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Coluna:

O CINEMA SOVIÉTICO: HISTÓRIA, TEORIA, REALISMO SOCIALISTA Resumo: Passados quase 100 anos desde o seu surgimento, o cinema soviético, primeiro grande movimento cinematográfico da história, ainda hoje ocupa um proeminente lugar quando o assunto é o estudo dos primórdios da teoria cinematográfica e também da própria história do cinema. As atuais práticas e metodologias para se pensar o cinema deram seus primeiros e mais largos passos dentro da vanguarda cinematográfica soviética. O objetivo deste artigo é traçar um panorama do contexto político e social onde esse cinema e sua prática social se desenvolveram, ao mesmo tempo em que tece breves comentários acerca do significado histórico da relação entre cinema e política na URSS através da diretriz política e estética do Realismo Socialista.

Por Renato Lopes

Os anos de agitação política: Ensaio Geral de 1905, Revolução de 1917 e Guerra Civil.

O

s anos que precederam a Revolução Russa de 1917, episódio que entrou para a História como Revolução de Outubro

ou Revolução Bolchevique, foram de intensa 1 Guerra Russo-Japonesa (1904-1905): Disputa pelos territórios

da Manchúria e da Coréia, entre o Império Russo e o Império Japonês. A marinha russa sofre uma humilhante derrota, onde perde a Frota do Pacífico na batalha de Port Arthur e também

agitação política e social. Antes de sua entrada na Primeira Guerra Mundial, ao lado da Tríplice Entente, a Rússia vinha de um retumbante fracasso militar que fora a guerra Russo-Japonesa (19041905)1. A derrota no conflito desencadeou uma

a Frota do Báltico na batalha de Tsushima. A Rússia se entrega após a assinatura do Tratado de Portsmouth em setembro de 1905

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G N A R U S | 138 processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Essa transição, que viria a se consolidar tardiamente, apenas na segunda década do século XX, denotava o quanto as estruturas russas eram atrasadas e precárias em relação aos demais países da Europa. Sua base econômica ainda era majoritariamente agrária, tendo o campesinato como principal mantenedor das opulências de uma monarquia e nobreza parasitárias, através do pagamento de impostas cada vez mais aviltantes. Um país do século XX com uma forma de governo que remontava ao século XVII e XVIII, com Dziga Vertov com uma câmera kino pravda

governantes dotados de uma sanha expansionista, porém sem condições de sequer manter a ordem e

crise interna no país que em agosto de 1905

o desenvolvimento interno, e garantir o básico a

culminou

espontânea,

população. Apesar da falta de democracia,

posteriormente denominada como Ensaio Geral da

emprego, alimentos e condições de sobrevivência

Revolução2

(nota de rodapé). Embora fosse um

mínimas, o Czar Nicolau II joga a Rússia em outra

movimento de caráter pacifico, resultou em um

aventura bélica, a Primeira Guerra Mundial (FERRO,

massacre após a guarda real do Czar que disparou

1974, p.15 e 16).

em

uma

rebelião

contra manifestantes que foram protestar em frente ao Palácio de Inverno, tal episódio ficou conhecido como Domingo Sangrento. A intenção dos manifestantes que estavam as portas do Palácio de Inverno do Czar era de entregar um documento com uma série de reivindicações. Dentre elas estavam: melhorias na economia, igualdade de direitos perante a lei, as minorias nacionais cobravam liberdade cultural e o exército uma melhor estrutura e o direito de se manifestar politicamente.

A Rússia ingressa no conflito na formação de países conhecida como Tríplice Entente (Rússia, França e Reino Unido). No ano de 1917 a Rússia se retira do conflito, após um movimento político interno, encabeçado pelos Sovietes (conselhos de trabalhadores russos), que depõe a família real e coloca no poder Alexander Fyodorovich Kerensky, advogado e político russo. Em tese não ocorreram mudanças efetivas, o cenário ainda era pouco ou nada promissor. Entre em cena Vladimir Ilyich Ulyanov, popularmente conhecido como Lenin, que

Vale lembrar que estamos falando de um dos

propõe aprofunda a revolução e promover

poucos países que no raiar do século XX ainda era

mudanças efetivas nas estruturas políticas e sociais

uma monarquia absolutista, sem democracia ou

da Rússia. Tem início mais uma revolução, seguida

qualquer outro instrumento de representação

de uma guerra civil (1918-1921), entre o Exército

política. A Rússia teve um longo e conturbado

vermelho, os Bolcheviques e o Exército Branco,

2 Ensaio Geral da Revolução foi a forma como Lenin denominou

a série de eventos ocorridos após a derrota da Rússia para o Japão, na guerra russo japonesa. Os episódios que provocaram

um grande abalo no poder na figura do Czar foram: o Domingo Sangrento, Revolta do Potemkim, e a greve geral de São Petesburgo, Kiev e Moscou.

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G N A R U S | 139 formado por grupos de diversas tendências

intelectual dos materiais e do meio onde está

políticas, de apoiadores do czarismo, republicanos

inserido, irá ajudar a erguer uma nova sociedade a

liberais entre outros grupos de oposição. O Exército

partir do seu esforço enquanto um artista-

Vermelho se torna o único vencedor incontest. Tem

engenheiro/operário, manejando esses materiais

início a criação da URSS, comandado pelos

que já existem na natureza e no meio social para,

Bolcheviques (FERRO, 1974, p.24 e 25).

reorganizar, remontar, refazer, o novo mundo que

Devido ao espaço e também a proposta desse

se despontava (SARAIVA, 2012, p.114).

artigo, não nos deteremos nos pormenores e em

A formação de um Estado Operário, naquele

reflexões mais aprofundadas sobre o processo

momento, implicava uma mudança de paradigma

revolucionário russo. De modo que, ao final do

na forma com que esse trabalhador concebia sua

artigo,

bibliografia

relação com seu governo, com sua classe, com a sua

complementar básica para quem deseja saber mais

cultura. Esse novo paradigma político faz do artista

sobre esse que foi um dos episódios mais seminais

instrumento e meio através do qual se reorganiza a

século XX. Agora que expomos pontualmente

vida em uma sociedade. E como se dá essa

alguns dos principais episódios históricos da Russa

reorganização

pré-revolucionária, partiremos para a análise dos

Revolucionando a consciência do povo, do

elementos artísticos que floresceram nesse cenário

operário, do trabalhador, mostrando-lhe que no

de agitação política e social, e que também foram

meio social no qual está inserido estão ao seu

de vital importância para a formação teórica e

alcance todos os meios materiais para se modificar

artísticas dos principais nomes do cinema russo.

ou construir uma nova realidade. De modo que essa

indicaremos

uma

em

um

Estado

proletário?

nova concepção de arte da qual o Construtivismo é

Construtivismo: a vanguarda artística da revolução

timoneiro, irá influir na forma como o proletariado revolucionário irá organizar e construir suas

O processo de estatização implementado durante

experiências e visões de mundo. O Construtivismo

o tempestuoso e prolixo triênio de 1917-1920,

é marcado como o primeiro movimento artístico da

gestou e trouxe a luz um dos movimentos de

história a ser tributário de uma revolução política

vanguarda artística mais influentes da história das

concreta, ressaltando também o profundo caráter

artes: o construtivismo.

social da arte, ligado a um ideal político. Essa

O Construtivismo russo promoveu uma guinada estética, artística e principalmente social, onde a

socialização da arte irá criar um movimento engajado e fundante dessa nova mentalidade

arte era dessacralizada, ou seja, não existia arte

artística, tudo isso em meio as ebulições da Rússia

pura, hermética, permeada de simbolismos que em

revolucionária.

sua maioria só geravam alienação por parte

As artes plásticas, que nesse primeiro momento

daqueles que estavam alheios ao seu processo de

formavam o principal eixo do Construtivismo,

criação. O fazer arte no construtivismo tornou-se

tinham como expoentes Kazimir Malevich, Vladimir

um processo de intensa autorreflexão, um ato

Tatlin e Wassily Kandinsky. Esses artistas operavam

consciente, e não uma quase epifania ou mimese

em uma chave criativa que privilegiava um estilo de

por parte do artista. Este, com o pleno domínio

criação onde a arte deixava de ser uma Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 140 representação mimética da vida, para ser o agente

nova expressão teatral, calcada numa relação

construtor de uma nova realidade. Isso se dava a

conjunta de cenografia e texto. Abolindo

através do uso de materiais simples e que estavam

novamente a mimese e o hermetismo psicológico

largamente presentes no cotidiano, empregados na

presentes nas peças teatrais mais tradicionais, iriam

construção de instalações, pinturas, quadros. O uso

criar um teatro calcado na construção cênica, onde

de formas e relevos ressaltava também essa

predominaria a explicita ressignificação dos

premência de interferir concreta e artisticamente

convencionais códigos teatrais para uma exposição

na realidade. A racionalização dos materiais e da

que estivesse mais em consonância com realidade

forma

estavam

popular. Distante do psicologismo e do lirismo o

circunscritos em uma ideia que remonta a cadeia

emprego de diversos recursos cênicos estava a

produtiva, muito associada ao meio fabril, espaço

serviço de criar algo que desse conta de estar à

por excelência da classe operária. Com isso a arte

altura do real movimento das massas, das vozes

construtivista assumia o seu papel de agente

urbanas, com seus conflitos, ora de classe, ora de

modificador da realidade e das mentalidades, ao

consciência (SARAIVA, 2012, p.112). Ao mesmo

mesmo tempo em que reafirmava seu compromisso

tempo em que criava-se uma linguagem teatral

com a causa revolucionária.

desprovida de intelectualismos pouco familiares ao

como

eram

empregados

Na poesia, Maiakovski consolidava-se como o principal expoente e líder das vanguardas russas. Ao mesmo tempo em que experimentava novas formas de métrica em sua estilística, também criava

povo, construía-se uma forma de mobilizar o espectador emocionalmente, lançando mão de diversos recursos familiares a sua realidade urbana, fabril, classista.

tensões entre a sua escrita e a realidade concreta na qual pretendia atuar, no caso o binômio história/coletividade. Seu lirismo dispensa o simbolismo e acolhe as formações oriundas do moderno dinamismo dos centros urbanos A concretude, o material, e o delírio linguístico no qual

estão

inseridas

essas

referências

a

modernidade que o Estado Operário está construindo, são mais uma característica do Construtivismo, agora na poesia que se apresenta de forma construída ao compor cenárias que fogem das referências românticas, sem uma uma ancoragem real, para incorporar aquilo que de certa forma, explode no cotidiano do povo (SARAIVA, 2012, p.111). O teatro marcaria a reunião artes plásticas e poesia. Vsevolod Meyerhold, teatrólogo, e já o citado artista plástico Malevich construiriam uma

Montagem: dos soviéticos a André Bazin O tripé artes plásticas, poesia e teatro, que floresceram durante o período revolucionário, influenciariam de sobremaneira os próceres da montagem soviética que constituiriam o primeiro grande movimento cinematográfico da história. A esse período remonta, pela primeira vez na história, em que se pensou o cinema no sentido de diretrizes estéticas e políticas. Como nos indica Stam as indagações desses primeiros teóricos giravam em torno de questões tais como “que tipo de cinema

devemos promover? Ficção ou documentário? Mainstream ou vanguarda? O que é o cinema revolucionário?”

(STAM,

2013,

p.54).

Os

cineastas/teóricos soviéticos estavam imbuídos do mesmo senso de praticidade dos demais “operários da cultura”: revolucionar a sociedade russa também Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 141 montagem. Grande observador da montagem e da estrutura narrativa dos filmes produzidos nos EUA do período, ele começou a “desmonta-las” e reorganiza-las, repensando-as em uma perspectiva onde se fizesse possível entende-las em termos de efeitos práticos, e quem sabe assim alcançar segredo da eficiência dos filmes americanos que faziam sucesso no mundo todo. Para tal Kuleshov sempre considerou de vital importância medir os efeitos da montagem junto a percepção visual da plateia (XAVIER,2008, p.46). A partir dessa empreitada, seus experimentos de montagem sempre giravam em torno da questão de como o sentido de cada elemento do filme era dado por sua O “efeito Kulheshov”

através das artes, nesse caso especifico através do cinema. Kuleshov, um jovem pintor, fundou a primeira escola de cinema do mundo. Antes disso já fizera seu debut no cinema, trabalhando como cenógrafo em estúdios cinematográficos. Também marcou presença como cenógrafo teatral. Kuleshov dá nome ao primeiro experimento de montagem cinematográfica conduzido com fins de construir uma forma de controle sobre os processos cognitivos do espectador, o “efeito Kulheshov”. Esse experimento alternava a mesma imagem do

posição na montagem do filme. Não é equivocado atribuir a Kuleshov a visionária percepção do cinema como uma linguagem que podia ser manipulada

racionalmente

(SARAIVA,

2012,

p.118). Kuleshov nos arrolou as principais conclusões sobre o uso da montagem enquanto forma de estabelecer

a

semântica

da

imagem

cinematográfica: 1) o momento crucial da prática cinematográfica é o da organização do material filmado; 2) a justaposição e o relacionamento entre vários planos expressa o que eles tem de essencial e produz o significado do conjunto. (XAVIER, 2008, p.47)

um rosto de um ator, com uma determinada expressão, justapondo-a a imagens de outros

Tal qual um cientista que aplica o processo de

objetos (um prato de sopa, uma cama, um bebê, um

engenharia reversa3, ou que procura organizar

caixão, etc). O objetivo desse experimento era

diferentes materiais e recursos com vistas a

provar como o processo de montagem pode gerir

construir algo provido de sentido e finalidade,

as reações emocionais dos espectadores a partir de

Kuleshov aplicou o construtivismo a montagem

uma associação de imagens em uma sequência

cinematográfica

rítmica, criando assim sentido. Kuleshov realizou

experiências a partir da manipulação da percepção

como

forma

de

construir

diversos experimentos que envolviam o processo de 3

O processo de engenharia reversa consiste em desmontar um determinado equipamento ou máquina, para tentar descobrir seu funcionamento, principio tecnológico e seus componentes

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G N A R U S | 142 cognitiva do espectador, através do elemento

técnicas de montagem, transcenderiam a mera

visual. O empirismo que aplicou ao estudo e

linearidade do binômio causa e efeito da narrativa,

elaboração de diversas técnicas de montagem,

gerando uma fragmentação que provocaria

além de terem constituído as linhas gerais iniciais

reflexões,

de outros experimentos estéticos realizados no

associações presentes nas imagens do intercaladas

cinema soviético. Essas experimentações também

no filme (STAM, 2013 p.57). Essas descontinuidades

serviram para reafirmar a posição do artista

presentes no cerne da narrativa gerariam estimulo

enquanto operário e enquanto mantenedor da

intelectual e emocional que irá moldar as reações

causa revolucionária, trazendo para o espectador

do espectador. Como a carne podre em O

novos sentidos e experiências que estivessem em

Encouraçado Potemkim (1925), observada com

consonância com a nova realidade política, social e

estarrecimento pelos marinheiros e com total

cultural.

indiferença pelo oficial superior que a indica

A escola de cinema dirigida por Kuleshov foi o nascedouro dos principais artífices do cinema soviético, dentre eles: Sergei Einsenstein, Dziga Vertov, Vsevolod Pudovkin, Alexander Dovzhenko. Em comum, todos tiveram passagens pelo teatro. Einseinstein

passara

pelo

Teatro

Operário

(Proletkult) e pelo grupo teatral Feks, pelo qual também passara Dziga Vertov (SARAIVA, 2012, p.118). Por questões de espaço e metodologia de análise, nesse artigo não será possível esmiuçar a metodologia e as técnicas empregadas por cada um desses grandes nomes da história do cinema. Farei aqui comentários mais gerais sobre a principal oposição que surgiu nesse movimento que foi entre o cine-punho de Serguei Eisenstein, e o cine-olho de Dziga Vertov. Sergein Einsenstein, o mais influente desses teóricos, operava sua produção artística em uma chave anti-naturalista4, filme deveria conter elementos extradiegéticos5, que apartados pelas 4

Por anti-naturalista devemos entender o cineasta, ou autor, que não se limita a ser um mero guia ou comentador da realidade, seu anseio é justamente o oposto: mostrar como é possível modificar a realidade, através de uma visão crítica que lança luzes sobre os aspectos da sociedade que se mostram deficitários. O objetivo do artista anti-naturalista é justamente fazer da sua arte um instrumento para se intervir na realidade. Em cinema o autor anti-naturalista é aquele cuja filme emprega uma estética de voltada para o sentido da opacidade, que significa um cinema de claros recursos estéticos, empregados

políticas

e

sociais,

através

das

própria para o consumo, o pavão mecânico em

Outubro (1928), símbolo de frivolidade da decadente monarquia, a associação entre o massacre de trabalhadores e um touro sendo abatido em A Greve (1925), esse conjunto de disjunções seriam as formas pelas quais Einsenstein acreditava ser possível estimular o questionamento político dos espectadores, ao passo que também constroem

neles

a

consciência

política

e

revolucionária (SARAIVA, 2012, p.118 e 119). Essa forma de abordagem frontal e interventora, com vistas a construção de um sentimento a partir de sua manipulação, colaborou para a identificação do cinema einsensteiniano como o cine-punho. A meticulosa construção desses momentos de inflexão e irrupção se deve ao fato do cinema eisensteiniano pensar através da imagem e de ser concebido como a montagem de uma grande atração, teatral, circense, estilizado, dividido em esquetes, pontuados por intensidades gradativas

na escala de intervenção, modelando seu discurso que ser por sua vez serve a uma representação definida (XAVIER, 2008, p.11) 5 Por elementos extradiegéticos devemos entender todos os elementos que não estão no tempo e no espaço da trama (elementos diegéticos). O elemento extradiegetico pode ser um narrador, uma trilha sonora executada fora do tempo e do espaço da trama, um recurso de montagem que que justapõem imagens e sequências que não fariam parte dos eventos narrados.

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G N A R U S | 143 (STAM, 2013, p.57), o som melancólico que conduz

representação, Vertov ia em uma direção oposta:

o cortejo marítimo do marinheiro morto em O

fazer tábula rasa das antigas representações

Encouraçado..., no mesmo filme, o rufar dos

artísticas e construir uma nova linguagem

tambores

cinematográfica,

durante

o

posicionamento

do

totalmente

contemporânea

encouraçado tomado por marinheiros rebeldes e a

(SARAIVA, 2012, p.133). Vertov via o momento da

fragata do exército destinada a acabar com o

revolução a oportunidade para se construir algo

motim, tudo embebido em feitos destinados a

totalmente novo, foi o mais radical dos teóricos,

despertar sentimentos muito específicos no

disposto mesmo a ir o mais fundo possível em todas

A. Rodtchenko - cartaz de "Cine-Olho (Kino Glaz)" de Dziga Vertov - 1924.

espectador. A marca do cinema de Einsenstein era

as suas possibilidades. Vertov também foi o grande

uma amalgama de experimentalismo, espetáculo,

idealizador do Kino Pravda (cinema verdade), e isso

este sendo uma forma de ressignificação das

irá influenciar muito na sua forma de captar

representações burguesas de arte, ou sejam, sua

imagens para reconstruí-las para além do fato.

reconstrução,

com

todos

esses

elementos

concorrendo para a transmissão de mensagem política operada em um discurso direto.

O cine-olho de Vertov constituía-se em uma experiência que negava tanto o simbolismo quanto o formalismo, transformando o cinema assim em

O principal contraponto a Einsenstein, era Dziga

uma descoberta fruto constante da constante

Vertov e seu cine-olho. Enquanto Einsenstein dava

decifração das imagens. Para tal, Vertov fez uso de

novos sentidos as antigas formas burgueses de

diversas técnicas de montagem, elipses, inversões

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G N A R U S | 144 temporais,

acelerar

imagens,

congela-las,

Cabe ainda ressaltar que apesar do amplo

trucagens, sobreposições, justaposições, fossem

empenho do Estado em promover o cinema,

elas amplas ou minúsculas. Todos esses efeitos

principalmente

aplicados a sequências aparentemente sem

(veremos isso mais adiante no tópico sobre o

qualquer nexo causal traziam consigo um elemento

Realismo Socialista), esse cinema era precário em

construtivista, a partir dos jogos de relação que

recursos técnicos, o que tornava limitado em muitos

permeavam as imagens, permitindo ao espectador

pontos também estéticos. Procurando virar esse

construir seus sentidos através da percepção visual.

jogo, a carência de materiais estimulou o ambiente

Vertov filmava de forma documental, porém a

criativo que viria justamente a favorecer os

montagem reorganizava, ou melhor, reconstruía, a

experimentalismos na área da montagem, sob

imagem e a colocava em encadeamento e

diversos matizes. Tratava-se de um conjunto de

associação com outras imagens igualmente

questões que envolvem desde tempo e condições

reconstruídas (SARAIVA, 2013, p.135).

de projeção do filme até a necessidade de se

Enquanto Einsenstein tinha um estilo retumbante, explosivo,

Vertov

mesclava

uma

porção

documentário, no caso a parcela verdade do cinema, com uma poesia que remontava a Maiakovski, principalmente por essa trazer em seu bojo a tensão da realidade e sua concretude com o lirismo que lhe é impresso pelo trabalho de

para

usos

propagandísticos

transmitir uma mensagem de forma objetiva, direta e inconteste. A título de curiosidade: a mentalidade desenvolvida no cinema soviético de transformar a faltar de recursos em estética, permeou outros três grandes

movimentos

cinematográficos,

o

Neorrealismo italiano, o Cinema Novo Brasileiro, e o Nuevo Cine Latinoamericano.

montagem que retrabalha a imagem e a encadeia

Do que foi apreendido até aqui, tanto para

em uma sucessão de relacionamentos. Por esse

Einsenstein quanto para Vertov, entre outros

motivo Vertov se situava em uma categoria de

teóricos da escola soviética de montagem que

documentário poético (STAM, 2013, p.61). Ao se

oscilavam entre ambos os estilos, mas sempre

propor a decifrar o mundo, expor seus mistérios,

impondo alguma particularidade autoral, o

desmistifica-lo, ao mesmo tempo em que procurava

significado do filme é fruto da ação do espectador

circunscreve-lo dentro da vida urbana, material,

em contrastar duas tomadas distintas que são

produtiva, Vertov conciliava duas pontas da

justapostas através da montagem. Por vias e

corrente comunista de uma visão de mundo

metodologias diferentes, Einsenstein e Vertov

revolucionária: o entendimento do mundo par além

acreditavam no cinema enquanto forma não só de

da

artísticas

registrar a realidade, como também de transforma-

burguesas (as quais Vertov queria limar). A

la. Einsenstein criava o novo a partir do significado

exposição do cinema enquanto um elemento de

advindo dessa relação das imagens no plano,

construção que atravessa diversos processos que o

Vertov via a possibilidade de emergência do novo

trabalham, o moldam e o definem, tal como ocorre

com o registro do real sendo justaposto ou

em uma linha de produção era a marca do Estado

intercalado

Proletário

transformadas através da montagem (TURNER,

alienação

das

representações

racionalizado

e

construtor

que

reiteravam o filme enquanto uma divisão de tarefas

por

imagens

a

trabalhadas

e

1997, p.41 e 42).

produtivas (MICHELSON, apud STAM, 2013 p.63). Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 145 Mas ainda no século XX os significados e atribuições da montagem

ganhariam

deixa de ser a única forma de se criar sentido em um

novas

filme, para ser um dos recursos da linguagem

roupagens e significados, pelas análises de André

cinematográfica a colaborar para a criação e

Bazin.

reprodução de sentidos. Um plano longo formado

Bazin fora crítico de cinema e teórico, fundador da Cahiers du Cinema. Ajudou a ressignificar o papel da montagem dentro dos estudos daquilo que se constituiu na linguagem cinematográfica. Enquanto os teóricos soviéticos viam o sentido do filme repousar na combinação de tomadas, matéria

por um único quadro, ou um plano formado por sucessivos quadros, necessita não só dos elementos que estão presentes no quadro, o mise-em-scène, como também de uma forma de fazer com que a reprodução desses sentidos tenha ritmo e coerência através desses diversos quadros e/ou

prima captada a partir de “fragmentos da

planos. O recurso da montagem pode chamar

realidade”, rearranjados em um quadro, Bazin

atenção para um detalhe, ressaltar um elemento de

elabora a ideia de que o sentido da imagem, e por conseguinte do filme, está na composição da tomada em si mesma. Bazin traz a luz o conceito de

mise-em-scène, o movimento e arranjo dos elementos no quadro ou na tomada de uma cena a fim de observar como se podiam gerar significados.

cena, criar situações onde o mesmo sentido pode ser observado de diferentes formas (um mesmo evento visto pelo ponto de vista de diferentes personagens), criar rimais visuais que denotem um sentido especifico, enfim, as possibilidades são muitas.

Esses elementos iam desde o posicionamento e

Nem tudo na Rússia revolucionária era bonança.

movimentação da câmera, posicionamento e

A

movimentação dos atores, figurinos, iluminação,

Bolcheviques tinha uma face menos grandiosa e

cores do cenário, fluxo da cena, arte, etc. Nesse

mais rígida. A política oficial, o Realismo Socialista,

ponto encontramos outra aparente oposição aos

em um tempo relativamente curto, engessa todas

diretores e teóricos que soviéticos, pois estes viam

as

na limitação do cinema o seu maior trunfo estético,

revolucionária ocorre um processo de ortodoxia

enquanto Bazin via na apropriação de elementos

que passa a condenar e a perseguir todos que se

que compunham a linguagem cinematográfica e

opusessem as diretrizes do Estado. O próximo

criavam uma “ilusão do real” o grande mote da arte

tópico fala justamente desse debaclé artístico e

cinematográfica, dado a sua potencialidade infinita

também político.

de combinações e arranjos para a produção de

O Realismo Socialista

sentidos (TURNER, 1997, p.44). O mise-em-scène mostrou-se a mais importante contribuição teórica de Bazin, ajudando a romper com uma certa rigidez teórica dos diretores soviéticos que atribuíam única e exclusivamente à montagem a responsabilidade por conferir sentido ao filme. Com o mise-em-scène a própria montagem sofre uma guinada conceitual, pois

estatização

cultural

manifestações

promovida

artísticas.

De

pelos

vanguarda

Para além do juízo de valor acerca do sucesso ou fracasso do regime político socialista da antiga URSS, e como vem sendo reiterado ao longo desse artigo, a iniciativa do governo revolucionário que começou ascender ao poder em outubro de 1917, de estatizar as artes, dentre elas o cinema, produziu resultados muito fecundos. Seja no âmbito da história do cinema, dos estudos culturais, os Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 146 teóricos soviéticos abriram caminho para se pensar

de poucas palavras e com referenciais políticos bem

o cinema de uma forma inédita até então.

claros, desprovida de ambiguidades, de acentuado

Promoveram um aprofundamento artístico e

caráter doutrinária, claramente voltada para

técnico. Forma e conteúdo, nas abordagens desses

apreensão simples por parte das massas de novas

teóricos, tornaram-se questões dialéticas. Todavia

noções políticas. O construtivismo foi pilar

o que antes fora a ponta de lança dessa revolução,

fundamental dessa diretriz cultural, porém, sem o

começou a ser “cegado” pela burocracia e pela

arrojo e sem a liberdade criativa de outrem.

ascensão ao poder de grupos políticos mais preocupados

em

engessar

as

formas

de

representações artísticas, para favorecer um processo de ideologização, do que ousar através delas.

Na década de 20 os artistas soviéticos já mostravam sua insatisfação perante as diretrizes governamentais que impunham verticalmente formas de se gerar conteúdos artísticos. Acusavam o governo de limitação, simplificação e de coibir o

O Realismo Socialista, que grosso modo fora a

arrojo artístico. A centralização e a estatização das

política oficial do Estado para a estética, aplicada

artes, que no começo foi de vital importância para

em todos os campos artísticos, literatura, artes

se pensar e desenvolver novas formas de

plásticas, poesia, design e no tão aclamado cinema,

representação artística, agora cobrava um preço,

começou como uma diretriz elementar para se

além de se tornar um problema difícil de lidar por

transmitir uma mensagem ao povo russo pós-

parte dos artistas.

czarismo e com a revolução bolchevique já consolidada. De recursos estéticos simples, com uso

Cena de "Quando Voam as Cegonhas". Era do Realismo Socialista

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 147 No tocante aos efeitos do realismo socialista no

Comunista da União Soviética ocorrido em 1924,

cinema soviético, Furhammar e Isaksson nos

logo após a morte de Lenin, o grupo de Stálin

indicam:

começa a alcançar proeminência política sobre as

“A história do cinema soviético foi desde o princípio, em maior extensão do que em qualquer outro país, a história do relacionamento entre cinema e política. Na Rússia o desenvolvimento o desenvolvimento do cinema tem sido dirigido pelas autoridades de modo muito mais firma do que em qualquer outro lugar, e o conteúdo dos filmes russos muito mais impregnado pela mitologia política oficial do momento [...]. No começo, a revolução da revolução estavam ainda frescas, o ódio era violento o os filmes tinham realismo brutal. Mas revolução estabeleceu-se, transformou-se numa revolução, em um símbolo nacional”. (FURHAMMAR & ISAKSSON, 1976, p.13).

demais facções. Stálin começa a construir sua imagem de herdeiro político legítimo de Lenin. Já no XV Congresso, em 1927, Stálin consolida seu poder como Secretário Geral do Partido, afastando a fação trotskista. Nesse mesmo período o controle do partido recrudesce, o controle ideológico sobre os filmes se faz mais constante e intenso. A escolha política torna-se agora um pesado fardo para esses cineastas (colocar a fonte). Já em 1924 a controvérsia entre autoritários e liberais se faz presente. O então integrante do

A estatização do cinema por parte do governo

Politburo6 do Partido Comunista, Nikolai Bukharin,

bolchevique advém também da necessidade de se

um dos grandes cabeças da revolução de outubro e

montar uma máquina de propaganda em um

do partido Bolchevique, adota uma postura

momento onde a revolução ainda não estava

tolerante

consolidada. Durante a guerra civil (1918-1921),

entendimento, por parte do partido, de que

fazendo uso das poucas reservas técnicas que

nenhum estilo era representativo ou exclusivo

restaram após a evasão dos empresários e técnicos

Partido. As vanguardas respiraram aliviadas.

da indústria cinematográfica, para mobilizar um

Colaboraria ainda mais para a autonomia do

esforço de propaganda. Foram realizados filmes

cinema e das demais artes a ação de Anatóli

curtos, em sua maioria filmes de agitação, que

Lunatcharski, Comissário para a Informação, crítico

tinham a função de ser uma espécie de cine jornal.

literário e grande entusiasta do cinema. O binômio

Esses filmes eram destinados os “trens de

Bukharin/ Lunatcharski deteve a sanha autoritária,

propaganda”, que eram despachados para os

mas não por muito tempo. Já em 1928, com Stálin

territórios mais distantes do país, com a intenção de

consolidando seu poder como Secretário Geral do

levar os avanços da revolução a todos os povos da

Partido o controle ideológico torna-se uma

Rússia. Esses curtos filmes de agitação continham

demanda política de primeira necessidade. Em

ideias

revolucionários,

1930, durante o XVI Congresso do Partido

praticamente panfletos filmados (FURHAMMAR E

Comunista, sacramentam a função da arte como

ISAKSSON, 1976, p.14)

instrumento político. Era a adoção oficial do

simples,

slogans

e

progressista,

ajudando

no

O que antes era uma lealdade natural dos

Realismo Socialista como a única estética válida em

cineastas em relação ao governo, de forma até

toda a URSS (FURHAMMAR E ISAKSSON, 1976,

muito rápida azedou. No XIII Congresso do Partido

p.19 e 20).

6

Comitê executivo onde se agrupavam os diversos partidos comunistas e onde eram discutidas as diretrizes políticas e ideológicas

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 148 O fiasco do Realismo Socialista caminha lado a lado com o próprio cenário de terror que se descortinava na URSS. A década de 30 se revelaria um período conturbado nas relações políticas e sociais internas. Nomes importantes do partido Bolchevique, e que lutaram na revolução de outubro de 1917 e na guerra civil de 1918-1921, passaram a ser acusados de traição e associação com agentes imperialista estrangeiros. Entre as grandes figuras perseguidas e mortas estão o Leon Trotsky, o já citado Bukharin, Zinoviev, Kamenev, Rykov7. Isso só para citar os nomes mais conhecidos. O grande terror stalinista, também conhecido como o período do Grande Expurgo, que foi de 19341939, espalhou o terror no conjunto da sociedade. Uma política do medo dominava o imaginário social, onde qualquer um podia ser um inimigo em potencial. Tal prática levou a uma grande atrofia social, que se retroalimentava desse medo e insegurança, criando um ambiente de desconfiança e animosidade, manifestado na vigilância constante por parte do cidadão comum, preocupado em não se ver atingido por essa repressão sistemática e brutal, nem que para isso tivesse que denunciar, mesmo sem motivo aparente, seu vizinho, ou seu familiar. O dispositivo de repressão contava com o monopólio dos meios de comunicação e imprensa por parte do partido, com um rígido controle da censura, facilitando assim o controle ideológico. O terror tornou-se o espetáculo oficial do partido. O povo era conclamado a participar como ator daquele

processo.

Esse

espetáculo

era

a

dissimulação das intenções do partido, para ocultar seus mecanismos e seu sutil jogo do visível/invisível, que manipula os imaginários sociais. O conjunto das

pilares da ascensão de um regime burocrático e totalitário (BACZKO, 1985, p. 326). A imposição do Realismo Socialista como forma artística oficial do partido, para além do incentivo estatal, bem como a censura e o rígido controle ideológico que se seguiu sobre os diversos aspectos da vida dos soviéticos, são denotativos de um princípio que colocam a ideologia em si como a força motriz natural do processo político, social e histórico. Como formula Hannah Arendt, a partir do momento

em

que

se

inviabiliza

qualquer

interferência humana de quaisquer aspectos reguladores e legitimadores da vida social, cria-se uma lógica tirânica que vai tornar inelutável qualquer oposição, pois o que está em marcha e a natureza, a História encarnada pelo partido. Esse pensamento conduz a uma situação tal que, a qualquer momento, qualquer um pode e deverá ser eleito como o “inimigo” do Estado, do partido, que são os representantes naturais da História. A punição do partido, encarnada nos julgamentos dos grandes expurgos, seria nada mais, nada menos, do que o partido cumprindo o seu papel nessa lógica de conhecedor desses crimes, só lhe restando assim puni-los. Daí surgem as confissões sem crimes existentes, mas que alimentavam a sanha popular pelo punitivismo (ARENDT, 1960-1975, p.525). O que era a oficialização do Realismo Socialista se não uma das formas empregadas pelo partido para limitar

a

interferência

social

no

processo

revolucionário. Além de ser o instrumento necessário para a mínima mobilização popular, da qual nenhum governo, seja ele totalitário ou não, pode dispensar, incutindo valores e propagando a lógica “natural” da qual o partido é o timoneiro.

práticas de repressão e controle ideológico eram os

7

Para saber um pouco mais sobre a importância dessas e de outras figuras de destaque durante a Revolução Bolchevique,

indico e leitura de REED, John. Dez dias que abalaram o mundo. São Paulo: Pinguin Classics Companhia das Letras, 2010

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G N A R U S | 149 O Realismo Socialista no cinema Soviético tinha

filme fora uma encomenda do próprio Stalin, justo

diversas limitações no tocante a transmissão dessa

no momento em que a Alemanha preparava seus

“realidade revolucionária”. Criaram-se imagens

exércitos para uma eminente investida militar pela

excessivamente idealizadas e unidimensionais

Europa. Logo após a assinatura do já citado Pacto

dessa realidade que tentava mostrar idílio na terra

Molotov-Ribbentrop, esse e outros filmes de

na qual havia se transformado a vida do trabalhador

propaganda foram tirados de circulação. Sendo

urbano e rural. A efervescência artística que havia

novamente postos em circulação no ano de 1941,

incentivado a mudança tornou-se uma couraça

quando a Alemanha Nazista o viola e parte para a

dura, pesada e impenetrável. A ficção dita sócio-

tentativa de conquista o território soviético.

realista tornou-se apologética, a ponto de fazer qualquer crítica contrária parecer desconfortável ou equivocada, pois ao se questionar a forma como essa “realidade revolucionária” era passada, era o mesmo que se postar contra a revolução, contra o Partido e, por conseguinte, contra a História. Se as experiências estilísticas dos teóricos da montagem tiveram dificuldades em tocar o povo, o realismo socialista, padronizado e aborrecido, também não chegou

perto

de

lograr

maior

sucesso

(FURHAMMAR E ISAKSSON, 1976, p.20).

e antes da assinatura do Pacto MolotovRibbentrop8 entre URSS e Alemanha Nazista às vésperas da Segunda Guerra Mundial, tem início uma produção incessante de filmes, ficções e documentários que alardeavam os perigos do nazifascismo. Enquanto a URSS Comunista era mostrada como o país aonde esses males jamais chegariam, além de ser a oposição natural ao nazifascismo. Remonta a esse período o último grande sopro criativo de Sergei Einsenstein, e um filmes

de

propaganda

política

Realismo Socialista passa por uma guinada, não no sentido qualitativo, e passa a recorrer a secular história Russa para criar novas consignas que forjem, além do nacionalismo, o pressuposto histórico que coloca o Partido na condição de força natural e histórica que está guiando a URSS a sua posição de natural grandeza. E que parte dessa grandeza fora justamente construída no dos inimigos externos, dentre eles principalmente, os alemães.

Após a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha,

dos

É interessante observarmos nesse período como o

mais

significativos do período, Alexandre Nevsky (1928), baseado na história do príncipe homônimo, que no ano de 1242 combateu os Teotônicos (alemães) e os Tártaros, expulsando-os do território russo. Esse

Ao evocar a figura de Alexandre Nevsky, além de estabelecer o seu uso propagandístico ao relacionar a liderança e coragem do príncipe e o papel de Stálin como Secretário Geral do Partido diante do avanço do nazifascismo, o filme de Einsenstein torna-se não só um documento histórico de sua época, como também está embebido no esforço soviético de monumentalizar o seu passado histórico, seu presente e um determinado personagem e uma determinada situação, através do estabelecimento de paralelos históricos. Alexandre Nevsky (filme) torna-se documento por tratar-se de um produto oriundo das relações de força que o forjaram, e que detinham o poder naquele momento. Para os contemporâneos do filme e também para os seus

8

Tratado de não agressão assinado entre a Alemanha Nazista e a União Soviética em 23 de agosto de 1939

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 150 pósteros, trata-se de um monumento por ser uma

cristalização dos discursos, os anacronismos e

forma de perpetuar determinados valores e visões

desvendar as problemáticas de representação que

de mundo, imaginários, e quem define isso é,

são suscitadas acerca desse passado

logicamente, quem está no poder. Logo o monumento é gerido como um instrumento de poder, e um status atribuído ao documento e a as relações que tornaram possível a sua cristalização (LE GOFF, 2013, p.494-495).

A partir das formulações dos conceitos de documento e de monumento, pensemos não só no filme Alexandre Nevsky, mas no conjunto de propostas do Realismo Socialista e em seu contexto. Dessa relação podemos depreender a

A partir das formulações dos conceitos de

idéia que surge em torno do empreendimento de se

documento e de monumento, pensemos não só no

de gerar monumentos históricos, voluntaria ou

filme Alexandre Nevsky, mas no conjunto de

involuntariamente, a partir de uma sociedade

propostas do Realismo Socialista e em seu

historicamente

contexto. Dessa relação podemos depreender a

revolucionária), com a afirmação de um discurso

idéia que surge em torno do empreendimento de se

monolítico sobre as representações do passado

de gerar monumentos históricos, voluntaria ou

(NAPOLITANO, 2007, p.66). Os filmes do período

involuntariamente, a partir de uma sociedade

geridos pela diretriz estética do Realismo

historicamente localizada (URSS pós-revolução),

Socialista, independentemente de serem ficção ou

com a afirmação de um discurso monolítico sobre

documentário, eram também documentos, e

as representações do passado (NAPOLITANO,

tratavam diretamente de um momento histórico: a

2007, p.66). Os filmes do período geridos pela

revolução e o pós-revolução. Tratava-se de filmes

diretriz

realizados como partes de um esforço para

estética

independentemente

do

Realismo

de

serem

Socialista, ficção

ou

documentário, eram também documentos, e tratavam diretamente de um momento histórico: a revolução e o pós-revolução. Tratava-se de filmes realizados como partes de um esforço para consolidar a revolução e construir um legado, por isso não é equivocado situa-los na classificação de filmes históricos9. A análise desses filmes enquanto documento/monumento,

é

tomar

parte

na

operação intelectual de não só medi-los pelo seu grau de veracidade, pois como formulou também Le Goff “documento é monumento [...]. No limite

não existe documento verdade. Todo documento é mentira” (LE GOFF, 2013 p.497), como também desconstruir, ou melhor, desmonumentalizar a

localizada

(URSS

pós-

consolidar a revolução e construir um legado. As limitações impostas pela estética do Realismo Socialista não são intrínsecas, pois estão atreladas a uma realidade onde a disposição dos recursos materiais serão fomentadores das possibilidades técnicas e estéticas relacionadas ao filme. Da mesma que os teóricos da montagem criaram seu método em parte calcado nas condições materiais daquele momento da revolução e da guerra civil, a estética

do

Realismo

tratará

baseada

em

determinadas condições igualmente materiais, os elementos

que

cinematográfica

irão

nortear

daquele

a

linguagem

momento.

Essas

condições acerca da representação do real influenciarão de sobremaneira a forma como irão

9Gênero

cinematográfico, onde a partir de uma ficção, reencena o passado com os olhos voltados para o presente (SORLIN. Apaud. NAPOLITANDO, 2007, p.67)

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G N A R U S | 151 operar as estratégias de monumentalização (MORETTIN, 2007, p.54). As breves exemplificações e formulações de conceitos aqui apresentadas nos ajudam a dimensionar o esforço que é pensar o cinema, nesse caso o cinema soviético. Essa leitura não se limita somente a um juízo de valor qualitativo, mas a uma leitura histórica dos conteúdos e das estéticas geradas nesse cenário histórico igualmente inédito. De tal forma que assim nos são fornecidas as ferramentas necessárias para pensar o contexto e o sentido da produção fílmica daquele período, para além da condição de monumentalização de um legado que se pretendia irrefutável. Nas palavras de Napolitano: “Portanto, ao contrário da separação rígida e estatutária entre documento e monumento, trata-se de operações culturais e intelectuais que, a um só tempo, monumentalizam ou desmontam as representações cristalizadas do passado.” (NAPOLITANO, 2007, p.66)

À guisa de conclusão O pós-Segunda Guerra marcou o pico da crise da indústria cinematográfica soviética, agora também em termos quantitativos. Das dezenas de filmes produzidos nas últimas décadas, o ano de 1952 traz consigo a marca de somente 5 filmes produzidos e lançados. Houve nesse mesmo período uma enxurrada de filmes históricos realizados com vistas a monumentalizar a imagem do Stálin. Era o Realismo Socialista atingindo seu ponto mais precário (FURHAMMAR E ISAKSSON, 1976, p.26). Em março de 1953 Stálin morre. Kruschev assume como novo Secretário Geral do Partido. Tem-se início um processo de “degelo” ou desestalinização,

O que temos hoje é a preponderância histórica dessa forma de fazer e pensar o cinema como representante de uma época e de um momento histórico muito representativo, nos âmbitos político, social, econômico e cultural. Longe de ser uma nota de rodapé, o cinema soviético ocupa algumas das páginas mais importantes da história do cinema. Com o advento da Nova História Cultural e dos Estudos culturais, novas luzes foram lançadas sobre essa forma de fazer cinema, nos permitindo análises mais minuciosas e abrangentes das teorias do período, que até hoje influenciam na formação de diversos cineastas e teóricos. Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestrando em História pela Unirio, pesquisa Cinema na América Latina e colunista especialista em cinema da Gnarus Revista de História.

Bibliografia ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. São Paulo. Companhia das Letras, 1989 BACZKO, Bronislaw. A imaginação social In: Leach, Edmund et Alii. Antropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985 FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. São Paulo: Coleção Khronos Editora Perspectiva, 1974 FURHAMAR, Leif. Cinema a política/por/Leif Furhamar/e/Folke Isaksson Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1976 MORETTIN, Eduardo. “O cinema como fonte histórica na obra e Marc Ferro”. História e cinema/CAPELATO, Maria Helena [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007 NAPOLITANO, Marcos. “A escrita fílmica da História e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton”. História e cinema/CAPELATO, Maria Helena [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007 SARAIVA, Leandro. “Montagem soviética”. História do cinema mundial/ MASCARELLO, Fernando (org). Campinas, SP: Papirus, 2012 STAM, R. Introdução a Teoria do Cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003 TURNER, Graeme. O cinema como prática social – São Paulo: Summus, 1997 XAVIER, Ismail. O Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008

ao ponto da imagem de Stálin ser limada de filmes anteriores, bem como a proibição do culto a sua imagem.

Filmografia

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G N A R U S | 152 A seguir uma breve filmografia de alguns filmes soviéticos realizados entre o período da Revolução Bolchevique e o início da Segunda Guerra Mundial: Cine-Olho. Direção: Dziga Vertov, URSS, 1924 A Greve. Direção: Serguei Eisenstein, URSS, 1925 O Encouraçado Potemkin. Direção: Serguei Eisenstein, URSS, 1925 A mãe. Direção: Vsevolod Pudovkin, URSS, 1926 Outubro. Direção: Serguei Eisenstein, URSS, 1927 Arsenal. Direção: Aleksandr Dovjenko, URSS, 1928 O home com a câmera. Direção: Dziga Vertov, URSS, 1929 Três canções para Lenin. Direção: Dziga Vertov, URSS, 1934 A felicidade. Direção: Alexandre Medvedkine, URSS, 1935 Lenin em outubro. Direção: Mikhail Room, URSS, 1937 Alexandre Nevsky. Direção: Serguei Eisenstein, URSS, 1938

Bibliografia complementar Abaixo a relação de alguns livros básicos para conhecer melhor a Revolução Russa:

FILHO, Daniel Aarão Reis. As revoluções russas e o socialismo soviético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 GOLDMAN, Wendy Z. Mulher, Estado e Revolução: política familiar e vida social (1917-1936). São Paulo: Boitempo: Iskra Edições, 2014 LENINE. V.I. Obras escolhidas - Lênin – I. São Paulo: Alfa Ômega, 1986 Obras escolhidas - Lênin – II. São Paulo: Alfa Ômega, 1986 Obras escolhidas - Lênin – III. São Paulo: Alfa Ômega, 1986 REED, John. Dez dias que abalaram o mundo. São Paulo: Pinguin Classics Companhia das Letras, 2010 REMMINCK, David. O túmulo de Lenin: os últimos dias do império soviético. São Paulo: Companhia das Letras, 2017 TROTSKY, Leon. A história da revolução russa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1977 VISENTINI, Paulo Fagundes. Os paradoxos da revolução russa: novas teses sobre o stalinismo, as guerras e a queda da URSS. Rio de Janeiro: Alta Books, 2017 WILSON, Edmund. Rumo a estação Finlândia: escritores e atores na história. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

”A Mãe”, direção Vsevolod Pudovkin,

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