7 gnarus6 dunstanamello da civilização a favela

Page 1

GNARUS|1

Artigo

DA CIVILIZAÇÃO DOS TRÓPICOS À BARBÁRIE DAS FAVELAS CARIOCAS Por: Dunstana Farias de Mello

Resumo: Ao longo do século XIX as jovens nações americanas procuraram construir suas identidades nacionais, apoiando-se na exuberância da natureza, pois consideravam inexpressivos e inadequados os elementos culturais e étnicos, decorrentes da miscigenação. A natureza foi considerada por muito tempo o lugar da barbárie à espera da ação do homem branco para transformá-la em civilização. O conceito de civilização, valorizado no século XIX, foi empregado utilizado para justificar o domínio dos europeus sobre outros povos e depois o domínio dos seus descendentes americanos sobre os negros e os indígenas. A dicotomia civilização/barbárie foi empregada em diversos contextos. Entre eles, podemos citar o estabelecimento do contraste entre as favelas (barbárie) e a cidade formal (civilização), no Rio de Janeiro.

"Cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra." (Michel de Montaigne)

A

o longo do século XIX o

portas para a conquista e colonização da

cientificismo contribuiu para o

África e da Ásia pelos europeus. Na América, o

desenvolvimento e a aceitação

século XIX foi o palco da independência da

da convicção da superioridade

maioria das colônias, surgindo novos países

da raça branca sobre os outros povos do

ansiosos em forjar suas identidades nacionais.

mundo, o que convenientemente abriu as

Na América do Norte, os Estados Unidos já


GNARUS|2 haviam se libertado da Inglaterra desde 1776

questionamentos às ideias negativas sobre a

e, no século seguinte, rapidamente se uniram

América

sob o princípio de Destino Manifesto, que os

consolidavam na Europa. Com os movimentos

impulsionou para a conquista do oeste.

de independência americanos as elites se

Entretanto, na América Latina, de um modo

viram impossibilitadas de extrair elementos

geral,

recém-independentes

favoráveis à unidade nacional da essência dos

tomaram rumos diferentes visando o mesmo

povos miscigenados e de suas heranças

objetivo: construir-se enquanto nação. A forte

históricas. Coube à natureza o lugar de refúgio

presença de indígenas (na América andina) e

aonde era possível construir as imagens de

de africanos (principalmente, no caso do

nações exuberantes, com um futuro promissor

Brasil), que nas nações recém-independentes

que as aguardava. A natureza selvagem não

da

integrados

seria mais o lugar que brutaliza o homem, mas

economicamente e que, portanto, eram

se transformaria no “vazio”, na ausência de

necessários à continuidade da produção de

civilização, no lugar que aguarda a ação do

matérias-primas destinadas aos mercados

homem civilizado para sua transformação.

as

nações

América

Latina

estavam

e

seus

habitantes,

que

se

europeus, não contribuía para a formação de

A dicotomia civilização/barbárie adquiriu

uma identidade nacional calcada na formação

diversos contornos na América oitocentista:

do povo e exigia uma urgência em buscar

cidade/pampa, na Argentina; litoral/sertão, no

novos elementos para dar base a essa unidade.

Brasil; como podemos ver, respectivamente,

O enaltecimento da beleza e originalidade da

nos escritos de Domingos Faustino Sarmiento

natureza

e do Visconde do Uruguai. Esse processo

americana

foi

o

amálgama

encontrado para constituir as jovens nações.

desaguou no século XX, quando, no Brasil, a

Desde o século XVIII, se argumentava na

República intensificou as ações destinadas a

Europa sobre fragilidade ou mesmo a

integrar

insalubridade da natureza americana e dos

expedições

seus nativos. Ao clima tropical, especialmente

objetivamente, mas com um único intuito

da América do Sul, era atribuído a fonte de

abrangente de levar a civilização ao sertão. No

doenças e de degeneração humana. Muitos

caso especificamente urbano carioca, os novos

foram

bárbaros são os moradores das favelas. Na

os

intelectuais,

americanos,

que

se

desconstruir

essa

imagem

principalmente

esforçaram

para

negativa

do

esses

dois

com

polos,

promovendo

diversas

finalidades

cidade do Rio de Janeiro, a civilização e a barbárie

conviveram

durante

séculos

continente. No México, a resistência de

incorporados, respectivamente, no branco

antiquários crioulos, com a tentativa de

livre e no escravo. As obras de Jean Baptiste-

preservação de documentos dos povos pré-

Debret expõem a distinção entre a vida

colombianos,

reservada

provocou

fortes

das

famílias

nos

ambientes


GNARUS|3 domésticos e as ruas da cidade onde

da superioridade de uma raça sobre as outras

circulavam os negros, principalmente os

e o Brasil, um país fortemente miscigenado,

negros de ganho. O fim da escravidão

não encontraria na constituição do seu povo

deslocou a barbárie para os cortiços e

um motivo de orgulho nacional. Coube à

posteriormente para as favelas, local de

exuberância do meio natural do território

absorção dos pobres que chegavam à cidade,

brasileiro o papel de representante do nosso

vindos da Europa e de outras regiões do país.

valor enquanto nação.

Ao longo do século XX, foi-se formando

Maria Elisa Noronha de Sá (2012: 109-110),

gradativamente a imagem da favela como um

em

lugar de exclusão, um mundo a parte, violento

observa que, desde o século XVIII, pensadores

e insalubre, mas que às vezes ganhará

como o naturalista francês Conde de Buffon e

contornos de interior que se avizinha, de roça

o holandês Cornelius De Pauw teorizaram

tranquila e atrasada, carente de civilização.

sobre a inferioridade da América quando

sua

obra

Civilização

e

barbárie,

Neste artigo, veremos como o conceito de

comparada à Europa. Para Buffon, a América

barbárie se deslocou, adquirindo novas

era “imatura”. Para De Pauw, mais radical, os

formas, dependendo dos interesses daqueles

trópicos provocariam a degeneração dos

que se julgaram exemplos da civilização que

homens

pretendiam propagar.

descendentes de europeus. Suavizando o

A América sob a ótica do estrangeiro A influência do meio natural na construção da identidade nacional de um povo foi valorizada na América a partir do século XIX. No caso brasileiro, durante o Império, veremos a necessidade de buscar elementos de orgulho nacional, que pudessem servir de amálgama para conferir uma unidade à diversidade presente a uma nação tão extensa geograficamente. Nosso passado colonial não era um motivo de orgulho, portanto não era um passado a ser lembrado sem críticas, e o passado

indígena

seria

motivo

de

idealização de uma época distante e perdida. O pensamento científico ao longo do século XIX, por outro lado, determinou a existência

que

aqui

viviam,

mesmo

os

discurso de De Pauw, outros pensadores, inclusive Buffon, acreditavam na juventude do continente americano e no seu destino natural de desenvolvimento a ser conduzido pelos europeus.

“Viagens

filosóficas”

foram

implementadas pelos europeus no século XVIII, para visitar outros continentes como a África e a América, com a intenção de conhecer para melhor explorar essas regiões. Nos moldes iluministas, cientistas dedicados a diversas áreas do conhecimento viajaram ao continente americano para conhecer as espécies animais, os minerais e os habitantes nativos. Embora houvesse vozes discordantes, as ideias mais aceitas na Europa deram ao homem americano a imagem de insensível e inepto. Um bom exemplo a ser citado é a


GNARUS|4

Relation Abrégée, de Charles-Marie de La

percorreu o Rio Negro, visitando, trinta anos

Condamine, que teve uma grande aceitação

depois, muitos lugares onde esteve La

na França, em 1745. La Condamine, após ser

Condamine, e questionou várias de suas

enviado por uma missão francesa para medir a

afirmações sobre a natureza do nativo,

circunferência da Terra à altura do Equador,

negando a existência das amazonas. O

decidiu descer o Rio Solimões desde sua

naturalista alemão Alexander von Humboldt,

origem até a desembocadura do Amazonas no

embora discordasse das ideias de Buffon e De

Pará para conhecer e descrever as plantas, os

Pauw, apoiou fortemente La Condamine

animais e os homens que ali se encontravam.

quanto ao mito das amazonas (Idem: 108). O

No século XVIII, relatos de viagens tinham

mesmo

grande receptividade no meio acadêmico e

acadêmico europeu ao buscar fundamentos

literário europeu e La Condamine logo

científicos para negar a inferioridade da

encontrou ecos as suas observações sobre os

América e afirmar a igualdade entre as raças

nativos da América. La Condamine recolheu

humanas.

informações com europeus que já viviam na

Humboldt

influenciou

o

meio

Segundo Maria Ligia Coelho Prado (1999:

América há algum tempo, como o Marques de

185),

Valleumbruso e o jesuíta Jean Magnin, que

entusiástica a natureza americana e saiu em

conheceu em Quito, antes de começar sua

sua defesa, contra as ideias de Buffon e De

viagem. Deles, La Condamine tomou como

Pauw, tão aceitas na Europa. Humboldt se

suas as impressões bastante negativas sobre os

transformou em leitura obrigatória na América

nativos e reforçou as ideias já difundidas de

Espanhola. Ainda segundo Prado, as críticas às

Buffon sobre a imaturidade do indígena e

ideias de Buffon e De Pauw tiveram diferentes

também sobre a falta de caráter, a preguiça e

origens quando se compara a América do

a incapacidade intelectual dos mesmos,

Norte e a América Espanhola: na primeira,

defendidas por De Pauw (SAFIER, 2009).

coincidiu com uma nação já independente

Também criou

a

buscando a construção de uma identidade

existência de mulheres guerreiras, vivendo

nacional e os principais defensores pautavam-

isoladas na floresta: as amazonas. Segundo

se na grandiosidade da natureza americana,

Neil Safier (2009:110), que escreveu sobre o

chegando mesmo a pretenderem provar a sua

impacto causado pelo relato de La Condamine

superioridade frente à europeia; enquanto na

ao reforçar tais ideias, o malefício causado por

segunda, o prisma religioso católico era dado

ele não pôde ser superado, apesar das várias

pelos jesuítas recém-expulsos que retornaram

contestações que se seguiram. Como exemplo,

à Europa. Uma forte reação a essas ideias

Safier cita as críticas feitas pelo português

também

Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, que

americanas no Norte, após se libertarem do

polêmica

ao

afirmar

Humboldt

se

apresentou

apresentou

nas

de

forma

colônias


GNARUS|5 domínio inglês, valorizando a grandiosidade

diferentemente do tom nacionalista de

da natureza americana. O caso norte-

exaltação da natureza, presente nas obras dos

americano está mais bem exposto no texto de

pintores

Maria Ligia Coelho Prado (1999: 197), ao

interessavam-se pelos tipos físicos, como o

analisar a visão sobre a natureza presente nas

gaúcho, nos pampas, por exemplo.

obras literárias e políticas e na pintura, especialmente nos pintores da Escola do Rio Hudson, que se dedicavam a pintar a natureza daquela região. Esses pintores estudaram na Europa, absorveram os padrões técnicos europeus, mas dedicavam-se a uma temática completamente norte-americana. A natureza ganhava caráter divino. O wilderness, a natureza intocada aproximava o homem de Deus. Ao analisar as pinturas, especialmente as do pintor Thomas Cole, Prado observa que constantemente os homens são retratados com uma dimensão bem pequena, em contraste com a natureza grandiosa. Com a expansão para o Oeste, os temas da natureza diversificaram-se em novas paisagens sempre grandiosas. A fronteira era o local onde a barbárie e a civilização se encontravam. Segundo o historiador Frederick Jackson Turner, os Estados Unidos tinham um futuro grandioso a ser alcançado. É a ideia do Destino Manifesto. A marcha para o Oeste teria moldado o caráter do homem norteamericano e teria também formado suas convicções políticas na democracia. No caso sul-americano, os pintores presentes tanto no Brasil, quanto na Argentina e em outros países do continente na primeira metade do século XIX, eram quase sempre estrangeiros que apresentavam

um

gosto

pelo

exótico,

norte-americanos.

Os

pintores


GNARUS|6 A

visão

do

função civilizadora do

estrangeiro sobre as

branco

terras

claramente presentes

pode pela

americanas ser

ilustrada

passagem

em

de

estão

uma

de

suas

Negras

obras,

Jean-Baptiste Debret

cozinheiras,

pelo

Brasil,

mais

vendedoras de angu.

precisamente

pelo

Nesse quadro, Debret

Rio

de

Janeiro,

retrata

durante a presença da corte portuguesa e

uma

negra

comendo com talher (ato civilizado), na rua

Jean-Baptiste Debret: castigo de escravo.

o primeiro reinado.

onde é feita e servida a

Verifica-se em sua obra Viagem Pitoresca e

comida

Histórica ao Brasil uma predominância de

barbárie convivendo no ambiente urbano do

imagens relativas aos negros de ganho,

Rio de Janeiro oitocentista. O episódio que se

seguidas de outras também em grande

passou em torno da pintura elaborada por

número sobre costumes indígenas, somando

Debret para o pano de boca que seria usado

mais da metade das 104 pinturas ali reunidas.

na encenação da coroação de D. Pedro I

O próprio título da obra já revela a intenção

demonstra o confronto entre civilização e

do autor: mostrar o que há de exótico aos

barbárie presente nos interesses da nova

olhos de um europeu. Enquanto na obra de

nação:

outros artistas, seus contemporâneos, como

ladeando

Johann Moritz Rugendas e Nicolas-Antoine

representada por uma figura feminina deveria

Taunay, os negros se misturam na paisagem,

estar, o que foi categoricamente rejeitado por

em Debret eles aparecem como tema central

José Bonifácio, para quem era fundamental

de seus quadros. Essa observação se torna

que o Brasil assumisse uma imagem civilizada,

particularmente interessante quando nos

que as palmeiras contrariavam. Debret abriu

deparamos com declarações de Debret sobre

mão de sua intenção de ressaltar o exótico, o

os negros, descrevendo-os com inúmeros

que havia de pitoresco, e trocou as palmeiras

adjetivos pejorativos, entre eles preguiçosos e

por colunas gregas, eliminando a barbárie em

indisciplinados.

Debret

favor da imagem de civilização que a

correspondia à mentalidade da época: a

monarquia pretendia demonstrar (BORGES,

escravidão, embora condenável, tinha a

2008).

A

visão

de

(ato

incivilizado).

Debret o

colocou

trono

onde

Civilização

duas

e

palmeiras

a Monarquia,

qualidade de dar ao negro um pouco de

Na América Hispânica, especialmente na

civilidade. Os conceitos de civilização e da

região andina e na Meso-América, diante dos


GNARUS|7 grandes impérios que ali os espanhóis

colombianos e diziam que os registros nas

encontraram, veremos uma valorização das

pedras não poderiam ser inteligíveis, porque

culturas pré-colombianas como um passado

não havia nada ali a ser decifrado. Entre os

do qual devem se orgulhar, porém sem vínculo

crioulos, temos o exemplo de José Antonio de

com seus descendentes. Uma grandiosidade

Alzate y Ramírez que neste ponto concordava

que ficou no passado. Os mestiços urbanos

em parte com os europeus, pois também

eram usados como exemplo de um povo

considerava as inscrições ininteligíveis, mas

desprezível,

descartava todas as outras observações feitas

composto

de

mentirosos,

corruptos e de seres de pouca inteligência

por

pelos

Considerava

europeus,

no

que

os

crioulos

eles

sobre

o

que

passado os

ameríndio.

europeus

eram

concordavam, mas diziam que eles não

despreparados para entender a América e seu

poderiam servir de modelo de comparação

passado,

com os ameríndios do passado, esses sim,

enganados pelos mestiços e os descendentes

capazes de feitos grandiosos e que não se

dos

deixaram

sistematizações científicas estavam restritas ao

conquistar

facilmente

pelos

que

podiam

ameríndios

atuais,

e

que

México debates calorosos sobre o passado

continente, não sendo capazes de comportar a

ameríndio a partir da investigação dos

diversidade americana. Com a intenção de

vestígios

povos.

expor e discutir os relatos dos estrangeiros

Pesquisadores locais divergiam entre si e,

sobre a América, Alzate y Ramirez lançou as

principalmente,

europeus

Gacetas de Literatura, onde criticava, por

quanto ao valor da cultura dos povos

exemplo, os escritos do francês La Porte, do

ameríndios que viviam naquela região antes

inglês Lord George Anson e o barão Ignaz von

dos espanhóis. Após a descoberta de duas

Born. Outro estudioso crioulo, Antonio de

pedras com inscrições que foram reconhecidas

León y Gama, embora discordasse de Alzate y

como calendários astecas, houve por parte dos

Ramirez

estudiosos

para

compreensão dos registros nas pedras astecas,

interpretá-las e um reconhecimento do grau

admitia também a incapacidade dos europeus

elevado daquela civilização. Também as ruínas

em entender a grandiosidade da cultura

de Xochiclaco, um castelo fortificado, deram

ameríndia. Embora Alzate y Ramírez e León y

elementos aos crioulos para contradizer os

Gama discordassem em muitos pontos, eram

iluministas europeus que insistiam em afirmar

ambos patriotas que buscavam através de um

a fragilidade da cultura ameríndia. Buffon De

Iluminismo hispano-americano valorizar o

Pauw e outros pensadores europeus da época

passado

desprezavam

distanciamento das críticas dos europeus ao

divergiam

crioulos

a

esses dos

um

cultura

esforço

os

povos

pré-

quanto

a

ameríndio

do

suas

conhecimento

por

tinham

facilmente

espanhóis. Já no final do século XVIII surgiu no

deixados

que

ser

impossibilidade

e

estabelecer

velho

de

um


GNARUS|8 novo mundo. Deve-se a eles, entre outros

o arquiteto Bernasconi contava com sua

crioulos

pré-

reputação para fazer valer suas conclusões

colombianos, a preservação de documentos

sobre as ruínas que considerou sem grande

ameríndios no México. Não faltaram esforços

importância e descartou a possibilidade de ter

da coroa espanhola para se apoderar de

sido construída por outros povos que não os

documentos originais indígenas reunidos por

antepassados

Lorenzo Butorini, no início do século XVIII. Foi

expedição concluiu que, pela grandiosidade

o empenho e a astúcia desses estudiosos que

arquitetônica do local, aquela cidade só

fizeram com que as expedições destinadas ao

poderia ter sido erguida pelos romanos.

resgate desse material se frustrassem com a

Também sugeriram que poderia ter havido a

aquisição de cópias produzidas por eles e

presença de fenícios e gregos (CAÑIZARES-

também

não

ESGUERRA, 2011: 384-393). É curioso notar

os

como a possibilidade de ter sido originada por

originais. Lamentavelmente, no início do

povos não americanos, no caso os europeus,

século

republicanos

trazia uma valorização das ruinas, e como no

acabaram por espalhar grande parte desses

imaginário dos antiquários crioulos do México,

documentos pela Europa e Estados Unidos.

do final do século XVIII e início do século XIX

Mesmo assim muitos deles podem ser

havia a permanente preocupação em construir

encontrados hoje no México. (CAÑIZARES-

um passado glorificado, seja através do

ESGUERRA, 2011: 327-365).

reconhecimento

estudiosos

pelos

permitiram XIX,

aos

dos

povos

desencontros espanhóis

novos

ventos

que

encontrar

ameríndios.

do

valor

A

do

terceira

passado

A descoberta de ruinas na Meso-América,

ameríndio, ainda que seus descendentes

mais precisamente ruínas maias em Palenque,

fossem indignos dele, seja através da busca

no México, no final do século XVIII, suscitou

por semelhança com ancestrais bíblicos ou

várias

romanos.

interpretações

sobre

o

passado

americano, que em muitas ocasiões foi

Segundo Anthony Smith, a construção de

relacionado com passagens bíblicas e lendas

uma identidade nacional passa tanto pelo

europeias de povos perdidos. Ainda no século

fundamento histórico e pela composição

XVIII, três expedições foram enviadas a

étnica de um povo, como também pela

Palenque: a de José Antonio Calderón, a de

“natureza histórica da terra natal”. Segundo

Antonio Bernasconi e a de Antonio del Rio. A

Smith, “todo conceito de identidade nacional

primeira concluiu rapidamente se tratar de um

se baseia no processo de assimilar, delimitar e

grande achado que glorificaria a Espanha, pois

reinterpretar uma terra natal autêntica que

havia indícios que sugeriam não ser sido

una os ancestrais com os vivos e com os que

construída por ameríndios, mas por outros

estão para nascer.” (SÁ, 2012: 117-118). Deste

povos, romanos ou cartagineses. Na seguinte,

modo, é possível identificar a exaltação da


GNARUS|9 natureza feita por diversos povos como forma

capaz de dominar a natureza do pampa. A

de criar uma identidade nacional, não apenas

natureza original da América, especialmente

na América. De terra imatura e até mesmo

do pampa argentino, conferia um caráter

degenerada do século XVIII a América passou,

único ao povo que o ocupava, constituindo um

no século XIX, à terra destinada a ocupação

povo “distinto e autônomo” (SÁ, 2012). Para

dos europeus e seus descendentes que a

Sarmiento, a vastidão do pampa, a natureza

fariam civilizar-se. As ideias europeias sobre a

selvagem, tornava o gaúcho quase um bárbaro

América não eram ignoradas pelos colonos,

tendente ao despotismo. A mesma natureza

que as aceitavam, adaptavam ou rejeitavam,

intocada que segundo Turner, nos Estados

conforme os interesses das elites interessadas

Unidos, dava ao homem um individualismo

na construção de uma identidade que

que

conferisse uma nacionalidade.

Sarmiento, na Argentina, o afastava da

Mais ao sul da América, a dicotomia

fazia

brotar

a

democracia,

para

civilização (PRADO, 1999: 212). A construção

na

de uma identidade nacional passa pela

Argentina,

interpretação que cada povo faz de seus

demonstrada na obra de Domingos Faustino

costumes seu passado histórico comum e do

Sarmiento,

a

espaço geográfico onde atuam, segundo

construção de uma identidade nacional

Smith, criando o que ele chamou de “mapa

daquele país na segunda metade do século

cognoscitivo”. Então, a afetividade que cada

XIX. O pampa se encontra descrito por

povo desenvolve para com a sua terra natal é

Sarmiento não como um lugar selvagem,

um elemento constitutivo da identidade

degenerador

nacional (SÁ, 2012: 118).

barbárie/civilização expressão

está

pampa/cidade, que

do

se

presente na

preocupou

caráter,

tal

com

qual

o

descreveram os viajantes europeus do século

Também

no

Brasil

essa

dicotomia

XVIII, mas como um vazio populacional a ser

civilização/barbárie vai aparecer nos textos do

ocupado pela civilização, embora não fossem

Visconde do Uruguai, estudado por Maria

exatamente vazios. Os nativos que ocupavam

Elisa Noronha de Sá. De forma semelhante à

a

por

Argentina, o contraste será sertão/litoral (e

Sarmiento. A civilização encontrava-se nas

algumas vezes, sertão/Corte), visto que as

cidades, que detinham as instituições políticas

cidades do Brasil Imperial estão localizadas

e culturais, de onde esta se irradiaria para o

principalmente no litoral. Tal qual o pampa, o

campo, o pampa incivilizado, principalmente

sertão é despovoado e incivilizado, mas o

Buenos Aires, por estar em estreita ligação

Visconde do Uruguai não lança um olhar

com

em

poético para o sertão, como faz Sarmiento.

uma

Para o Visconde, só um governo centralizado

valorização do gaúcho, que embora rude, era

político-administrativamente seria capaz de

região

as

Sarmiento

não

nações se

eram

considerados

europeias. encontra

Porém

também


G N A R U S | 10 promover a civilização do sertão, mesmo

Além dos escritores e pintores quanto à

porque, ao estudar as organizações políticas

composição de uma imagem da América,

locais, o Visconde vai concluir que uma

também podemos destacar a fotografia, que

política organizada em torno de princípios

(apesar de, e também justamente porque traz

políticos só é possível no meio civilizado

em si mesma o selo de representação

urbano, pois nas pequenas localidades o que

fidedigna da realidade) difundiu ainda mais os

predomina

políticas

tipos físicos e as paisagens não europeias na

comandadas pelas famílias que desejam tão

Europa. A litografia contribuiu para tornar

somente o poder local para perseguir seus

mais barato e acessível a reprodução de

inimigos. Tanto na obra de Sarmiento quanto

pinturas e fotografias que passaram a decorar

dos textos do Visconde do Uruguai, a

os papéis de parede da burguesia europeia

dicotomia

é

com imagens pitorescas na segunda metade

excludente, já que o que se deseja é a

do século XIX. Em 1857, chegou ao Brasil o

são

as

facções

civilização/barbárie

não

transformação tanto do pampa quanto do sertão em espaço civilizado através do povoamento (SÁ, 2012).

"Typos de pretos" de Christiano Junior

fotógrafo Victor Frond que, junto com Charles Ribeyrolles, compôs um álbum chamado de

Brazil pitoresco, destinado a abordar o caminho rumo à civilização em que se encontrava a sociedade brasileira de então, fotografando, paradoxalmente, escravos em situações de trabalho. Dois anos antes, em 1855, vindo de Açores, o fotógrafo português Christiano de Freitas Henrique Júnior, passou por Maceió, Rio de Janeiro e Buenos Aires, registrando imagens de tipos considerados pitorescos aos olhos europeus: um grande número de imagens dedicadas a negros e a ofícios

que

na

Europa

estavam

desaparecendo. Os seus “typos pretos” eram retratados

em

diversos

ofícios,

como

ambulantes, barbeiros, entre outros, com poses montadas em fundo neutro, sugerindo que os negros poderiam ser da África ou de qualquer outro lugar onde a escravidão de


G N A R U S | 11 A ótica do estrangeiro, no que diz respeito ao seu papel civilizador, ganharou uma nova perspectiva aos olhos das elites urbanas, mais precisamente na visão de missão civilizadora da cidade sobre o sertão. Apesar do Brasil já ter suas fronteiras quase que integramente definidas desde o século XVII, ainda

durante

o

Império

havia

a

preocupação com a integração do país, principalmente ligando o litoral ao interior, trajeto que levaria a civilização para os recantos despovoados, garantindo a ocupação do território nacional e a construção de uma africanos existiu. (BORGES, 2008). A busca

nação

civilizada.

Na

pela civilização intensificou-se com o fim da

preocupações se intensificaram e ganharam

escravidão e o início da República, e teve

novos significados. Podemos citar como

grande ênfase nas missões civilizatórias

exemplos: a

destinadas à integração do país.

necessidade de combater a rebeldia no

guerra

República

de

Canudos

essas

e a

campo; a instalação de telégrafos no interior do Mato Grosso, para integrar a comunicação das regiões de fronteira com o Paraguai e a Bolívia com a capital federal, e que mais tarde se estendeu à Amazônia; e a repressão à Coluna Prestes; a pesquisa e o combate a doenças tropicais, feita pelos médicos e pesquisadores do Instituto Osvaldo Cruz. São ações bastante diversificadas que convivem com a antítese de reconhecimento do sertão ora como local de deserto de pessoas e de civilização, ora com local de autenticidade cultural, que não existe mais nas cidades influenciadas pelo estrangeiro. O combate a Canudos deixa claro o papel civilizador de suprimir a barbárie do sertanejo. Mesmo assim, vemos em Os Sertões, de Euclides da


G N A R U S | 12 Cunha, um sertão antes de tudo resistente às

Exemplares de hospedeiros do mal de Chagas,

mudanças, com uma cultura tradicional, ao

da malária e outras moléstias foram recolhidos

invés de bárbaro. A oposição entre litoral e

e estudados pelo Instituto Osvaldo Cruz,

sertão parece, então, se diluir e se transformar

trazendo

em

se observa as

tratamento dessas doenças. Os médicos e

atividades do sertanista Cândido Mariano da

sanitaristas não foram convocados apenas

Silva Rondon, que após assumir diversas

para solucionar as enfermidades recorrentes

atividades no interior do país, como, por

no interior do país. Também a capital federal

exemplo, a inspeção de fronteiras e a

vinha sendo assolada por essas e outras

construção de linhas teleféricas no Mato

doenças, necessitando de urgentes reformas

Grosso e na Amazônia, vai se notabilizar pelo

direcionadas

conciliação

quando

grande

para

contribuição

a

para

urbanização

trabalho junto a o

saneamento

Serviço Nacional

(LIMA, 1998).

o

e

de Proteção ao Índio.

As

expedições

de

A convivência entre a civilização e a barbárie na

Rondon não se limitavam a uma só

atividade:

cidade do Rio de Janeiro

enquanto linhas teleféricas eram instaladas,

Como

se

foi

visto

desenvolvia um trabalho de reconhecimento

anteriormente nas obras de Debret, na cidade

dos rios, da flora e da fauna das regiões

do Rio de Janeiro conviviam o branco e o

visitadas, além dos contatos com os indígenas,

negro, o livre e o escravo; os primeiros como

o reconhecimento das línguas faladas e as

representantes da civilização, enquanto os

condições

encontradas.

outros condenados à barbárie. Dois mundos

Contribuições igualmente importantes foram

diferentes que se justapunham e que estavam

somadas

ao mesmo tempo separados e juntos. Em

epidemiológicas pelas

viagens

empreendidas

pelos

Manguinhos.

Seguindo

científicas

pesquisadores

de

Debret, nas obras onde são retratados os

dos

negros de ganho, o elemento branco não

engenheiros, médicos eram enviados para o

aparece, apesar de o mesmo não ocorrer

interior onde estavam sendo construídas

sempre quando os brancos são os objetos da

ferrovias para tratar de doenças tropicais que

pintura. Nas obras onde o negro é o elemento

frequentemente acometiam os trabalhadores.

de enfocado, quando as construções servem

a

esteira


G N A R U S | 13 de pano de fundo, elas sempre estão de

nos morros próximos ao Arraial de Canudos,

janelas fechadas, demonstrando que o espaço

na Bahia.

do negro é a rua, separada do ambiente

Em 1900, o Morro da Providência ou Favella

doméstico das famílias brancas (BORGES,

foi denunciado nos jornais como reduto de

2008). Esse contraste tomou novos rumos,

vagabundos e criminosos e, em 1907, o

porém permaneceu vivo, mesmo depois do fim

mesmo local chegou a ser saneado pela

da escravidão.

campanha liderada por Osvaldo Cruz. As

No início do século XX, o prefeito Francisco

favelas, desde seus primeiros anos, foram

Pereira Passos expulsou os moradores dos

reconhecidas como um local assustador. A

cortiços do centro da cidade do Rio de Janeiro

favela foi identificada como um sinônimo de

para dar lugar a Avenida Central (hoje Avenida

problema: de segurança, de saúde e de falta

Rio Branco). Os moradores expulsos dirigiram-

de ordenamento arquitetônico. Até os anos

se aos morros próximos, especialmente ao

50, as observações feitas sobre as favelas e

atual Morro da Providência, que na época

seus

também era conhecido como Morro da

jornalistas, cronistas, engenheiros, arquitetos,

Favella, já então parcialmente ocupado, desde

médicos,

1897, por soldados vindos da guerra de

assistentes sociais. Só a partir da segunda

Canudos, na Bahia, para cobrar promessas

metade do século XX, elas se tornaram objeto

feitas pelo Ministério da Guerra, localizado

de estudo das ciências humanas e sociais.

nas proximidades. Desde então, os morros da

(VALLADARES, 2000: 2).

moradores

ficaram

administradores

a

cargo públicos

dos e

cidade passaram a ser chamados de favelas e

Segundo demonstra Lícia Valladares (2000),

foram inicialmente ocupados, além dos ex-

em seu ensaio A Gênese da Favela Carioca,

moradores dos cortiços, por imigrantes

independentemente da origem do discurso,

estrangeiros pobres, portugueses, espanhóis e

havia um consenso formador de um arquétipo

italianos, que não encontravam moradias na

da favela com um “mundo diferente”, na

cidade. Mas tarde, começaram a chegar os

“contramão

imigrantes provenientes de diversos Estados

inegavelmente ligado à origem no Arraial de

da Federação, principalmente da Região

Canudos. O sertão se avizinhava da cidade

Nordeste, fugindo da seca, da falta de

através das favelas. Para Valladares, o relato

oportunidades e da exploração no campo. O

de Euclides da Cunha, em Os Sertões,

nome Providência refere-se às providências

publicado

que estavam sendo aguardadas pelos sodados,

fundamentalmente para compor a visão da

primeiros moradores, enquanto o termo

época sobre as favelas. Os Sertões formou a

Favella, está ligado a uma planta abundante

compreensão dos intelectuais da época sobre

da

em

ordem”,

1902,

que

estaria

contribuiu


G N A R U S | 14 os sertanejos e sobre os moradores das favelas

Rotary Club, e o urbanista francês Alfred

e foi fundamental para que o episódio de

Agache, que veio ao Rio de Janeiro pela

Canudos não caísse no esquecimento. Para

primeira vez em 1927, a convite oficial do

demostrar essa afirmação, cita, entre outros,

prefeito

João do Rio que, em uma de suas visitas ao

demonstrar como ocorreu a evolução da

Morro de Santo Antônio, identifica na

constituição do conceito de favela. Mattos

escuridão

casas

Pimenta visitou favelas entre 1926-27 e as

construídas com caixotes, “a impressão lida da

chamou de “lepra da esthetica”1. Promoveu

estrada do arraial de Canudos” (VALLADARES,

uma campanha pública a favor da ordem

2000: 6). Valladares deixa claro a identificação

urbana, para mostrar o incomodo que elas

das favelas cariocas e de seus habitantes com

causavam e chegou a realizar um filme,

o Arraial de Canudos:

intitulado As Favellas, onde mostra de dentro

da

noite,

diante

das

“A ideia de comunidade, tão presente no arraial analisado por Euclides da Cunha, acaba se transpondo para a favela, servindo como modelo aos primeiros observadores que tentaram caracterizar a organização social dos novos territórios da pobreza na cidade. À semelhança de Canudos, a favela é vista como uma comunidade de miseráveis com extraordinária capacidade de sobrevivência diante de condições de vida extremamente precárias e inusitadas, marcados por uma identidade comum. Com um modus vivendi determinado pelas condições peculiares do lugar, ela é percebida como espaço de liberdade e como tal valorizada por seus habitantes. Morar na favela corresponde a uma escolha, do mesmo modo que ir para Canudos depende da vontade individual de cada um. Como comunidade organizada, tal espaço constitui-se um perigo, uma ameaça à ordem moral e à ordem social onde está inserida. Por suas regras próprias, por sua persistência em continuar favela, pela coesão entre seus moradores e por simbolizar, assim como Canudos, um espaço de resistência.” (VALLADARES, 2000: 8)

A favela era o sertão bruto, sem ordem, sem governo e, portanto, selvagem, que precisava ser

civilizado,

porque

sua

proximidade

ameaçava a cidade. Essa preocupação pode ser observada em Valladares, quando cita João Augusto de Mattos Pimenta, membro do

Antonio

Prado

Junior,

para

o que chamou de “espetáculo dantesco”2 daquele lugar, com casebres construídos com madeiras e latas, que abrigava capoeiras e vagabundos, e aonde a lei e a ordem não chegavam. Procurava com isso sensibilizar o governo e a sociedade carioca de então, ressaltando

a

necessidade

de

ações

sanitaristas, urbanísticas e arquitetônicas para o embelezamento da cidade. As ideias de Mattos Pimenta influenciaram Alfred Agache, responsável pelo Plano de Remodelação da Cidade do Rio de Janeiro, que foi engavetado 1 O conceito de “lepra esthetica” foi pronunciado por Mattos Pimenta para ressaltar a necessidade de ordenamento urbanístico para a cidade do Rio de Janeiro, para que “se levante uma barreira prophylactica contra a infestação avassaladora das lindas montanhas do Rio de Janeiro pelo flagelo das "favelas”". Ver VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais . Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 15, n. 44, Oct. 2000, p.12. 2 Mattos Pimenta sabia que, naquela época, poucas pessoas haviam se aventurado a conhecer de perto a realidade das favelas e apostava que as imagens mostradas pelo filme causariam um grande impacto junto à opinião pública. Buscava com isso atrair adeptos as suas intenções de promover a remoção das favelas. Idem, p. 13.


G N A R U S | 15 após as mudanças que ocorreram a partir de

ser quase sempre descrito como local da

1930. Em 1937, o Código de Obras reconhece

marginalidade e da violência, por vezes

a existência das favelas e proíbe a sua

incorporava a imagem de “roça” tranquila com

expansão. Ao mesmo tempo, o governo

um “modo de vida simples e harmônico”. Mas

preocupou-se em promover estudos que

as manifestações culturais de cunho popular,

permitissem compreender quem eram os

de um modo geral valorizadas no campo, se

moradores das favelas e identificou a

transformavam

necessidade de investir na educação. Só a

ocorriam no meio urbano, como por exemplo,

educação seria capaz de controlar e direcionar

o teatro de revista. (AMOROSO, 2012: 194-

as populações de favelas ao caminho da

195).

ordem.

Em

1948

foi

possível

obter

informações mais precisas, a partir do primeiro censo das favelas, promovido pelo prefeito do Distrito Federal, Ângelo Mendes de Moraes. O conhecimento sobre a favela se ampliou, mas não se distanciou da construção de uma imagem

de

pobreza

e

criminalidade

(VALLADARES, 2000: 9-22). A favela era a nova fronteira a ser vencida, seja pela integração à cidade através da urbanização e educação de seus moradores, seja pela sua retirada, para “limpeza” da cidade. Nos anos 40 e 50 do século XX, houve no Brasil um aumento da preocupação com a valorização da cultura nacional. Era preciso reencontrar os valores da nossa cultura que estavam

certamente

nas

manifestações

folclóricas. Regatar e divulgar as lendas, danças e músicas nacionais fazia parte do projeto de educação, desde os tempos de Getúlio Vargas, para o fortalecimento do sentimento de nacionalidade. O sertão era visto como detentor de tradições culturais que não poderiam ser esquecidas pela história. O “sertão” representado pela favela, apesar de

em

incômodo

quando


G N A R U S | 16 Em uma fotografia de Milton Santos, publicada no jornal Correio da Manhã, que registra o desmonte do morro de Santo Antônio, os moradores da favela, que ali existia então, são retratados distantes, no alto, observando o movimento dos caminhões abaixo, com a cidade ao fundo. A imagem demonstra o contraste entre o mundo

Correio da Manhã, 03/12/1954, p. 7.

mesmo tempo, melhoria de vida para o

civilizado ao longe e a favela, representada

“favelado”, como para aquela região da

pelos

pelo

cidade de crescente valorização imobiliária. O

se

enfoque fotográfico, entre os anos 60 e 70 do

aproximava. A ideia de progresso está sempre

século XX, vai recair sobre o elemento

presente nesta e em outras fotografias e

humano, representando o atraso e a miséria,

textos jornalísticos publicados nos jornais da

como crítica social e política, para o que se

época

máquinas,

deseja mudar. Este período ficou marcado

caminhões e tratores, que remodelavam a

pela implementação de uma forte política de

cidade. Particularmente, esta fotografia é uma

remoção das favelas, principalmente as da

exceção, porque a figura humana quase

Zona Sul, em direção a áreas menos ocupadas

sempre estava em segundo plano na maioria

da cidade (AMOROSO, 2012).

moradores,

progresso

que

intermediados inexoravelmente

representada

pelas

das imagens de então, pois o morador da favela representava o atraso, enquanto as máquinas significavam o progresso que se queria propagar, num momento em que a cidade do Rio de Janeiro estava prestes a perder o título de Distrito Federal. Outra favela do Rio de Janeiro, a favela do Pinto, vai figurar nos noticiários cariocas, a partir dos anos 60, como representação da barbárie que se quer eliminar ou afastar da cidade. Utilizando fotografias que mostram o atraso e a insalubridade do local, os jornais apoiavam a remoção da favela do Pinto para algum lugar distante da cidade, alegando que traria, ao

A favela é o que se quer apagar, porque é sinônimo de atraso e de vergonha: Uma recente propaganda da empresa Petrobrás

vinculada

na

mídia

impressa

mostrava uma representação aérea do Rio de Janeiro na qual as favelas haviam sido digitalmente retiradas dos morros. Parte da população se manifestou contra a presença de um grande número de favelas no Google Maps. Eco-limites e muros de contenção em algumas

favelas

cariocas.

Diversas

comunidades sofrem ameaças de remoção por


G N A R U S | 17 supostamente ameaçar o meio ambiente,

um

mesmo

nenhum

consciência, estão a mercê da violência que

crescimento relevante e já existindo há

assola suas vidas e são perigosos. Seja em

décadas, como o caso da Vila Autódromo,

decorrência de sua origem, seja pela situação

Santa Marta e comunidade do Horto. Além

socioeconômica em que vive, ou mesmo por

dessas iniciativas radicais, a Prefeitura do Rio

sua composição étnica, o morador da favela é

de Janeiro já tentou implementar outras

o outro, que vive separado da cidade, que só

formas de mascarar as favelas como pintar

ocasionalmente a frequenta, quase sempre em

todas as casas de uma única cor; uma espécie

função de um trabalho, raramente por lazer.

de Grécia perdida entre os morros cariocas.

Ocupam boa parte das atividades de baixa

não

apresentando

estado

paralelo,

que

agem

sem

Apesar de já fazerem parte da paisagem

remuneração da cidade, trabalhando em

urbana, as favelas parecem não existir no

prédios como porteiros, ou na construção civil,

imaginário

ou em muitas outras ocupações, mas são

ideal

do

Rio

de

Janeiro.

(BAKER&BAKER, 2012) Ainda hoje, temos, particularmente na cidade do Rio de Janeiro, a repetição dessa mesma dicotomia civilização/barbárie quando falamos do contraste entre bairro/favela, ou asfalto/morro. As favelas são vistas como lugares sempre insalubres onde todos que ali residem são ignorantes, “estrangeiros” na cidade, vindo de um mundo rural “bárbaro” tentando se integrar a “civilização urbana”, mas ao mesmo tempo incapazes de pertencer

sempre

vistos

como

indesejáveis,

desocupados, traficantes, sem aspirações de progredir na vida, e que constantemente ameaçam a ordem pública. Embora a imagem que a cidade tenta ter de si mesma seja a da harmonia entre seus moradores, a violência presente no lugar do “outro” está sempre ameaçando o lugar da civilização. A cidade ideal seria sem favelas, sem moradores indesejados, que mancham o cenário de cidade maravilhosa (BRUM, 2013).

à civilização devido ao seu grau de ignorância e pelo atraso em que vivem. O “favelado” é o “outro”. Os cidadãos são os moradores dos

Conclusão A

dicotomia

civilização/barbárie,

que

bairros, conscientes de sua participação

também

política, enquanto os moradores das favelas

urbano/rural, litoral/serão, favela/bairro, ao

são desprovidos de consciência política,

longo dos dois últimos séculos mudou suas

agindo pelas paixões, incapazes de reivindicar

feições em decorrência do objeto ao qual ela

seus direitos e vivendo sob o jugo do

foi empregada, mas permanece viva no

clientelismo, seja do traficante, seja do

imaginário de todos. Se o selvagem era o

miliciano. Bárbaros subjugados, vivendo em

nativo da América no século XVIII, hoje esse

pode

ser

compreendia

como


G N A R U S | 18 papel continua tendo um ator, o morador da

Tarefa árdua é a missão civilizadora do

favela. Segundo alguns influentes pensadores

homem branco que ainda não se concretizou,

europeus do século XVIII, o destino da

já que o objeto da barbárie se deslocou,

América estaria no seu amadurecimento

depois da abolição da escravatura e ao longo

auxiliado pelos europeus, incumbidos dessa

do

missão. O conceito de civilização se tornou um

primeiramente o nordestino, que passaram a

referencial muito caro no século XIX e serviu

compor a grande maioria dos moradores das

de justificativa para as conquistas, colonização

áreas periféricas das grandes cidades da

e exploração de outras regiões do planeta

Região Sudeste do Brasil. Nas favelas se

pelos europeus até a segunda metade do

encontram hoje os bárbaros de sempre.

século XX. Enquanto isso, nos países que se

Através da grande imprensa, o imaginário de

tornaram independentes da América Latina,

local violento, insalubre e habitado por

especialmente onde a escravidão ocorreu

pessoas ignorantes continua sendo propagado

(como no Brasil), o conceito de civilização vai

diariamente.

século

seguinte,

para

o

sertão,

ser direcionado para justificar a exploração de indígenas e africanos, que precisavam ser retirados do estado de barbárie em que se encontravam. Ao longo do século XIX se

Dunstana Farias de Mello é Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Professora Regente da Prefeitura do Rio de Janeiro.

cristaliza a imagem do branco civilizador, europeu ou, no caso da América e do Brasil particularmente, dos seus descendentes. As nações

americanas

empregaram

muitos

esforços para buscar ao longo dos séculos XIX uma imagem de civilização e se apoiaram na natureza. Transformaram a visão que se tinha da selvagem natureza americana de local de bárbarie em um lugar exuberante e formador do caráter original do seu povo. Era necessário apoiar-se na natureza, pois ela era grandiosa e carregavam muitas promessas de um futuro rico e promissor, em detrimento de valores étnicos ou históricos, já que um povo miscigenado e um passado de escravidão não correspondiam à imagem de uma nação civilizada.

Referências bibliográficas:


G N A R U S | 19 AMOROSO, Mauro. Duas faces da mesma fotografia: atraso versus progresso na cobertura fotojornalística de favelas do Correio da Manhã. In: MELLO, Marco Antonio da Silva. [et al.]. Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro:

Garamond, 2012. BRUM, Mário Sérgio. Tráfico, favelas e a cidade do Rio de Janeiro. In: Revista Cantareira, UFF. Disponível em http://www.historia.uff.br/cantareira/v3/w p-content/uploads/2013/05/e04a06.pdf. BAKER, Eduardo e BAKER, Julia. Civilização como Barbárie. In: Revista Global Brasil. Edição 16. 2012. Disponível em http://www.revistaglobalbrasil.com.br/? p=1215. BORGES, Maria Eliza Linhares. A escravidão em imagens no Brasil oitocentista. In: FURTADO, Júnia F. (org). Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, América e África. São Paulo: Annablume, 2008. ESGUERRA-CAÑIZARES, Jorge. Como escrever a história do Novo Mundo. São Paulo: Edusp, 2011. LIMA, N. S. Missões civilizatórias da República e interpretação do Brasil. In: História Ciencias, Saúde – Manguinhos. V. 5 (suplemento), 163-193, julho 1998. PRADO, MARIA Lígia. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: Edusp, 2004. SÁ, Maria Eliza Noronha de. Civilização e barbárie: a construção da ideia de nação –


G N A R U S | 20

Brasil e Argentina. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. SAFIER, Niel. Como era ardiloso meu francês. Charles-Marie de la Condamine e a Amazônia das Luzes. In: Revista Brasileira de História. V. 29, n. 57, pp 91-114, 2009.

VALLADARES, Lícia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 15, n. 44, Oct. 2000.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.