposta com o acolhimento da transação não decorre de qualquer juízo estatal a respeito da culpabilidade do investigado, já que é estabelecida antes mesmo do oferecimento de qualquer denúncia, da produção de qualquer prova e da prolação de qualquer veredicto. Trata-se de ato judicial homologatório, expedido de modo sumário em obséquio a um interesse público na célere resolução de conflitos sociais de diminuta lesividade para os bens jurídicos tutelados pelo estatuto penal. (BRASIL, 2015, p. 4).

A homologação da transação prescinde de instauração de um processo formal de apuração de responsabilidade criminal, ademais, a quebra das condições estabelecidas no instrumento de acordo, permite que o ministério público requisite a instauração do inquérito e até mesmo apresente denuncia contra o beneficiário. O STF já possui farta jurisprudência, inclusive com situações de repercussão geral, como o RE 607.072, da relatoria do Min. Marco Aurélio. Com esse voto, fica clara a intenção da Suprema Corte que, de fato, a transação, assim como a suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da lei n° 9.099/95, não possui viés condenatório. O que se preza é a natureza imperativa da ordem pública dos preceitos constitucionais, evitando a penalização a todo custo, promovendo o caráter despenalizador do direito penal e processual penal. Assim, o termo de homologação do acordo não tem peso de sentença Condenatória, valorizando o instituto da ação penal regida pela lei dos juizados especiais, denotando ainda mais a compreensão de Estado Democrático de Direito, previsto como principio fundamental do nosso ordenamento constitucional, relativizando a privação de liberdade sem a prévia instauração do devido processo legal. Contrapondo o entendimento do então relator, o Ministro Luiz Fux, explicita nesse mesmo RE, entender ser sim sentença condenatória, imprópria ou impura, mas sentença condenatória, posicionamento este que compartilho com afinco, pois, pensemos: o ministério 165


público não oferece a denúncia (nos casos de ação penal incondicionada) por entender ser o caso são simplório que não merece tal atenção, contudo deixa claro que compreende ser o agente promovedor da contravenção ou do crime de menor potencial. É pura lógica. Bem, não compreendendo o MP que o agente ―tem culpa no cartório‖ seria a ação um indiferente penal, não haveria nem mesmo citação, claro. Porém, a partir do momento que o órgão ministerial vislumbra ligeira atuação que contribuiu para o fato , chama a parte para a propositura da transação, dando-lhe a opção de aceitar e cumprir determinas restrições ou não aceitar e assim começar a persecução penal, com a instauração do inquérito e consequentemente o oferecimento da denuncia, partindo assim para a defesa preliminar e produção de provas. Nesse jogo de pesos e contrapesos, é bem provável que o agente aceite o proposto, pois lhe parece bem mais vantajoso ficar restrito a algumas determinações firmadas no acordo quê estar passível de quase certa sentença condenatória proferida pelo juízo. Ademais, é sabida que o cumprimento de transação não gera nem mesmo antecedentes criminais, o que intensifica o aceite do agente beneficiário. Em suma, e com propriedade, define Sérgio Turra Sobrane (2001, p. 75) a transação penal como sendo: [...] o ato jurídico através do qual o Ministério Público e o autor do fato, atendidos os requisitos legais, e na presença do magistrado, acordam em concessões recíprocas para prevenir ou extinguir o conflito instaurado pela prática do fato típico, mediante o cumprimento de uma pena consensualmente ajustada.

Diante disso é possível compreender que a transação e por consequência a sentença homologatória desta tem sim um caráter condenatório, mais brando, porém condenatório. A partir do momento que o magistrado homologa tal acordo entra representante do órgão ministerial e agente, está instrumentalizando obrigações e restrições ao beneficiário. E considerando a sua aplicabilidade na Lei n° 11.340/2006, podemos afirmar que seria uma forma muito mais eficaz de educar o suposto agressor, promovendo-lhe uma reflexão impositiva, porém, garantindo seus direitos e garantias constitucionais. Desta forma, estaríamos resguardando muitas famílias, relações fraternais, evitando futuros conflitos, chamando a nossa atenção que aquelas famílias envolvidas são à base de nosso seio social, o trato para com os seus, a forma que serão passados os ensinamentos se perpetuarão, sendo assim uma forma de conscientizar as gerações futuras. 5 BREVE ANÁLISE CRITICA 166


Cabe destacar que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplica – IPEA, recentemente e mais especificamente em 04 de março de 2015, divulgou os resultados da realização de uma pesquisa que teve como norte a avaliação da efetividade da Lei 11.340/2006. Vejamos: Não obstante a importância da LMP, há uma grande lacuna no que se refere a uma avaliação quantitativa sobre os seus efeitos para coibir a violência de gênero no país. Única exceção foi o trabalho de Garcia et al. (2013), que, ao analisarem a evolução temporal dos homicídios de mulheres no Brasil e nas macrorregiões, antes e após a promulgação da lei, constataram que ―não houve impacto, ou seja, não houve redução das taxas anuais de mortalidade, comparando-se os períodos antes e depois da vigência da Lei. (IPEA, 2015, n.p.).

Na verdade, a pesquisa fundou-se mais na busca por dados sobre a violência domestica contra a mulher de cunho moral, aquelas que, estatisticamente, apontam que a violência foi tão gravosa que resultou na morte da agredida. Como vimos no trecho acima, não temos dados suficientemente consubstanciados que comprovem um quadro nacional de mortes de mulheres resultantes de agressão, na verdade, é um levantamento árduo, importando para nós, neste momento, saber se a Lei n° 11.340/2006 realmente tem surtido efeitos no campo prático. Nota-se que embora a pesquisa acima mencionada tente suprir a ausência de levantamentos estatísticos quanto à efetividade da Lei Maria da Penha, temos uma permanente lacuna visto que esta pesquisa aborda , em suma, a aplicabilidade da Lei nos casos de violência que resultem em morte e não agrega dados quanto aos casos de supostas violência psicológicas, morais ou de pequeno potencial ofensivo, como foi apontado nos casos concretos abordados no tópico anterior. Percebe-se a real necessidade das comarcas possuírem um aparato assistencial, um corpo psicossocial que atue durante o processo onde se possa analisar caso a caso, um estudo aprofundado sobre os conflitos possivelmente existentes e o comportamento das partes perante este. Como já apontamos anteriormente, nos caso da violência doméstica há de considerar sim o relato da suposta agredida por não existirem outros elementos possíveis de provar o que se alega. Contudo, podemos falar com propriedade que quando as supostas agressões não ocorrem fisicamente e a agredida relatar tê-las sofrido, comprová-las torna-se atividade praticamente impossível. Hoje se tem aplicado de forma indiscriminada as sanções previstas pela lei Maria da Penha, sem ao menos analisar minuciosamente o caso, desde o seu atendimento à delegacia de assistência a mulher, até a fase judicial, não de forma generalizada, mas em sua maioria. 167


A grande demanda das delegacias e das varas especializadas em violência doméstica contra a mulher, em quase cem por cento dos casos são advindos de conflitos estritamente familiares. Nos casos relatados, mesmo diante da impossibilidade de aplicar institutos processuais penais, a partir de uma analise minuciosa verificou-se que seria mais pedagógico propor a suspensão condicional do processo, institutos processuais inovados pela lei dos juizados especiais criminais e cíveis, ponderando a necessidade de analise caso a caso, o que implica em mais conflitos familiares e deslindes de litígios desnecessários. 6 CONCLUSÃO A edição da Lei n° 11.340/2006, fomentou a discussão sobre a violência doméstica, embora, à época, não existiam no Brasil estudos criminológicos que apontassem, com precisão, a real necessidade de uma nova lei penal para a tutela da integridade física da mulher. A violência baseada no gênero é uma realidade, e a criação desta lei se deu pelos incentivos internacionais sobre a proteção do gênero ou movimentos sociais da época. O que podemos extrair é que foi uma reação em cadeia de fatos que propiciaram na criação da lei, que tem um caráter nobre, porém hoje tem sido aplicada de forma banalizada sem uma analise caso a caso. Há em nossos dias, uma necessidade constante de ter sempre leis como formas legítimas de tutela de bens jurídicos, numa tentativa de adequar e harmonizar as relações sociais, frente as suas complexidades. Há, de fato, uma necessidade de normatização de regras, regulando as relações do individuo em sociedade, delineando comportamentos, visto a gama de diversidades e complexidades inerentes ao ser humano, com o intuito de assegurar a manutenção dos valores. Ocorre que nem sempre a edição de novas leis penais, onde trarão novos tipos e penalizações, será meio eficaz de garantir a estagnação ou de conscientização da prática da violência. Não há o que se discutir quanto à atuação preventiva ou repressiva desta lei, impondo aos indivíduos limites, mostrando que o Estado poderá restringir suas liberdades àqueles que transgredirem a normativa. O que tem acontecido é que com as demandas sociais, temos visto ser expandida, de forma desordenada, uma procura de formas de proteção e garantia especial para cada grupo, por uns, denominado como vulnerável.

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A verdade é que no momento em que se pede pela criação de Leis especificas para essas demandas, temos o alargamento, em sua maioria, das tipificações penais, onde as normas tornamse além de mais rígidas, tem um caráter penalizador e não de conscientização. Consideramos simbólica esta lei vez que a sua criação derivou de um clamor social onde se questionava a necessidade de criação de uma lei penal especifica que protegesse o bem jurídico inerentes às mulheres. A influência midiática sobre o caso Maria da Penha, foi o maior propulsor para que se disseminasse um sentimento de insegurança, causando uma impressão que as situações apenas são resolvidas através de uma lei que as preveja. Contudo, utilização de lei penal específica para tutela dos direito e garantias das de grupos, dentro de uma sociedade, é algo extremamente complexo e profundamente discutido, vez que na Própria CF/88, no art. 5º, aponta a tutela constitucional de tais garantias e deveres de modo isonômico, não diferenciando por raça, cor, sexo, gênero ou qualquer outra forma similar. Cumpre ressaltar, que a lei 11.340/2006, como já discutimos, trouxe uma vedação em seu art.41 quanto à aplicação de institutos processuais penais despenalizadores em relação à violência contra a mulher, tais como a transação penal e a suspensão condicional do processo, ambas previstas na lei n° 9.099/1995, que é a famosa Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Acreditamos que o afastamento integral da possibilidade de aplicação da Lei 9.099/1995 em alguns casos, considerados pela Lei n° 11.340/2006, de violência doméstica contra a mulher, fere materialmente a Constituição quando esta delega em seu art. 98, I aos Juizados o que consideramos de infração de menor potencial ofensivo. Hoje, um simples desentendimento verbal entre casais, irmãos ou entre pais e filhos, pode ser enquadrado como violência doméstica contra a mulher. No plano teórico parece-nos bastante absurdo, mas no plano prático é algo que acontece com extrema frequência, inviabilizando a resolução do conflito sem que ao menos se analise as particularidades que os envolve, sendo objetivos à aplicação desta lei penal. A partir disto, compreendemos que a vedação em absoluto da transação penal ou até mesmo da suspensão condicional do processo, não resolve nem conscientiza as partes, na verdade, instaura uma sensação falsa de segurança, uma vez que aplicar sanções cada vez mais gravosas não tem inibido que se cometam cada vez mais outros tipos de violência contra a mulher. Ocorre, é que hoje se tem aplicado de forma indiscriminada as sanções previstas pela lei Maria da Penha, sem ao menos analisar minuciosamente o caso, desde o seu atendimento à 169


delegacia de assistência a mulher, até a fase judicial. O abarrotamento das delegacias que atendem essa demanda e das varas que atuam na área de violência doméstica contra a mulher, em sua maioria, são de casos que são advindos de conflitos estritamente familiares é absurdamente claro. Diante desta análise, propõe-se que a transação e a suspensão condicional do processo, como institutos a serem aplicáveis às infrações de menor potencial ofensivo, sejam também aplicadas em alguns casos de violência doméstica contra a mulher, como, por exemplo, aos tipos de violência previstos no art. 7°, incisos I, II e V da Lei n° 11.340/2006, a depender da gravidade. Assim, seriam reduzidas as demandas, tendo em vista ser muito mais eficaz o caráter pedagógico deste instrumento despenalizador que encarcerar.

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O IMAGINÁRIO MODERNO EM RELAÇÃO A MULHER BRASILEIRA: NARRATIVAS VISUAIS DE DI CAVALCANTI E AS RELAÇÕES INTERSECCIONAIS DE PRECONCEITOS Isis Dinara Francelino de Moura62 SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Modernidade e modernismo no Brasil. 3 A representação da mulher na narrativa visual de Di Cavalcanti. 4 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO O preconceito de gênero, etnia e classe social em suas diversas naturezas estão presentes no Brasil desde a formação de seus primeiros pilares sociais. O entendimento de ―nação‖ foi se desenvolvendo ainda no Brasil colônia e, portanto, carregou traços da relação direta que possuia com a corte Portuguesa. Nesse sentido, podemos elecar diversas características que fazem do Brasil uma nação ocidental, mas nos interessa abordar no presente trabalho, as relações interseccionais de preconceitos entre gênero e etnia nos estudos de Kimberle Chenshaw associados especificamente no que se refere à produção artística de Di Cavalcanti e as representações pictóricas de mulheres negras. O presente trabalho foi dividido em duas etapas que acomodam o percurso social e artístico de Di Cavalcanti, com o objetivo de explorar profundamente sua narrativa visual e ampliar os modos de compreensão e interpretação de suas obras. A primeira etapa ―Modernidade e modernismo no Brasil‖ visa expor o contexto histórico que estavam inseridas a produção inicial de Di Cavalcanti, utilizando o embasamento conceitual de autores como Icleia Catanni e Carlos Zílio. Nsse primeiro momento, o trabalho visou desenvolver o panorâma do início do século XX no Brasil, em suas diversas esferas, expondo a sua tentativa de se desvincular dos ideais coloniais que ainda permaneciam alicerçados à sua antiga estrutura social, a busca por uma ―identidade nacional‖ se constituia, portanto, como a busca por uma autenticidade social. Nas artes visuais, houve uma série de manifestos que prometiam instaurar a arte moderna genuinamente brasileira. Nesse sentido, o sentimento que guiava a produção pictórica dos artistas brasileiros era encontrar uma identidade nacional dentro de uma diversidade cultural presente em um país com proporções continentais e formação múltipla. A análise do percurso visual de Di Cavalcanti foi desenvolvido na segunda etapa do trabalho ―A representação da mulher na narrativa visual de Di Cavalcanti‖. As análises das obras selecionadas se basearam na representação de mulheres, especificamente à mulheres negras, tema central da narrativa de Di Cavalcanti. Inicialmente foi realizada a descrição dos elementos visuais e, posteriormente, foram

Graduada em Artes Visuais pela UFRN (2013), atualmente é mestranda em Artes Visuais pela UFPB. Email:isismoura@gmail.com. 175 62


desenvolvidas as possíveis interpretações dos preconceitos interseccionais presentes nas obras, com base nos estudos de

Kimberle Chenshaw, objetivando evidenciar os preconceitos interseccionais de

preconceitos contra a mulher negra. Por fim, foram realizadas as conclusões finais que visam expor os desdobramentos conceituais presentes dentro da uma narrativa visual de Di Cavalcanti e a importância da temática no cenário contemporâneo. 2 MODERNIDADE E MODERNISMO NO BRASIL Marcar momentos históricos para delimitar o início de acontecimentos sociais se constitui em algo bastante complexo. Somente a partir de uma minuciosa análise histórica seria possível considerar as diversas influências que tal momento recebeu, correndo-se o risco, ainda, da suposta análise deixar escapar algo que aparentemente não significava nada, mas que poderia ter sido o estopim do início de tal ―momento histórico‖. A subjetividade, por possuir natureza ampla, nos propõe visões parciais sobre os mesmos discursos, o que dificultaria ainda mais a proposta de delimilitação. Diante dessa reflexão, parece ser trabalhoso definir a partir de qual data começou a chamada ―modernidade‖ no Brasil. Alguns críticos de arte brasileiros, como Carlos Zílio (1982), acreditam que a modernidade no Brasil pode ter se iniciado com o processo de industrialização que se desenvolveu por volta do final do século XIX e início do século XX, fato que foi alterando o antigo desenvolvimento do Brasil, outrora alicerçado em vestígios de uma economia provinciana, ligada a agricultura e a pecuária, privilegiando duas metrópoles: São Paulo e Rio de Janeiro. Tais cidades se constituiam como os principais pólos econômicos da nação, por onde as riquezas nacionais revezavam o poder e, não por acaso, viriam a ser dois estados em que a efervescência cultural do Brasil poderia ser vivenciada de forma plena. Nesse contexto pré-modernista, surge a semana de arte moderna, que ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo em 1922, sendo organizada por intelectuais e artistas. Dentre eles, os escritores: Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade e Oswaldo de Andrade; pelo escultor Victor Brecheret; e pela pintora Anita Malfatti, entre outros. No livro ―1922: a semana que não terminou‖, Marcos Augusto Gonçalves citou uma crítica de Cândido publicada na inauguração da semana de 1922, na coluna cultural do jornal Gazeta com o intuito de destacar a importância de São Paulo no universo artístico do Brasil: As artes florescem sempre nas terras que apresentam um apogeu de progresso e civilização. Quem primeiro manifestou a ideia moderna e brasileira de arquitetura? São Paulo com o estilo colonial. Quem manifestou o desejo de construir sobre novas bases a pintura? São Paulo com Anita Malfatti. Quem apresenta ao mundo o maior e moderno escultor da América do Sul? São Paulo com Brecheret (GONÇALVES: 2012: 33).

176


Na opinião do crítico, a outra metrópole do Brasil, o Rio de Janeiro, só teria representatividade no cenário artístico por meio da música, com o músico carioca Villa-Lobos.A maioria dos artistas do modernismo brasileiro já realizavam pinturas modernistas, a exemplo de Anitta Malfatti, que expôs os seus trabalhos realizados na Alemanha e nos EUA em sua primeira e polêmica exposição individual, em 1917, momento em que as influências do modernismo Europeu ficaram evidentes em seus trabalhos. Carlos Zílio (1976) em seu artigo ―A querela do Brasil‖ afirma que a arte brasileira possui características que a transportam para um patamar ocidental: Uma das principais questões das artes plásticas é a do rompimento de sua dependência a modelos externos. Mas, por sermos um ramo cultural ocidental, não podemos entender esta arte brasileira como algo puramente nosso. O que interessa é, sem esquecer o processo de desenvolvimento geral da arte, pensar uma concepção particular de expressão, vinculada à nossa realidade. Não a imaginamos como uma coisa acabada, e sim em constante formação e que vive ainda seus momentos embrionários.(ZÍLIO:1976:26).

Diante disso, se torna possível afirmar que a semana de arte moderna de 1922 foi considerada por muitos críticos de arte como o evento propulsor de mudanças dentro do cenário artístico brasileiro. O evento ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo e foi organizado por intelectuais e artistas em comemoração ao centenário da independência do Brasil, tornando-se a principal referência como ponto de partida da modernidade nas artes brasileira. Com ela, assumiu-se uma nova postura diante das concepções estéticas da arte, que, naturalmente, geraram reflexões acerca do tradicionalismo cultural influenciado pelos moldes europeus. A semana de 1922 se constituiu um marco para a história da arte no Brasil na medida em que,ao mesmo tempo que assentou a exaustão do cenário artístico de caráter essencialmente parnasiano, simbolista e acadêmico, formulou características de uma nova arte brasileira, uma arte contrária aos padrões até então vigorados. O sentimento de possuir uma arte genuinamente brasileira confirmava o sentimento de independência: Se a Semana de Arte Moderna foi o marco inicial da trajetória de institucionalização do modernismo como escola oficial do país, foi também um primeiro ponto de chegada para a maioria daqueles escritores e artistas. Eles viam-se, enfim, convidados a brilhar na grande ribalta de São Paulo, que promovia, não por acaso no simbólico ano de Centenário da independência, uma coveniente demostração pública de arrojo e cosmopolitismo. (GONÇALVES:2012:34).

Nesse contexto, a semana de arte moderna teve como principal desígnio a busca por uma arte genuinamente brasileira.A autenticidade dessa nova arte foi colocada em dúvida por alguns críticos de arte como, por exemplo, Monteiro Lobato, que enxergava os modernistas como meros copiadores de tendências externas adaptadas ao contexto brasileiro, dado que,nesse mesmo período, a Europa estava vivendo experiências vanguardistas que influenciaram os artistas brasileiros. Nesse sentido, Icléia Catanni (2004) afirma que: 177


Convém não perder de vista que, em vez de se constituir como processo próprio no Brasil, a modernidade da pintura foi ―apreendida‖, até mesmo ―domesticada‖no exterior,para ser em seguida ―implantada‖ no país. Em tal contexto, não surpreende que a ―modernidade‖, considerada algo global, tenha adquirido para os pintores brasileiros um caráter normativo. (CATANNI:2004:14)

Não obstante, pode-se dizer que a influência do movimento vanguardista Europeu no modernismo brasileiro se deu de uma forma equilibrada, apesar dos modernistas brasileiros utilizarem os elementos artísticos do movimento vanguarda, a chamada ―normatividade‖como exemplo o uso de cores chapadas, o modo expressivo do desenho que se desprendia da função estruturante da obra como uma característica ―global‖ da arte modernista. No entanto, os artistas tomaram outro tipo de postura no que concerne ao contexto brasileiro, não se tratando de uma adaptação,mas uma nova leitura que culminou em uma linguagem própria incorporada aos costumes culturais brasileiros, evidenciando a raiz da autenticidade que o modernismo brasileiro possui e consolidando a sua própria singularidade artística. Desde o começo, essas questões diziam respeito a um desejo de atualização que se explica, parecenos, pelo temor à uniformização, ela própria ligada a modernização. Desde o início,os artistas modernistas brasileiros se perguntaram como tornar-se modernos sem correr o risco de perder sua identidade pessoal e cultural. Pois a modernidade era um modelo exterior ao país, importado e implantado em seus próprios lugares. Os pintores compreenderam isso e tentaram, do mesmo modo que alguns escritores como Mário de Andrade, acentuar as diferenças, com a recuperação de aspectos típicos da realidade brasileira. ( CATANNI:2004:14) Dentro desse universo diversos artistas de vanguarda realizaram suas leituras sobre inúmeras temáticas, por meio de suas obras, suas leituras nos mostram recortes de olhares sobre uma sociedade moderna, que estava em processo de consolidação. Alguns artistas como, por exemplo, Di Cavalcanti que elaborou seus trabalhos por meio da representação figurativa estilizada dos ambientes e acontecimentos do Brasil moderno e a sua identidade cultural.

Por essa razão, seus trabalhos são considerados

importantes materiais de estudo e análise para a compreensão da formação cultural brasileira. No que tange a análise de suas narrativas visuais, tornou-se necessário avaliar quais foram os principais percursos adotados pelo artista na representação da mulher brasileira na sociedade e se a sua arte corre o risco de perpetuar, de modo sutil, preconceitos interseccionais contra as mulheres. Para tanto, foi desenvolvido uma série de análises de algumas obras realizadas entre as décadas de 1920 a 1960 que pode nos auxiliar a aclarar aspectos do imaginário moderno em relação a mulher brasileira. Devido a complexidade intersecionalidade de discriminação entre etnia e gênero, outros campos do conhecimento humano precisaram ser abordados nesta temática, como por exemplo, os estudos da professora Kimberle Crenshaw 63 que analisa as questões da intersecionalidade de discriminação em relação 63Kimberle

Williams Crenshaw (1959-) é uma figura proeminente na teoria racial e, atualmente, professora da UCLA School of Law e Columbia Law School, especializada em questões de raça e de gênero. Professora de Direito da Universidade da Califórnia e da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e uma importante pesquisadora e 178


aos direitos civis das minorias. Sua fala quanto aos entendimentos jurídicos em relação a discriminação de gênero e de raça é esclarecedora: A prática dos direitos humanos no campo do gênero, por exemplo, desenvolveu-se afirmando que ―os direitos humanos são direitos das mulheres‖ e que ―os direitos das mulheres são direitos humanos‖. Isso reflete o fato de que, tradicionalmente, o entendimento era que quando as mulheres vivenciavam situações de violação dos direitos humanos, semelhantes às vivenciadas por homens, elas podiam ser protegidas. (…) As mulheres devem ser protegidas quando são vítimas de discriminação racial, da mesma maneira que os homens, e devem ser protegidas quando sofrem discriminação de gênero/racial de maneiras diferentes. Da mesma forma, quando mulheres negras sofrem discriminação de gênero, iguais às sofridas pelas mulheres dominantes, devem ser protegidas, assim quando experimentam discriminações raciais que as brancas freqüentemente não experimentam. Esse é o desafio da intersecionalidade. (CRENSHAW:2001:09).

Nesse sentido, buscar combater qualquer tipo de preconceito, principalmente

nas relações

interseccionadas de discriminalização contra as minorias deve se constituir uma luta para todas as áreas do conhecimento humano, por isso, desenvolver um olhar crítico em relação as artes onde o preconceito se camufla dentro das obras e perpetua visões e esteriótipos preconceituosas. A problemática se centra na dificuldade de estabelecer as relações entre os preconceitos de raça e etnia. Nesse sentido Kimberle Crenshaw alerta para uma reflexão sobre as práticas de preconceito interseccionadas: Uma das perguntas que devemos fazer é a seguinte: o que há de errado com a prática tradicional dos direitos humanos? O que há de errado com a visão tradicional das discriminações racial e de gênero? Um dos problemas é que as visões de discriminação racial e de gênero partem do princípios que estamos falando de categorias diferentes de pessoas. (CRENSHAW:2001:09).

A dignidade da pessoa humana deve ser protegida, por isso qualquer violência contra

as

mulheres deve ser profundamente combatida. Os ―sutis‖ preconceitos devem ser vencidos em nossa sociedade, são aqueles preconceitos mascarados, que aos poucos são naturalizados pelo cotidiano e que podem gerar outras categorias de violência. O preconceito interseccional geralmente atinge um grupo específico que sofram discriminação multipla: As discriminações racial e de gênero procuram por mulheres na interseção e as compactame impactam diretamente. Alguns exemplos são obvios, as violências racial e etnica contra as mulheres são exemplos de discriminação contra grupos específicos. No ativista norte-americana nas áreas dos direitos civis, da teoria legal afro-americana e do feminismo. É também responsável pelo desenvolvimento teórico do conceito da interseção das desigualdades de raça e de gênero. O trabalho de Kimberle Crenshaw influenciou fortemente a elaboração da cláusula de igualdade da Constituição da África do Sul. Um dos seus artigos integra o Dossiê da III Conferencia Mundial contra o Racismo (Durban, 2001), publicado pela Revista Estudos Feministas, nº1, 2002, sob a coordenação de Luiza Bairros, da Universidade Católica de Salvador. Disponível em <http://pt.scribd.com/doc/205993595/Intersecionalidade-da-discriminacao-entre-racae-genero-Kimberle-Cranshaw> Acesso em 12 Mar 2014. 179


contexto dos direitos humanos, todos sabemos o que aconteceu na Bósnia e em Ruanda, onde mulheres de um determinado grupo étnico foram estupradas e passaram por violências radicalmente codificadas. Em todos esses casos, frequentemente havia uma uma propaganda contra essas mulheres antes dos estupros, (…) criando a imagem que de que as mulhreres negras eram sexualmente promiscuas, tendo seus direitos humanos violados por preconceito de etnia e gênero.(CRENSHAW:2001:12).

A partir dos exemplos de preconceitos interseccionais citados por Crenshaw, e de uma categoria de preconceito que precede a violação de direitos humanos, não podemos permitir que preconceitos sejam integralizados à nossa sociedade, por isso, é nosso dever refletir sobre todas as formas e veículos de preconceitos presentes em nossa sociedade. Nesse sentido, refletir sobre a narrativa visual de Di Cavalcanti se constitui uma atividade crítica obrigatória a respeito da nossa produção cultural. 3 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA NARRATIVA VISUAL DE DI CAVALCANTI. A identidade da arte brasileira pode ser bem explanada nas obras do artista Di Cavalcanti 64 que iniciou seus primeiros trabalhos artísticos em São Paulo, e assim como a maioria dos modernistas, ele pertencia a uma família rica e influente, estudou na Europa, aprendeu línguas e lia revistas estranheiras. Di Cavalcanti integrava a classe dos mais afortunados e cultos do país (Gonçalves:2012), o que talvez possa lhe ter conferido uma visão distanciada das classes sociais menos favorecidas. Talvez por isso, as representações da mulher negra em suas obras estejam frequentemente ligadas à vida boêmia brasileira e a sentimentos libidinosos, características que não são empregadas nas representações das mulheres brancas. A maioria de suas obras abordam temas relacionados a cultura do Brasil, a citar-se festas populares e paisagens tropicais. A partir de uma análise mais aprofundada do discurso visual do artista Di Cavalcanti, outras peculiaridades podem ser evidenciadas. Nesse processo, foi possível perceber que, na representação do corpo feminino, há uma estética que dá ênfase a uma natureza de ―sensualidade tropical‖ da mulher negra. Nas representações das mulheres brancas - geralmente retratos pertencentes a acervo particular-, a ênfase passa a ser a suavidade do olhar, que nos remete aos ambientes domésticos e a padrões aceitáveis de comportamento feminino administrado pelas normas da etiqueta da época. Nesse sentido, os diversos corpos femininos representados por Di Cavalcanti nos permitem especular sobre o imaginário moderno em relação à mulher e as possíveis intersecções de preconceito. As obras de Di Cavalcanti conseguem transmitir uma efervescência de cores e formas que se articulam na representação feminina, provocando uma atmosfera demasiadamente sensual. Analisando a obra Cinco Moças de Guaratinguetá 65 (1930), o crítico de arte Carlos Zílio afirmou que ―(...) o clima de sensualidade não é a figura das mulatas em si, mas os fortes contrastes cromáticos, a cor dependendo do 64Emiliano

Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo – Di Cavalcanti (1897-1976) Foi pintor, desenhista, ilustrador e caricaturista brasileiro. Idealizador da semana de arte moderna em 1922 no Teatro Municipal de São Paulo. Sendo o autor do catálogo da semana de arte moderna de 1922. 65

Vide ilustração I no anexo.

180


desenho, uma vez que predomina o cuidado na relação entre volumes e planos‖ (ZÍLIO:2001:01). Já nas representações de mulheres brancas, o mesmo artista se inclinou a usar cores mais brandas e formas mais naturalistas66. Para um artista, o ato de representar algo, especialmente se tratando de um pintor como Di Cavalcanti, revela um recorte da realidade, ou seja, um posicionamento e uma interpretação acerca dela. O discurso feminista da modernidade, ainda que tímido, execrava a representação feminina do modo sexualmente apelativo. Favorecendo sutilmente esse tipo de representação, a narrativa das obras do artista Di Cavalcanti estabeleceu a intenção de expor os padrões sociais em categorias étnicas, se constituindo na relação interseccional entre gênero, etnia e classe social. Notamos que, nas suas obras, há diferenças na abordagem representativa da mulher negra e da mulher branca, evidenciando os distintos papéis destinados a essas mulheres na modernidade brasileira. Di Cavalcanti elegeu a mulher negra como a musa inspiradora de seu trabalho por acreditar que as mulatas representam e personificam a essência da mulher brasileira. Assim como ele, outros artistas, a exemplo de Tarsila do Amaral, de modo distinto, também se envolveram com as particularidades da beleza feminina negra. No entanto, é importante lembrar que não foi apenas no campo das artes visuais que a beleza da mulata brasileira foi preconceituosamente camuflada por meio de exaltação. A maioria das personagens dos romances de Jorge Amado, (semelhante a representação de Di Cavalcanti) sugerem, em sua narrativa, o decorrer de sutis preconceitos a mulher negra. Isso pode ser evidenciado pelo fato de que, em seus enredos, as personagens negras nunca são concebidas como mulheres dignas de seriedade para o matrimônio, pois a mulher negra, no desenvolvimento de seus enredos, sempre assume a personagem da ―amante‖, obras como essas acarretam reflexões acerca desses estereótipos que até os dias de hoje insistem em permanecer no nosso imaginário e nos mostram que muitos dos preconceitos ainda precisam ser superados pela atual sociedade, pois esses mesmos artistas nos propõem outras leituras visuais e textuais quando tratam da mulher branca. O tratamento visual dado às mulheres pode ser evidenciado por meio da análise das obras de Di Cavalcanti, a exemplo da Mulher Sentada. 196267. Na referida obra, é exposta uma mulher que aparentemente pertence a alta classe social, interpretação que pode ser obtida por meio da análise da representação de suas vestimentas de cores suaves e formas retas que protegem o corpo da exposição dos ombros e dos seios, sua indumentária possui contornos leves e essa simplicidade está aliada ao fato da mulher não possuir adornos como colares e brincos, nem mesmo o uso excessivo de maquiagem, características que para os padrões da época, eram dignas de uma mulher decente. Assim, como remete o título da obra, a mulher está sentada, com seus braços sobre o colo, posição lhe confere aquisição de boa educação, por sugerir que a mesma tenha frequentado aulas de etiqueta. A expressão do seu rosto faz alusão à seriedade, pois seus olhos e sua boca não procuram manter contato com o expectador e, por fim, o local onde a mesma se encontra (representado em segundo plano) nos remete ao ambiente doméstico,

66 67

Vide ilustração V no anexo. Vide ilustração II no anexo.

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visto que não há alusão a ambientes externos, constituindo-se como algo privado. O oposto disso pode ser evidenciado nas representações da mulher negra nas obras de Di Cavalcanti, onde suas telas passam a ser permeadas por cores e estampas, como se a paleta do pintor mudasse no momento em que ele voltava o seu olhar para a mulher negra; não só o pincel, mas também o seu recorte interpretativo. A representação da mulher negra nas obras de Di calvalcanti são comumente relacionadas ao meio externo do ambiente doméstico, aludindo a vida boêmia, como festas em que as mulheres quase sempre são apresentadas na companhia de parceiro, ambos em postura de dança, lançando troca de olhares sensuais aos companheiros de dança, como na obra Samba. Óleo sobre Tela. 192568 e Baile na roça. 196069. Na primeira obra, ao centro da imagem, foi representado um casal negro dançando. A indumentária da mulher deixa em evidencia o seu corpo (as costas e os braços), tornando-a sensual. Por meio das cores do vestido, suas curvas são acentuadas, o que agrega compatibilidade à efervescência do segundo plano, estruturando assim, o equilíbrio visual da imagem. Toda a tela apresenta um ambiente que possui imensa variedades de cores, sugere movimento e há instrumentos musicais. Os personagens se confundem com os prédios e objetos, e a estrutura visual do quadro provoca a inclinação do olhar para o casal que dança sem pudor. A segunda obra divide muitas características semelhantes à primeira. Há um casal negro que dança, e no segundo plano, há diversos personagens que são representados de forma estilizada, sendo possível perceber que são negros e que a festa acontece em espaço rural, como sugere o título da obra. A partir dessas breves análises, é possível conjecturar algumas considerações. Di Cavalcanti realizou as representações de suas obras de acordo com o recorte que seus olhos viam e a interpretação que seu pensamento lhe proporcionou. Na tentativa de encontrar uma arte genuinamente brasileira, os modernistas se dedicaram a estudar a cultura popular do Brasil e suas obras são testemunhas da cultura brasileira e, também, dos múltiplos preconceitos vividos pelas mulheres negras durante toda a modernidade no Brasil, e que hoje estão evidenciados nos museus e deve ser objeto de reflexão na nossa sociedade contemporânea. 4 CONCLUSÃO Os sutis preconceitos impregnados nas obras de arte brasileira provocam reflexões sobre os preconceitos que são disseminados na nossa sociedade e que perpetuam injustiças e julgamentos de gênero e etnia em seus vários segmentos. No caso da mulher negra e pobre, são preconceitos interseccionados por várias esferas, como gênero, etnia e classe social. Os preconceitos estão inseridos nas diversas esferas de comunicação e interação, seja por meio de comerciais televisivos e de propagandas publicitárias que fazem uso apelativo da imagem da mulher, ou até mesmo no meio artístico. Nesse sentido, se torna relevante pensar que a importância de Di Cavalcanti 68 69

Vide ilustração III no anexo. Vide ilustração IV no anexo.

182


para a arte brasileira é bastante considerável, suas principais obras pertencem a acervos de grandes museus nacionais e internacionais. A notoriedade quanto a quantidade e a qualidade de suas obras é reconhecida no mundo inteiro, no entanto, poucos estudos são desenvolvidos sobre as mesmas. Nesse sentido, as obras de arte se constituem como um importante repertório visual da modernidade que mascaram e perpetuam preconceitos, nesse sentido, as obras se constituem como fonte de pesquisa a serem exploradas por inúmeros segmentos, dentre eles, o papel social destinado às mulheres nas várias identidades sociais em que estavam inseridas e a consequente formação do imaginário moderno em relação a mulher brasileira. Os desdobramentos que as análises e leituras de obras de arte podem trazer para o conhecimento da história social e cultural do Brasil são promissoras, pois as obras de artes são testemunhas desse momento vivido e nos propõem investigações acerca da sua existência para a abordagem nas questões de representação de minorias na arte e na consequente formação cultural brasileira. REFERÊNCIAS ACERVO DO MASP. Disponível em: <http://masp.art.br/masp2010/>. Acesso em 21 Mar 2012. ACERVO DA GALERIA DI CAVALCANTI. Disponível em: <http://www.artehall.com.br/wpcontent/uploads/2012/12/1.9.9.3-Sem-tiitulo-Di-cavalcanti.jpg >. Acesso em 11 Mar.2014. ALMEIDA. Marina Barbosa. A representação da mulher sob o olhar moderno de Di Cavalcanti. Ruídos na representação da mulher: preconceitos e estereótipos na literatura. Santa Catarina. 2004. Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/M/Marina_Barbosa_de_Almeida_13_A.pdf>. Acesso em 12 Mar 2012. ARACY. Amaral. Tarsila, sua obra, seu tempo. São Paulo: Tenenge. 1986. BURITI. Iranilson. Espaços de Eva: A mulher, A honra e a modernidade no Recife dos anos. Revista história hoje. v. 5. São Paulo: 2004. NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo de. Preconceito de Cor e a Mulata na Literatura Brasileira. São Paulo: Ática, 1975. FABRIS, Annateresa; Chiarelli, Tadeu (Orgs.). Modernidade e modernismo no Brasil: uma revisão crítica. Campinas: Mercado de Letras, 1994. SANTOS. Paula, Cristina. As vanguardas européias e o modernismo brasileiro e as correspondências entre mário de andrade e manuelbandeira. Disponível em: <www.ple.uem.br/3celli_anais/trabalhos/ estudos_literarios/pdf_literario/083.pdf>. Acesso em 12 Mar 2012. REPRODUÇÕES DE OBRAS DE ARTE DE <http://www.dicavalcanti. com.br/>. Acesso em Jan 2014.

DI

CAVALCANTI.

Disponível

em:

183


CRENSHAW. Kimberle. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. Disponível em: <http://static.tumblr.com/7symefv/V6vmj45f5/kimberle-crenshaw.pdf> Acesso em 07 Mar 2013. ZÍLIO, Carlos. A querela no Brasil. Disponível em < http://www.carloszilio.com/textos/1976malasartes-a-querela-do-brasil.pdf . >Acesso em 17 Fev.2013. ______. Análise da obra Cinco Moças de Guaratinguetá <http://www.dicavalcanti.com.br/critica.htm>. Acesso em Nov 2013.

(1930).

Disponível

em:

184


ANEXO 1 - Ilustração 1: Di Cavalcanti. Cinco Moças de Guaratinguetá. 1930.

185


ANEXO 2 - Ilustração 2: Di Cavalcanti. Mulher Sentada.1962. Óleo sobre tela.92x65cm

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ANEXO 3 - Ilustração 3: Di Cavalcanti. Samba. Óleo sobre Tela. 1925.

187


ANEXO 4 - Ilustração 4: Di Cavalcanti.Baile na Roça.óleo sobe tela.1960.

188


ANEXO 5 - Ilustração 5: Di Cavalcanti. Beryon. Óleo sobre tela.1962. acervo particular.

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AS FACES DA VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA Ana Júlia Santos Codignole70 Claudio Marcos Romero Lameirão71 Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva 72 Raphaella Karla Martins de Lima73 SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Modernidade e modernismo no Brasil. 3 A representação da mulher na narrativa visual de Di Cavalcanti. 4 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO A inquietação social decorrente do descontentamento com a segurança pública do país tem se agravado substancialmente nos últimos anos. Por essa razão, o tema tem sido uma das principais bandeiras levantadas pela população brasileira, muitas vezes priorizando-o em detrimento de outros direitos fundamentais e essenciais. Por outro lado, em que pese um maciço investimento em políticas públicas, não se vislumbrou nos últimos anos uma mudança significativa na condição violenta em que se encontra o país enquanto Estado democrático de direito. Da mesma forma, observa-se que o desenvolvimento social favoreceu ainda a ascensão de mazelas que se apoiaram nas deficiências do Estado e da própria sociedade para fomentar a decadência popular que passa a afeta principalmente a camada mais pobre da população. A globalização e a agilidade associada à imediatez da pós-modernidade, apta a preservar a integridade social e a paz pública, se colocaria, ao mesmo tempo, ao alcance de todos, inclusive da criminalidade. 2 SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL

Graduanda em Direito; Pesquisadora do Projeto de Pesquisa "Retratos da Infância e adolescência na Paraíba: uma visão multidisciplinar" (FESP), e do grupo de Pesquisa "Justiça e Política: Constitucionalismo, democracia e ativismo jurídico" (UFPB/CNPq). 71 Delegado de Polícia Civil/PB. Mestrando em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estadual da Paraíba. Professor da graduação, nas disciplinas Direito Penal, Direito Processual Penal e Execução Penal da Faculdade Maurício de Nassau. Professor, na graduação e pós-graduação, nas disciplinas de Direito Penal e Processual Penal, da Faculdade Internacional da Paraíba, bem como professor da Academia de Polícia Civil/PB, nas disciplinas de Direito Penal e Legislação Penal Especial. 72 Advogado; Especialista em Segurança Pública e Direitos humanos pela UFPB/SENASP. Membro Administrativo da Academia Nacional de Estudos Transnacionais – ANET; Membro efetivo do Grupo de Pesquisa "Justiça e Política: Constitucionalismo, democracia e ativismo jurídico" (UFPB/CNPq). 73 Advogada; Graduada em administração; Pós-graduanda em Gestão das Organizações Públicas pela UFPB. 190 70


O sentimento de insegurança decorrente do aumento da violência no Brasil tem difundido a necessidade de um amplo e reflexivo debate acerca dos problemas oriundos das relações do homem em sociedade. A reivindicação é basicamente uma só: mais segurança pública. O termo segurança deriva do latin secure, cujo significado basicamente se resume a ―sem medo‖ (VELLOSO; ALBUQUERQUE, 2000), e durante muito tempo a ideia de manutenção da ordem pública se restringia tão somente à retribuição pelo mal causado. Desde os tempos primórdios o homem tem buscado solucionar os seus conflitos sociais da forma por ele considerada mais apropriada para a satisfação dos seus interesses pessoais. Na denominada fase da vingança privada, ―cometido um crime, ocorria a reação da vítima, dos parentes e até do grupo social (tribo), que agiam sem proporção à ofensa, atingindo não só o ofensor, como também todo o seu grupo‖(MIRABETE, 2009, p. 16). Em um período posterior, superadas as fases da vingança divina (ilícito interpretado como ofensa aos deuses) e das imperfeições da fase da vingança pública (poder punitivo nas mãos da autoridade local, muitas vezes sob influências religiosas com penas severas e cruéis) (MIRABETE, 2009), o poder punitivo se transfere efetivamente para a tutela do Estado, estando a pena desprovida de qualquer conotação religiosa, adotando-se agora normas específicas através da edição de leis que passam a disciplinar as relações do homem em sociedade. Todavia, é importante salientar que as leis nem sempre estatuem apenas regras de convivência social. Em muitos casos, as leis são opressivas, garantem privilégios, mantêm e aumentam discriminações (HERKENHOFF, 2000). Com o término da ditadura militar, por exemplo, o próprio conceito de polícia passou a ser associado à repressão, aspecto pejorativo que levou em conta crimes e uma série de desaparecimentos ocorridos durante o regime de exceção no país. Com o passar dos anos, e apesar das inúmeras dificuldades ainda enfrentadas pela instituição, é bem verdade que a identidade policial, como órgão garantidor da paz e da tranqüilidade, vem sendo resgatada e aprimorada, em especial, após a promulgação da Constituição Federal de 1988 que inseriu em seu texto uma série de preceitos nos quais se englobam a segurança pública como ―dever do Estado, direito e responsabilidade de todos‖, além de conceder às policias um caráter mais democrático, atrelando suas atividades ao respeito à dignidade e à preservação dos direitos humanos. A cooperação internacional também cumpre um papel fundamental quando do intercambio de informações e estratégias visando o combate ao crime organizado e ao tráfico transnacional de entorpecentes. O amplo e extenso território e a precária fiscalização favorecem a atuação criminosa em larga escala, como a biopirataria, a prostituição, o tráfico de animais e até 191


mesmo de pessoas que de forma corriqueira ultrapassam as fronteiras do país, em que pese os investimentos em inteligência objetivando identificar as rotas da criminalidade nos limites do território brasileiro. Segundo Moraes, a multiplicidade de órgãos de defesa da segurança pública inseridos pela Constituição tem uma dupla finalidade: atender os clamores sociais e reduzir a possibilidade de intervenção interna das Forças Armadas (MORAES, 2006). Observa-se, contudo, que em decorrência do aumento da violência no país há atualmente um fomento de políticas de segurança em detrimento de políticas públicas, sociais e até mesmo econômicas. Isso tem dificultado o tratamento da causa vetor do crime como instrumento de redução do alto índice de encarceramentos, uma vez que agindo tardiamente a tendência de criação de novas políticas públicas voltadas tão somente à punição do criminoso passa a ser cada vez mais real dentro de um sistema que parece buscar na celeridade a solução para todos os conflitos sociais do país. A prevenção, é, inquestionavelmente, o melhor instrumento de controle da violência. Todavia, para que uma política de prevenção se mostre eficiente é necessário que se identifique previamente o fenômeno a ser evitado. Dessa forma, nos ensina Ariosvaldo Pires. De fato, como prevenir sem que se conheça a fenomenologia que se quer evitar? Prevenir é antecipar-se, predispondo meios que inibam o crime. A prevenção pode darse desde a eliminação do fenômeno, como causa (tal estrada tem uma curva acentuadíssima e a eliminação dessa curva evitaria a repetição dos acidentes), até a disposição de meios que, sem eliminar a causa, evitam o comportamento condicionante (policiamento ostensivo no trecho perigoso). Apenas exemplificando com o problema do trânsito nas estradas (PIRES, 2001, p. 35)

Também salienta o autor a importância da repressão na política de combate ao crime como um elemento agregador visando erradicar ou reduzir o crime ao tolerável. Em que pese a segurança pública se apresente como um dever do Estado, não cabe somente a ele a garantia de direitos fundamentais, uma vez que é também responsabilidade da sociedade zelar por sua preservação, seja quando respeita normas de convivência social, seja quando contribui com a atuação dos órgãos de segurança nas suas atividades de manutenção da ordem pública. Cite-se ainda que tanto a idéia de banalização quanto a generalização da violência no país tem desenvolvido no seio social um sentimento de repulsa cuja culpa quase sempre recai tão somente para o Estado, desconsiderando assim toda e qualquer correlação da violência com questões sociais, políticas, sociais e até mesmo culturais. Curiosamente, não é exatamente essa percepção que se observa nos momentos mais críticos.

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Um bom exemplo disso são os crimes praticados em locais distintos e socialmente opostos dentro de um mesmo espaço urbano. Se num primeiro momento um ilícito é praticado em bairro considerado de classe média alta, a primeira idéia a se levantar é que o criminoso muito provavelmente não resida no mesmo local, mas tão somente se dirigiu ao mesmo com a intenção de praticar a ilicitude. Por outro lado, se o ilícito foi praticado em uma região considerada mais carente, é também provável que o criminoso seja de uma outra localidade que não aquela onde o crime foi praticado, apoiando-se na idéia de que ―ninguém pratica crimes dentro da sua própria casa‖. Ora, se o problema da violência é por muitos considerado uma questão meramente policial, porque então associar conduta e/ou autoria à posição socioeconômica do criminoso? Tal indagação nos remete a recordar que um dos primeiros detalhes que observamos quando optamos por uma nova moradia é ter a certeza de que o local nos garante algum tipo segurança. Nesse sentindo, Rosa Fischer é categórica ao citar como exemplo a realidade Paulista e Carioca: O aumento da criminalidade violenta nas metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro tem sido um problema que se incorporou ao modus vivendi da população urbana. Não apenas manteve-se como assunto valorizado pela imprensa e autoridades, como também passou a determinar mudanças de comportamento e hábitos, que vão desde a escolha de certos bairros ou tipos de moradia considerados mais seguros, até cuidados pessoais com horários, trajetos, meios de locomoção e locais freqüentados. (FISCHER, 1985, p. 8)

Em dias hodiernos, o diagnóstico mencionado pela autora ainda é comumente observado e faz parte da realidade de milhões de brasileiros no país. A globalização e a ascensão tecnológica no mundo transformariam essa realidade em algo ainda mais preocupante por favorecer, dentre outros fatores, o desenvolvimento e a modernização das práticas criminosas no Brasil, como o próprio crime organizado.

3 VIOLÊNCIA, RACISMO, SEXISMO E HOMOFOBIA Mapear a violência contra as minorias também é um papel que cabe aos órgãos de segurança do país, em especial para traçar estratégias envolvendo participação e conscientização comunitária. Esse debate é relevante, na medida em que se refere não apenas ao comportamento do indivíduo em si, mas principalmente por envolver a reação humana diante de uma situação singular e alheia tendente a gerar algum tipo de conflito interno que pode inclusive levá-lo a desenvolver algum tipo de comportamento violento. Segundo Fiorelli e Mangini: 193


O comportamento do agressor demonstra impulsividade; quando alguma emoção negativa o domina (raiva, por exemplo), experimenta imediata regressão a estágios primários do desenvolvimento psicológico e prevalece o egocentrismo. Não há direitos para os outros. A expectativa de punição inexistente ou insignificante funciona como motivador para que o indivíduo não desenvolva qualquer autocontrole. (FIORELLI; MANGINI, 2009, p. 267)

A discriminação homossexual e os debates que incluem temas como sexismo, racismo, e a violência contra a mulher, acabam por envolver mais do que questões puramente ideológicas. O próprio tabu inserido na sociedade desde o século passado é um dos grandes (senão o maior) responsável pela configuração de um caráter puramente preconceituoso que tem inserido o ser humano em um tipo de isolamento eminentemente conservador e não mais adaptável à nova configuração social dos dias atuais. Dessa forma, pessoas de várias etnias que se mesclam em meio à diversidade cultural, e que vivenciam diariamente o comportamento humano de se ―distribuir‖ sobre as diversas facetas que abrangem o indivíduo em sua própria subjetividade na relação com o social, assim como o seu próprio comportamento, por vezes, referem-se mais ao ―eu‖, propriamente dito, do que aos costumes que regem uma determinada região. Isso porque ainda que os costumes locais interfiram diretamente na forma de pensar e de agir do indivíduo socializado, o que o define é, na verdade, a sua concepção em relação a este mesmo meio vinculado aos seus próprios ideais, que se somaram e se desenvolveram com o passar do tempo. Exemplo típico são os dados sobre estupros no Brasil. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2015, mais de 47 mil casos de estupros foram registrados no país só em 2014, todavia, uma média de 35% dos crimes sexuais não chegam a ser registrados, o que dificulta uma maior atuação policial diante desse tipo de violência. Aqui, o silêncio é o único meio viável encontrado pela vítima para evitar o que seria uma nova agressão, dessa vez, da própria sociedade. 4 O PAPEL DA SEGURANÇA PÚBLICA NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA A mudança de perspectiva nas relações humanas, tão presente na sociedade pós-moderna, representa atualmente um paradoxo que envolve o próprio fenômeno da criminalidade urbana no Brasil. Esse paradoxo se dá, sobretudo, em conseqüência dos insucessos de políticas públicas de amenização da violência que tão somente tem fomentado a ascendência criminal no país. ―A sociedade deste início de século e milênio transforma-se com o sopro inovador da ciência e da

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tecnologia, mas desvirtua-se nos padrões de comportamento‖ (VIEIRA, E.F.; VIEIRA, M. M. F, 2004, p. 69.) Em termos gerais, é bem verdade que a realidade social vivenciada em pleno século XXI muito se distancia daquela experimentada décadas atrás. Se antes a assiduidade violenta era quase que exclusividade de periferias e áreas mais carentes das pequenas, médias e grandes cidades, hoje ela se universalizou e já se integra a todas as camadas sociais, indistintamente, o que tem justificado, por exemplo, o aumento na demanda por segurança privada no país. Por outro lado, com o advento da chamada sociedade da informação, a mudança de paradigma resultante do avanço tecnológico trouxe ao debate uma série de outros questionamentos ligados aos hábitos e aos costumes dos indivíduos. Na área da segurança pública, por exemplo, algumas dessas inovações tecnológicas, além de não suprirem determinadas carências já reconhecidas pelo Estado, estão ainda propensas a reforçar a própria atuação criminal. Isso ocorre porque o crime, enquanto fato social, não apenas envolve o subjetivismo isolado da conduta do indivíduo, sua periculosidade ou reincidência. Hoje, muito mais do que a personalidade do criminoso, outros fatores externos também contribuem com essa realidade, uma vez que interferem diretamente ou indiretamente no comportamento dos indivíduos (BARRETO, 1971), podendo levá-lo a delinquencia. A exclusão social atrelada à ausência de mão de obra qualificada, a ascensão tecnológica, assim como o próprio tráfico ilícito de entorpecentes, em especial, são algumas das mais lembradas. Da mesma forma, além do desemprego fruto da substituição do trabalho manual pela tecnologia, a crescente inovação dessas ferramentas tem exigido da sociedade capitalista uma mão de obra mais qualificada e especializada nas diversas funções que demandam o mercado, o que também tem se tornado um empecilho para os que ainda carecem de um amplo acesso à informação no país. É exatamente nesse ponto que o crime surge como uma atraente oportunidade para os tidos excluídos que encontram dificuldades de inserção no mercado de trabalho, em que pese a comprovada redução de desigualdades econômicas e sociais apresentada nos últimos anos. Nesse sentido, nos ensina Rosa Godoy Silveira: Se o mercado é atraente, todos querem ter acesso ao mesmo: não o conseguindo, matase por um tênis importado. Se a liberdade é tão apregoada, todos querem usufruí-la: não podendo, exprimem-se com e pela violência. Se a propriedade é o cânone societário, todos querem dela dispor: não dispondo, ela é invadida, assaltada, roubada. Se a sociedade capitalista proporciona ―o melhor modo de vida jamais existente‖, todos querem vivê-lo: não alcançando, inventam outros modos de vida, a ―desordem‖ que os inclua, mesmo perigosamente, como o tráfico de drogas. (SILVEIRA, Rosa Maria Godoy, et al, 2007, p. 261).

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Todavia, se por um lado evoluímos na redução das desigualdades socioeconômicas, por outro, não só não avançamos significativamente na construção de um modelo super eficaz de políticas públicas amenizatórias do quadro violento atual, como também aumentamos consideravelmente esse índice de violência nos últimos anos, em especial pela flagrante transformação do quadro social brasileiro que tão somente sofisticou os métodos de atuação criminosa desde a promulgação do Código Penal de 40 (SILVA, 1998). É dizer, ainda que a violência urbana se apresente como um fenômeno real e eminentemente contraditório, considerando suas variações regionais, parece evidente que o seu descontrole também é conseqüência de uma série de equívocos que envolvem, inclusive, o próprio comportamento social. Explicamos. A sociedade pós-industrial (ou sociedade da informação) tem estimulado a velocidade do processo de ―presentificação‖ fruto do avanço tecnológico. Como conseqüência disso, as mudanças no padrão de sociabilidade e valorização das novas tecnologias encontraram respaldo nas necessidades do capitalismo ascendente. Dessa forma, assim como esses produtos se tornaram essenciais e praticamente indispensáveis nas relações do homem em sociedade, eles também se reverteram como grande cobiça para a criminalidade, emergindo como meios práticos e alternativos para o cometimento de ilícitos, por exemplo, através da internet. Segundo Sandra Gouvêa: A questão é ainda agravada quando os crimes são praticados através das redes de computador, como a INTERNET. Não há dúvida de que o futuro das comunicações será feito por redes desse tipo e os países precisam reunir esforços a fim de reprimir esses crimes, sem esquecer que vivemos em uma época marcada pelo ―free flow of information‖. (GOUVÊA, 2007, p. 139)

Se por um lado a globalização favoreceu uma maior interação entre os indivíduos através do amplo e quase irrestrito universo digital, em contrapartida essa mesma imediatez, quando praticada de forma inadequada, de igual forma, tende a dificultar a própria efetivação do conceito de justiça e a preservação de direitos inalienáveis, uma vez que o fácil acesso à rede e às novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), tem dificultado, por exemplo, o filtro de procedência de informações duvidosas que diariamente são divulgadas na rede sem qualquer comprovação de autenticidade material. Não devemos esquecer, todavia, que o reflexo negativo dessas novas tecnologias na área da segurança pública tende a variar a depender do grau de repercussão que o seu uso indiscriminado pode gerar na construção (ou manipulação) da percepção social e formação da 196


opinião pública, principalmente quando acompanhadas da comoção e da revolta social. Assim, considerando que os aparelhos celulares são, a título de hoje, verdadeiros computadores de mão, toda e qualquer informação, inclusive de natureza maliciosa, são facilmente recebidas e reencaminhadas, de qualquer lugar, por diversas vezes e em poucos segundos, podendo comprometer as atividades de investigação e de inteligência da polícia destinadas à preservação da ordem pública, e gerar, inclusive, um descrédito social em relação à instituição polícia quando da não solução imediata das ocorrências reclamadas. Segundo Balestreri: De maneira geral os salários oferecidos, para a maior parte do pessoal, continuam injustos, os prédios, mobiliário, veículos, armas e equipamentos, insuficientes, antigos e/ou em situação de quase abandono por significativa parte dos governos. (BALESTRERI, 2003, p. 60-61)

E continua: Soma-se a isso uma depreciação social da polícia, agravada pelo equívoco de setores intelectuais de vanguarda que não conseguem perceber que suas críticas deveriam enforcar mais o aspecto conjuntural do que o estrutural (mais os desvios, as más práticas, do que a instituição em si mesma), uma vez que a polícia é segmento imprescindível para a garantia dos direitos e deveres democráticos. (BALESTRERI, 2003, p. 61)

Além disso, é possível que essas e outras condutas arbitrárias realizadas na rede sejam ainda utilizadas pela própria criminalidade como forma de desviar o foco investigativo da polícia, levando ao retardamento da sua conclusão visando a impunidade. Uma vez divulgado o dado falso na rede, a própria sociedade, sem ter ciência da gravidade de sua conduta, acaba contribuindo com a divulgação e com o próprio ato criminoso. Nesse diapasão, nos deparamos com outro enfoque não menos polemico sobre o discurso da insegurança pública no país. Isso porque o social desejo de por termo aos problemas sociais, dentre eles os da própria segurança pública, acaba por suprimir do debate o vício do excesso de celeridade para dar lugar ao vício do declínio da morosidade, tão temerosa nos dias atuais Em outras palavras, a subjetividade fragilizada da sociedade tem ignorado a necessidade de fortalecimento e amadurecimento de idéias e conceitos próprios e menos conservadores construídos através de um enfoque social que não atente a extremos, mas que tão somente mantenha em equilíbrio a independência e a autonomia dos sujeitos com as questões sociais de maior complexidade, afastando assim toda e qualquer análise singela e superficial sobre o fenômeno da violência urbana.

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No entanto, é inegável que alguns benefícios oriundos das TICs se mostram promissores e essenciais para assegurar a manutenção da ordem pública no país em meio a ascensão criminal, um deles é a expansão do projeto de registro de ocorrência pela internet através do B.O eletrônico. Essa ferramenta específica visa simplificar o processo de coleta de informações sobre crimes e contravenções penais, além de buscar reduzir o excessivo índice de subnotificações, tão em alta no país atualmente. Se antes a delegacia era considerada um ambiente hostil, a praticidade da ferramenta buscou alinhar utilidade às novas necessidades sociais de estreitamento das relações com o Estado. A efetividade dessas e de outras ferramentas, todavia, ainda esbarra na inércia social ligada ao medo e à idéia do ―nada resolve‖. 5 IMPUNIDADE NO BRASIL (?) A cultura da impunidade disseminada em massa também é a mesma que abre margem para o retorno da vingança privada através do tradicional uso da força materializada pelos linchamentos, e o cárcere passa a ser visto não mais como uma ferramenta punitiva e ressocializadora, mas tão somente punitiva e repressiva prestes a conduzir o preso à reincidência, daí porque a necessidade de medidas de controle e assistência até a readaptação definitiva do antigo detento (FOUCAULT, 1987). Entretanto, para adentramos a um breve comentário sobre os desdobramentos da violência é necessário que tenhamos uma noção mais precisa da amplitude do termo impunidade. Na sua origem, a expressão impunidade é largamente utilizada para designar a ausência de punição, de castigo. Na segurança pública hodiernamente o termo expressa uma espécie de ausência de sanção/punição que deveria ser aplicada quando da prática de um ato ilícito. Ocorre que é fato notório que não há necessariamente uma ausência de punição para criminosos no país, ao menos considerando o seu caráter quantitativo. Dados atuais do Infopen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) divulgados em 2015 indicam que o Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária do mundo, ficando atrás apenas de Rússia, China e Estados Unidos. Além disso, se em 1990 tínhamos uma população carcerária de 90 mil presos, hoje esse número já supera a casa dos 607 mil detentos, um aumento de 575% no comparativo74. Contudo, o Brasil apresenta uma tendência inversa em relação à redução desse índice no comparativo com outros países que lideram a taxa de encarceramentos no mundo. Enquanto Estima-se que caso o ritmo de encarceramentos no país se mantenha nos próximos anos, até o fim 2022 o Brasil pode ultrapassar a marca de 1 milhão de presos, e até 2075 dispor de uma privação de liberdade a cada dez indivíduos. 198 74


Estados Unidos, China e Rússia reduziram esse índice nos últimos anos, a população carcerária brasileira manteve a tendência de crescimento observado desde a década de 90. Além disso, o país conta hoje com uma série de políticas públicas preventivas de conscientização para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social75, inclusive dispondo de leis que privilegiam a liberdade em detrimento do cárcere provisório quando esta não se mostrar necessária ou adequada para o caso concreto76. João Velloso e Roberto Albuquerque nos ensinam que: Reduzir a impunidade é investir na prevenção. O delinquente o desordeiro em potencial são incrivelmente racionais e intimidam-se muito mais com a certeza da punição do que com a gravidade da pena. [...] A questão da impunidade decorre, portanto, de falhas e deficiências do sistema de justiça criminal. Falhas e deficiências tão antigas que, e por serem quase intocáveis, emprestam dinamismo à violência. (VELLOSO; ALBUQUERQUER, 2000, p. 190).

Da mesma forma, a realidade brasileira também tem demonstrado que não basta o mero investimento em políticas públicas. É necessário, sobretudo, que os resultados extraídos dessas experiências sejam compatibilizados com suas finalidades, não podendo se resumir a tratar tão somente do resultado da violência. Eurípedes Falcão Vieira e Marcelo Milano Falcão Vieira apontam que: Os resultados da ação política são praticamente nulos – aumentam as discussões, aumentam os pacotes de medidas, mas a violência cresce com mais eficiência. E por quê?As medidas políticas no âmbito da repressão ou da alteração dos códigos ou ainda da ampliação do sistema prisional atendem apenas às conseqüências do crime, organizado ou não; atuam no efeito produzido pela violência. (VIEIRA, E.F.; VIEIRA, M. M. F, 2004, p. 144).

Percebe-se, portanto, que ainda há um longo caminho a se percorrer diante da ineficácia de políticas públicas que atualmente não conseguem absorvem os principais vícios do atual sistema criminal brasileiro, seja em decorrência do contexto histórico da inacabada transição democrática, que para muitos ainda repercute e é conseqüência de omissões pretéritas do Estado, seja pela a insuficiente oferta de projetos estratégicos de desenvolvimento humano que priorize, acima de tudo, uma educação universal e permanente.

A lei 11.343/11 instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sinasd), considerado o marco legal de políticas de drogas, e estabelece medidas de proteção ao uso indevido, controle e reinserção social do dependente. 76 A lei 12.403/11, mais conhecida como nova lei de prisões, foi editada com a finalidade de resguardar o princípio constitucional da presunção de inocência ao privilegiar o uso de medidas cautelares em detrimento da prisão preventiva. 199 75


6 CONCLUSÃO O aumento da violência no país tem despertado uma mobilização social crítica de descontentamento com dinâmica social atual. Esse descontentamento tem desenvolvido a idéia de impunidade que muitas vezes não chega a ser dissolvida nem mesmo pela própria comunidade Mais do que isso, a globalização propiciou um novo paradigma social que não tem se adaptado à evolução criminal, uma vez que os instrumentos e ferramentas sociais de interação e comunicação também são utilizadas pela própria criminalidade para a prática de ilícitos. A sociedade, por sua vez, no intuito de contribuir, por vezes estimulam indiretamente essas práticas criminosas. Crimes cibernéticos e contra as minorias são alguns dos exemplos. A celeridade e a imediatez presente na conjuntura pós-moderna tem desvirtuado até mesmo o instituto do cárcere. Enviar o criminoso à prisão, ainda que fator indispensável para a manutenção da ordem pública, tem sido a maneira mais fácil encontrada pela sociedade e pelo próprio Estado de solucionar o problema da violência no Brasil, desconsiderando, formal e materialmente, a conexão do ilícito com fatos externos que em conjunto fomentam e estimulam o crime e a reincidência no país. REFERÊNCIAS ANUÁRIO DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. São Paulo, 2015. BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Direitos Humanos: Coisa de polícia. Passo Fundo, Rio Grande do Sul: Gráfica Editora Berthier, 2003. BARRETO, Menna. O Desafio das drogas e o direito. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1971. BRASIL. Constituição da República Federativa. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 04 jul. 2015. ______. Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. Altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, e dá outras providências.Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm>. Acesso em 04 jul. 2015. ______. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. 200


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 04 jul. 2015. DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias INFOPEN. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seusdireitos/politica-penal/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 01 jul. 2015. FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Psicologia Jurídica. São Paulo: Atlas, 2009. FISHER, Rosa Maria. O Direito da população à segurança: cidadania e violência urbana. Petrópolis: Vozes, 1985. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. GOUVÊA, Sandra. O direito na era digital: crimes praticados pro meio da informática. Rio de Janeiro: Mauad, 1997. HERKENHOFF, João Baptista. Fundamentos de Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000. MIRABETE, Júlio Fabrini; FABRINI, Renato N. Manual de Direito Penal: parte geral. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2009. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2006. LEAL, César Barroso; JÚNIOR, Heitor Piedade. (organizadores); Pires, Ariosvaldo de Campos. Violência e vitimização: a face sombria do cotidiano. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. SILVA, Ivan Luiz da. Crime organizado: aspectos jurídicos criminológicos (Lei nº 9.034/95. Belo Horizonte: Nova Alvorada Edições, 1998. SILVEIRA, Rosa Maria Godoy [et al]. Educação em Direitos Humanos: Fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora da UFPB, 2007. VELLOSO, João Paulo dos Reis; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti (coordenadores); MAGALHÃES, Antonio Carlos [et al]. Pobreza, cidadania e segurança. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. VIEIRA, Euripedes Falcão; VIEIRA, Marcelo Milano Falcão. A dialética da pósmodernidade: a sociedade em transformação. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

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