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Coluna:

CINEMA, MATERIALIDADE TEXTUAL E HISTÓRIA CULTURAL: ALGUMAS PONDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A RELAÇÃO HISTÓRIA, CINEMA, PESQUISA E ENSINO. Por: Alexander Martins Vianna

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m filme está inscrito num processo institucional-social contingente que o torna um efeito, evento e agente necessariamente coletivo, cujos significados, em seu momento de produção e posteriormente podem transcender muitas vezes o intencionado pelo diretor, produtor ou roteirista. Mesmo considerando as novas técnicas de multimídia, que podem fazer a criação de um filme caber num computador pessoal ou tablet, um filme dificilmente poderia ser entendido como o resultado de um trabalho exclusivamente individual, já que a produção de seu complexo afetivo-cognitivo envolve edição, recontextualização ou (re)temporalização de recursos verbais, gestuais-performáticos, sonoros e imagéticos, cada um dos quais sendo polos de sistemas de significados com específicos agentes, recursos, repertórios e tradições estético-expressivas, com os quais se negocia no processo de produção . Por outro lado, os seus significados também são produzidos pelas perguntas que o historiador considera possíveis de um filme responder. Afirmar isso significa igualmente considerar que o filme, a partir da forma material em que se apresenta enquanto resultado para um plano narrativo, também resiste às perguntas do pesquisador, pois, como qualquer artefato sociocultural, possui regularidades

internas inexauríveis. Entendo por plano narrativo, ou narrativa, o(s) princípio(s) orientador(es) da sequência de imagens visuais, textos escritos, falas, performance e sons (verbais ou não) de um filme visando a provocar atenção afetivo-cognitiva sobre suas teses ou temas principais, cumprindo ou não as expectativas habituais de um gênero. Os significados intencionais (e não intencionais) do plano narrativo se expressam por meio da forma final em que o filme se materializa. Daí, considero oportuno dizer que os significados do plano narrativo de um filme dependem de sua materialidade textual. É a materialidade textual que limita as possibilidades de perguntas do historiador à fonte fílmica. Aqui, valho-me de Donald F. Mckenzie que, em meados da década de 1980, expandiu o conceito de “texto” ao retomar a sua base etimológica “tecer”, ou seja, configurar redes de sentido e significados com intenções comunicativas. Nesses termos, o conceito de “texto” estende-se para formas não escritas e nãolibrárias que se inscrevem em (ou propõem) sistemas de significados e, portanto, configuram efeitos comunicativos que transcendem a estrutura estritamente morfológica ou sintática da linguagem. Estão implicados no conceito de materialidade textual: (1) o reconhecimento de que os meios e a forma


material como o artefato é produzido ou se manifesta também compõem o seu significado; (2) as condições intelectuais e institucionais que tornam possível o artefato cultural existir segundo uma expectativa (ou contra-expectativa) de gosto e uso social, devendo-se considerar o quanto isso interfere em sua forma, sentido, ressonância e valor; (3) o cumprimento, a criação, a subversão ou a sobreposição eclética de regimes representativos e regimes estéticos de gênero; (4) a presença de tropos, temas e traços que evidenciem a negociação social da semelhança em função do jogo de expectativa em torno da produção, veiculação, crítica e uso do artefato. Um sistema de significado deve ser entendido como algo dinâmico e aberto, atuante sobre (mas também reconfigurável pelos) agentes sociais. Por esta perspectiva, um filme não é o produto de uma época, pois “época” não é um monólito causal acabado e fixo que produz o filme, mas um processo social aberto do qual o filme faz parte enquanto efeito e agente simultaneamente. Conforme os seus recursos materiais e imateriais, os seus interesses, os seus vínculos sociais e os seus valores, os agentes sociais podem criar artefatos culturais com capacidade de inscrever-se, tencionar, criticar, variar, ampliar, renovar, romper ou simplesmente reproduzir os repertórios ou patrimônios retórico-temáticos, morais-emblemáticos, performático-gestuais-comportamentais, de gosto e gênero artístico, técnico-expressivos e de suportes materiais de seu meio sociocultural. Daí, conforme o interesse de pesquisa, uso ou estudo, um filme pode ser entendido como artefato cultural, agente social ou evento que localiza e condensa sistemas de significados de/em/para um mundo de experiências que é um processo aberto e inacabado. Um filme materializa sistemas de significados porque é um agente, historicamente circunscrito, em negociação dialética com o repertório de sentidos, formas e recursos materiais e imateriais que configuram tensamente os campos sociais. Justamente por isso torna-se sem sentido supor que a produção intelectual de um filme seja precedida pela condição material/coletiva da sociedade – como propõe a estética marxista, esquecida das Teses contra Feuerbach –, pois ambas nascem juntas e se tencionam dialeticamente num mundo de experiências de significados. Daí, não existe o puramente intelectual e estético (como força demiúrgica autônoma do mundo material) e o puramente material (como força demiúrgica determinante do artefato intelectual e estético) , quando a matéria analisada são os artefatos culturais por meio dos quais as pessoas expressam

G N A R U S | 45 intenções comunicativas, que não ocorrem num vazio de relações de poder e de situações de assimetria social no domínio ou acesso a recursos materiais e imateriais que definem o jogo das formas e a emoção proposta para um plano narrativo, esteja este marcado por regimes representativos ou estéticos da negociação sociocultural da semelhança . Nesse sentido, o conceito de materialidade textual convida-nos a pensar, simultaneamente, no modo como o filme se estrutura e na própria significação sociocultural dessa estruturação; a buscar e identificar a significação ideológica de temporalidade, subjetividade e causalidade na e da linguagem cinematográfica materializada em filme, já que a sua materialização se estrutura enquanto intenção comunicativa e, como tal, visa a criar e/ou captar determinada emoção significativa, provocando – por meio de um complexo singular de recursos comunicativos (verbal-imagético-sonoro), de repertório temático-performático, de elenco e de tradições artísticas – uma atenção cognitivo-afetiva que tem força explicativa e categorizante sobre temas, pessoas, instituições, eventos e ideias. Portanto, a forma como um filme emociona, ou pretende emocionar, é estruturante dos centros de significados intencionais e não-intencionais a serem analisados.

Considerando isso, é importante enfatizar que, mesmo quando um professor escolhe trabalhar um


filme como recurso didático, ou seja, como instrumento de motivação/complementação para uma temática já conhecida, não pode ignorar o seu complexo cognitivoafetivo sobre uma temática, pois isso marcará por mais tempo a memória de seus alunos do que qualquer outra referência previamente debatida com textos verbais escritos. Portanto, mesmo que um professor pretenda usar um filme como recurso didático motivacional, ele próprio deve fazer um trabalho prévio de análise da materialidade textual do filme, de modo a ter certeza de que tal materialidade efetivamente corresponde aos seus propósitos temáticos e pedagógicos. Em outras palavras: não há uso eficaz do filme como recurso didático sem que previamente o professor o tenha trabalhado como pesquisador de fonte ao fazer seu planejamento de aula. Um filme, por exemplo, pode captar, expressar ou propor a religiosidade ou, em termos mais amplos, a necessidade de crer das pessoas, independentemente de tal necessidade estar ou não referida a um sistema institucional de crença religiosa. Por associar imagem, som (verbal ou não) e performance para provocar emoção, um filme pode potencializar a atenção cognitivo-afetiva sobre determinados valores e ideias associados a crenças, conceitos e preconceitos. Portanto, a emoção provocada faz parte do significado ideológico de um filme e pode ter efeitos muito mais permanentes na memória afetiva dos alunos do que o livro didático . Nesse sentido, é fundamental a análise da materialidade textual do filme para, a partir desta, ponderar um uso pragmático coerente do mesmo como instrumento pedagógico de motivação temática. Depois deste introito, gostaria de fazer algumas ponderações críticas sobre o que entendo estar sendo instituído, explícita ou tacitamente, como campo de História e Cinema em algumas universidades do Brasil. De minha parte, entendo que possa haver especialistas de História do Cinema, História da Comunicação, História da Imprensa, História da TV, História da Arte, História da Propaganda, História da Historiografia, História da Literatura, História da Crítica, etc. No entanto, fico incomodado com a forma como são criados novos entes ou especializações inconsistentes (tácitos ou institucionalizados) em nossas universidades, tais como professor/pesquisador de História e Cinema. O meu incômodo nasce do que considero ser um retrocesso historiográfico: definir a capacidade ou especialidade do trabalho do professorpesquisador a partir de um artefato, em vez de se valorizar a forma como o historiador, por meio de seu domínio temático e pergunta de pesquisa, transforma um artefato em fonte para pesquisa.

G N A R U S | 46 Como em todo trabalho de caracterização de fontes e de proposição de hipóteses contextuais e causais para as mesmas, o historiador aprenderá a explorar a sua singularidade conforme a sua materialidade. Além de inventariar as condições institucionais-sociais de produção e a intenção configuradora de uso contida numa fonte, o conceito de materialidade está implicado também com o trabalho de analisar as suas regularidades internas, de forma a observar como isso configura sentidos para conteúdos e expectativas de usos. Tal trabalho de caracterização da materialidade de uma fonte é pressuposto inescapável da pesquisa, mesmo quando não é explicitado em seu produto final (teses, artigos, ensaios, etc) ou quando o objetivo da pesquisa não é inventariar a dimensão intencional ou suas estratégias retóricas, estéticas e expressivas. Afinal, não existe conteúdo separado de uma forma na construção de seus significados e usos possíveis de um artefato cultural. Portanto, um passo importante para a autonomia crítica da pesquisa e para a ampliação das possibilidades do uso dos filmes como fontes e recursos didáticos é entender que não existe um ente historiográfico História e Cinema como campo regulador necessário das possibilidades de uso do filme. Afinal, supor que tal ente existe é o mesmo que entender que um tipo de fonte define um campo, em vez dos temas, objetos e questões de pesquisa. Em geral, o historiador está mais habituado a trabalhar com “fonte escrita”. Como é hábito, não vejo nenhum colega de profissão reivindicar um campo específico de História e Fontes Escritas, mas, estranhamente, alguns acreditam que haja um para “História e Cinema”. Implicada neste tipo de entendimento está, na maioria das vezes, uma hierarquia tácita entre “fonte ficcional” e “fonte não-ficcional”. O pressuposto dessa hierarquia seria que a “fonte ficcional” é “mais problemática” e, portanto, precisaria de uma discussão específica; por antonomásia, haveria a fonte “menos problemática” porque “não-ficcional”. Por isso, particularmente depois da oportuna crítica à escrita da História trazida pelo modelo de História Cultural que solapou o fazer historiográfico da História das Mentalidades na França, considero antiquada esta lógica de categorização que cria “entes” ou “campos” a partir de uma hierarquia tácita do que seria a natureza “mais” ou “menos” ficcional (i.e., “problemática”) de um artefato. Ora, no meu entendimento, com a virada crítica da História Cultural na França desde meados da década de


1980 – independentemente da abordagem, objeto ou tema do historiador –, todos nós ganhamos ao sermos provocados por um paradigma crítico que nos tornou (ou deveria tornar) mais auto-reflexivos sobre a forma de pensar nossa escrita, de construir evidência e de configurar hipóteses de referencialidade contextual em nossos estudos. Por isso, em certa medida, ganhou novo alento e novo contexto intelectual a agora clássica preocupação crítica de Marc Bloch de firmar que cada historiador deve constituir método crítico segundo a natureza dos artefatos, pois, dependendo do que se quer de um artefato e das possibilidades de respostas de sua materialidade, este se transforma em fonte para a pesquisa . Como é a pergunta do historiador que dará voz à fonte e sofrerá a resistência de sua materialidade, é desta relação dialética entre pergunta, método crítico e resistência da fonte que surgirão as hipóteses contextuais, em duas chaves possíveis, não necessariamente convergentes: hipóteses intra-fonte, ou indiciamento intertextual, inventariando sua rede de significados e usos originais, produção, tradição ou repertório de conteúdo e forma, suporte, circulação, apropriações, etc; hipóteses extra-fonte, ou indiciamento extratextual, quando se pondera a possibilidade de um artefato servir como índice ou lente de aproximação em relação ao mundo de experiências sociais que o concebeu, significou e apropriou, entendendo que tal mundo não é uma estrutura conclusa ou acabada, mas algo que se refaz permanentemente por meio das filigranas de agentes sociais (indivíduos, grupos, instituições, etc) com recursos materiais e imateriais díspares, valorados conforme práticas e códigos específicos de distinção ou assimetria social, em relação aos quais um filme pode ser um índice social (parcial) crítico ou conformista .

G N A R U S | 47 No fazer de minha pesquisa e de docente, tenho como meta ideal equilibrar essas duas ênfases de contextualização, explorando o filme como efeito, evento e/ou agente de um mundo de experiências em processo aberto de configuração. Sendo assim, mesmo que a pergunta do historiador foque-se em uma dessas ênfases no produto final da pesquisa, considero recomendável que seu processo de pesquisa esteja sensível à dimensão ficcional de seu artefato e ao potencial ficcional de sua pergunta que o transforma em fonte, pois é ficcional à medida que, tanto no mundo social de experiências de um passado/presente que produz dialeticamente um artefato quanto no mundo social de experiências de um presente que dialeticamente o transforma em fonte para pesquisa, há uma ação social (que não ocorre num vazio de relações sociais e de poder) visando a configurar ou fixar formas significativas para usos específicos, o que significa visibilizar determinados aspectos da experiência em função das expectativas de abordagens valorizadas num momento ou campo social específico, que justamente invisibilizam ou silenciam outros aspectos de experiências contidos num artefato, que permanecem na penumbra até que novas perguntas surjam para testar a viabilidade de resposta de sua materialidade . Nesse sentido, uma “fonte escrita” não é menos complexa do que uma “fonte imagética” e, em várias situações de pesquisa, há uma relação de referência, citação, sobreposição, justaposição, alegorização e circularidade entre essas formas de fontes, de modo que distingui-las a prioristicamente em “campos” pode inviabilizar um trabalho mais auto-reflexivo e complexo de reconstituição histórica ou de proposição de hipóteses contextuais . Assim, penso que, depois da virada crítica da História Cultural, pensar filme como fonte não é algo que precise de uma defesa especial, justificativa diferenciada ou campo de especialistas, como se ainda estivéssemos vivenciando a polêmica Braudel/Ferro de paradigma de História Social e cientificidade das décadas de 1960 e 1970 . Até o momento, infelizmente, quando vejo debates sobre “História e Cinema”, tal como testemunhei na ANPUH Nacional de 2011 (USP), considero os pressupostos de debate, de objeto e de escrita já muito envelhecidos. O contexto de escrita de Marc Ferro sobre este assunto não é mais o atual, pois não vivemos mais sob o mesmo regime de historicidade que tornava “História e Cinema” uma espécie de tema para combate e, reativamente, um tipo de “campo ad hoc” em face dos paradigmas de cientificidade da História Social à la Braudel. Assim, vejo que,


independentemente do interesse de pesquisa e do campo histórico ou foco de interesse do historiador atual, a História Cultural – que emergiu como crítica à História das Mentalidades e à velha História Social na França – trouxe para os historiadores em geral uma contribuição crítica que complexifica a análise qualitativa das fontes ao trazer para nossa operação historiográfica a noção de materialidade textual . Por tudo isso, vejo com pesar a situação de professores em algumas universidades públicas para os quais são encaminhados “alunos de História e Cinema” porque se entendem (ou são entendidos) como “professores de História e Cinema”, somente porque tais discentes têm interesse em usar como fontes alguns filmes para os quais trazem perguntas que poderiam ter relação mais coerente com temas e áreas de pesquisa em História do Brasil, História Contemporânea, História dos EUA, Teoria da História e História da Historiografia (aqui, por exemplo, há um potencial ainda pouco explorado para estudos de biografias, pois a operação biográfica em filmes merece nossa atenção tanta quanto aquela manifesta em livros!... ), História da América, etc. Várias são as formas e tradições de repertórios temáticos e expressivos referidos a agendas de escolhas próprias de uma época e lugar de produção fílmica. Por meio de suas regularidades internas de forma, tradição estético-expressiva, repertório temático, escolha de elenco, caracterização de personagens e viabilidade tecnológica, os filmes não apenas podem reproduzir ou tornar presente uma experiência e/ou expectativa extrafílmica (simplificadamente, vou chamar isso de tendência Marc Ferro de estudo), mas também serem encarados como o próprio evento a ser analisado (simplificadamente, vou chamar isso de tendência McKenzie de estudo). Como qualquer evento, um filme não ocorre num vazio de relações sociais e institucionais, pois é produzido em meio a, para e/ou por meio de relações assimétricas (antitéticas ou não) de raça, etnia, religião, classe social, recursos materiais e imateriais, etc. Como evento, um filme não é apenas efeito estruturado, mas agente estruturante que propõe/produz ações efetivas ou expectativas por meio de sua materialidade específica. Como agente estruturado/estruturante de experiências e expectativas, portador de uma materialidade específica e referido a um repertório sociocultural, um filme pode expor, propor ou questionar: valores, ideias, comportamentos e concepções (políticas, econômicas, sociais, intelectuais, científicas, estéticas, etc); paradigmas de causalidade,

G N A R U S | 48 temporalidade, fé e poder; operações historiográficas, biográficas e dramáticas; entendimentos dos laços humanos, das relações de trabalho, de eventos, de pessoas, de instituições, etc; narrativas de passado, presente e futuro; padrões de subjetividades, de intimidade, de relações de gênero, de pudor, de distinção social, etc; padrões e/ou críticas estéticas, morais, sociais, etc. Em suas primeiras discussões sobre “História e Cinema”, Marc Ferro ainda fazia uma distinção hierárquica entre “filme ficcional” e “cinejornais”, pois entendia que estes últimos seriam índices mais adequados para quem pretendesse inventariar os “conteúdos latentes” da “realidade externa” que se imprimia em seus fotogramas . Da década de 1970 até meados da década de 1980, a escrita de Ferro sobre cinema estava muito marcada por um viés crítico que pensava a sua (contra)análise de uma forma que se reduzia a um jogo de decifração ideológica que suscitasse consciência e desvelamento para o grande público e, deste modo, propunha uma operação historiográfica cujo viés crítico não se diferenciava, por exemplo, dos objetivos da operação filmográfica de Rossellini nas décadas de 1960 e 1970 . No entanto, depois da virada crítica da História Cultural, este tipo de distinção não teria mais sentido para nenhum tipo de fonte, pois nosso regime atual de historicidade está cada vez mais consciente da indissociabilidade entre forma e conteúdo, assim como, do efeito estruturante da pergunta do historiador na configuração de hipóteses contextuais. Além disso, as expectativas originais de Marc Ferro sobre o filme como fonte não respondem aos desafios de “indiciamento de realidade” do cinema digital pós-Matrix. Ademais, contextualizar significa, atualmente, fazer uma reconstituição conscientemente hipotética de realidade a partir de recortes provocados pela pergunta do historiador, pela tradição crítica que enforma a sua pergunta/olhar e pela resistência das fontes às suas perguntas e métodos, estando o historiador consciente de: (1) que sua fonte é estruturada por/para um lugar institucional-social de uso que pode mudar com o tempo, sofrendo deslocamentos de significados e usos; (2) que sua fonte pode se posicionar (crítica ou conformativamente) em relação a regras de gosto e decoro; (3) que sua fonte pode sofrer apropriações e deslocamentos que não necessariamente se conformam com a materialidade que definia para ela uma intenção original de uso e significado; (4) que o suporte físico e forma de composição de sua fonte também fazem parte de seu significado; (5) que a sua fonte pode ser também um


agente estruturante do campo social das experiências e não mero produto passivo deste. Considerando isso, um historiador pode ter uma pergunta estruturante de pesquisa que se foque em (ou oscile entre): o evento-filme, a figuração de um evento no filme (pessoas, ideias, valores, instituições, acontecimentos individuais, naturais e coletivos, etc) e os indícios do extrafílmico no filme. O importante é perceber que não existe um único modo de transformar um artefato fílmico em fonte. Um bom cuidado com caracterização da fonte é comum a todo trabalho do historiador, com ou sem artefatos fílmicos. A tarefa de caracterizar qualitativamente uma fonte dependerá do entendimento que se constrói do que seja a sua materialidade, de modo a se aferir a sua capacidade/resistência de responder as perguntas do historiador. Um filme cinematográfico é um complexo específico (pático-racional-linguístico-imagéticosonoro-performático) , mas é apenas um tipo de complexo entre vários outros artefatos produzidos na sociedade. Por isso, a sua caracterização enquanto fonte não é mais difícil, complexa ou problemática do que a fonte escrita, mas simplesmente distinta, pois toda fonte tem suas regularidades internas – felizmente para nós – inexauríveis. É assim que gostaria que fosse entendida a minha afirmação de que não entendo que haja especialista de “História e Cinema” ou especialista de “História e Imagem”, etc, da mesma forma que não existe especialista de “História e Fonte Escrita”, pois, no meu entendimento, não existe especialista em formas de fontes, mas em temas para os quais os artefatos são apenas condições de possibilidade para o desafio da pesquisa – e tais temas podem ou não criar, conforme o interesse e a pergunta do historiador, recorrência no trato de um tipo de fonte. Por fim, há de se considerar que não existe fonte, mas somente matéria inerte, até o momento em que um artefato sofre o recorte e resiste à pergunta estruturante do historiador. De acordo com o tema/interesse de um historiador, a sua pesquisa poderá abarcar diferentes tipos de fontes, cujas materialidades criarão padrões diferenciados de referencialidade e resistência à pergunta estruturante do seu tema de pesquisa. É desta relação dialética de resistência entre a pergunta conscientemente estruturante do historiador e as materialidades das fontes que nasce, em minha opinião, uma operação historiográfica mais auto-reflexivo e a possibilidade de aferir mérito intelectual de uma pesquisa que seja efetivamente desafiadora e seminal. Trata-se de um

G N A R U S | 49 ganho crítico do qual não deveríamos abrir mão, um ganho crítico que a História Cultural trouxe para todos os tipos e formas de historiadores.

Alexander Martins Vianna é Mestre e Doutor em História Social pelo PPGHIS-UFRRJ e Professor Adjunto II de História Moderna do DHIST-UFRRJ.

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